Cláusula take or pay não dá direito de receber produto após período contratual para utilização

A Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) entendeu que a condenação ao pagamento do consumo mínimo pactuado na cláusula take or pay não dá ao comprador o direito de receber o produto correspondente após o período contratual para utilização. Para o colegiado, o pagamento do consumo mínimo não confere ao comprador o direito de, no mês seguinte, obter o volume de gás que deixou de consumir no período anterior, e pelo qual teve de pagar.

Na origem do recurso analisado pela turma, foi ajuizada ação de cobrança por uma empresa fornecedora de gás natural comprimido, em razão do descumprimento da obrigação de pagar convencionada em contrato de compra e venda do tipo take or pay.

Conforme o processo, a empresa consumidora do produto havia assumido a obrigação de pagar um valor mínimo relativo a certa quantidade de gás. Entretanto, ela deixou de consumir o produto e de pagar o montante devido, mesmo após tratativas para a quitação da dívida.

O juízo condenou a ré a pagar o valor devido, mais juros de mora e correção monetária, podendo compensar os valores já pagos. Além disso, o magistrado assegurou à ré o recebimento do produto correspondente ao valor pago, mesmo após o período em que ele deveria ter sido utilizado, sob pena de enriquecimento sem causa da autora da ação. O Tribunal de Justiça de Minas Gerais (TJMG) manteve a sentença.

Cláusula apresenta vantagens para todas as partes

Relatora do caso no STJ, a ministra Nancy Andrighi explicou que a cláusula take or pay obriga o comprador a pagar por uma quantidade mínima especificada no contrato, ainda que o insumo não seja utilizado. Segundo apontou, “uma das partes assume a obrigação de pagar pela quantidade mínima de bens ou serviços disponibilizados, independentemente da flutuação da sua demanda”.

A relatora destacou que, apesar de não inserida no ordenamento jurídico brasileiro, essa prática está comumente presente em contratos de prestação continuada de fornecimento de produtos. De acordo com a ministra, a inserção dessa cláusula no contrato proporciona ao fornecedor segurança para investir e atender à demanda do adquirente, enquanto este se beneficia ao pagar um preço menor pelo produto.

“Se houver aquisição da quantidade mínima estipulada ou de quantidade superior a ela, o preço a ser pago corresponderá à demanda efetivamente consumida, não se aplicando a cláusula take or pay“, completou.

Fornecimento do que não foi consumido inutilizaria a cláusula

Nancy Andrighi afirmou que, mesmo não consumindo a quantidade mínima de produto disponibilizada pelo vendedor no período ajustado, o comprador terá de pagar o valor estipulado na cláusula. Ela ressaltou que, nesse modelo contratual, o comprador assume o risco da oscilação da demanda e, em contrapartida, será beneficiado com um preço menor.

“Por se tratar de um contrato de trato sucessivo, no período subsequente, ela não terá direito ao recebimento da diferença entre o volume mínimo, pela qual pagou, e a quantia efetivamente consumida”, completou a ministra ao apontar que a desconsideração do risco assumido pela adquirente acarretaria a ineficácia da cláusula take or pay.

Com esse entendimento, foi dado provimento parcial ao recurso para afastar a obrigação imposta à fornecedora de entregar o volume de gás correspondente ao valor mínimo efetivamente pago.

Comissão que fiscaliza rompimentos de barragens debate ação de Mariana (MG) contra mineradora inglesa

Will Shutter / Câmara dos Deputados
Rogério Correia fala durante reunião de comissão
Rogério Correia é o coordenador da comissão e autor do requerimento

A comissão externa para Fiscalização dos Rompimentos de Barragens e Repactuação da Câmara dos Deputados vai discutir nesta quarta-feira (20) a ação judicial do município de Mariana (MG) contra a mineradora BHP Billiton na Justiça inglesa.

A audiência está marcada para as 16h30, no plenário 6.

O debate foi pedido pelo coordenador da comissão, deputado Rogério Correia (PT-MG), por sugestão do escritório Pogust Goodhead, que representa o município na ação.

“O escritório destaca que representa judicialmente cerca de 700 mil vítimas, incluindo indivíduos, empresas e municípios, contra as mineradoras responsáveis pelo rompimento da barragem do Fundão, ocorrido em 2015”, afirma Correia.

Fonte: Câmara dos Deputados

Terceira Turma confirma dispensa de formalidades excessivas para execução extrajudicial de taxas condominiais

Para comprovar o crédito na execução extrajudicial de taxas condominiais, o condomínio precisa apresentar apenas cópias da convenção e da ata da assembleia que fixou o valor das cotas ordinárias ou extraordinárias, além dos documentos que comprovem a inadimplência. Com esse entendimento, a Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) rejeitou o pedido de anulação da execução feito pelos coproprietários de uma unidade de condomínio em Santa Catarina, os quais sustentavam que seria obrigatória a apresentação do registro da convenção condominial em cartório de imóveis e do orçamento anual aprovado em assembleia. Para o colegiado, tais exigências são desnecessárias, não têm previsão legal e onerariam demasiadamente o exequente. O pedido de anulação da execução foi negado pelo juízo de primeiro grau e pelo Tribunal de Justiça de Santa Catarina (TJSC). A corte estadual destacou que o artigo 784, inciso X, do Código de Processo Civil (CPC) – que trata dos títulos executivos extrajudiciais – não impõe alto grau de formalismo para que o condomínio ingresse com a execução de taxas condominiais, como sugerido pelos executados. No recurso ao STJ, os devedores insistiram em que a execução só seria possível caso o condomínio apresentasse aqueles documentos.

CPC permite execução de título extrajudicial de crédito condominial

A relatora, ministra Nancy Andrighi, explicou que as regras sobre cobrança de quotas condominiais sofreram modificações relevantes no CPC de 2015, com sua elevação à condição de título executivo extrajudicial – o que trouxe mais rapidez e eficiência à satisfação do crédito condominial. Segundo a ministra, essa modificação também permitiu a propositura direta da execução das contribuições ordinárias ou extraordinárias previstas na convenção do condomínio ou aprovadas em assembleia geral, desde que documentalmente comprovadas. A execução é possível – continuou a relatora – com os documentos comprobatórios do direito creditício, dispensando-se o excesso de formalidades na maneira como são apresentados.

Registro de convenção em cartório é desnecessário na relação analisada

Especificamente sobre o registro da convenção em cartório, Nancy Andrighi esclareceu que a condição é necessária para tornar o documento oponível a terceiros, sendo dispensável no exame da relação entre condomínio (credor) e condômino inadimplente (devedor). Nessa linha, a ministra lembrou ainda a Súmula 260 do STJ, que confirma a eficácia da convenção de condomínio aprovada – ainda que sem registro – para regular as relações entre condôminos. Além de os documentos apontados pelos devedores não serem requisitos previstos legalmente, a relatora avaliou que impor exigências excessivas só faria retardar a execução do direito creditício, “prejudicando os demais condôminos e, eventualmente, premiando o inadimplente”. Fonte: STJ

Mudanças no IRPJ/CSLL das subvenções precisam melhorar

Eis onde estávamos antes da edição da Medida Provisória 1.185/2023:

1) não incidência de IRPJ, CSLL, PIS e Cofins sobre as subvenções para investimento: ajudas estatais, inclusive mitigações tributárias, à implantação ou expansão de empresas, impassíveis de apropriação direta pelos sócios eis que utilizáveis apenas para a absorção de prejuízos ou aumentos de capital (Decreto-lei 1.598/77, artigo 38, parágrafo 2º; Lei nº 12.973/2014, artigos 30 e 50; Lei 10.637/2002, artigo 1º, parágrafo 3º, inciso VIII; Lei 10.833/2003, artigo 1º, parágrafo 3º, inciso IX);

2) equiparação a subvenções para investimento de todos os créditos presumidos de ICMS, por força da norma interpretativa do artigo 10 da Lei Complementar 160/2017 e, ao ver da 1ª Seção do STJ, também do princípio federativo (EREsp. 1.517.492/SP, relatora para o acórdão ministra Regina Helena Costa, DJe 1/2/2018) [1]; e

3) subsistência da distinção entre subvenções de custeio e para investimento quanto aos benefícios negativos de ICMS: isenções, reduções de alíquota ou de base de cálculo, etc. (STJ, 1ª Seção, Tema 1.182 dos recursos repetitivos, relator ministro Benedito Gonçalves, DJe 12/6/2023).

Quando o tema parecia pronto para decantar sob as diretrizes fixadas pelo STJ, a sistemática foi radicalmente alterada pela Medida Provisória 1.185/2023, que revoga os quatro dispositivos em que assentava (listados no item “i”), levando de roldão a regra destinada à interpretação do segundo deles, referida no item “ii” (accessorium sequitur principale).

Em suma, sai de cena a desoneração direta (a priori), por meio da exclusão da base de cálculo do IRPJ, da CSLL, do PIS e da Cofins de benefício unilateralmente qualificado pelo contribuinte, e entra a desoneração indireta (a posteriori), por meio da concessão de créditos fiscais equivalentes ao produto das alíquotas do IRPJ e adicional (mas não da CSLL) por receitas de benefício qualificado pela Receita Federal como subvenção para investimento.

Essa análise ocorre na habilitação do contribuinte, que será deferida sempre que o ato concessivo da subvenção (1) seja anterior ao início da implantação ou expansão do empreendimento e (2) fixe de maneira precisa as contrapartidas a serem observadas por aquele. Requerida a habilitação  o que a nosso ver pode ser feito inclusive quanto aos benefícios anteriores à MP que cumpram os seus requisitos [2]  e ultimada a instalação ou expansão do empreendimento, passará a empresa a gerar, até 31/12/2028, créditos fiscais para compensação tributária ou ressarcimento em dinheiro.

Em resumo: primeiro se oneram o acréscimo patrimonial decorrente das subvenções governamentais, (IRPJ + adicional e CSLL) e as receitas de subvenção (PIS e Cofins), e depois se concede ao contribuinte um crédito fiscal correspondente ao produto das alíquotas do IRPJ e seu adicional pelas receitas de subvenção, desde que posteriores aos marcos temporais mencionados na última sentença do parágrafo precedente. Tal crédito, por sua vez, não integra a base de cálculo de nenhum daqueles tributos, por força de isenção expressa no artigo 11 da MP.

Antes de mais nada, cumpre verificar se, de forma geral (sem prejuízo de críticas pontuais), a nova sistemática é constitucional à luz do conceito de renda e do pacto federativo.

Quanto ao primeiro parâmetro, temos que, embora impassíveis de apropriação direta pelos sócios, via distribuição de dividendos ou redução de capital, as receitas de subvenção os beneficiam indiretamente, na medida em que aumentam a capacidade econômica da empresa. Isso sem falar que não se está a tratar da tributação daqueles, mas desta, que sem dúvida se valoriza em virtude de tais receitas.

Com efeito, o CTN foi expresso na definição da renda tributável, abraçando tanto da teoria da fonte (Quellentheorie) quanto a do acréscimo patrimonial líquido (Reinvermögenszugangtheorie[3]. A segunda, nominalmente contemplada no seu artigo 43, inciso II, tem origem no artigo seminal de Georg Schanz [4], que defende ser a renda caracterizada pelo acréscimo da capacidade econômica do agente, independentemente da origem ou da periodicidade dos recursos que a ensejam. Após os contributos de Robert Haig e Henry Simmons, consolidou-se o conceito de renda SHS (Schanz-Haig-Simmons), que define essa materialidade econômica como o somatório do (1) valor de mercado dos direitos exercidos no consumo e (2) da mudança de valor no estoque de direitos dentro de um período em questão [5], tornando-se o proxy para o desenvolvimento de legislações tributárias em todo o mundo.

A amplitude desse conceito econômico, refletida na opção feita pelo CTN, é compatível com as diretrizes constitucionais da tributação da renda, mormente o princípio da universalidade (CF, artigo 153, parágrafo 2º, inciso I), que exige seja considerada “a globalidade da renda, isto é, o conjunto de elementos, positivos e negativos, que se integram ao patrimônio do contribuinte” [6]. O confronto da teoria com o Direito positivo brasileiro suscita debates como, entre outros, o da necessidade de realização da renda para fim de tributação e o da tributabilidade das doações pelo IR  temas que desbordam o objeto deste artigo e ficam para futuras oportunidades.

Sendo as subvenções em princípio tributáveis, como se vem de demonstrar, a sua exoneração constitui verdadeiro benefício fiscal, para cuja disciplina o legislador tem ampla (embora não irrestrita) liberdade.

Já quanto ao pacto federativo, quer parecer-nos que o EREsp 1.517.492/SP  cuja subsistência vedaria a tributação dos créditos presumidos de ICMS  suscita dois questionamentos que bem podem ser levados ao STF. Formalmente, tem-se que o debate é constitucional, atraindo a reserva de plenário (CF, artigo 97; Súmula Vinculante 10 do STF). Materialmente, pensamos que o desdobramento tributário do princípio federativo já foi positivado pelo constituinte na imunidade recíproca, que veda exigências de um ente contra outro, mas não a impede a tributação da renda de pessoas privadas, no que decorrente de State aids  as quais, de resto, salvo se consistirem em repasses de dinheiro, sequer serão amesquinhadas por essa incidência, visto que os tributos a elas vinculados serão necessariamente pagos com outros recursos [7]. Ao empreender essa extensão subjetiva, ampliando ainda a proteção à CSLL, quando a imunidade se limita a impostos (extensão objetiva), o STJ fez interpretação corretiva da Constituição, o que demandaria enorme ônus argumentativo e  mais uma vez  sequer seria atribuição sua.

Nem se invoque, por fim, uma suposta contrariedade da MP à Lei Complementar 160/2017, já porque esta tratou de matéria passível de lei ordinária, não havendo falar em hierarquia (STF, Pleno, ADC 1, relator ministro Moreira Alves, DJ 16/6/1995), já porque tem caráter interpretativo de dispositivo revogado pela medida provisória, perecendo junto com este por carecer de sentido isoladamente (STF, Pleno, ADI 605 MC, relator ministro Celso de Mello, DJ 5/3/1993).

Embora válido, o novo regime padece de defeitos que merecem correção ao longo do processo de conversão da MP em lei, a saber:

  • a limitação dos créditos à parcela correspondente à alíquota do IRPJ, excluída a CSLL, que acarreta aumento de carga tributária face ao cenário anterior;
  • a restrição das receitas de subvenção geradoras de créditos às posteriores ao fim da implantação ou expansão do empreendimento, que chega a ser paradoxal por deixar de fora precisamente aquelas auferidas durante as etapas que visam a custear (afinal, trata-se de subvençãopara e não pelo  investimento);
  • a delimitação temporal do benefício, previsto para encerrar-se em 31/12/2028, quando melhor seria mantê-lo aberto a novos contribuintes e ajudas estatais, e restringir as receitas geradoras de créditos fiscais ao valor despendido em cada caso na implantação ou expansão do empreendimento. Se mantido, o prazo terá ao menos a vantagem de atrair a incidência do artigo 178 do CTN, cuja aplicação a outros benefícios fiscais, além da isenção, é pacífica no STJ (1ª Turma, REsp 1.941.121/PE. Relatora ministra Regina Helena Costa, DJe 9/8/2021);
  • a excessiva estreiteza do conceito de “expansão” comoampliação da capacidade, modernização ou diversificação da produção de bens ou serviços do empreendimento econômico”, que se aferra a uma ultrapassada “fisicalidade” na geração de valor das cadeias produtivas e deixa de fora os investimentos na promoção de marcas ou campanhas publicitárias, por exemplo, que decerto impactam positivamente na geração de receitas, empregos e tributos;
  • a exclusão, na apuração da base de cálculo dos créditos fiscais, das parcelas da receita de subvenção que superem as despesas de depreciação, amortização ou exaustão de bens sujeitos a tais encargos. Como não existe tal teto quanto aos bens cuja despesa é integralmente reconhecida no exercício, essa irrazoável distinção acabará por incentivar arranjos como a substituição da compra pela locação de ativos;
  • por fim, a revogação dos dispositivos que isentavam do PIS/Cofins as receitas de subvenção (sem a correspondente instituição de créditos fiscais proporcionais às respectivas alíquotas). Além de visar a aumento de carga tributária, a medida tenderá a esbarrarpelo menos quanto às subvenções para investimento não consistentes na entrega de dinheiro  no entendimento do STF de que, embora constituem receita para fins contábeis, os créditos presumidos e assemelhados não se sujeitam às contribuições, por não representarem ingresso financeiro que se integra no patrimônio na condição de elemento novo e positivo, sem reservas ou condições” (Pleno, RE 606.107/RS, relatora ministra Rosa Weber, DJe 25/11/2013). Ingresso financeiro haverá, sim, no eventual ressarcimento dos créditos fiscais, mas aqui a isenção está prevista no artigo 11 da MP, conforme já observado acima.

Com os aprimoramentos que sugerimos neste artigo, e outros a serem propostos por observadores mais atentos, ter-se-á um regime tributário das subvenções para investimento superior ao antigo, por equilibrar melhor o necessário incentivo público ao investimento privado com os ditames da capacidade contributiva e da responsabilidade fiscal.

[1] Malgrado a Solução de Consulta Cosit 145/2020, cujo desacerto foi demonstrado aqui por um dos autores.

[2] Nesse caso, o contribuinte deixará de proceder às exclusões de base de cálculo e apurará créditos fiscais quanto às futuras parcelas do incentivo, sujeito às condições listadas no texto.

[3] Alcides Jorge Costa. “Conceito de Renda Tributável“. in Estudos sobre o Imposto de Renda (em memória de Henry Tilbery). São Paulo: Resenha Tributária, 1994, p. 27.

[4] “Der Einkommensbegriff und die Einkommensteuergesetze“. In FinanzArchiv, vol. 13, nº 1, 1896, p. 1–87. JSTOR, http://www.jstor.org/stable/40904651, acesso em 17.09.2023.

[5] Henry C. Simmon. Personal income taxation: the definition of income as a problem of fiscal policy. Chicago: The University of Chicago Press, 1955, p. 50.

[6] Roque Carrazza. Imposto sobre a Renda (Perfil Constitucional e Temas Específicos). São Paulo: Malheiros, 2005, p. 33.

[7] Nem calha a tese do STJ de que a incidência do IRPJ e da CSLL sobre os créditos presumidos de ICMS reduziria a “capacidade de dirigismo econômico dos Estados”. Como observa um dos autores, “sob essa mesma lógica, porque não seria igualmente ofensivo a União deixar de cobrar IRPJ/CSLL sobre um valor que se torna receita tributária dos Estados, como o pagamento do ICMS?” (Carlos Augusto Daniel Neto. A Tributação das Subvenções de Investimento: um mosaico de questões e soluções interconectadas. In Subvenções Fiscais – Caderno de Pesquisas Tributárias 46. São Paulo: MP Editora, 2023, p. 152).

Essa visão outrancière do federalismo fiscal obstaria o abatimento de todos os tributos estaduais e municipais da base de cálculo do IRPJ e da CSLL, por reduzir “a capacidade arrecadatória da União”, conclusão cujo absurdo evidencia o desacerto da premissa.

Novo processo de perdimento e a cortina de fumaça jurídica

A expressão “cortina de fumaça” faz alusão a técnicas utilizadas por estrategistas militares para esconder tropas e recursos por trás de uma nuvem de fumaça, seja ela natural ou produzida artificialmente, como forma de ludibriar e confundir a contraparte, dando a oportunidade para empregar manobras de contra ataque ou retirada. Esse recurso também é comumente utilizado por ilusionistas para desorientar a plateia, desviando sua atenção do momento da execução do truque e dando credibilidade ao resultado da ilusão criada. No entanto, engana-se quem acredita que o recurso é usado somente por militares e mágicos. No mundo político e do direito, esse tipo de subterfúgio também é corriqueiramente empregado.

A discussão em torno do novo processo de perdimento não é inédita. Em verdade, a maior parte dos estudiosos já se posicionou  inclusive, a grande maioria em sentido contrário à legalidade do referido processo [1] Contudo, os artigos e pareceres veiculados até agora tratam basicamente da questão da (1)legalidade da solução aplicada. Por tal motivo, o presente artigo visa contribuir ao debate já lançado de forma inovadora, buscando tratar sobre o futuro e contestar se as medidas são ou não uma mera cortina de fumaça jurídica.

A justificativa da reforma trazida pela Lei 14.651/2023 está relacionada com a possibilidade de o sujeito passivo ter direito ao duplo grau recursal diante da decretação de perdimento pela Aduana, substituindo o rito sumário vigente até então por força do Decreto-Lei 1.455/76, motivada principalmente pelos compromissos internacionais que o país assumiu ao ratificar a Convenção de Quioto Revisada (CQR). Todavia, a nova Lei não possui normas materiais ou processuais, restringindo-se a delegar poderes ao Ministro da Fazenda para regulamentar o processo administrativo de aplicação e julgamento da pena de perdimento, o que de fato ocorreu por meio das Portarias MF 1.005/2023 e RFB 348/2023.

Ainda que não haja qualquer óbice legal para este tipo de delegação de poder, parece-nos curiosa a posição do Poder Legislativo de se eximir da função de legislar e deixar a cargo da Fazenda e da própria RFB, a autoridade aduaneira, regulamentar o novo processo, uma vez que a motivação da reforma era de, justamente, buscar garantir um maior grau de independência do processo recursal em relação às atividades de fiscalização e autuação.

Além disso, as mudanças trazidas ampliaram o já existente “mosaico normativo” do Direito Aduaneiro brasileiro, na medida que permitem que diferentes ritos processuais administrativos possam ser adotados, a depender das circunstâncias, a exemplo da distinção feita para autuações por fraude ao controle aduaneiro com e sem apreensão de mercadorias. Embora ambas as situações sejam passíveis de perdimento, quando houver apreensão de mercadorias, o recurso interposto se sujeitará ao prazo de recurso de 20 dias e será submetido à apreciação do Cejul, ao passo que nos casos em que a mercadoria não for localizada, a pena será substituída por multa e o recurso interposto passa a ter prazo de 30 dias e será submetido à apreciação da DRJ e do Carf.

A expressão “legislação mosaico” é utilizada por Basaldúa para descrever a situação da Argentina antes da promulgação de seu Código Aduaneiro e, assim, criticar as normas dispersas, confusas e, por vezes, contraditórias que coexistiam pela ausência de um quadro normativo consolidado [2]. Apesar de o país vizinho ter, aparentemente, superado a questão, a realidade brasileira de utilização de mini reformas em matéria aduaneira e de delegação do papel de legislador à administração por atos infralegais ainda é bastante presente e preocupante.

A mini reforma tem alguns outros pontos negativos que chamam a atenção, como a imposição/manutenção de prazo de 20 dias para apresentação de impugnação e recurso e a ausência de independência/autonomia da autoridade julgadora nos moldes exigidos pela CQR.

Embora o prazo reduzido para recurso venha sob a (louvável) busca por celeridade processual, da forma como a norma foi estabelecida, essa redução não parece influir de modo decisivo na duração total do processo de perdimento, não se justificando a distinção de prazo em relação ao rito do Decreto 70.235/72.

Cabe lembrar que a exposição de motivos do DL 1.455/76 também indicava preocupação com prazos e custos de armazenagem das mercadorias, mas a solução dada foi a aniquilação do direito de recurso, transformando o rito do perdimento em instância única para acabar com litígios intermináveis [3].

A mesma preocupação com os custos de armazenagem permanece na exposição de motivos da Lei 14.651/2023, com a previsão de prazos recursais reduzidos, ainda que, convenientemente, não tenha sido estabelecida nenhuma imposição de prazos para a duração do processo administrativo e, tampouco, de retenção para fins de lavratura do auto de infração.

A este respeito, a presente mudança parece seguir a mesma linha daquela realizada em 1976, em que se exigiram sacrifícios dos sujeitos passivos sem a devida contraprestação da administração no sentido de buscar celeridade nas análises recursais, prever expressamente na legislação prazos para julgamento e, consequentemente, regulamentar o tratamento a ser dispensado para os casos em que seus agentes descumprirem esses prazos.

É possível que isso decorra de outra característica em comum entre as duas reformas, que é a definição do rito pelo próprio aplicador, o que, como indicado anteriormente, é reflexo da omissão do Congresso Nacional. Com isso, o Executivo federal não apenas delimitou as hipóteses infracionais puníveis com perdimento (Decreto-Lei 37/66), como também regulamentou o rito por meio do qual as autuações serão julgadas.

O resultado desse cheque em branco? As autuações realizadas pela RFB em matéria aduaneira serão julgadas em tribunal administrativo inteiramente formado por seus servidores e sob regras emanadas dentro da própria instituição.

Interessante destacar que as preocupações de juristas e advogados militantes na área encontram guarida na visão emanada pela PGFN por ocasião da publicação de parecer para tratar da autonomia dos julgadores indicados pela RFB ao Carf. Naquela ocasião, ainda que sob situação fática diversa, a Procuradoria categoricamente indicou que a legitimidade do Carf estaria resguardada justamente pelo fato de que o órgão “não integra a estrutura da Secretaria da RFB, de modo que sua autonomia seria ferida se os AFRFBs conselheiros fossem a ela subordinados tecnicamente ao exercerem função pública” e que “como os representante da Fazenda no CARF não estão jungidos às diretrizes emanadas pela RFB, mas sim à legalidade, atuam com independência técnica” [4].

Em resumo, todos os argumentos da PGFN para demonstrar que os julgadores do Carf seriam independentes e imparciais, de forma a dar legitimidade ao processo administrativo sob o rito do Decreto nº 70.235/72 podem ser, ipis litteris, utilizados para contestar a validade da reforma atual e a imparcialidade e adequação do Cejul.

Isso porque, além da especialização para julgar a matéria, é necessária a independência funcional e hierárquica, de modo que os julgadores decidam sem pressão de qualquer tipo pelos envolvidos no conflito e que o tribunal emita decisões de maneira objetiva, fundamentada e imparcial. Sem isso, a efetividade do recurso resta prejudicada e faz-se dele uma etapa meramente ilusória. A expressão “recurso ilusório” se refere a situações em que o processo, pela forma como é conduzido, perde sua utilidade prática, tornando-se um mero rito burocrático de confirmação da decisão inicialmente adotada [5].

Não podemos afirmar, no presente momento, se os recursos apresentados ao Cejul sob o novo rito serão ilusórios, mas as preocupações existem e se fundamentam por diversas formas. Fato é que, diante das desconfianças, o grau de litigiosidade e judicialização devem aumentar, o que não é boa notícia para nenhuma das partes envolvidas.

Diante disso, acreditamos que existem três possíveis cenários em relação ao futuro da discussão sobre a aplicação da pena de perdimento e a efetividade das novas normas correlatas.

O primeiro é a provável discussão judicial da matéria, em que muitos sujeitos passivos devem provocar o Poder Judiciário para realizar o controle de legalidade do novo rito. Ainda que haja real chance de vitória, preocupa-nos os desdobramentos de uma eventual declaração de ilegalidade, visto que os processos seriam provavelmente encaminhados ao Carf, sem qualquer planejamento ou estrutura para tanto.

O segundo é que os tutelados se submetam à jurisdição do Cejul e passem a acompanhar de forma atenta o seu desempenho, de forma a verificar se as suspeitas de “recurso ilusório” ou cortina de fumaça concretizem-se ou não. A esse respeito, existe a aparente vantagem do novo rito em relação à DRJ de que haverá obrigação de publicação de ementas e decisões, o que deve trazer maior transparência ao processo e permitirá que a sociedade possa acompanhar o desempenho e a esperada isenção e tecnicidade prometidas pela RFB quando da criação do centro de julgamentos.

Por fim, o terceiro cenário  e, quiçá, o mais promissor, ainda que independa dos demais  é que a comunidade do comércio exterior não desista de debater a temática e que continue a negociar e discutir possíveis caminhos para efetivamente compatibilizar os procedimentos internos com as obrigações assumidas pelo Brasil em compromissos internacionais, em especial, a CQR.

Neste ponto, parece-nos que a única maneira de endereçar de forma efetiva o problema, contemplando todas as variáveis e preocupações existentes tanto da aduana quanto dos operadores do comércio exterior é por meio de uma ampla reforma não apenas no rito de julgamento do perdimento, mas no próprio sistema punitivo.

O que vemos hoje é um sistema antigo, apartado da realidade fática do comércio exterior e que impõe a pena de perdimento para uma enorme quantidade de infrações. O curioso é que, na maior parte delas, apesar da apreensão, os bens são posteriormente leiloados  ou doados  sendo oportunizado ao infrator adquiri-los novamente para revenda ou utilização. Com isso, o que se verifica é que o sistema atual sobrecarrega injustificadamente a administração, que precisa manter a correta guarda das mercadorias, visto que, ao final, os bens poderão ter a mesma destinação inicialmente pretendida.

Dito isso, a redução das hipóteses de perdimento aos casos estritamente necessários  ou seja, àqueles em que a mercadoria não pode ser destinada ao mercado interno em razão de proibição, contrabando, ausência de homologações e controles técnicos e sanitários  e a definitiva mudança de punição dos demais casos para multa ou outra penalidade que não comprometa o fluxo comercial e não implique dever de guarda e destinação pela aduana, soa como a única solução viável e que permite a efetiva conformação de todos os direitos e preocupações existentes.

Dado o exposto, esperamos que o debate continue vivo e que haja espaço para que uma verdadeira reforma no direito aduaneiro possa ser perseguida e promovida. E, por ora, resta a torcida para que as alterações recentes não tenham sido realizadas apenas para dar uma aparência de conformidade com os compromissos internacionais assumidos pelo governo brasileiro, ou seja, que não se confirmem como uma mera “cortina de fumaça” jurídica.

[1] A este respeito, vale conferir o artigo publicado nesta coluna em 29/08/2023.

[2] BASALDÚA, Ricardo Xavier. La sancion del Código Aduanero: su importância a nivel nacional e internacional. Revista El Derecho n. 92, 1981.

[3] BRASIL. DIÁRIO DO CONGRESSO NACIONAL. Mensagem n. 35. Diário Oficial de 24 de abril de 1976.

[4] Parecer PGFN/CJU/COJPN nº 787/2014.

[5] LASCANO, Julio Carlos. Procedimientos aduaneros. Buenos Aires: Omar Buyatti, 2015, p. 32.

Fonte: Conjur

Perdas causadas aos pisos pela LC 194 estão mal compensadas

Na semana passada, a Câmara dos Deputados aprovou o Projeto de Lei Complementar nº 136/2023, que “dispõe sobre a compensação devida pela União, nos termos do disposto nos art. 3º e art. 14 da Lei Complementar nº 194, de 23 de junho de 2022; a dedução das parcelas dos contratos de dívida; a transferência direta de recursos da União aos estados e ao Distrito Federal; a incorporação do excesso compensado judicialmente em saldo devedor de contratos de dívida administrados pela Secretaria do Tesouro Nacional do Ministério da Fazenda; e o tratamento jurídico e contábil aplicável aos pagamentos, às compensações e às vinculações”.

Vale lembrar que as Leis Complementares nº 192 e 194, respectivamente, de 11 de março e de 23 de junho, ambas de 2022, promoveram uma inconstitucional inibição da arrecadação do imposto sobre operações relativas à circulação de mercadorias e sobre prestações de serviços de transporte interestadual e intermunicipal e de comunicação — ICMS, às vésperas do processo eleitoral do ano passado.

Aludida fixação de alíquotas limítrofes para o ICMS empreendida pela União afrontou o pacto federativo e implicou redução da base arrecadatória sobre a qual incidem os porcentuais constitucionalmente estabelecidos como deveres de aplicação mínima em saúde e educação e como sistemática de equalização federativa que perfaz o Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação. Para fazer face à perda proporcional para os pisos e para o Fundeb, houve a inserção no âmbito da LC 194/2022 do dever de compensação federativa, na forma do seguinte artigo 14, que chegou a ser vetado pelo Executivo e teve seu veto derrubado pelo Congresso Nacional:

Art. 14. Em caso de perda de recursos ocasionada por esta Lei Complementar, observado o disposto nos arts. 3º e 4º, a União compensará os demais entes da Federação para que os mínimos constitucionais da saúde e da educação e o Fundeb tenham as mesmas disponibilidades financeiras na comparação com a situação em vigor antes desta Lei Complementar.
Parágrafo único. Os Estados, o Distrito Federal e os Municípios beneficiários do disposto nos arts. 3º e 4º desta Lei Complementar deverão manter a execução proporcional de gastos mínimos constitucionais em saúde e em educação, inclusive quanto à destinação de recursos ao Fundeb, na comparação com a situação em vigor antes desta Lei Complementar.

Eis o contexto primordial que justificou o PLC 136/2023, todavia o limite máximo ali previsto de R$ 27.014.900.000,00 (vinte e sete bilhões quatorze milhões e novecentos mil reais) para compreender as compensações previstas tanto no artigo 3º, quanto no artigo 14 da LC 194/2022 é francamente insuficiente para equalizar as perdas decorrentes da inibição do ICMS para as políticas públicas amparadas pelas garantias de custeio inscritas nos arts. 198, 212 e 212-A da Constituição.

Se se considerar apenas o exercício de 2022, para cada R$100 de queda na arrecadação de ICMS, haveria uma perda proporcional para as vinculações constitucionais de R$ 40,75. Caso a inibição do ICMS empreendida pela LC 194 não tivesse sido declarada inconstitucional pelo Supremo Tribunal Federal no âmbito da ADPF 984 e da ADI 7.121, haveria uma tendência de perda proporcional ainda maior, por força da Emenda Constitucional nº 108, de 26 de agosto de 2020, que previu crescimento escalonado da complementação da União ao Fundeb até 2026, na forma do artigo 60 do ADCT.

Todavia, importa lembrar que as LC’s 192 e 194/2022 não são expressão isolada de constrangimento fiscal imposto pela União aos demais entes federados ao longo do ano passado. A elas se somaram tanto fixação nacional de despesas obrigatórias, como se sucedeu com o piso remuneratório dos profissionais da enfermagem no âmbito da Emenda 124/2022; quanto a inibição da arrecadação tributária repartida federativamente, tal como ocorreu com a redução de alíquotas do imposto sobre produtos industrializados (IPI), empreendida pelos decretos federais nº 11.158 e 11.182, respectivamente de 29 de julho e de 24 de agosto, ambos de 2022.

Aliás, o desequilíbrio federativo em que o país se encontra resta bem evidenciado na tardia promulgação da Emenda 128, de 22 de dezembro de 2022, após a PEC 122/2015 haver sido aprovada em caráter definitivo em 14 de julho daquele ano, mesma ocasião em que havia sido promulgada a Emenda 124/2022, que trouxe o piso remuneratório nacional dos profissionais da enfermagem. A Emenda 128/2022 inseriu o seguinte §7º no artigo 167 da Constituição de 1988:

Art. 167. […]
§ 7º A lei não imporá nem transferirá qualquer encargo financeiro decorrente da prestação de serviço público, inclusive despesas de pessoal e seus encargos, para a União, os Estados, o Distrito Federal ou os Municípios, sem a previsão de fonte orçamentária e financeira necessária à realização da despesa ou sem a previsão da correspondente transferência de recursos financeiros necessários ao seu custeio, ressalvadas as obrigações assumidas espontaneamente pelos entes federados e aquelas decorrentes da fixação do salário mínimo, na forma do inciso IV do caput do art. 7º desta Constituição.

Omissões análogas se sucedem também com a restrição do alcance da sistemática de complementação federal ao piso do magistério constante da Lei 11.738, de 16 de julho de 2008, tal como foi prevista em seu artigo 4º, a apenas aos entes que recebem a complementação ao Fundeb.

A edição de norma nacional em desfavor dos estados, DF e municípios, frustrando sua arrecadação anteriormente estimada ou gerando despesa obrigatória de caráter continuado, deveria ser formalmente reconhecida como risco fiscal, na forma do artigo 4º, § 3º da Lei Complementar 101, de 4 de maio de 2000. Isso porque a recorrente e abusiva extrapolação de efeitos fiscais das competências legislativas da União para os demais entes federados se revela como medida capaz de comprometer o regime de responsabilidade intertemporal das contas públicas em todo o federalismo fiscal brasileiro. Os passivos contingentes decorrentes das cada vez mais volumosas demandas judiciais interfederativas atestam exatamente essa dimensão de risco.

Inibir receitas repartidas e impor despesas obrigatórias a outros entes políticos são condutas da União que impactam fortemente a capacidade de gerenciamento compartilhado de serviços públicos essenciais no território nacional, até porque operam em sentido francamente contraditório, agravando a saúde das contas públicas estaduais, distritais e municipais.

Como visto, a cada R$ 100 de perda da arrecadação de ICMS causada pela LC 194, os pisos em saúde e educação e o Fundeb sofreram com a perda proporcional de R$ 40,75 durante o exercício financeiro de 2022. Todavia, reduzir a carga tributária não é uma escolha discricionária isenta de repercussão fiscal, na medida em que há um tamanho indisponível do Estado brasileiro do ponto de vista do arcabouço normativo que rege as finanças públicas do país.

Engana-se quem acha que a carga tributária pode ser reduzida de forma aparentemente ilimitada e quase completamente dissociada dos compromissos incomprimíveis de gasto atribuídos ao Estado pela Constituição de 1988.

Caso não haja aprimoramento da qualidade da execução orçamentária para torná-la mais aderente ao planejamento setorial das políticas públicas, inibir as receitas tributárias necessariamente implicará escolher entre reduzir quantitativamente o raio da ação estatal, ou majorar o endividamento público. Em qualquer dessas hipóteses, haverá uma frustração do regime constitucional das finanças públicas brasileiras.

Eis o contexto em que é preciso pautar a estreita conexão instrumental entre as receitas estatais e o rol de despesas não suscetíveis de limitação de empenho ou pagamento, na forma do artigo 9º, §2º da LRF. Tais despesas devem ser mantidas, ainda que a estimativa de arrecadação se revele frustrada ao longo do exercício financeiro e ainda que haja risco de afetação das metas fiscais. O tamanho do Estado no Brasil não pode ser reduzido em patamar aquém desse elenco que agrega as despesas que correspondem às suas inadiáveis e incomprimíveis obrigações constitucionais e legais.

Inibir a arrecadação da primordial fonte republicana de custeio do Estado é escolha que, no mínimo, deveria demandar maiores ônus argumentativos, para que estivesse sujeita dialeticamente a limites que atestassem seus impactos quantitativos e qualitativos no dever de consecução das competências a cargo de cada ente da federação, bem como a cargo de todos eles conjuntamente.

Para impor suficiente dever de motivação ao governo federal é preciso obrigá-lo a reconhecer como riscos fiscais tanto a frustração da arrecadação repartida federativamente, quanto a imposição nacional de despesa obrigatória de caráter continuado sem suficiente fonte de custeio.

Os passivos judicializados são uma comprovação ex post desse impasse federativo. Não obstante isso, é necessário impor à União — preventiva e automaticamente — dever de compensação capaz de suportar, no mínimo, o custeio do rol de despesas não suscetíveis de contingenciamento, para resguardar a continuidade dos serviços públicos, que, embora sejam prestados de forma descentralizada por determinados entes, impliquem responsabilidade solidária de toda a federação.

Um interessante e recente exemplo a esse respeito reside no modo como a Emenda nº 120, de 5 de maio de 2022, previu ser responsabilidade da União o custeio dos vencimentos dos agentes comunitários de saúde e dos agentes de combate às endemias. Tal responsabilidade federal será atendida mediante repasses de recursos financeiros aos governos regionais e locais, de forma suficiente e vinculada ao cumprimento do piso salarial profissional nacional previsto no artigo 198, §5º da CF/1988. É notável e digno de ser reproduzido, pois, o caminho de equalização do federalismo fiscal brasileiro aberto pelos §§7º a 11 acrescidos ao artigo 198 da Constituição pela EC 120/2022.

Para mitigar o desequilíbrio na gestão das receitas e na distribuição das responsabilidades de despesas que permeia as relações entre os entes federados, é preciso inverter a equação fiscal de modo a controlar a proposição normativa federal, antes mesmo de a União conseguir alterar o ordenamento para impactar as contas dos demais entes políticos, como, a propósito, consta do §7º acrescido ao artigo 167 da Constituição, pela EC 128/2022.

Manter a sistemática atual, além de fiscalmente irresponsável, significaria admitir que a União obrigue, por via transversa, os estados, DF e municípios a assumirem dívida, por força da atuação fiscalmente incongruente de reduzir receitas tributárias repartidas, enquanto são descentralizadas obrigações de despesas (a exemplo do piso da enfermagem e inibição do IPI e do ICMS).

É possível estimar o risco fiscal de majoração do endividamento público dos governos municipais, distrital e estaduais, quando se verificar que a frustração de arrecadação que lhes foi imposta exogenamente pelo governo federal pode vir a comprometer a capacidade de custeio do rol de despesas não suscetíveis de contingenciamento (artigo 9⁰, §2º da LRF).

Não há voluntarismo analítico em tal hipótese, porque a identificação de tais despesas constitucional e legalmente obrigatórias deve ser feita anualmente em anexo próprio das leis de diretrizes orçamentárias — LDO’s de cada ente da federação, sendo possível quantificar sua repercussão fiscal a cada exercício.

Trata-se, em última instância, da positivação aplicável ao Direito Financeiro da noção de “mínimo existencial” acerca dos serviços públicos e ações governamentais que não podem sofrer solução de continuidade.

Considerando que esse elenco de despesas não suscetíveis de qualquer limitação durante a execução orçamentária corresponde a uma espécie de “mínimo existencial fiscal” e que, por isso, seu custeio se impõe até mesmo mediante endividamento público, é preciso ampliar o conceito de responsabilidade fiscal, na medida em que abdicar receitas tributárias não é escolha discricionária que estaria limitada tão somente pelo horizonte formal da sustentabilidade da dívida pública dado pela meta de resultado primário.

Há correlatamente o limite substantivo do dever de custeio suficiente das despesas não suscetíveis de contingenciamento. Tais despesas são incomprimíveis, porque expressam o tamanho necessário do Estado para cumprir, cabe reiterar, suas obrigações constitucionais e legais qualitativamente destinadas à garantia dos direitos fundamentais.

Independentemente de se for tomada a projeção de risco para cobrir a despesa insuscetível de contingenciamento (montante fixo de compromissos de gasto já assumidos) ou de se for tomada a proporcionalidade sobre a receita que contrafactualmente deixou de ser arrecadada, para fins de posterior incidência dos pisos em saúde e educação e do Fundeb, cabe impor ao governo federal o ônus agravado de motivação diante da insuficiente compensação empreendida pelo PLC 136/2023 em face do artigo 14 da LC 194.

Considerando que a União, ao inibir a arrecadação do ICMS, impôs — direta ou indiretamente — o risco fiscal de financiamento mediante endividamento das despesas obrigatórias dos governos locais e regionais; é preciso indagar acerca da razoabilidade e da proporcionalidade dessa equação, na medida em que estados, DF e municípios têm limite de dívida consolidada e mobiliária regulamentado na forma do artigo 52, VI e IX da CF/1988 (Resolução do Senado nº 40, de 20 de dezembro de 2001), enquanto a União não o possui.

Obviamente, é incoerente editar regimes fiscais aplicáveis seletivamente apenas ao nível federal (como se sucedeu com a EC 95/2016 e também agora se repete com a LC 200/2023), enquanto são impostos desequilíbrios orçamentários e financeiros desarrazoados para os demais entes da federação. Criar despesas obrigatórias de âmbito nacional e frustrar a arrecadação de tributos repartidos são rotas contraditórias, que, em última instância, afrontam a própria garantia de que as transferências constitucionais obrigatórias são exceção ao teto, precisamente porque visam resguardar o equilíbrio federativo.

Basta a União reduzir artificialmente a receita dos impostos repartidos na federação e impor nacionalmente obrigações de despesa aos governos estaduais e municipais para fazer letra morta das suas falseadas rotas de ajuste fiscal.

Não há ação planejada e transparente, nos moldes do artigo 1º, §1º da LRF, mas risco fiscal imposto e assumido pela União, inclusive mediante passivos judicializados, quando o ente central compromete a sustentabilidade das finanças públicas locais e regionais, de um lado, e esvazia a eficácia dos direitos sociais, cujo arranjo orgânico distribui responsabilidades na federação, como se sucede com o SUS e o Fundeb, de outro.

Esse quadro é agravado pela retração da participação da União no custeio dos direitos fundamentais (guerra fiscal de despesas), decorrente, entre outras circunstâncias, da regressividade proporcional e, por conseguinte, esvaziamento dos pisos federais em saúde e educação.

Mais do que um mero limite quantitativo arbitrário, deve se buscar identificar e enfrentar materialmente os riscos fiscais do desequilíbrio federativo, os quais impedem a consecução intertemporalmente aprimorada dos programas de duração continuada do plano plurianual — PPA e das despesas não suscetíveis de contingenciamento da LDO. Afinal, são tais despesas que revelam as políticas públicas nucleares ao cumprimento da Constituição e à efetividade planejada e federativamente sustentável dos direitos fundamentais.

Em face de todo o exposto, reputa-se aqui o PLC 136/2023 insuficiente para cumprir sua alegada finalidade de regulamentação do artigo 14 da LC 194/2022, na medida em que ignorou o dever de a União compensar federativamente: tanto a (1) assunção de riscos fiscais decorrentes da frustração de arrecadação e de passivos judicializados; quanto o (2) financiamento de despesas não suscetíveis de contingenciamento, direta ou indiretamente, mediante endividamento dos governos municipais, distrital e estaduais, a exemplo do que se sucede com as demandas judiciais e, por conseguinte, com os precatórios daí acumulados.

Ora, não pode ser reputado intertemporalmente sustentável um arranjo normativo que insule a União, apartando-lhe da sua responsabilidade solidária seja para com os demais entes federados, seja para com o custeio dos direitos fundamentais. A cooperação entre a União, os estados, o Distrito Federal e o municípios, sobretudo no desempenho das suas competências comuns, é obrigação inalienável, na forma do artigo 23, parágrafo único da CF/1988, até para que se possa alcançar o “equilíbrio do desenvolvimento e do bem-estar em âmbito nacional”.

Federativamente as políticas públicas de saúde e educação reclamam previsibilidade na sua consecução orçamentário-financeira por envolverem elevado índice de despesas obrigatórias[‘], não suscetíveis de contingenciamento. Além disso, tais áreas são materialmente responsáveis por serviços públicos essenciais, que não podem sofrer solução de continuidade.

Infelizmente, porém, o governo federal tem se notabilizado por fugir às suas responsabilidades federativas e por constranger o custeio dos direitos à saúde e à educação, quebrando a efetividade dos respectivos pisos, para reduzir sua participação proporcional, enquanto sobrecarrega estados e municípios.

[1] Dois exemplos da política pública de educação residem nos incisos XI e XII do art. 212-A da CF/1988, respectivamente relacionados à subvinculação de 70% do FUNDEB para o pagamento dos profissionais da educação básica em efetivo exercício e à garantia de piso salarial profissional nacional para os profissionais do magistério da educação básica pública. Na seara da saúde, são emblemáticos, embora distintos, os regimes jurídicos do piso salarial profissional nacional para os agentes comunitários de saúde e agentes de combate às endemias (Emenda Constitucional nº 120, de 5 de maio de 2022) e do piso salarial nacional dos profissionais de enfermagem (Emenda nº 124, de 14 de julho de 2022).

Fonte: Conjur

Atribuir culpa a terceiro no interrogatório não permite aumentar pena-base do réu

A Sexta Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ), por unanimidade, entendeu que o fato de o acusado mentir durante o interrogatório policial, atribuindo falsamente o crime a outra pessoa, não é motivo para que a culpabilidade seja valorada negativamente no cálculo da pena.  Segundo o relator, ministro Rogerio Schietti Cruz, o interrogatório não pode ser usado retroativamente para incrementar o juízo de reprovabilidade de um crime cometido no passado. O réu foi condenado por tráfico de drogas a cinco anos e dez meses de reclusão. Ao fixar a pena-base, as instâncias ordinárias valoraram de forma negativa a culpabilidade, pois, na tentativa de se defender, ele alegou que as drogas encontradas em sua casa teriam sido colocadas ali por seu vizinho. No habeas corpus impetrado no STJ, a defesa sustentou que o fundamento usado para valorar negativamente a culpabilidade do acusado não é idôneo, razão pela qual requereu o redimensionamento da pena.

Negativa do terceiro não é suficiente para responsabilizar penalmente o réu

O relator observou que existe uma tolerância jurídica – não absoluta – em relação ao falseamento da verdade pelo réu, sobretudo em virtude da ausência de criminalização do perjúrio no Brasil. De acordo com o ministro, em algumas situações, a própria lei atribui relevância penal à mentira; no entanto, ainda que o falseamento da verdade possa, eventualmente, justificar a responsabilização do réu por crime autônomo, isso não significa que essa prática no interrogatório autorize o aumento da pena-base. O ministro também ressaltou que o fato de o vizinho haver negado as afirmações do acusado não permite concluir que aquela versão fosse falsa, até porque, se houvesse confirmado tais fatos, ele teria admitido a prática de crime. Segundo Schietti, se a negativa do vizinho enfraquece a versão apresentada em autodefesa pelo réu, ela “não é suficiente para responsabilizá-lo penalmente pelo que disse no interrogatório”. Do contrário – apontou –, toda vez que qualquer acusado alegasse haver sofrido algum tipo de abuso policial e a prática desse abuso fosse negada pelo respectivo agente de segurança, isso bastaria para incrementar a pena do réu ou mesmo fazê-lo responder por crime autônomo.

Pena deve ser avaliada com base em elementos existentes até o momento do crime

Schietti ponderou que a avaliação sobre a sanção penal cabível deve ser realizada, em regra, com base somente nos elementos existentes até o momento da prática do crime imputado, ressalvados o exame das consequências do delito e o superveniente trânsito em julgado de condenação por fato praticado no passado. Para o relator, a análise de situações capazes de legitimar o aumento da sanção penal não pode depender de eventos futuros, incertos e não decorrentes diretamente do fato imputado na denúncia. “O que deve ser avaliado é se, ao praticar o fato criminoso imputado, a culpabilidade do réu foi exacerbada ou se, até aquele momento, ele demonstrava personalidade desvirtuada ou conduta social inadequada”, disse o ministro. Segundo ele, tais circunstâncias não podem ser aferidas com base em fato diverso que só veio a ocorrer no futuro. No caso em julgamento, o crime foi praticado em maio de 2013, e o interrogatório do réu ocorreu em agosto de 2019, mais de seis anos depois. Fonte: STJ

DECISÃO: Somente advogado integrante de serviço de assistência judiciária organizado e mantido pelo Estado tem direito a prazo em dobro previsto em lei

A 10ª Turma do Tribunal Regional Federal da 1ª Região (TRF1) manteve a decisão do Juízo da 8ª Vara Federal da Seção Judiciária do Distrito Federal (SJDF) que deixou de receber a apelação do autor de um processo por considerá-la intempestiva, ou seja, fora do prazo legal. A ação deu entrada na SJDF antes da vigência do Código de Processo Civil de 2015.

Em seu recurso, o agravante alegou que por estar representado por advogado do serviço de assistência judiciária da Fundação de Assistência Judiciária OAB-DF o prazo recursal deve ser, para ele, contado em dobro, conforme previsto no art. 5º, § 5°, da Lei 1.060/50, que garante à Defensoria Pública a extensão do prazo, uma vez que a Fundação deve ser equiparada à Defensoria.

Ao analisar o caso, o relator, juiz federal convocado pelo TRF1 George Ribeiro da Silva, destacou que o advogado que integra a Fundação de Assistência Judiciária OAB-DF não exerce cargo público equivalente ao de defensor público, não tendo, assim, a parte por ele representada direito ao prazo em dobro para manifestações processuais conforme previsto na Lei 1.060/50.

Diante disso, o Colegiado, por unanimidade, negou provimento ao agravo de instrumento nos termos do voto do relator.

Processo: 0039868-68.2010.4.01.0000

Data da publicação: 22/08/2023

LC/CB

Fonte: Assessoria de Comunicação Social / Tribunal Regional Federal da 1ª Região  

Comissão sobre direito digital debate identidade digital, cidadania e segurança

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Deputados discutirão assunto com representantes de ministérios

A Comissão Especial sobre Direito Digital da Câmara dos Deputados promove audiência pública na terça-feira (19) sobre o tema “Identidade digital, cidadania e segurança”. O debate atende a requerimento do relator, deputado Lafayette de Andrada (Republicanos-MG).

O colegiado avalia propostas para adaptar a legislação brasileira ao mundo atual de avanços tecnológicos e estabelecer a Política Nacional de Desenvolvimento Econômico Digital.

“Nos últimos anos, estamos nos desenvolvendo e nos reinventando por meio da tecnologia, sejam as mídias sociais, a interconectividade fundamental e mais recentemente o uso de tecnologia de aprendizado para emular as capacidades humanas e nos auxiliar em nossa evolução técnica”, diz Lafayette de Andrada.

“Tais mudanças na conexão devem ser incorporadas ao direito, possibilitando a criação de novas leis, bem como a adaptação das já existentes, vez que situações antes complexas estão sendo incorporadas em nossas atividades diárias de maneiras anteriormente inconcebíveis”, defende o deputado.

A audiência está marcada para as 14 horas, em local a ser definido.

Fonte: Câmara Notícias

Repetição de indébito não deve seguir o rito dos precatórios

O STF (Supremo Tribunal Federal) jugou em agosto o RE 1.420.691, que se transformou no Tema 1.262, tendo sido fixada por unanimidade a seguinte tese: “Não se mostra admissível a restituição administrativa do indébito reconhecido na via judicial, sendo indispensável a observância do regime constitucional de precatórios, nos termos do artigo 100 da Constituição Federal”. O trâmite foi peculiar, pois na mesma sessão de julgamento foi reconhecida a repercussão geral e julgado o mérito, o que não é usual.

O caso foi relatado pela ministra Rosa Weber, revertendo o julgamento do TRF-3, que possui jurisprudência consolidada em sentido oposto, permitindo que se realize a repetição administrativa de indébito, reconhecido pela via judicial, sem a sistemática de precatórios. Na decisão foi mencionada a jurisprudência do STF a respeito e distinguido o Tema 1.262 do Tema 831, este relatado pelo ministro Fux prescrevendo que “o pagamento dos valores devidos pela Fazenda Pública entre a data da impetração do mandado de segurança e a efetiva implementação da ordem concessiva deve observar o regime de precatórios previsto no artigo 100 da Constituição Federal”.

A distinção se cinge ao fato de que no Tema 831/Fux se discutiu a possibilidade de restituição administrativa dos valores cobrados a maior nos cinco anos que antecederam a impetração de mandado de segurança, ao passo que no Tema 1.262/Weber, o debate se referiu ao necessário rito dos precatórios independentemente do tipo de ação interposto, impedindo a restituição administrativa dos valores reconhecidos como indevidos.

Não me parece que a solução encontrada pelo Tema 1.262/Weber tenha sido a melhor, em face de uma distinção básica: o sistema de precatórios foi criado para a realização de despesas públicas fruto de decisões judiciais, o que acarretou a criação de um procedimento para inserir previsão orçamentária específica para seu pagamento, isto é, o precatório.

No caso das repetições de indébito tributário a situação é diametralmente oposta, pois o dinheiro já havia ingressado nos cofres públicos, e a devolução não se caracteriza como uma despesa decorrente de ordem judicial, mas como o que realmente é: uma devolução de recursos que já haviam ingressado nos cofres públicos. Logo, não se trata de uma despesa, mas da devolução de recursos que não deviam ter sido recolhidos — daí a lógica da repetição de indébito, isto é, devolução de valores indevidamente carreados aos cofres públicos.

O limite de qualquer receita tributária é o Princípio da Estrita Legalidade, o que implica em dizer que deve ser devolvido tudo que tiver sido recolhido acima do limite legal estabelecido, pois inconstitucional. Logo, identificada cobrança a maior do que a legalmente devida, o Estado deve devolver aos contribuintes, sem maiores delongas, da forma menos onerosa possível, pois estes já foram apenados com o indevido recolhimento à margem da lei.

Se a decisão judicial for para ampliar o montante pago por uma desapropriação, ou pagar uma gratificação a servidor que a devesse ter recebido a seu tempo e modo, estaremos defronte a uma despesa, decorrente de ordem judicial, na qual cabe o sistema de precatórios. Sendo a decisão judicial para devolver tributo pago a maior, não cabe precatório, pois não se trata de despesa, mas de devolução, uma vez que o dinheiro ingressou irregularmente no Tesouro. Neste caso deveria até mesmo haver a imposição de multa pela conduta irregular do Fisco quando exigisse tributo indevido — claro que a multa se sujeitaria ao regime de precatórios, não o montante principal a ser devolvido.

É contra a lógica jurídica estabelecer o regime de precatórios para devolver o que foi recolhido a maior. Se fosse o caso de obrigar o Estado a pagar o que não pagou, a lógica precatorial seria plenamente adequada — mas não é o que ocorre nas repetições de indébito, que se referem à devolução do que foi pago à maior. Enfim, não se trata de despesa, mas de devolução.

É inadequada a lógica presente no Tema 831/Fux, pois coloca o rito processual do mandado de segurança acima do direito material.

Porém a situação se torna ainda pior no caso do Tema 1.262/Weber, pois aplica a dinâmica dos precatórios para toda e qualquer repetição de indébito tributário, seja qual for a via processual eleita. O prejuízo para a ordem jurídica é enorme.

Para tornar curta uma longa história, pode-se resumir a posição aqui exposta à seguinte afirmativa, quase que como uma Tese a ser discutida pelo STF: A sistemática de precatórios é indevida para a devolução de tributos que ingressaram nos cofres públicos à margem do Princípio da Estrita Legalidade, independentemente do meio processual utilizado para tanto.

Fonte: Conjur