Progressão direta do regime fechado para o aberto é legal, decide STJ

É possível a progressão do regime fechado ao aberto nos casos em que o detento cumpre os requisitos estabelecidos pela lei, sem que seja obrigatória a passagem pelo regime de pena intermediário. Nessas situações, deve ser respeitada a progressividade da pena e não deve ser imposto maior período de encarceramento apenas pela ausência de passagem pelo semiaberto.

 

Esse foi o entendimento do ministro Rogério Schietti, do Superior Tribunal de Justiça, para dar provimento a um Habeas Corpus em favor de uma mulher que teve a progressão para o regime aberto negada pelo fato de não ter passado pelo semiaberto.

No caso concreto, o cálculo da pena da ré mostrou que ela tinha direito à progressão para o regime aberto desde outubro de 2022, mas o pedido foi negado em primeira instância com a alegação de que a progressão seria precipitada, havendo a necessidade da permanência por 150 dias no regime semiaberto. A negativa foi mantida pela 2ª Câmara de Direito Criminal do Tribunal de Justiça de São Paulo.

 

Coação ilegal

A defesa sustentou no STJ que a ré sofreu coação ilegal, já que o legislador não estabeleceu um tempo mínimo de permanência nos regimes prisionais para a progressão para o menos gravoso, bastando apenas o preenchimento das frações previstas no artigo 112 da Lei de Execução Penal.

Ao analisar o caso, o ministro deu razão à defesa. “A contagem do prazo para a subsequente progressão de regime deve ter como marco inicial a data em que restaram preenchidos todos os requisitos legais, sendo irrelevante a data da efetiva remoção para o regime intermediário”, registrou Shietti, que citou o entendimento fixado no julgamento do AgRg no HC 790.354/SP, de relatoria do ministro Joel Ilan Paciornik.

Diante disso, ele concedeu o HC e determinou que o juízo de origem reexamine o pedido de progressão, considerando como data-base para a concessão do benefício aquela em que a ré preenche os requisitos estabelecidos no artigo 112 da LEP para progredir para o regime semiaberto.

A autora foi representada pelo escritório Fortes, Lopes, Siebner Advogados.

Clique aqui para ler a decisão
HC 887.977

O post Progressão direta do regime fechado para o aberto é legal, decide STJ apareceu primeiro em Consultor Jurídico.

Câmara aprova regulamentação de jogos eletrônicos

A Câmara dos Deputados aprovou o projeto de lei que cria o marco legal para a indústria de jogos eletrônicos, regulamentando a fabricação, a importação, a comercialização e o desenvolvimento de jogos eletrônicos no País. A proposta será enviada à sanção presidencial.

 
Discussão e votação de propostas. Dep. Darci de Matos(PSD - SC)
Darci de Matos, relator da proposta – Mário Agra/Câmara dos Deputados

O Projeto de Lei 2796/21, do deputado Kim Kataguiri (União-SP), foi aprovado nesta terça-feira (9) na forma de um substitutivo do Senado, com parecer favorável do relator, deputado Darci de Matos (PSD-SC).

Kim Kataguiri afirmou que a aprovação do marco dos games é uma vitória para jogadores, desenvolvedores e para a indústria. “Para essa indústria que gera centenas de milhares de empregos diretos e indiretos e tem o potencial gigantesco de criar ainda mais”, disse.

Segundo o texto, a indústria de jogos eletrônicos contará com incentivos semelhantes aos aplicáveis ao setor cultural previstos na Lei Rouanet e na Lei do Audiovisual.

No primeiro caso, serão passíveis de dedução no Imposto de Renda as doações a projetos de estímulo da produção ou coprodução de jogos eletrônicos brasileiros independentes ou para a formação de profissionais.

Da lei do audiovisual, a remessa de remunerações ao exterior pelos direitos de exploração de jogos eletrônicos ou de licenciamentos poderá contar com redução de 70% do Imposto de Renda a pagar se o valor for investido no desenvolvimento de jogos eletrônicos brasileiros independentes.

Os jogos eletrônicos contarão também com acesso ao registro de patentes.

Na definição de jogos eletrônicos entram desde o software e as imagens geradas na interface com o jogador até os jogos de console de videogames e de realidade virtual, realidade aumentada, realidade mista e realidade estendida, sejam eles consumidos por download ou por streaming.

Ficam de fora do conceito quaisquer tipos de jogos de azar eletrônicos, jogos tipo “bet”, pôquer e outros que envolvam premiações em dinheiro.

 

Proteção à criança
Darci de Matos afirmou que o texto do Senado incorporou quase dois anos de negociações com a indústria do setor e gerou uma proposta mais consistente e consensuada, sem abrir mão de proteções à população, em especial a crianças e adolescentes.

“Os jogos eletrônicos transcendem a mera forma de entretenimento, emergindo como um fenômeno cultural moderno que influencia e enriquece nosso tecido social”, disse.

Darci de Matos ressaltou que as principais mudanças do Senado foram feitas em relação à proteção de crianças e adolescentes. “Os desenvolvedores deverão prever medidas para mitigar os riscos aos direitos desse público, bem como criar canais de escuta e de diálogo, como forma de assegurar seus direitos no mundo digital”, explicou.

Além disso, o texto prevê a criação de um sistema de reclamações e denúncias de abusos e garante que as ferramentas de compras deverão buscar o consentimento dos responsáveis.

A deputada Maria do Rosário (PT-RS) elogiou a inclusão do cuidado a crianças e adolescentes pelos desenvolvedores. “Eles terão responsabilidade com a atenção e o cuidado com crianças e adolescentes contra toda forma de negligência, incentivo à violência, sexualização. Isso não combina com a cultura, não combina com os jogos”, disse.

 

Classificação indicativa
Caberá ao Estado realizar a classificação etária indicativa dos jogos, levando em conta os riscos relacionados ao uso de mecanismos de microtransações (compras digitais no contexto do jogo), que podem estimular consumo desenfreado em crianças.

De forma similar, as ferramentas de compras dentro de jogos eletrônicos devem garantir, por padrão, a restrição da realização de compras e de transações comerciais (uso de cartões de crédito, por exemplo) por crianças, garantindo o consentimento dos responsáveis.

 

Crianças e adolescentes
O texto aprovado determina que, para a concepção, o design, a gestão e o funcionamento dos jogos eletrônicos direcionados a crianças e adolescentes, devem ser adotadas medidas adequadas e proporcionais para mitigar os riscos aos seus direitos.

Os fornecedores de jogos eletrônicos devem garantir ainda que os seus serviços, sistemas e comunidades oficiais relacionados não fomentem ou gerem ambiente propício a quaisquer formas de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade ou opressão contra crianças e adolescentes.

Os Impactos para os Setores de Turismo, Hotéis e Eventos com as Publicações das Medidas Provisórias 1.202/2023 e 1.208/2024. Dep. Kim Kataguiri (UNIÃO - SP)
Kim Kataguiri, autor do projeto – Mário Agra/Câmara dos Deputados

A acessibilidade também deverá ser buscada por meio de medidas técnicas que garantam o desenho universal e o acesso a crianças e adolescentes com deficiência.

 

Mediação
Os jogos eletrônicos com interação entre usuários desse público terão ainda de garantir a aplicação de salvaguardas, como sistema para recebimento e processamento de reclamações e denúncias, solicitação de revisão de penalidades e transparência social sobre métodos de análise de denúncias, remoção de conteúdos e gerenciamento de comunidades, entre outros.

 

Escolas e terapias
O substitutivo aprovado prevê a possibilidade de uso de jogos eletrônicos em ambiente escolar, para fins didáticos, seguindo diretrizes da Base Nacional Comum Curricular (BNCC); para fins terapêuticos; para treinamento e capacitação; ou comunicação e propaganda.

Nesses dois últimos casos, o uso dependerá de regulamentação.

Em relação às escolas, os jogos farão parte da Política Nacional de Educação Digital, com a possibilidade de criação de um repositório de jogos eletrônicos financiados com recursos públicos para uso livre por instituições públicas de ensino, pesquisa e saúde.

 

Microempresas
Para fins de aplicação da lei, poderão contar com tratamento especial no regime Inova Simples, do Simples Nacional, e nas parcerias com instituição científica, tecnológica e de inovação (ICT) a empresa, o empresário individual ou mesmo o microempreendedor individual com (MEI) com receita bruta de até R$ 16 milhões no ano-calendário anterior.

O máximo de receita bruta para enquadramento no Simples Nacional é de R$ 4,8 milhões.

Fonte: Câmara dos Deputados

Repetitivo vai definir se advogado e parte têm legitimidade concorrente para discutir honorários

A Corte Especial do Superior Tribunal de Justiça (STJ), sob o rito dos recursos repetitivos (Tema 1.242), vai analisar controvérsia sobre a legitimidade concorrente do advogado e da parte para promover a execução dos honorários advocatícios de sucumbência.

Até o julgamento do tema e a definição do precedente qualificado, o colegiado determinou a suspensão de todos os recursos especiais e agravos em recurso especial, em tramitação no STJ ou na segunda instância, que discutam exclusivamente a questão da legitimidade para executar os honorários.

O relator dos quatro recursos afetados como repetitivos é o ministro Herman Benjamin. Ele lembrou que, ao sugerir a análise do tema pelo rito qualificado, a Comissão Gestora de Precedentes e de Ações Coletivas do STJ (Cogepac) ressaltou que o debate não é sobre a titularidade dos valores referentes aos honorários, mas apenas sobre a legitimidade para discutir a verba e o montante arbitrado em juízo.

Também de acordo com a Cogepac, o assunto já foi objeto de decisões distintas nas seções especializadas do STJ, o que aponta a necessidade de que seja analisado como repetitivo no âmbito da Corte Especial.

“A matéria é de alta expressão, não apenas por seu impacto financeiro, mas também por sua natureza jurídica. A controvérsia envolve a interpretação de dispositivos legais que afetam diretamente a relação entre advogado e cliente, bem como a remuneração do profissional. Além disso, a questão tem caráter multitudinário, atingindo um grande número de processos em tribunais nacionais”, explicou.

Suspensão ampla de processos poderia prejudicar outros direitos

Em relação à suspensão de processos para julgamento do tema, Herman Benjamin comentou que a discussão sobre honorários advocatícios, muitas vezes, está inserida em um contexto jurídico mais amplo, com o envolvimento de outras questões. Por isso, para o ministro, a paralisação de todos os processos em que houvesse a discussão do tema poderia prejudicar a concretização de outros direitos.

“Nesse contexto, o princípio da proporcionalidade deve nortear a decisão sobre a suspensão dos processos. A aplicação indiscriminada dessa medida poderia resultar em mais prejuízos do que benefícios e violar esse princípio jurídico fundamental. A alternativa mais equilibrada é a suspensão da tramitação apenas dos processos que se concentrem exclusivamente na questão dos honorários, assegurando que outros direitos não sejam comprometidos”, concluiu o ministro.

Recursos repetitivos geram economia de tempo e segurança jurídica

O Código de Processo Civil de 2015 regula, nos artigos 1.036 e seguintes, o julgamento por amostragem, mediante a seleção de recursos especiais que tenham controvérsias idênticas. Ao afetar um processo, ou seja, encaminhá-lo para julgamento sob o rito dos repetitivos, os ministros facilitam a solução de demandas que se repetem nos tribunais brasileiros.

A possibilidade de aplicar o mesmo entendimento jurídico a diversos processos gera economia de tempo e segurança jurídica. No site do STJ, é possível acessar todos os temas afetados, bem como conhecer a abrangência das decisões de sobrestamento e as teses jurídicas firmadas nos julgamentos, entre outras informações.

Fonte: STJ

STJ veta que multa por decisão descumprida seja revisada seguidas vezes

A multa por descumprimento de decisão judicial pode ser alterada ou até excluída pelo juiz a qualquer momento. Uma vez feita a alteração, no entanto, não serão lícitas novas e sucessivas revisões, sob pena de desestimular que o devedor cumpra a obrigação.

 

Multa pode ser alterada, mas não de modo a incentivar descumprimento da decisão

Essa é a conclusão da Corte Especial do Superior Tribunal de Justiça, que decidiu por maioria apertada de votos que o Poder Judiciário deve ser mais rigoroso no trato daqueles que se recusam a cumprir uma ordem judicial.

O caso julgado trata de um banco que firmou acordo com um devedor. O homem se dispôs a quitar dívida de R$ 1,9 mil e a instituição se comprometeu a retirar o gravame que incidia sobre seu nome.

A obrigação foi firmada em 2010 e, 14 anos depois, o banco ainda não fez a sua parte. Nesse período, a única medida tomada pela instituição financeira foi solicitar várias vezes a redução da multa diária aplicada contra ela pelo descumprimento da obrigação.

Tanto o valor da multa diária quanto o montante total que ela alcançou foram alterados pelo Judiciário mais de uma vez e, mesmo assim, a instituição financeira não cumpriu a obrigação de retirar o gravame.

A última impugnação foi feita quando o homem promoveu execução no valor de R$ 529 mil, valor que hoje, atualizado, já ultrapassa R$ 735 mil. Essa tentativa do banco foi rejeitada por 6 a votos a 5 pela Corte Especial do STJ.

 

“Não é licito modificar o que já foi modificado”, destacou o ministro Cueva – José Alberto/STJ

 

Efeito prospectivo

A corrente vencedora, que rejeitou o pedido do banco, foi formada por duas linhas de argumentação.

O primeiro voto divergente foi do ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, para quem a decisão que altera o valor da multa diária deve ter efeitos prospectivos — ou seja, o valor acumulado até esse momento específico não deve ser alterado.

Para Cueva, essa foi a intenção do legislador quando colocou no artigo 537, parágrafo 1º, do Código de Processo Civil que o juiz poderá modificar o valor ou a periodicidade da “multa vincenda”.

“Só tem direito à redução da multa aquele que abandona a recalcitrância. Trata-se de espécie de sanção premial, consequência jurídica positiva para estimular o comportamento indicado pela norma legal, independentemente de sua natureza”, disse o magistrado.

Além disso, ele defende a ocorrência da preclusão pro judicato ao caso, segundo a qual não cabe ao juiz apreciar uma questão que já foi decidida. No julgamento da semana passada, após voto-vista do ministro Raul Araújo, Cueva esmiuçou melhor essa posição.

“É possível, sim, modificar uma decisão que comina multa por descumprimento de decisão judicial. Mas não é licito modificar o que já foi modificado.”

Em sua análise, essa posição não fere a tese do Tema 706 dos recursos repetitivos, segundo a qual “a decisão que comina astreintes não preclui, não fazendo tampouco coisa julgada”.

“Uma vez fixada a multa, é possível alterá-la ou excluí-la a qualquer momento. No entanto, uma vez reduzido o valor, não serão lícitas sucessivas revisões ao talante do inadimplente recalcitrante, sob pena de estimular e premiar renitência sem justa causa.”

 

Para ministra Nancy, multa pode ser alterada se houver novo motivo para tanto

 

Depende do motivo

A outra linha de argumentação foi apresentada em voto da ministra Nancy Andrighi. Para ela, o valor da multa ou o montante total acumulado podem ser seguidamente alterados, desde que exista causa superveniente para isso em cada ocasião.

“A mudança sem uma circunstância superveniente que a justifique não deve ser admitida”, explicou a magistrada. Em sua análise, esse é o caso julgado: não há motivo que autorize o banco a, mais uma vez, solicitar a redução do valor da multa.

Na conclusão, o voto dela acompanha o do ministro Cueva. Também chegaram ao mesmo resultado e formaram a maioria os ministros Herman Benjamin, Benedito Gonçalves, Antonio Carlos Ferreira e Sebastião Reis Júnior.

 

Engessamento desnecessário

Ficou vencido o relator, ministro Francisco Falcão, que votou por autorizar a redução do excessivo valor acumulado a título de multa. Ele foi acompanhado pelos ministros Humberto Martins, Luis Felipe Salomão, Mauro Campbell e Raul Araújo.

Para Salomão, o STJ não deveria “engessar” a análise do tema. “Se amarramos o julgador, estamos em uma situação em que se poderá verificar uma enorme dificuldade em situações extraordinárias. Ficaríamos aqui de mãos atadas.”

 

Já Raul Araújo afirmou que a posição da divergência afronta a tese do Tema 706. “Quando dizemos que o juiz pode rever a multa a qualquer tempo, não estamos tirando a segurança jurídica. Cabe ao julgador aplicar ou não essa possibilidade.”

EAREsp 1.766.665

O post STJ veta que multa por decisão descumprida seja revisada seguidas vezes apareceu primeiro em Consultor Jurídico.

Clássicos aduaneiros: o direito da integração

Em 12/07/2022, aqui em Território Aduaneiro, foi apresentado texto sobre os “clássicos aduaneiros” (Por que ler os clássicos? — versão Direito Aduaneiro[1]. Naquela ocasião, inspirando-se em Italo Calvino, definiu-se sintética e precisamente “clássico” como o livro que você teria vergonha de dizer que não leu.

Pensando na democratização do acesso à bibliografia aduaneira, inaugura-se aqui uma série de resenhas de clássicos aduaneiros. O objetivo não é poupar o leitor da coluna de efetivamente ler as obras clássicas, ou “explicar de forma simplificada” [2] as obras clássicas. Pelo contrário, busca-se convidar o leitor a conhecer mais sobre a obra. Ou seja, não se trata de sinopse, mas de trailer do filme, de amostra grátis.

O autor e a obra clássica

E decidimos iniciar a jornada pela obra “Derecho de la Integración”, lançada em 2023, de autoria de Ricardo Xavier Basaldúa [3], um dos juristas que mais publicou obras de referência sobre Direito Aduaneiro nas últimas décadas.

A obra conta com uma Parte Geral, composta por quatro Capítulos (“Introdução”, “Integração”, “As Etapas dos Processos de Integração”  e “O Direito da Integração”), e com uma Parte Especial, com seis capítulos (“O Direito da União Europeia”, “O Mercado Comum Centro americano”, “A Associação Latino Americana de Integração — Aladi”; “O Direito da Integração da Comunidade Andina”, “O Direito da Integração do Mercosul” e “O Tratado de Livre Comércio de México, Estados Unidos e Canadá — T-MEC”).

Lamentavelmente comercializado apenas na forma eletrônica (e-book), para tormenta dos que preferem manusear folhas de papel, o livro está disponível no site da Ed. Thomson Reuters da Argentina. [4]

Multilateralismo, regionalismo e bilateralismo

Existem três tendências principais no modo de os países se relacionarem por meio do comércio internacional: o multilateralismo, o regionalismo e o bilateralismo. Historicamente, os países se vinculavam por tratados bilaterais, posto que não havia uma livre e ampla circulação de mercadorias, em face de posturas frequentemente protecionistas.

Após a 2ª Guerra Mundial, surge uma nova ordem econômica e a ideia de que as mercadorias deveriam ser tratadas da mesma maneira no momento da importação, tanto do ponto de vista tarifário quanto dos demais temas vinculados ao Direito Aduaneiro, constituindo a base do multilateralismo, que deságua na elaboração do Acordo Geral sobre Tarifas Aduaneiras e Comércio (Gatt) de 1947, episódio que dá origem a série que direcionaria, na década de 90 do século passado, à criação da Organização Mundial do Comércio, na Rodada Uruguai.

O propósito de integração econômica foi alcançado, especialmente, quando minimizaram-se os confrontos entre os países europeus, consolidando a paz em um continente marcado por conflitos bélicos.

O Gatt, fomentador da não discriminação e do livre comércio, acabou permitindo exceções, v.g., sem seu Artigo XXIV, que trata de uniões aduaneiras e zonas de livre comércio, objetivando principalmente a integração da Europa para promover a paz e acabar com os conflitos na região.

Outros países seguiram o exemplo, resultando na proliferação de acordos de integração em todo o mundo. De tal modo, o Direito da Integração assume especial relevância para regular essa realidade, notadamente diante do avanço da globalização e dos conflitos comerciais.

Essas premissas norteiam a obra, que traz os fundamentos jurídicos e históricos da integração regional, e a evolução dos principais blocos econômicos.

Teoria Geral da Integração

Na parte geral, trata-se do cenário e da base jurídica dos processos de integração como exceção ao princípio da não discriminação, como alicerces para uma Teoria Geral da Integração, tratando de conceitos, processos, formas e alcance.

Já na introdução, apresenta-se contextualização histórica da movimentação de mercadorias, destacando-se que jamais tivemos uma livre movimentação mundial com um grande mercado único, e que, na verdade, a entrada de mercadorias provenientes do estrangeiro estava sujeita a restrições de naturezas diversas desde a antiguidade, inclusive a nacionalismos.

A França é apontada como a precursora de um nacionalismo econômico designado por Colbertismo, por conta de seu criador Jean-Baptiste Colbert (1619-1683), o qual propôs uma regulamentação aduaneira em 1687 que conformou uma política protecionista naquele país, logo se espalhando para outros locais com a denominação de mercantilismo.

A próxima fase de integração foi o multilateralismo, com a elaboração do Gatt/1947, consagrando um ideal de liberdade de comércio sem discriminações, ideal esse que contemplava exceções (por exemplo, em seu artigo XXIV), inicialmente para que pudesse ocorrer a integração da Europa, mas posteriormente estendidas a outros países, ocasionando uma terceira tendência: o regionalismo.

Depois de se apresentar conceito para a integração, relacionado à existência de partes com as quais se procura conformar um todo, explica-se que a integração econômica pode ser entendida como uma situação que se caracteriza pela ausência de várias formas de discriminação entre as economias nacionais e como um processo que se concebe como um conjunto de medidas dirigidas a abolir progressivamente a discriminação entre os países.

São ainda tratados de forma detalhada os processos de integração econômica, diferenciando-se cooperação de integração, analisando-se a integração econômica no sistema jurídico internacional, com a visão de que a integração constitui um meio que pode transcender interesses econômicos.

Apresentam-se ainda as etapas dos processos de integração, à luz da teoria de Bela Balassa, distinguindo as formas em que se manifestam, como zonas de preferências econômicas, zonas de livre comércio, uniões tarifárias, mercados comuns, uniões econômicas e uniões monetárias.

A parte geral da obra culmina em definição do Direito da Integração como aquele que regula o processo ou conjunto de ações tendentes a redução ou eliminação de discriminações ao comércio ou às atividades econômicas entre os Estados que se comprometeram com esse processo, traçando-se linhas distintivas e pontos de intersecção entre o Direito da Integração e o Direito Internacional Público, e destacando a importância do Direito Aduaneiro nos processos de integração.

Processos de integração regional

Na parte especial da obra, são analisados importantes processos de integração regional: a União Europeia, o Mercado Comum Centro-Americano, a Aladi, a Comunidade Andina, o Mercosul e o Tratado de Livre Comércio da América do Norte (T-MEC).

Inicia-se a análise dos blocos regionais de integração com considerações sobre o Direito da União Europeia, no qual são delineados os antecedentes históricos que levaram à assinatura dos tratados de constituição da Comunidade Econômica Europeia em 1957, bem como os principais acontecimentos até o ano de 2023.

São analisadas as fontes jurídicas da União Europeia, o seu direito originário e derivado, os princípios da proporcionalidade e subsidiariedade, os órgãos que ditam o direito originário e as características do Direito Comunitário Europeu, o seu âmbito espacial de aplicação e a configuração do território aduaneiro comunitário, culminando a análise em reflexão sobre problemas atuais e perspectivas.

Na sequência, é analisado o Mercado Comum Centro-Americano, formado por Belize, Costa Rica, El Salvador, Guatemala, Honduras, Nicarágua e Panamá. Se no capítulo anterior se dedica ao processo mais avançado de integração do mundo, agora se estuda um dos mais antigos, firmado em 14/10/1951 com a Carta de San Salvador, inspirada fortemente pela Cepal (Comissão Econômica para a América Latina), com o objetivo de formalizar uma união aduaneira.

Além de descrever minuciosamente os antecedentes históricos, são ainda analisadas as fontes jurídicas do Mercado Comum Centro-americano, tanto de direito originário quanto derivado.

A Aladi também é merecedora de estudo autônomo, a partir de contextualização histórica, com evidenciação das fontes jurídicas originárias e derivadas, avaliando-se também a vinculação (de continência) da Aladi com o Mercosul, com considerações sobre as perspectivas do processo de integração.

A Aladi prevê três categorias de países, em termos econômicos: países de maior desenvolvimento relativo (Argentina, Brasil e México), países de desenvolvimento intermediário (Colômbia, Chile, Panamá, Peru, Uruguai, Venezuela e Cuba) e países de menor desenvolvimento econômico relativo (Bolívia, Equador e Paraguai).

O Direito da Integração da Comunidade Andina, formado atualmente por Bolívia, Colômbia, Equador e Peru, é analisado na sequência, destacando-se que o Chile se retirou do bloco em 1976, mas está novamente associado, e que a Venezuela se retirou em 2006, considerando o autor a tendência de que este país regresse à Comunidade Andina, por razões históricas, geográficas, sociais e de natureza econômica. Também para tal bloco são analisadas as fontes jurídicas originárias e derivadas, com ampla e relevante bibliografia, característica que, aliás, permeia toda a obra.

Mercosul e T-MEC

O Direito da Integração do Mercosul, bloco econômico regional formado originariamente por Brasil, Paraguai, Argentina e Uruguai, que já havia sido analisado em obra anterior do autor [5], é contextualizado historicamente, propiciando substrato para análise das fontes jurídicas, do direito originário e secundário, da estrutura institucional, do sistema de solução de controvérsias, da situação atual, e dos problemas e perspectivas.

A parte especial do livro é encerrada com uma análise do Tratado de Livre Comércio firmado entre México, Canadá e Estados Unidos (T-MEC), que substituiu o tratado conhecido como Nafta (1992). O autor analisa as fontes jurídicas do tratado em sua versão atual (T-MEC, 2020), também descrevendo a estrutura e sistema de solução de controvérsias do processo, com rica reflexão sobre desafios e perspectivas.

O “Direito da Integração” de Ricardo Xavier Basaldúa analisa de modo sistemático o tema proposto, com o rigor metodológico, a profundidade das explicações e a extensa pesquisa bibliográfica, características que, destaque-se, já constituem marca do autor.

Está-se diante de livro que já nasce clássico, como obra fundamental para os estudiosos do Direito Aduaneiro, e que desejamos que em breve tenha versão impressa. Convidamos, por fim, os leitores da coluna que acompanharam este trailer de filme, a aprofundarem-se nesse interessante universo dos processos de integração regional, na sempre boa companhia de Ricardo Xavier Basaldúa.

____________________________

[1] Disponível em: https://www.conjur.com.br/2022-jul-12/territorio-aduaneiro-ler-classicos-versao-direito-aduaneiro/. Acesso em 8.abr.2024.

[2] Sobre os riscos que envolve a atividade de “explicar de forma simplificada” obras clássicas, remete-se a: TREVISAN, Rosaldo. Para entender Kelsen… (e os riscos do “telefone sem fio”). In: VALLE, Maurício Dalri Timm do; COSTA, Valterlei da (Coord.). Estudos sobre a Teoria Pura do Direito: homenagem aos 60 anos de publicação da 2ª edição da obra de Hans Kelsen. São Paulo: Almedina, 2023, p. 575-601.

[3] Ricardo Xavier Basaldúa é autor de 14 livros e dezenas de artigos em, matéria aduaneira. Foi corredator do Código Aduaneiro Argentino de 1981, delegado argentino no Comitê Técnico Permanente do Conselho de Cooperação Aduaneira (hoje conhecido como Organização Mundial das Aduanas) de 1971 a 1992, tendo presidido tal comitê em 1982-1983, e foi Presidente do Tribunal Fiscal da Nação Argentina (2016-2019), tendo integrado a lista de terceiros árbitros presidentes para Solução de Controvérsias no MERCOSUL. É membro fundador da Academia Internacional de Direito Aduaneiro.

[4] Disponível em: https://tienda.thomsonreuters.com.ar/derecho-de-la-integracion—2023/p. Acesso em 8.abr.2024.

[5] BASALDÚA, Ricardo Xavier. Mercosur y derecho de la integración. 2. Ed. Buenos Aires: Abeledo Perrot, 2011.

O post Clássicos aduaneiros: o direito da integração apareceu primeiro em Consultor Jurídico.

Projeto prevê emissão gratuita de 2ª via do RG para inclusão de informação sobre autismo

O Projeto de Lei 5656/23 estabelece a gratuidade na emissão da segunda via da carteira de identidade para a inclusão de informação sobre o transtorno do espectro autista (TEA).

 
Bruno Ganem fala durante reunião de comissão
Bruno Ganem quer facilitar reconhecimento de necessidades específicas – Renato Araújo/Câmara dos Deputados

Pela proposta, em análise na Câmara dos Deputados, a medida também valerá para a emissão da segunda via  da Carteira de Registro Nacional Migratório (CRNM) ou Cédula de Identidade de Estrangeiro (CIE), se a pessoa for estrangeira. 

O texto inclui a medida na Política Nacional de Proteção dos Direitos da Pessoa com Transtorno do Espectro Autista (Lei 12.764/12). 

Segundo o autor da proposta, deputado Bruno Ganem (Pode-SP), o objetivo é “garantir que essas pessoas tenham acesso a um documento fundamental de identificação sem ônus adicional”, facilitando o reconhecimento de suas necessidades específicas. 

 

Tramitação
A proposta será analisada em caráter conclusivo pelas comissões de Defesa dos Direitos das Pessoas com Deficiência; de Finanças e Tributação; e de Constituição e Justiça e de Cidadania.

Fonte: Câmara dos Deputados

Conquistas, desafios e esperanças na comemoração dos 35 anos do Tribunal da Cidadania

Em artigo publicado neste domingo (7) pelo portal Jota, a presidente do Superior Tribunal de Justiça (STJ), ministra Maria Thereza de Assis Moura, fala sobre o papel da corte na efetivação dos direitos fundamentais e no combate à discriminação, e aponta o excessivo volume de processos como o seu principal desafio no momento em que completa 35 anos. “Nesse período de intensas transformações que se seguiu à redemocratização do Brasil, o STJ soube acompanhá-las e deu a sua contribuição para o fortalecimento da cidadania recém-resgatada”, afirma a ministra.

Sob o título “Conquistas, desafios e esperanças nos 35 anos do STJ”, o artigo informa que o tribunal julgou quase 8 milhões de processos desde sua instalação, em 1989, e recebe atualmente mais de 460 mil novos casos por ano. Para Maria Thereza de Assis Moura, esses números chamam atenção para a necessidade urgente de implementação do instituto da relevância da questão federal.

Fonte: STJ

Resolução do CNJ de cota social para mulheres é inconstitucional

Os critérios de antiguidade ou de mérito para promoção de magistrados estão previstos no Texto Constitucional e na Lei Complementar nº 35/1979 (Lei Orgânica da Magistratura Nacional – Loman). Eis, pois, o teor do artigo 93 da CF/88 que é claro ao definir que:

“Art. 93. Lei complementar, de iniciativa do Supremo Tribunal Federal, disporá sobre o Estatuto da Magistratura, observados os seguintes princípios:

II – promoção de entrância para entrância, alternadamente, por antigüidade e merecimento, atendidas as seguintes normas:

  1. a) é obrigatória a promoção do juiz que figure por três vezes consecutivas ou cinco alternadas em lista de merecimento;
  2. b) a promoção por merecimento pressupõe dois anos de exercício na respectiva entrância e integrar o juiz a primeira quinta parte da lista de antigüidade desta, salvo se não houver com tais requisitos quem aceite o lugar vago;
  3. c) aferição do merecimento conforme o desempenho e pelos critérios objetivos de produtividade e presteza no exercício da jurisdição e pela freqüência e aproveitamento em cursos oficiais ou reconhecidos de aperfeiçoamento; (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 45, de 2004)
  4. d) na apuração de antigüidade, o tribunal somente poderá recusar o juiz mais antigo pelo voto fundamentado de dois terços de seus membros, conforme procedimento próprio, e assegurada ampla defesa, repetindo-se a votação até fixar-se a indicação; (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 45, de 2004)
  5. e) não será promovido o juiz que, injustificadamente, retiver autos em seu poder além do prazo legal, não podendo devolvê-los ao cartório sem o devido despacho ou decisão; (Incluída pela Emenda Constitucional nº 45, de 2004)

III – o acesso aos tribunais de segundo grau far-se-á por antiguidade e merecimento, alternadamente, apurados na última ou única entrância; (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 45, de 2004) (Vide ADI 3.392)
(…)”
(grifos meus)

Ora, esta norma constitucional estabelece os princípios básicos que devem reger a carreira do magistrado sendo, pois, uma norma de eficácia plena e aplicabilidade imediata, que independe de regulamentação [1].

Em 2023, entretanto, foi aprovada a Resolução do Conselho Nacional da Magistratura nº 525/2023, que trouxe modificações ao artigo 1º da Resolução CNJ 106/2010 [2], nos seguintes termos:

RESOLVE:
Art. 1º. O art. 1º da Resolução CNJ n. 106/2010 passa a vigorar acrescido do art. 1º-A:
“Art. 1º-A No acesso aos tribunais de 2º grau que não alcançaram, no tangente aos cargos destinados a pessoas oriundas da carreira da magistratura, a proporção de 40% a 60% por gênero, as vagas pelo critério de merecimento serão preenchidas por intermédio de editais abertos de forma alternada para o recebimento de inscrições mistas, para homens e mulheres, ou exclusivas de mulheres, observadas as políticas de cotas instituídas por este Conselho, até o atingimento de paridade de gênero no respectivo tribunal.

  • 1º Para fins de preenchimento das vagas relativas à promoção pelo critério de merecimento, os quintos sucessivos a que alude o art. 3º, § 1º, aplicam-se a ambas as modalidades de edital de inscrição (misto ou exclusivo de mulheres) e devem ser aferidos a partir da lista de antiguidade, com a observância da política de cotas deste Conselho.
  • 2º Para fins de aplicação do art. 93, II, a, da Constituição Federal,a consecutividade de indicação nas listas tríplices deve ser computada separadamente, conforme a modalidade de edital aberto (exclusivo ou misto), salvo a hipótese de magistrada que tenha figurado em lista mista, considerando-se consecutiva a indicação de: a) magistrado ou magistrada que figurou em duas listas seguidas decorrentes de editais com inscrições mistas, independentemente do edital de inscrição exclusiva de mulheres que tenha sido realizado entre eles; b) magistrada que figurou em duas listas seguidas, decorrentes de editais com inscrições exclusivas de mulheres, independentemente do edital de inscrição misto que tenha sido realizado entre eles; c) magistrada que figurou em duas listas seguidas decorrentes, uma de edital de inscrição exclusiva para mulheres e outra de edital de inscrição mista, ou vice-versa.
  • 3º Ficam resguardados os direitos dos magistrados e das magistradas remanescentes de lista para promoção por merecimento, observados os critérios estabelecidos nesta Resolução quanto à formação de listas tríplices consecutivas.
  • 4º Para a aferição dos resultados, o CNJ deverá manter banco de dados atualizado sobre a composição dos tribunais, desagregado por gênero e cargo, especificando os acessos ao 2º grau de acordo com a modalidade de editais abertos.
  • 5º As disposições deste artigo não se aplicam às Justiças Eleitoral e Militar.” (NR)

Art. 2º Esta Resolução entra em vigor em 1º de janeiro de 2024 e aplica-se às vagas abertas após essa data.”

Ora, disposições da Lei Maior não estão sujeitas a quaisquer disposições de leis infraconstitucionais, visto que a estas cabe apenas explicitar o que no Texto Constitucional contido estiver e, jamais, subordinar a Carta Magna aos humores do legislador menor.

Em outras palavras, não poderia nem a Loman, nem tampouco atos inerentes ao poder regulatório dos Tribunais ou do Conselho Nacional de Justiça, instituir qualquer restrição não contida na Constituição. Isso se dá à medida em que:

  • restrição não imposta pela Lei Suprema não pode ser imposta por lei ou ato infraconstitucional;
  • a Lei Suprema não pode estar subordinada à exegese do legislador inferior, naquilo que aumente ou reduza o espectro de atuação;
  • qualquer ato ou lei deve ser sempre interpretado, à luz da Constituição.

Leis da hermenêutica

E aqui cabe outra consideração de hermenêutica constitucional. Considerando que o direito se interpreta pelo conjunto de suas normas, princípios e institutos, não pode o intérprete afastar-se das leis da hermenêutica por conivência ou conveniência, “pro domo sua”.

Não se trata aqui de dar INTERPRETAÇÃO EXTENSIVA AO TEXTO LEGAL, mas, sim, de atribuir-lhe interpretação literal, estrita, como exige o princípio da estrita legalidade, previsto no artigo 5º XIII da CF.

Muito embora as mulheres mereçam aplausos por toda a sua dedicação e dificuldades encontradas no mercado de trabalho, não se pode, entretanto, deixar de reconhecer que cada vez mais o número de mulheres na justiça e na sociedade vem aumentando.

Não basta, portanto, o aumento do número de vagas para mulheres no Judiciário, buscando um critério de igualdade, sem que ocorram determinadas mudanças de padrões de comportamento, pois se não mudarmos a mentalidade da sociedade de que ainda a mulher seria subordinada, frágil e reconhecida por sua beleza, essa realidade social não mudará.

As mulheres têm o direito de serem reconhecidas pela sua dedicação, desempenho e méritos próprios e o fato de dar-lhes um percentual de cotas apenas traria às mesmas ainda mais o ônus de que estariam naquele órgão não por seus méritos.

Vale dizer, a resolução implica em serem classificadas pelo simples fato de serem “mulheres” e, não em função de sua “competência” e “antiguidade”, critérios objetivos para sua promoção junto ao Tribunal que representa.

A sociedade e a magistratura devem reconhecer tais questões e trabalhar de forma efetiva em busca de mudanças, principalmente trazendo as mulheres cada vez mais para os cargos de liderança, como ocorreu, por exemplo, na OAB-SP, que na última eleição, elegeu a primeira mulher, a dra. Patrícia Vanzonili, para presidir a maior seccional deste país.

Assim, a representatividade das mulheres junto ao Poder Judiciário torna-se um desafio diário a ser enfrentado com o envolvimento de todos e não por meio de critérios ideológicos, como no caso da Resolução do CNJ supramencionada.

Em se tratando de hierarquia das fontes formais de direito, uma norma inferior somente pode ser considerada como válida, se tiver sido criada na forma prevista pela norma superior — o que efetivamente ocorre no presente caso, vez que os atos regulamentares tiveram apenas o condão de complementar a legislação existente, sem ampliar ou restringir seu conteúdo normativo, pois a Lei Orgânica da Magistratura — sendo lei complementar — não apresenta conceitos vagos.

Pode-se afirmar, portanto, que a Resolução do Conselho Nacional de Justiça 525/2023 dispôs não só além do que determina a legislação própria que versa sobre tal matéria — Estatuto da Magistratura — mais também do próprio Texto Constitucional.

Evidentemente, não pode a referida resolução ultrapassar os limites da lei, muito menos exercer controle constitucional de editais de promoção dos Tribunais. Isso porque, a competência do CNJ é de dar efetividade às regras constitucionais e infraconstitucionais, não podendo contrariar normas ou inovar no ordenamento jurídico [3].

Por outro lado, a referida resolução ainda macularia de morte o princípio da igualdade, que é a base do regime democrático de direito — tão relevante, que é reiterado em diversos dispositivos — e colocado, em enfático pleonasmo, três vezes, no “caput” e no inciso I, do artigo 5º, para dirimir quaisquer veleidades hermenêuticas. Estão, o artigo e seu inciso, assim redigidos:

“Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito ]à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:

I – homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações, nos termos desta Constituição” (grifamos).

Não há democracia, sem isonomia, que exige tratamento igual entre os iguais e desigual entre os desiguais para gerar a igualdade, nos termos da contestação de Sócrates a Cálicles, no célebre diálogo “Gorgias” de Platão.

Ora, nos tribunais, todos os magistrados são iguais, razão pela qual haveria fantástica violação à Lei Maior, se fossem tratados desigualmente, com base em critérios de igualdade de gênero.

Portanto, a Resolução do CNJ se encontra eivada de manifesta inconstitucional, podendo ensejar, por se tratar de ato normativo do Conselho Nacional de Justiça, ação direta de inconstitucionalidade.

Vale ainda constatar que o critério merecimento cumpre guardar, em alguma medida, relação com o atendimento ou com o adequado atendimento aos princípios da Administração Pública, a saber, legalidade (cujo desapego pode implicar a ideia de “desmerecimento”), impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência.

Não se pode, assim, sequer imaginar válido qualquer critério de aferição do merecimento absolutamente despregado desses vetores. É critério, por assim dizer, aferível funcionalmente, à luz do desempenho funcional do magistrado. E o gênero, com o devido respeito, não guarda nenhuma relação com esses princípios.

Importante pontuar, ainda, que não se desconhece as dificuldades do que poderia ser entendido por “merecimento”, ainda mais se considerarmos as especificidades próprias de cada unidade judiciária.

‘Merecimento’

Contudo, se há uma dificuldade de esclarecer critérios seguros e objetivamente controláveis, para não se cair no domínio da plena subjetividade, do que se possa entender por “merecimento”, é tarefa mais simples compreender o que não se pode ter por merecimento, o que não pode ter-se por um critério válido para a compreensão do termo, e parece claro que o gênero não é critério válido para tal.

Com efeito, a despeito da reconhecida vagueza semântica do conceito, há certas balizas que compõem por assim dizer um núcleo semântico mínimo do que se pode compreender por merecimento e antiguidadeque não pode ser desprezado, quer pelo legislador, quer pelo administrador, quer pelo intérprete [4].

Isso porque, seja na antiguidade, seja no merecimento se promoverá qualquer gênero, seja homem ou mulher. Trata-se, como já visto, de critério justo, objetivo e democrático, por meio do qual tanto juízes quanto juízas sabem, desde quando ingressam na carreira que os critérios utilizados para sua promoção são antiguidade e merecimento, em situação da mais absoluta igualdade, não dando margem, assim, a inclusão de qualquer outro requisito que não os previstos no Texto Maior.

Atualmente, por exemplo, no âmbito do estado de São Paulo, o Tribunal de Justiça conta com aproximadamente 40% de mulheres na magistratura. Ou seja, há, praticamente, já em vias de concretização, um critério de igualdade, considerando, ainda que com o passar do tempo, teremos o atingimento da paridade de gênero, até considerando que as mulheres são mais dedicadas e, muitas vezes, mais competentes que os homens.

Interessante observar que não seria admissível a ocorrência de um concurso para juízes, baseado em barreiras aplicáveis aos candidatos por conta de seu sexo.

A norma constitucional sempre delega ao administrador público um critério de discricionariedade que, entretanto, não pode ser incompatível com os princípios constitucionais, especialmente o da legalidade, sem qualquer razoabilidade para tanto.

Nesse sentido, recentemente, o Plenário do Supremo Tribunal Federal, nos autos da ADI 7.486, referendou liminar que determinou que eventuais nomeações para o cargo de soldado do Corpo de Bombeiros Militar do estado do Piauí se deem sem as restrições de gênero previstas no edital do concurso público.

Já na ADI 7.488, foi confirmada a homologação de acordo que autorizou a continuação de concursos para a Polícia Militar e o Corpo de Bombeiros Militar do estado de Mato Grosso, também sem restrições de gênero.

Ora, se o merecimento é requisito exigido para o bem da sociedade, pois quanto melhor o magistrado, melhor o serviço prestado, não pode ser superado por um critério que procura beneficiar o gênero, ou seja, para o benefício pessoal do juiz.

Por todo o exposto, entendo que a Resolução do Conselho Nacional de Justiça é inconstitucional.

_________________________

[1] Nesse sentido, já decidiu o Supremo Tribunal Federal: ADI 189, rel. min. Celso de Mello, j. 9-10-1991, P, DJ de 22-5-1992 e MS 28.447, rel. min. Dias Toffoli, j. 25-8-2011, P, DJE de 23-11-2011.

[2] A Res. 106/2010 dispõe sobre os critérios objetivos para aferição do merecimento para promoção de magistrados e acesso aos Tribunais de 2º grau.

[3] Nesse sentido, já decidiu o Supremo Tribunal Federal: ADI 4.638 MC-REF, rel. min. Marco Aurélio, voto do min. Ricardo Lewandowski, j. 8-2-2012, P, DJE de 30-10-2014; MS 27.033 AgR, rel. min. Celso de Mello, j. 30-6-2015, 2ª T, DJE de 27-10-2015 e AO 1789, Relator(a): ROBERTO BARROSO, Tribunal Pleno, julgado em 10-10-2018, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-230 PUBLIC 29-10-2018.

[4] Nesse sentido, tem sido o entendimento do Supremo Tribunal Federal: ADI 4.462, rel. min. Carmen Lúcia, j. 18-8-2016, P, DJE de 14-9-2016; RE 239.595, rel. min. Sepúlveda Pertence, j. 30-3-1999, 1ª T, DJ de 21-5-1999; ADI 4.108 MC-REF, rel. min. Ellen Gracie, j. 2-2-2009, P, DJE de 6-3-2009 e ADI 189, rel. min. Celso de Mello, j. 9-10-1991, P, DJ de 22-5-1992.

O post Resolução do CNJ de cota social para mulheres é inconstitucional apareceu primeiro em Consultor Jurídico.

Prazo para pedido principal após efetivação da tutela cautelar antecedente é contado em dias úteis

Em julgamento de embargos de divergência, a Corte Especial do Superior Tribunal de Justiça (STJ) estabeleceu que o prazo de 30 dias para a formulação do pedido principal, após a efetivação da tutela cautelar antecedente (artigo 308 do Código de Processo Civil), tem natureza processual e, portanto, deve ser contado em dias úteis, nos termos do artigo 219 do CPC.

Com essa decisão, o colegiado pacificou entendimentos divergentes entre a Terceira Turma (que entendia que o prazo seria processual e deveria ser contado em dias úteis) e a Primeira Turma (segundo a qual o prazo seria decadencial e deveria ser contado em dias corridos).

O relator dos embargos de divergência foi o ministro Sebastião Reis Junior. Para ele, a regulação da tutela cautelar antecedente sofreu alterações importantes entre o CPC/1973 e o CPC/2015, especialmente porque o pedido principal, após a efetivação da tutela cautelar, deixou de ser apresentado em ação autônoma e passou a integrar o mesmo processo do requerimento cautelar.

Citando doutrina, ele explicou que o prazo material (prescricional ou decadencial) diz respeito ao momento para a parte praticar determinado ato fora do processo, enquanto o prazo processual se relaciona ao momento para praticar atos que geram efeitos no processo. Nesse sentido, reforçou o ministro, as normas processuais operam exclusivamente dentro do processo, disciplinando as relações inerentes a ele.

Novo CPC definiu processo único, com etapas para análise da cautelar e do pedido principal

Segundo Sebastião Reis Junior, com o novo CPC, existe apenas um processo, com uma etapa inicial relativa à tutela cautelar antecedente e uma etapa posterior de apresentação do pedido principal, com possibilidade de ampliação da abrangência da ação.

“Resta claro que o prazo de 30 dias previsto no artigo 308 do CPC é para a prática de ato no mesmo processo. A consequência para a não formulação do pedido principal no prazo de 30 dias é a perda da eficácia da medida concedida (artigo 309, inciso II, do CPC/2015), sem afetar o direito material”, completou.

No entendimento do ministro, a inovação legislativa, com a alteração profunda do sistema da tutela cautelar antecedente, deixa claro que o prazo do artigo 308 do CPC/2015 é processual. “Como desdobramento lógico, sua contagem deverá ser realizada apenas considerando os dias úteis”, concluiu.

Fonte: STJ

A obrigação de não concorrência no anteprojeto do novo Código Civil

No início de setembro de 2023, por meio do ato do presidente do Senado Federal nº 11/2023, instituiu-se a Comissão de Juristas responsável pela revisão e atualização do Código Civil. A presidência da referida comissão ficou sob responsabilidade do ministro Luis Felipe Salomão e a vice-presidência, a cargo do ministro Marco Aurélio Bellizze. A relatoria-geral foi designada para a professora Rosa Maria Nery e o professor Flávio Tartuce.

A finalidade da comissão consiste em apresentar, no prazo de 180 dias, o anteprojeto de lei para a atualização da Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002 (o Código Civil) [1]. Para tanto, a comissão foi dividida internamente em oito subcomissões com relatores parciais [2].

Após notável esforço das subcomissões em atender a diversas reuniões ordinárias, audiências públicas e encontros em universidades com demais especialistas, cada subcomissão apresentou seu relatório parcial, com proposta de redação para os artigos de sua competência. Ato contínuo, a relatoria-geral analisou os textos produzidos e elaborou relatório geral, com algumas alterações às propostas de redação submetida. Um intenso e virtuoso trabalho de todos os envolvidos que merece ser reconhecido.

O prazo final para a comissão enviar ao Senado o anteprojeto e cumprir com a finalidade proposta se encerra neste mês, no dia 12 de abril de 2024. Por isso, durante esta semana, de 1º a 5 de abril de 2024, os juristas membros da comissão estão reunidos para discutirem e votarem sobre a redação do Relatório Final.

A obrigação de não concorrência

Diante das instigantes discussões sobre a atualização do Código Civil, o presente artigo pretende contribuir com breves notas sobre a importância da revisão do artigo 1.147 do Código Civil, que trata sobre a obrigação de não concorrência [3]. Tive a oportunidade de desenvolver a pesquisa sobre este tema durante a minha dissertação de mestrado na Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP), concluída em 2023, sob orientação inicial do professor doutor Newton Silveira (in memoriam) e orientação final da professora doutora Juliana Krueger Pela.

Spacca

A obrigação de não concorrência é regra excepcional, conforme se depreende do comando pró-concorrencial instituído pela Constituição de 1988. Especificamente no artigo 170, em que se inicia o capítulo dos princípios da atividade econômica, há o mandamento de que a ordem econômica deve observar alguns princípios gerais, dentre eles, a livre iniciativa e a livre concorrência.

Os princípios constitucionais da livre iniciativa e da livre concorrência são complementares, por isso costumam ser tratados em conjunto [4]. A Constituição de 1988 os disciplina como instrumentos para o alcance maior da proteção da dignidade da pessoa humana. São essenciais, não só para o adequado funcionamento do livre-mercado, mas também para atingir o fim social perseguido pela Constituição [5].

Considerando a sua excepcionalidade, a obrigação de não concorrência deve ser imposta por lei ou prevista expressamente em contrato para estar em consonância com a Constituição. Além disso, a interpretação de qualquer pacto capaz de restringir a livre concorrência deve ser limitada, razoável e feita de forma estrita.

Nesse sentido, o Código Civil de 2002 positivou a obrigação de não concorrência nos termos do artigo 1.147, o qual, atualmente, dispõe da seguinte redação: “Não havendo autorização expressa, o alienante do estabelecimento não pode fazer concorrência ao adquirente, nos cinco anos subseqüentes à transferência. Parágrafo único. No caso de arrendamento ou usufruto do estabelecimento, a proibição prevista neste artigo persistirá durante o prazo do contrato”.

Pela leitura do dispositivo atual, percebe-se que o legislador previu que a livre concorrência deve ser restringida em casos de alienação, arrendamento ou usufruto do estabelecimento, se as partes nada dispuserem. Ou seja, no silêncio das partes contratantes, aquele que vendeu o estabelecimento fica proibido de concorrer com o que o adquiriu pelo período de cinco anos subsequentes à transferência. No caso do arrendamento ou usufruto, pelo período de duração do contrato.

Assim, tem-se que a atual fonte normativa determinou como regra especial o que deveria ser tratado como exceção. Compreende-se que a sua redação tenha sido inspirada no artigo 2.557 do Código Civil italiano de 1942 [6], que regulou a matéria de proibição da concorrência. Apesar de ambos estabelecerem um limite temporal para tal proibição, o dispositivo legal italiano é mais detalhado, com a previsão de que os limites material e territorial também devem ser definidos no caso concreto. Além disso, a redação do artigo italiano menciona o seu propósito, qual seja, a restrição da concorrência no que seja suscetível de induzir a clientela do estabelecimento alienado em erro, o que contribui para a delimitação e interpretação das situações práticas.

O Código Civil de 2002 inovou com a regulação da obrigação de não concorrência, que não era tratada no Código Civil de 1916. A inclusão do artigo 1.147, na época, pode ter sido útil para atenuar as discussões doutrinárias e jurisprudenciais acerca das teorias para aceitar ou refutar a obrigação implícita de não concorrência em contratos de alienação de estabelecimento, também denominados de contratos de trespasse [7].

No entanto, apesar de a previsão do artigo 1.147 do Código Civil ter seu motivo político e de cunho ideológico daquela época, entende-se que o seu conteúdo não foi adequado, nem benéfico, por dois motivos, em especial. Primeiro, porque o dispositivo privilegia a vedação automática da concorrência do alienante do estabelecimento, em vez de exigir que as partes incluam cláusula contratual expressa para que o adquirente tenha esta proteção. Segundo, porque o artigo, se deseja tratar da restrição da concorrência, poderia ter ido além, para tratar também de forma minuciosa sobre os limites para harmonizar tal obrigação com os princípios da livre iniciativa e da livre concorrência quando as partes a preveem no contrato [8].

A alteração do artigo 1.147 do Código Civil de 2002

De todo modo, saindo deste recorte histórico e voltando para as lentes atuais, o fato é que a obrigação de não concorrência é corriqueiramente prevista no contrato quando as partes assim desejam, independentemente do tipo contratual. Por isso, não se vislumbra mais a necessidade de elaborar qualquer justificativa para impô-la por lei para a proteção de alguma parte.

Os contratos civis e empresariais são considerados presumidamente paritários, como dispõe o artigo 421-A do Código Civil, incluído pela Lei nº 13.874, de 2019, conhecida como Lei da Liberdade Econômica. Assim, independentemente da finalidade do contrato no qual se insere a cláusula de não concorrência, seja ela de alienação do estabelecimento, alienação de participação societária com a transferência do poder de controle, franquia, parceria comercial ou outras, as partes a estabelecem quando a contratam. Como afirma Paula A. Forgioni: “Contrata-se a não concorrência, paga-se por ela. Dá-la de presente significa premiar o oportunismo disfuncional do agente econômico” [9].

Nesse ângulo, felizmente, a comissão pretende alterar o referido cenário e propor a modificação do artigo 1.147 do Código Civil de 2002. A Subcomissão de Direito da Empresa, sob a relatoria parcial da Professora Paula A. Forgioni, propôs a revogação do parágrafo único do art. 1.147 e a seguinte redação para o seu caput: “Art. 1.147. O alienante pode atuar livremente no mesmo mercado do estabelecimento alienado, salvo se o contrário for acordado pelas partes”.

A relatoria-geral concordou, tanto com a revogação do parágrafo único do artigo 1.147, como com o novo comando do seu caput, apenas propôs redação mais específica para o final do caput nos seguintes termos: “Art. 1.147. O alienante pode atuar livremente no mesmo mercado do estabelecimento alienado, salvo solução diversa pactuada por escrito entre as partes, quanto ao tempo e ao espaço de não-concorrência”.

Até o momento não se sabe qual redação prevalecerá, mas o objetivo crucial é a modificação do núcleo da fonte normativa, que ocorre em ambos os casos. Ainda há longo processo legislativo para o anteprojeto prosseguir, mas espera-se que a vedação automática seja retirada de vez, ou seja, que não haja a obrigação implícita de não concorrência, aquela restrição que não foi expressamente pactuada pelas partes.

De início, pensei que a revogação total do artigo 1.147 até poderia ser um bom caminho. No entanto, após as reflexões, entendo que a expressa alteração do comando normativo – de vedação automática para vedação somente quando pactuada pelas partes – trará maior segurança jurídica para guiar a atuação do operador do direito e do intérprete.

A liberdade de concorrer é princípio constitucional tão essencial ao crescimento do mercado e aos consumidores, sendo sua restrição excepcional. O novo dispositivo legal, se aprovado, estará em harmonia com a Constituição Federal de 1988, contribuindo para a segurança jurídica e a previsibilidade de que o mercado tanto necessita, com o comando geral de que a regra é a livre concorrência, devendo qualquer restrição ser expressamente contratada pelas partes. Além disso, cumpre relembrar que, quando pactuada, a cláusula de não concorrência deve ter interpretação estrita e ser bem delimitada.

Com estas breves considerações sobre a regulação da matéria da obrigação de não concorrência, espera-se ter colaborado para as discussões, com os sinceros e positivos votos para que a mudança legislativa neste e em outros temas ocorra para a melhoria e atualização do Código Civil.


[1] As informações sobre as atividades legislativas da Comissão de Juristas responsável pela revisão e atualização do Código Civil (CJCODCIVIL) está no website do Senado Federal, no link https://legis.senado.leg.br/comissoes/comissao?codcol=2630

[2] A composição final da Comissão e Subcomissões pode ser encontrada no website do Senado Federal, no link https://legis.senado.leg.br/comissoes/arquivos?ap=7964&codcol=2630

[3] Confesso que, quando soube da alteração do artigo 1.147, pensei que a aprovação por todos os especialistas seria unânime, mas, recentemente, presenciei em uma banca de defesa de mestrado, professores argumentando pela manutenção do art. 1.147 nos seus atuais termos, ao passo que, senti-me motivada a escrever este breve artigo, no intuito de contribuir para a necessária evolução do tema.

[4] GRAU, Eros Roberto. A ordem econômica na Constituição de 1988: interpretação e crítica. 14. ed. São Paulo: Malheiros, 2010, p. 203.

[5] FORGIONI, Paula A. Os fundamentos do antitruste. 10. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2018, pp. 196-197.

[6] Em tradução livre, a redação do artigo 2557 do Código Civil italiano de 1942 prevê: “Quem aliena o estabelecimento deve abster-se, pelo período de cinco anos a partir da transferência, de constituir nova empresa que, pelo objeto, localização ou outras circunstâncias, seja suscetível de induzir em erro a clientela do estabelecimento cedido (2125, 2596). O pacto de abstenção da concorrência, em limites mais amplos do que os previstos no parágrafo precedente é válido, desde que não impeça qualquer atividade profissional do alienante. Isso não pode exceder a duração de cinco anos da transferência. Se no pacto for indicada uma duração maior ou ela não for estabelecida, a proibição da concorrência é válida pelo período de cinco anos a contar da transferência. No caso de usufruto ou arrendamento do estabelecimento, a proibição da concorrência prevista no primeiro parágrafo aplica-se ao proprietário ou ao locador enquanto durar o usufruto ou arrendamento. O disposto neste artigo aplica-se aos estabelecimentos agrícolas apenas para as atividades a elas conexas (2135), quando seja possível o desvio de clientela em relação às mesmas”. O original pode ser encontrado no seguinte link: https://www.altalex.com/documents/news/2014/03/31/dell-azienda

[7] Historicamente, um litígio, em especial, ficou conhecido no meio jurídico sobre este tema. Trata-se do “caso da juta”, ocorrido em 1913. Pode-se considerar que esta contenda inaugurou ou, ao menos, noticiou o assunto da obrigação de não concorrência em alienação de estabelecimento no Brasil. Além do tema ser de interesse dos comercialistas, as partes do caso contrataram o patrocínio de José Xavier Carvalho de Mendonça, de um lado, e Rui Barbosa, de outro, com ambos os advogados subsidiando suas defesas em pareceres de renomados juristas franceses e italianos. Para resumo da famosa contenda, os argumentos giravam em torno de dois assuntos principais: se há cessão da clientela quando se aliena o estabelecimento ainda que no silêncio do contrato e se há obrigação implícita do alienante de não concorrer, passando por qual seria o fundamento para tal. A tese vitoriosa foi sustentada por Rui Barbosa de que o sobrevalor pago na transferência do estabelecimento era referente à posição conquistada no mercado e não à clientela, entendendo o Supremo Tribunal Federal, por maioria, que a clientela não integrou implicitamente o objeto do contrato e que o alienante estaria livre para concorrer por nada contrário ter sido expresso no contrato. Cumpre destacar que, mesmo com o entendimento firmado pelo Supremo Tribunal Federal neste célebre caso, não reconhecendo obrigação implícita de não concorrência no referido contrato, a jurisprudência e a doutrina foram consolidando posicionamento em sentido oposto sobre a matéria para o contrato de trespasse, até que a proibição restou expressa no Código Civil de 2002. Com a inclusão do art. 1.147, a discussão abrandou e não havia mais a necessidade das tantas teorias justificadoras da obrigação implícita de não concorrência para o contrato de trespasse.

[8] Em concordância com esta orientação, Vera Helena de Mello Franco complementa: “Por tal razão, embora louvável a orientação do CC/2002, é necessário mencionar que peca, posto não exigir a delimitação espacial. Peca, igualmente, pelo fato do automatismo da vedação, posto que agora o cedente somente poderá exercer a mesma atividade se do instrumento de cessão constar autorização expressa, e a disposição é complicada”. (FRANCO, Vera Helena de Mello. Direito Empresarial: o empresário e seus auxiliares, o estabelecimento empresarial, as sociedades. 4. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2012, p. 141).

[9] FORGIONI, Paula A. Contratos empresariais: teoria geral e aplicação. 4. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2019, p. 291.

O post A obrigação de não concorrência no anteprojeto do novo Código Civil apareceu primeiro em Consultor Jurídico.