Pejotização: análise do STF pode ampliar hipóteses, diz especialista

O ministro Gilmar Mendes, do Supremo Tribunal Federal (STF), suspendeu na segunda-feira (14) todos os processos na Justiça sobre a legalidade da chamada “pejotização”, em que empresas contratam prestadores de serviços como pessoa jurídica, evitando criar uma relação de vínculo empregatício formal. 

Isso significa que todos os processos, em qualquer estágio ou instância, ficam parados até que o plenário do Supremo julgue o mérito, ou seja, alcance um entendimento definitivo sobre o tema. Não há prazo para isso acontecer. Na maioria das vezes, a espera pode demorar anos. 

Segundo a Associação Nacional dos Procuradores e das Procuradoras do Trabalho (ANPT), somente em 2024 foram abertas cerca de 460 mil ações sobre reconhecimento de vínculo trabalhista. O número exato de processos paralisados ainda deve ser informado ao Supremo por todos os tribunais do país. 

A suspensão nacional de processos é uma medida de grande impacto, que costuma ser usada com contenção, e ocorre quando o Supremo começa a receber centenas ou milhares de recursos sobre um mesmo assunto. Os ministros então selecionam um desses casos para que receba o status de repercussão geral, isto é, para que seu desfecho oriente toda a Justiça na resolução de um problema polêmico. Enquanto isso, todos os demais precisam aguardar

Especialistas ouvidos pela Agência Brasil apontam que a suspensão nacional dos casos sobre pejotização é positiva no sentido de sanar a grande insegurança jurídica em torno do reconhecimento do vínculo trabalhista. Por outro lado, a corrente majoritária do Supremo tende a ampliar as hipóteses aceitas para a contratação de prestadores de serviço como pessoas jurídicas, o que pode prejudicar a aplicação da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), avaliam alguns dos entrevistados. 

Insegurança jurídica 

O professor de Direito do Trabalho da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Rodrigo Carelli, destaca que o fenômeno da pejotização é alvo de preocupação há décadas e em todo o mundo, não só no Brasil. Desde 2006, por exemplo, que a Organização Internacional do Trabalho (OIT) recomenda a todos os países-membro, incluindo o Brasil, que combatam as relações de trabalho disfarçadas de outras relações contratuais. 

“Não há nenhuma novidade nas relações de trabalho quanto a isso”, disse Carelli. 

No Brasil, a controvérsia sobre a pejotização se agravou a partir de 2018, quando o Supremo validou um dispositivo da reforma trabalhista e liberou a terceirização para as atividades-fim das empresas, e não somente para áreas de apoio como limpeza e vigilância, por exemplo. Desde então, começaram a chegar à Corte milhares de reclamações de empresas em busca de derrubar o reconhecimento de vínculos trabalhistas, alegando que a justiça trabalhista estaria considerando fraudulentos contratos regulares de prestação de serviços. A maior parte dos ministros tem concedido os pedidos das empresas. 

“O que o STF está fazendo é uma confusão entre terceirização e pejotização”, avaliou Carelli. “A doutrina em todo mundo sempre reconheceu que uma coisa não tem nada a ver com a outra. Mesmo que se autorize a terceirização de atividades-fim, isso não permite mascarar a relação de trabalho formal”, afirmou. 

Previsibilidade

Para o pesquisador, ao derrubar decisões da Justiça do Trabalho sobre reconhecimento de vínculo, o Supremo “dá um incentivo para as empresas descumprirem as normas trabalhistas”. Ele critica que alguns ministros apontem o julgamento sobre terceirização como uma espécie de “salvo conduto” para a retirada de direitos do trabalhador. “A gente vê um quadro que vai causar impactos drásticos na sociedade brasileira”, afirmou. 

Para o advogado trabalhista Mauricio Pepe, sócio do escritório Dias Carneiro, contudo, a suspensão nacional de processos e a repercussão geral do tema da pejotização podem ser “uma oportunidade de obtenção de posicionamento mais claro por parte do Supremo Tribunal Federal sobre a validade dos contratos de prestação de serviços especializados”. Para o defensor, que atua sobretudo representando empresas, o que a Corte busca é dar uma espécie de freio de arrumação sobre o tema. “Não se pode simplesmente presumir a existência de fraude ou simulação, como infelizmente vem ocorrendo em muitos casos analisados pela Justiça do Trabalho”. 

Pepe acrescenta que, a seu ver, “tanto trabalhadores quanto empresários terão maior segurança jurídica, previsibilidade e uniformidade nas decisões judiciais, reduzindo o risco de interpretações divergentes entre diferentes instâncias”. 

A advogada Elisa Alonso, sócia da RCA Advogados, também vê um “alívio momentâneo” para as empresas, que sustentam que as diferentes formas de contratação são algo “vital para viabilizar operações, reduzir custos e adaptar a prestação de serviços às dinâmicas modernas de mercado”. 

A defensora reconhece, porém, que há inúmeros casos em que a contratação por meio de pessoa jurídica esconde uma verdadeira relação de emprego, com subordinação, habitualidade, onerosidade e pessoalidade, mas sem o reconhecimento formal dos direitos decorrentes da CLT. “Nestes casos, a pejotização se converte em instrumento de precarização, privando o trabalhador de acesso a férias, 13º salário, FGTS, verbas rescisórias e previdência social adequada”. 

Nesse embate entre liberdade de contratação e proteção ao trabalhador, “as empresas tendem a ganhar previsibilidade e fôlego na defesa de seus modelos de gestão, enquanto trabalhadores poderão enfrentar o risco de enfraquecimento da malha protetiva assegurada pela legislação trabalhista”, ponderou Elisa Alonso. 

Trabalhador enfraquecido

Para além de uma possível perda de direitos, uma eventual permissividade maior para a contratação de trabalhadores como pessoa jurídica deve afetar também o poder de barganha na hora de negociar os próprios contratos, avalia o economista Nelson Marconi, coordenador do curso de Administração Pública da Fundação Getúlio Vargas (FGV). 

Isso porque a pejotização faz, por exemplo, com que os trabalhadores se desconectem uns dos outros e não possam se organizar coletivamente para negociar melhores salários e condições.

“Quando você flexibiliza muito o mercado de trabalho, fica mais difícil para os trabalhadores estabelecer negociações com as empresas”, frisou o economista.

Marconi é também um dos autores de um estudo que estima qual seria o impacto fiscal do avanço da pejotização no país. Segundo o artigo, publicado no ano passado, entre a aprovação da terceirização das atividades-fim com a reforma trabalhista, em 2017, e o fim de 2023, a União pode ter deixado de arrecadar R$ 89 bilhões que teriam sido pagos caso profissionais autônomos registrados como microempreendores tivessem sido contratados com carteira assinada.  

Na hipótese do avanço da pejotização transformar cerca da metade dos trabalhadores formais brasileiros em prestadores de serviço contratados como pessoa jurídica, as perdas podem superar os R$ 300 bilhões pelos próximos anos, conclui o estudo. 

Fonte: EBC

Crédito de representante comercial PJ se equipara a trabalhista na recuperação judicial

O crédito devido ao representante comercial, seja pessoa física ou jurídica, se equipara aos créditos derivados da legislação do trabalho na recuperação judicial ou na falência.

Com esse entendimento, a 3ª Turma do Superior Tribunal de Justiça deu provimento ao recurso especial de uma empresa de representação comercial. O julgamento foi por maioria de votos. Trata-se do primeiro precedente colegiado sobre o tema no tribunal.

O caso é de uma credora que foi inicialmente incluída na classe IV (microempresa ou empresa de pequeno porte) da recuperação judicial de uma empresa de empreendimentos imobiliários.

A empresa de representação comercial então recorreu para ser reclassificada para a classe I, dos créditos trabalhistas, que tem preferência na ordem de pagamento.

O Tribunal de Justiça do Piauí considerou que apenas os representantes comerciais que são pessoas físicas teriam seus créditos classificados na classe I.

Ao STJ, a empresa de representação destacou que as leis que tratam do tema não fazem nenhuma distinção entre pessoa física ou pessoa jurídica. A classificação dos créditos é disciplinada no artigo 83, inciso I da Lei de Recuperação Judicial e Falências (Lei 11.101/2005).

Já o artigo 44 da Lei 4.886/1965 diz que as importâncias relacionadas com a representação serão consideradas créditos da mesma natureza dos trabalhistas para fins de inclusão no pedido de falência ou plano de recuperação judicial.

Sem distinção

Venceu o voto divergente do ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, que deu razão à argumentação da empresa de representação comercial.

Para ele, o legislador tratou das importâncias devidas ao representante comercial, não fazendo distinção entre pessoas físicas e jurídicas.

“Assim, aqui cabe a máxima de que, se o legislador não fez diferenciação, não cabe ao intérprete fazê-lo, sob pena de restringir indevidamente a abrangência da norma”, apontou.

Ele destacou que a sociedade limitada pode ser constituída por uma pessoa. E indagou: “Qual seria a diferença entre o crédito titularizado pelo empresário individual e a sociedade unipessoal quando ambos organizam os fatores de produção?”

“Concluir que o crédito de um tem natureza alimentar enquanto o da outra não tem somente poderia se sustentar com a realização de prova. Não há como chegar a essa conclusão a priori”, disse.

Classe IV

Votaram com a divergência os ministros Humberto Martins, Moura Ribeiro e Daniela Teixeira.

Ficou vencida a ministra Nancy Andrighi, relatora do recurso especial. Para ela, é possível diferenciar entre o representante comercial pessoa física e o pessoa jurídica.

Isso porque o que justifica o tratamento privilegiado é a natureza alimentar do crédito, destinado ao sustento do representante comercial e de sua família.

“No caso de pessoas físicas, o crédito decorrente da representação comercial será destinado ao sustento do representante e de sua família (de forma análoga ao salário do empregado), autorizando, pois, a equiparação aos créditos trabalhistas”, explicou.

Por outro lado, a pessoa jurídica não tem necessidades vitais a serem supridas. A atividade está ligada, essencialmente, à forma de organização dos fatores de produção, e não ao trabalho pessoal dos sócios, disse a ministra.

Clique aqui para ler o acórdão
REsp 2.168.185

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Banco Central quer ouvir a sociedade sobre “tokenização” de cartões

O Banco Central (BC) publicou tomada de subsídios para obter contribuições para eventual aprimoramento da regulação de arranjos de pagamentos integrantes do Sistema de Pagamentos Brasileiro (SPB). 
A tomada de subsídios busca abordar a necessidade de disciplinar a prestação de serviços de solicitação e armazenamento de tokens de dados de instrumentos de pagamento, como os oferecidos por carteiras digitais, como Apple Pay, Samsung Pay e Google Pay. Esses tokens atuam como representação segura das credenciais dos usuários, facilitando transações de pagamento com cartões. 
Motivação
Com o crescimento significativo dos pagamentos digitais no Brasil, impulsionado pelo uso de smartphones e de carteiras digitais, os solicitantes de token ganharam poder de mercado significativo, o que pode levar a custos elevados para emissores de cartões e, consequentemente, para os usuários desses arranjos – consumidores e estabelecimentos comerciais. 
A tomada de subsídios poderá ser acessada por aqui e/ou pelo site Participa + Brasil durante sessenta dias, até 2 de junho de 2025. 
Diálogo
A realização da tomada de subsídios busca, por meio de diálogo transparente entre os agentes envolvidos e a sociedade, obter informações e evidências que vão subsidiar estudos sobre o tema, inclusive no que se refere a eventual necessidade de sua regulação. 
“A política pública que inspira essa tomada de subsídios tem como objetivo aumentar a eficiência e reduzir os custos de aceitação dos instrumentos de pagamentos, promovendo um ecossistema mais eficiente, competitivo e inclusivo”, disse Renato Dias de Brito Gomes, Diretor de Organização do Sistema Financeiro e de Resolução do BC.

Fonte: BC

Tema STJ 1.293 — bom para quem?

Todos conhecem a anedota da pessoa que chega na farmácia e pergunta: você tem alguma coisa boa para gripe? O balconista, de pronto, responde que bom para a gripe seria andar na chuva sem camisa. Essa historinha sem muita graça (reconheçamos isso!), presta-se, no entanto, para que reflitamos, no uso da linguagem, principal ferramenta do direito, sobre o que efetivamente estamos a analisar quando debatemos, v.g., se a decisão “A” ou “B” é boa, sem um referencial preciso. Usamos, aqui, como exemplo, a decisão recente do Superior Tribunal de Justiça no Tema 1.293 [1].

Um pouco sobre o Tema 1.293

Quem acompanha a coluna Território Aduaneiro [2] e/ou atua no meio jurídico aduaneiro certamente já ouviu falar do Tema 1.293, que trata da aplicação do artigo 1º, § 1º, da Lei 9.873/1999 (sobre “prescrição intercorrente”), a “infrações aduaneiras de natureza não tributária”.

O leitor que fizer uma busca no sítio web do STJ pelas palavras-chaves “prescrição”, “intercorrente” e “aduaneiro”, encontrará cinco precedentes daquele tribunal que antecederam a afetação do tema, pelo STJ, todos referentes a 2023/2024, sendo quatro relativos à mesma multa, prevista no artigo 107 do Decreto-Lei 37/1966, com a redação dada pela Lei 10.833/2003, aplicada pela falta de prestação de informações pelo transportador, em exportações [3]. Em tais precedentes (assim como em outro, que lhes antecede, de idêntico teor, e que não apareceu na busca com as palavras-chaves eleitas — REsp nº 1.999.532/RJ, de 9/5/2023), informou-se expressamente que, por se tratar de informações sobre mercadorias embarcadas na exportação, a infração não tem perfil tributário, visto que a confirmação do recolhimento do imposto de exportação antecede o embarque das mercadorias para o exterior. O quinto precedente encontrado na busca, de 15/8/2024 (REsp 1.942.072/RS, de relatoria do ministro Mauro Campbell Marques, da 2ª Turma), trata de multa prevista no DL nº 399/1968, decorrente do descumprimento de obrigação tributária acessória relacionada à fiscalização do IPI.

Nesse cenário de precedentes, foram afetados à sistemática dos recursos repetitivos outros dois processos tratando da mesma multa pela falta de prestação de informações pelo transportador, os REsp 2147583/SP e REsp 2147578/SP. E, apreciando tais precedentes, o STJ fixou tese jurídica subdividida em três partes, sendo a primeira delas: (1) “Incide a prescrição intercorrente prevista no art. , § 1º, da Lei 9.873/1999 quando paralisado o processo administrativo de apuração de infrações aduaneiras, de natureza não tributária, por mais de 3 anos”.

Nessa primeira parte, decidiu unanimemente o STJ, em interpretação ao texto do artigo 5º da Lei 9.873/1999, que dispõe que a lei “…não se aplica às infrações de natureza funcional e aos processos e procedimentos de natureza tributária”, que o processo ou procedimento é “desimportante”, e que, portanto, trata o texto legal do artigo 5º não de processos ou procedimentos de natureza tributária, mas de infrações de natureza tributária (qualquer que seja o processo a que estejam sujeitas).

Bom para o Direito Aduaneiro?

Como bem destacado por Fernando Pieri e Pedro Mineiro na coluna aqui já citada, e como bem percebido por quem estuda o Direito Aduaneiro, este ramo jurídico é apenas marginal na decisão do STJ, que se limita a comparar de forma binária infrações administrativas tributárias e não tributárias, sendo tal distinção suficiente para o julgamento.

A segunda parte da tese jurídica fixada estabelece: (2) “natureza jurídica do crédito correspondente à sanção pela infração à legislação aduaneira é de direito administrativo (não tributário) se a norma infringida visa primordialmente ao controle do trânsito internacional de mercadorias ou à regularidade do serviço aduaneiro, ainda que, reflexamente, possa colaborar para a fiscalização do recolhimento dos tributos incidentes sobre a operação” (grifo dos colunistas).

Resumir as atividades aduaneiras a “controle do trânsito internacional de mercadorias ou à regularidade do serviço aduaneiro” não encontra paralelo em bibliografia aduaneira relevante, nacional ou internacional. Essa não parece ser a razão para que não haja nenhuma referência aduaneira na decisão do STJ, mas sim o fato de a parte 2 (e a menção ao que seria o “aduaneiro”) ser desnecessária, por derivar a contrário senso da última parte: (3) “Não incidirá o art. 1º, § 1º, da Lei 9.873/99 apenas se a obrigação descumprida, conquanto inserida em ambiente aduaneiro, destinava-se direta e imediatamenteà arrecadação ou à fiscalização dos tributos incidentes sobre o negócio jurídico realizado” (grifo dos colunistas).

Perceba-se que a parte 2 trata da incidência geral da Lei 9.873, se a matéria for “administrativa não tributária” (seja ela administrativa aduaneira, mineral, agrícola, ambiental…), e a parte 3 trata da não incidência da lei se a matéria for tributária, assim definida aquela destinada “direta e imediatamente à arrecadação ou à fiscalização” de tributos [4].

O Direito Aduaneiro, nacional e internacionalmente, abrange tanto uma área isolada do Direito Tributário (identificada pelo STJ como Direito Administrativo) quanto uma área que intersecciona o Direito Tributário. Quando a lei brasileira se refere à legislação aduaneira (v,g, artigos 59 a 81 da Lei 10.833/2003), não está somente a tratar da área não tributária, mas também da zona de intersecção com o Direito Tributário. Quando o Carf estabeleceu competência para as turmas aduaneiras, há um ano, não tratou somente de competência não-tributária.

Confundir as menções a “infrações aduaneiras” na legislação, nacional e internacional, ou em julgados do Carf, com as definições de “administrativo tributário” e “administrativo não tributário” da decisão do STJ equivale a saltar de um cenário (comum em 1999, quando a Lei 9.873 foi escrita) em que se defendia que o Direito Aduaneiro era mero subconjunto do Direito Tributário (acredite, ainda hoje há quem defenda essa posição!) para outro em que o Direito Aduaneiro não existe: ou é administrativo não tributário ou é tributário. Esse novo e “comemorado” “Direito Aduaneiro brasileiro inexistente”, permitiria o uso seletivo de institutos tributários e administrativo-aduaneiros, generalizando ideias pinçadas aqui e acolá, em ambientes desconexos, para alargar a compreensão de institutos, conforme a conveniência.

Já tínhamos confusões suficientes entre o “tributário” e o “aduaneiro” no Brasil para resolver, mormente entre as normas efetivamente aduaneiras (como o Decreto-Lei 37/1966) e as tributárias (como o CTN). A decisão do STJ acentua tal confusão, pois o “aduaneiro”, para os efeitos do precedente, passa a ser a soma do “administrativo não tributário” que trata de serviços ou trânsito, com o “administrativo tributário” inserido “em ambiente aduaneiro”. E mais, adota-se essa distinção como se ela fosse clara em 1999 (antes da própria existência da multa julgada, que nasceu em 2003), e a alastram-se os critérios distintivos adotados no julgamento (basicamente de uma multa) a um universo indefinido de infrações [5].

Bom para quem foi indevidamente autuado?

O Tema 1.293 já está sendo aplicado pelo Carf, que está determinando o sobrestamento de processos para os quais sejam identificados, ainda que preliminarmente, os requisitos da decisão do STJ, até que ocorra o trânsito em julgado, conforme previsão regimental (art. 100 do Ricarf).

Entretanto, nos casos em que as turmas do Carf detectem que a autuação é improcedente, os processos são julgados imediatamente, cancelando-se o lançamento (não tributário), sequer se cogitando o sobrestamento. É o caso, por exemplo, das retificações, na hipótese de multa por falta de prestação de informações pelo transportador, exatamente a apreciada pelo STJ (Súmula CARF 186).

Bom para quem desejava julgamento rápido?

Deixar um processo paralisado por mais de três anos (seja ele administrativo ou judicial, seja ele tributário ou não) é certamente algo ruim, indesejável, pois a justiça que tarda já falha. Em um país com altíssimos índices de litigância, como o Brasil, e péssimos índices de temporalidade, a própria legislação assegura o julgamento em menos de 360 dias. O art. 24 da Lei 11.457/2007 estabelece: “É obrigatório que seja proferida decisão administrativa no prazo máximo de 360 dias a contar do protocolo de petições, defesas ou recursos administrativos do contribuinte”.

É comum que litigantes administrativos (não somente “contribuintes” na acepção estrita do termo) demandem em juízo que se determine o julgamento imediato do processo administrativo após o decurso de tal prazo, tendo o Carf respeitado todas as decisões judiciais com tal demanda.

Bom para a segurança jurídica?

A decisão proferida pelo STJ denota um novo entendimento, em meados de 2023, a respeito da interpretação de uma norma de 1999 (Lei 9.873). Veja-se que ainda em 2022, no AREsp 2076156 (ministro Francisco Falcão), a mesma multa por atraso na prestação de informações pelo transportador (art. 107, IV, “e”) sequer chegou ao colegiado (com trânsito em julgado em 30/06/2022), tamanha era a certeza de que o tema restava assentado pacificamente na jurisprudência daquele tribunal, no sentido de que: “…a demora na tramitação do processo administrativo fiscal não implica a preclusão do direito da União (Fazenda Nacional) de constituir definitivamente o crédito tributário, instituto esse não previsto no Código Tributário Nacional (REsp 53.467/SP)”, e “Conforme já se manifestou o E. STJ, o tempo decorrente entre a notificação do lançamento fiscal e a decisão final da impugnação ou do recurso administrativo corre contra o contribuinte que, mantida a exigência fazendária, responderá pelo débito originário acrescido dos juros e da correção monetária”, e “Não obstante o crédito tributário esteja constituído, apresentada impugnação na via administrativa, o crédito não pode ser cobrado, restando suspensa a exigibilidade (art. 151, inc. III, do CTN), razão pela qual também não se pode cogitar na ocorrência da prescrição intercorrente” (grifo dos colunistas).

Na via administrativa, não há registro de precedente aplicando a Lei 9.873 a penalidades aduaneiras até a segunda década deste século. Como se atesta em estudo anterior [6], o posicionamento sobre o tema era unânime em todas as turmas do Carf, mesmo antes da Súmula Carf 11. Aliás, em dois dos precedentes que deram origem a tal súmula se destaca que o texto deriva da reiterada jurisprudência de todos os três conselhos (Ac. 203-02.815 e Ac. 202-07.929).

Na doutrina, a única menção ao tema antes de 2021 é em obra de Jorge Abud [7]. Na legislação aduaneira, nem o Regulamento Aduaneiro de 2002 (Decreto 4.543) nem o Regulamento Aduaneiro atual, de 2009 (Decreto 6.759) sequer cogitaram mencionar a Lei 9.873/1999, e o prazo de três anos nela estabelecido para “prescrição intercorrente” jamais foi tomado como parâmetro para a gestão de acervo de qualquer tribunal administrativo (ou mesmo judicial) aduaneiro.

A aplicação do entendimento agora fixado pelo STJ a casos que antecedem qualquer sinalização de que isto poderia acontecer é ainda agravada pelas consequências (externalidades) da decisão. Ainda que a tese fixada remeta só ao artigo 1º, § 1º, da Lei 9.873/1999, e à restrição do artigo 5º da mesma lei, resulta incoerente imaginar que as demais disposições de tal lei não se apliquem a infrações administrativas não tributárias (sejam elas aduaneiras ou não), pois o Direito, como ensina Eros Grau, não se interpreta em tiras [8]. Mesmo no próprio § 1º, a parte final do texto demandaria, em caso de aplicação retroativa do decidido pelo STJ, investigação de quem deu causa a cada uma das “prescrições intercorrentes” (no caso, penalidade com feições de infração hermenêutica). Que dizer, então do § 2º do mesmo artigo 1º, da Lei 9.873, que trata de infrações que também constituam crimes, ou do caput do artigo 1º, que conflita com o artigo 139 do Decreto-lei 37/1966, aplicado assentada e unanimemente pelo Carf e pelo próprio STJ (v.g., no REsp 1253246/CE). Seria a vedação do artigo 5º da Lei 9.873/1999 aplicável só ao artigo 1º, § 1º?

O novo entendimento fixado pelo STJ em 2025 sobre uma norma de 1999, a partir de julgados de 2023/2024, em sentido oposto ao que antes decidia reiteradamente o Poder Judiciário (incluído o próprio STJ), e a Administração, faz com que sejam canceladas autuações legitimamente efetuadas a seu tempo, quando não havia controvérsia de que o termo “tributário” abrangia o “aduaneiro” [9]. E indicam, para o futuro, um cenário em que os autuados possam passar a apostar na inércia dos órgãos julgadores administrativos, com boas chances de êxito, tendo em conta que os processos administrativos no rito do Decreto 70.235/1972 (sejam eles aduaneiros ou não), em média, tardam mais de três anos para serem julgados tanto nas DRJ quanto no Carf [x].

Bom para a justiça?

John Rawls oferece um interessante artifício na busca pela justiça: o véu da ignorância, que nos remete à condição original de igualdade, eliminando a possibilidade de que alguém seja favorecido pelo resultado ou por sua condição [11].

Recomendamos a quem hoje comemora a decisão no Tema 1.293 o exercício proposto por Rawls. Imagine que você não fosse ganhar (ou perder) nenhum dinheiro ou benefício com a decisão do STJ. Como você encararia cada uma das questões propostas neste artigo?

Vá com calma. Se você respondeu rápido essa questão, ou qualquer outra feita ao longo desta coluna, sem ponderar detidamente os argumentos (talvez porque já tinha a resposta pronta antes mesmo das perguntas!), provavelmente nem deu tempo de vestir o véu.

Perceba que não respondemos objetivamente, com sim ou não, em caráter conclusivo, nenhuma das questões. Só apresentamos argumentos para a reflexão.

Sempre duvide de quem tem certezas!

De fato, a depender do referencial que guie nossos passos, bom para a gripe é andar na chuva sem camisa!


[1] O presente artigo, tendo em conta a limitação de caracteres imposta a esta coluna, traz apenas uma reflexão inicial, sobre ideias que serão debatidas mais profundamente em estudo específico.

[2] Aqui, na coluna Território Aduaneiro, ver: “Prescrição intercorrente e infrações aduaneiras: o tempo é o senhor da razão” (Fernando Pieri e Pedro Mineiro), coluna de 25/03/2025 (disponível em: https://www.conjur.com.br/2025-mar-25/prescricao-intercorrente-e-infracoes-aduaneiras-o-tempo-e-o-senhor-da-razao/); e “Prescrição intercorrente e aduana: “Back to the future” (partes 1, 2 e 3)” (Rosaldo Trevisan), colunas de 28/02, 04/04, e 09/03/2023 (disponíveis, respectivamente, em: https://www.conjur.com.br/2023-fev-28/artx-territorio-aduaneiro-prescricao-intercorrente-aduana-back-to-the-future-parte/https://www.conjur.com.br/2023-abr-4/territorio-aduaneiro-prescricao-intercorrente-aduana-back-to-the-future-parte-2/ e https://www.conjur.com.br/2023-mai-09/territorio-aduaneiro-prescricao-intercorrente-aduana-back-to-the-future-parte/).

[3] REsp 1999532 / RJ, de 09/05/2023; AgInt no REsp 2101253 / SP, de 11/12/2023; AgInt no REsp 2119096 / SP, de 08/04/2024; e AgInt no REsp 2148053 / RJ, de 16/09/2024, todos da Primeira Turma e de relatoria da Min. Regina Helena Costa.

[4] Aqui um primeiro efeito colateral da decisão. Ao que parece, multas por descumprimento de “obrigação acessória” tributária teriam “natureza tributária” apenas se destinadas “direta e imediatamente à arrecadação ou à fiscalização” de tributos. Seria interessante testar essa delimitação restritiva (diga-se, bem mais restritiva que os precedentes que lhe deram origem no STJ) com as próprias obrigações acessórias tributárias em matéria não aduaneira.

[5] Para uma visão integral do universo de 175 infrações e penalidades aduaneiras, no Brasil, remete-se a: TREVISAN, Rosaldo. Uma contribuição à visão integral do universo de infrações e penalidades aduaneiras no Brasil, na busca pela sistematização. In: TREVISAN, Rosaldo (org.). Temas Atuais de Direito Aduaneiro III. São Paulo: Aduaneiras, 2022, p. 571-630. Sobre a pena de perdimento, remete-se ainda a: BRUYN JÚNIOR, Herbert Cornélio Pieter de. Direito Aduaneiro: pena de perdimento. v. 2. Curitiba: Juruá, 2019; a FAZOLO. Diogo Bianchi. Infrações Aduaneiras à luz do Direito Aduaneiro Internacional. São Paulo: Caput Libris, 2024; e a SEHN. Solon. Curso de Direito Aduaneiro. 3. Ed. .Rio de Janeiro: Forense, 2025, p. 583-627.

[6] “Prescrição intercorrente e aduana: “Back to the future” (parte 1)” (Rosaldo Trevisan), coluna de 28/02/2023 (disponível em: https://www.conjur.com.br/2023-fev-28/artx-territorio-aduaneiro-prescricao-intercorrente-aduana-back-to-the-future-parte/). Entre os julgados unânimes, destacamos em tal artigo acórdãos com votos de praticamente todos os Conselheiros do CARF, inclusive de quem a partir de 2021 passou a defender posicionamento diverso.

[7] ABUD, Jorge Lima. A prescrição da pena de perdimento em operações de comércio exterior. Clube de Autores. E-book. 2014.

[8] GRAU, Eros Roberto. Ensaio e Discurso sobre a Interpretação/Aplicação do Direito. 3. Ed. São Paulo: Malheiros, 2005, p. 40.

[9] Aliás, o julgado do STJ sequer dá pistas de quando o termo “aduaneiro”, na legislação, passou a estar fora do universo “tributário”. O excerto que mais perto chega disso está no voto-vogal do Min. Afrânio Vilela, que remete a uma distinção entre Direito Aduaneiro e Direito Tributário que teria sido feita pela Fazenda Nacional em Parecer, sobre a interpretação do polêmico (e já revogado) critério de desempate de julgamento estabelecido em 2020, na nova redação dada ao art. 19-E da Lei 10.522.

[10] As estatísticas são tristes, mas reais, tanto administrativa quanto judicialmente. Trata-se do tema, com dados, em “Lei nº 14.689/2023: o que queremos? (versão aduaneira)” (Rosaldo Trevisan), coluna de 26/09/2023 (disponível em: https://www.conjur.com.br/2023-set-26/territorio-aduaneiro-lei-146892023-queremos-versao-aduaneira/). Tem-se, com a decisão do STJ, mais um tema a repensar na revisão do contencioso administrativo.

[11] RAWLS, John.. Uma teoria da justiça. Trad. Almiro Pisetta e Lenita M.R. Esteves. São Paulo: Martins Fontes, 2000, p. 12-13.

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A falta que faz uma lei geral de processo administrativo normativo

Afirmar que grande parte das normas que regulam o dia a dia dos indivíduos e empresas é elaborada pela administração pública, e não pelo Legislativo, parece levantar pouca polêmica na atualidade. Esse quadro, por vezes nomeado como “deslegalização” ou de “crise da lei formal”, que animou intensos debates doutrinários desde os anos 1990 sobre a necessidade de rever os contornos dados ao princípio da legalidade, consolidou-se na prática da administração no Brasil em todos os níveis da federação.

No entanto, a produção de “atos normativos de interesse geral de agentes econômicos ou de usuários dos serviços prestados”, expressão utilizada pela Lei Geral das Agências Reguladoras, pela Lei de Liberdade Econômica e pelo regulamento da análise de impacto regulatório (AIR), não é isenta de questionamentos. Afinal, como conferir legitimidade democrática a normas de interesse geral elaboradas pela burocracia estatal, ou seja, por agentes públicos não eleitos?

Importância do processo administrativo normativo

Uma resposta usual a essa questão é qualificar o procedimento adotado para elaboração das normas pela administração. Esse procedimento pode ter várias etapas, que antecedem até mesmo a discussão de uma norma específica: informar aos administrados com antecedência quais temas serão objeto de discussão pela instituição; exigir, durante o processo de discussão de um tema específico, a elaboração de estudos que possam auxiliar na tomada de decisão administrativa e esclarecer os motivos que levaram a elaboração da norma destinada a tratar daquele tema com determinadas características; rever periodicamente os efeitos das normas previamente elaboradas, e alterá-las ou revoga-las, se for o caso; e estabelecer mecanismos para que cidadãos e agentes econômicos possam se manifestar e influenciar no conteúdo das normas que irão afetá-los.

Em outros termos, uma resposta é estabelecer regras claras para o procedimento administrativo normativo, entendido como o procedimento que regulamenta como normas administrativas são elaboradas, alteradas ou revogadas.

A fragmentação legal do procedimento administrativo normativo federal

Há uma série de instrumentos de “melhoria regulatória” que podem ser utilizados para enfrentar as questões anteriormente apontadas. A agenda regulatória permite aos agentes econômicos e usuários conhecerem antecipadamente quais temas serão objeto de discussão. A análise de impacto regulatório (AIR) confere racionalidade à tomada de decisão e dá transparência à opção adotada pelo órgão ou entidade, inclusive se for pela decisão de não elaborar uma norma. A avaliação de resultado regulatório (ARR) permite verificar se os impactos do ato normativo para a sociedade e agentes econômicos estão de acordo com os objetivos e premissas que levaram à elaboração da norma. Por fim, os diversos mecanismos de participação social – consulta pública, audiência pública, tomada de subsídios, dentre outros – conferem às partes afetadas pela norma a possibilidade de manifestação.

Contudo, a maior parte desses instrumentos é utilizada quase exclusivamente pelas agências reguladoras, particularmente em decorrência da Lei 13.848/2019. Lá estão previstas a obrigatoriedade de elaboração de agenda regulatória (artigo 21), de AIR (artigo 6º) e de consulta pública, nos casos de minutas de atos normativos (artigo 9º). Já outros órgãos e entidades federais, especialmente da administração direta, pouco adotam esses instrumentos.

A baixa disseminação desses mecanismos entre órgãos e entidades da administração não decorre da falta de previsão legal, mas sim da fragmentação dos dispositivos legais vigentes.

A Lei 9.874/1999 (Lei de Processo Administrativo) contempla mecanismos de participação, como consultas (artigo 31), audiências públicas (artigo 32) e outros procedimentos participativos (artigo 33). Também exige que os resultados desses processos sejam publicizados com a descrição do procedimento adotado (artigo 34).

A Lei 13.848/19 (Lei Geral das Agências Reguladoras) e a Lei 13.874/19 (Lei de Declaração de Liberdade Econômica) estabelecem aos órgãos e entes da Administração Pública federal, direta, indireta e fundacional, a obrigação de realização de AIR na produção de normas de “interesse geral de agentes econômicos ou de usuários dos serviços prestados”. A AIR, por sua vez, é regulamentada pelo Decreto 10.411/2020, que dispõe sobre os usos obrigatórios e facultativos desse e de outro instrumento que introduz ao ordenamento jurídico, a Avaliação de Resultado Regulatório (ARR).

Embora esses dispositivos atinjam toda administração pública federal, vários dos seus órgãos e entidades (Receita Federal, por exemplo) não realizam AIR sob a alegação de que as normas que editam não são “regulatórias”.

Recentemente, o Decreto 11.243/22 foi editado com o objetivo de regulamentar o Protocolo ao Acordo de Comércio e Cooperação Econômica com os Estados Unidos, cujo Anexo II estabeleceu um conjunto de boas práticas regulatórias que ambos os países se obrigaram a adotar. Uma das inovações deste decreto foi instituir a obrigação de elaboração de agendas regulatórias para todos os órgãos e entes da administração pública federal (artigo 6º). Antes da sua edição, agendas regulatórias eram exigidas apenas das agências reguladoras pela Lei Geral das Agências (artigos 17 e 18).

Também pode-se dizer que as normas que regem a realização de agendas regulatórias possuem efeitos restritos, já que os mesmos órgãos e entidades administração pública federal que não realizam AIR, por não se considerarem “reguladores”, também não se sentem obrigados, pelos mesmos motivos, a elaborar agendas regulatórias.

O Decreto 11.243/2022, ao alterar o regulamento da AIR, também introduziu a obrigatoriedade, para todos os órgãos e entidades da administração pública federal, da realização de consulta pública em normas precedidas de AIR, além da obrigação de uso obrigatório de mecanismo de participação social de livre escolha para as propostas de normas dispensadas de AIR em situações de baixo impacto, convergência com normas internacionais e atualização de normas obsoletas (artigo 9º-A, § 2º).

Essa obrigatoriedade, vigente desde 9 de junho de 2024, ainda é pouco conhecida da maioria dos órgãos e entidades reguladoras federais. Recentemente, o Decreto 12.002/2024, que estabelece normas para elaboração, redação, alteração e consolidação de atos normativos, estabeleceu que as consultas públicas realizadas para a produção de normas do Poder Executivo devem ser divulgadas pela plataforma “Participa + Brasil” (artigo 30). Um rápido exame dos mecanismos de participação anunciados nesta plataforma permite identificar que não são todos os órgãos e entidades que vêm realizando consultas públicas, talvez porque não se considerem “reguladores”, ou talvez por mero desconhecimento das novas obrigações instituídas pelo conjunto de normas acima mencionado.

Da urgente necessidade de um regime geral para o processo administrativo normativo

É inegável que necessitamos de normas que costurem essa verdadeira “colcha de retalhos” que são as leis e decretos que hoje dispõem sobre processo administrativo normativo no Brasil.

Esses fatos não são desconhecidos das autoridades públicas. A Casa Civil da Presidência da República coordena atualmente grupo de trabalho que prepara substitutivo ao Decreto nº 10.411/20, visando integrar melhor o uso de ferramentas de melhoria regulatória ao ciclo regulatório.

Tramita no Senado Federal o PL 2.481/2022, uma proposta de reforma da Lei de Processo Administrativo, que passa a prever e regulamentar o uso de ferramentas de melhoria regulatória – como AIR e ARR – na Lei 9.874/1999, além de integrá-los ao uso de mecanismos de participação social. Esse projeto também prevê a possibilidade de invalidação do ato administrativo em caso de descumprimento das regras procedimentais (artigo 50-B, §3º), dispositivo inexistente na legislação atualmente vigente.

Independentemente do caminho que a reforma venha a tomar – se será instituída por decreto ou por lei – alguns cuidados precisarão ser tomados para quebrarmos a lógica de fragmentação normativa acima mencionada.

Diretrizes para a elaboração de normas gerais de processo administrativo normativo

É preciso que as novas normas gerais de processo administrativo normativo sejam realmente gerais, ou seja, aplicáveis a todos os órgãos e entidades da administração pública federal indistintamente. Como um de nós já teve a oportunidade de manifestar neste evento aqui, talvez seja necessário que os novos instrumentos legais troquem expressões como “análise de impacto regulatório, “avaliação de resultado regulatório” e “agenda regulatória” por “análise de impacto normativo”, “avaliação de resultado normativo’ e “agenda normativa”. Se isso for o preço a se pagar para avançarmos no uso indiscriminado de boas práticas “regulatórias” por todos os órgãos e entidades da administração pública federal, que assim o façamos.

Um outro cuidado que o novo estatuto legal de processo administrativo normativo deve ter é o de integrar os mecanismos de participação social em todas as suas fases. A legislação atualmente estabelece ritos e exigências de transparência ativa apenas para consultas públicas que têm por propósito discutir minutas de atos normativos. Essa modalidade de mecanismo de participação social, como um de nós já se manifestou anteriormente nesta coluna, é talvez a que se revele menos efetiva para alterar o resultado das políticas regulatórias. Mecanismos de participação “fazem mais diferença” quando ocorrem em fases mais iniciais do ciclo regulatório, quando ainda se discute a natureza do problema regulatório de forma ampla.

Os dispositivos legais hoje vigentes são tímidos a esse respeito. Não há normas que prevejam o uso, ainda que facultativo, de mecanismos de participação social na construção de agendas regulatórias ou até mesmo para a discussão de problemas regulatórios amplos. Embora alguns órgãos e entidades reguladoras já o pratiquem, há muitas incertezas sobre quais boas práticas (e.g. exigências de transparência ativa) deverão ser adotadas para conduzir esses mecanismos de participação. É certo que o Decreto 10.411/2020 trata, en passant, da realização (facultativa) de mecanismos e participação na construção de AIRs (artigo 9º). Trata-se, no entanto, de mera previsão da faculdade de uso de mecanismos de participação nessa fase, sem que sejam oferecidos parâmetros para a sua realização.

Quanto ao uso da participação social para a discussão de minutas normativas, a solução dada pelo Decreto 10.411/2020 é insatisfatória, já que, como visto, estabelece a obrigatoriedade de consulta pública apenas para normas precedidas de AIR e a obrigatoriedade de mecanismos de participação de livre escolha para alguns poucos casos remanescentes (artigo 9ºA, § 2º do Decreto 10.411/2020). Trata-se de solução insuficiente, já que o uso de AIR é exceção, e não a regra, da atividade normativa da Administração Pública federal brasileira.

É possível argumentar que a legislação atualmente vigente não fecha as portas para a participação. De fato, há previsões genéricas que permitem a adoção de diferentes instrumentos. Ademais, a ausência de fixação de procedimentos gerais e detalhados pode ser interpretada como um reconhecimento da diversidade de capacidades institucionais da administração pública.

Essas considerações não afastam a necessidade de instituição de normas gerais de processo administrativo normativo federal. Uma reforma se mostra urgente para uniformizar e dar maior clareza aos procedimentos, superando a fragmentação existente. Ela deve alcançar todos os administradores públicos federais que editam normas, e não apenas aqueles que se percebem como reguladores. Por fim, o novo regime de processo normativo administrativo deve estimular o uso de mecanismos de participação social em todas as fases do ciclo de produção de normas, integrando-os às demais ferramentas de melhoria regulatória.

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‘Conciliação e mediação sempre serão vantajosas, mesmo no fim do processo’, diz ministra

A conciliação e a mediação, enquanto formas de resolução de conflitos, sempre serão vantajosas, mesmo que ocorram ao final do processo, ou até quando ele já estiver nos tribunais superiores. Elas sempre produzirão efeitos, se não materiais, ao menos emocionais e de pacificação.

Essa ideia é defendida pela ministra Nancy Andrighi, do Superior Tribunal de Justiça. Com 49 anos de carreira e formação específica na matéria — fez mestrado em Mediação pelo Institut Universitaire Kurt Bösch, da Suíça, em sua sede argentina, em 2011 —, a magistrada é a coordenadora do recém-criado Centro Judiciário de Solução de Conflitos (Cesjusc).

O local, que será inaugurado no próximo dia 22 pelo STJ, sediará procedimentos para derrubar ou ao menos amenizar a barreira construída entre as partes de uma ação judicial, que dificilmente se reconciliarão frente a uma condenação. Um dos objetivos do Cejusc é economizar tempo e recursos, até porque o processo raramente termina em uma decisão do STJ — há ainda a fase de execução ou de cumprimento da sentença.

Foi nesse espaço que a ministra recebeu a revista eletrônica Consultor Jurídico para uma entrevista. Ela gostou de ver a disposição dos móveis e o efeito criado pelas cores das paredes, pelas plantas e por um pote com doces colocado logo na entrada. É um ambiente que contrasta com o formalismo próprio e necessário do Poder Judiciário, e que é importante para desarmar os espíritos.

A diferença entre a conciliação e a mediação, esclarece a magistrada, é o grau de interferência do terceiro imparcial. No primeiro caso, ele interfere mais e sugere soluções. No segundo, estimula o diálogo e a autocomposição. Em ambos, o objetivo é unir as partes e reatar os laços, quaisquer que sejam, que tenham sido rompidos por causa do processo.

“Penso que a conciliação e a mediação sempre serão vantajosas, ainda que elas ocorram lá na execução da sentença. Elas sempre produzirão efeitos — se não materiais, efeitos emocionais e em matéria de paz”, defendeu Nancy Andrighi.

Rafael Luz/STJ

Leia a seguir a entrevista:

ConJur — Por que fazer acordo quando o caso já está no STJ? Às vezes as partes estão há anos esperando uma solução…
Nancy Andrighi — Porque tanto a conciliação quanto a mediação visam manter os laços. Se eu vou até o final com um processo, eu vou criar, infelizmente, uma barreira entre o autor e o réu. E dificilmente eles vão reatar. Então o objetivo é unir as pessoas novamente e reatar esses laços que foram rompidos por causa do processo, por causa do conflito. Esse é o principal. Qual a consequência disso? Um mundo mais leve, um mundo que caminha muito mais para a paz, porque as pessoas eliminam aquele sentimento de ódio, de raiva, de tristeza por ter perdido a ação. Esse sentimento é que a gente procura diluir aqui. Essa é a primeira razão.

A segunda é porque nem sempre o processo termina aqui. Ainda existe uma fase de execução daquilo que foi determinado aqui. E, muitas vezes, a fase de execução é muito mais lenta, complexa e duradoura do que o próprio processo que deu o direito. Então nós cortamos caminho. A mediação e a conciliação são sementes individuais que nós lançamos para a própria paz mundial.

Eu vou dar um exemplo. Imagine que você leva sua camisa à lavanderia e lá eles queimam a manga. Quando você vai buscar, a funcionária diz que a culpa é do tecido da camisa. Aí você sai de lá irritadíssimo. Você chega em casa e se depara com um vazamento na cozinha. O bombeiro vem, arruma e diz que está tudo pronto, mas no dia seguinte o vazamento volta. O bombeiro volta e diz que a culpa é sua, porque sua torneira é muito antiga. E novamente você fica com o prejuízo.

ConJur — Isso é meio corriqueiro na vida das pessoas…
Nancy Andrighi — Eu estou dando exemplos do dia a dia. Aí no outro dia você está saindo com o seu carro, vem o vizinho e bate nele. Você sai do seu carro, puxa o revólver e dá um tiro nele. Essa foi a gota d’água. Aí no Tribunal do Júri vão dizer que você é uma pessoa muito nervosa, muito agressiva, você tem o potencial de continuar agredindo. Não é isso. É que, de tanto você ser massacrado, não atendido, vilipendiado nos seus direitos, você reage dessa forma tão inusitada e tão dramática. Esse é o caminho em que se vai para a agressão e para a própria guerra. O que nós queremos? Nós queremos o caminho de volta disso.

Se você tiver uma Justiça ágil ou um instituto dentro da própria Justiça, um lugar onde você possa conversar com essa pessoa sem entrar com a ação, esse pode ser o caminho. Às vezes você quer apenas que a pessoa reconheça o seu direito, mesmo que ela não tenha o dinheiro para pagar o seu carro. Que pelo menos peça desculpas e reconheça que causou um problema.

ConJur — Essa primeira etapa é, inclusive, incentivada pelo CPC de 2015…
Nancy Andrighi — Os juízes hoje acham que aquela audiência preliminar que nós temos no Código de Processo Civil é uma perda de tempo. Não é e nunca será. Se você faz essa audiência com muito amor e vontade de que as pessoas se conciliem, com muitas ideias para dar para essas pessoas, elas chegam a um acordo. Às vezes, o juiz que não é formado em mediação e conciliação não tem sequer ideias do que ele pode propor. Então precisa ser um técnico com muita habilidade para poder conduzir. Penso que a conciliação e a mediação sempre serão vantajosas, ainda que elas ocorram lá na execução da sentença. Elas sempre produzirão efeitos — se não materiais, efeitos emocionais e em matéria de paz.

ConJur — Qual é a característica que torna um acordo mais provável?
Nancy Andrighi — É a habilidade do conciliador ou do mediador. Eu digo que ser conciliador ou mediador não é só habilidade, não. Tem de ter dom. Tem de amar o que faz e, acima de tudo, amar o próximo, porque você está pensando em melhorar a vida daquelas duas pessoas em conflito que estão na sua frente. Então a sua realização pessoal, como mediador e como conciliador, é obter esse resultado. E, se não houver acordo, que os maus sentimentos fiquem bem amenizados. Eu acho isso fundamental.

Agora, entrando no Direito, família é um dos bons assuntos. Casos empresariais também. E de vizinhança. E posso dizer os que são mais difíceis para conciliação e mediação: quando são grandes empresas, por exemplo, de telecomunicações, bancos. Quando o caso envolve empresas familiares, a solução é muito mais fácil. Mas, insisto, não adianta dizer que é fácil fazer conciliação se o conciliador ou o mediador não tiver uma formação própria para isso. Não adianta que ele não tenha se preparado, que ele não tenha lido o processo com profundidade antes de chegar a essa mesa.

ConJur — Potencialmente, o Cejusc serve para qualquer processo ou qualquer classe processual?
Nancy Andrighi — Não dá para dizer. A vida é muito pródiga. Ela apresenta situações em que você nem imagina o que pode ser feito. E também porque pode-se fazer, dentro de um processo, uma mediação parcial de um determinado assunto e o outro não.

ConJur — Qual é a importância de o Cejusc ter um espaço físico próprio dentro do tribunal, como é o caso deste? Por que a mediação não será feita nos gabinetes?
Nancy Andrighi — Tanto a conciliação quanto a mediação exigem o desarmamento dos espíritos. Se eu estou numa sala extremamente severa, como são as salas do Poder Judiciário tradicional, com aquele desenho de mesa, aquele formalismo natural, que é necessário, isso não ocorre. Para se fazer mediação e conciliação, nós precisamos nos afastar desse modelo. É preciso uma mudança interna. É preciso ter as emoções controladas, abertas, cheias de compaixão para ouvir o outro. E, quando eu estava estudando isso, percebi que algumas coisas precisavam ser mudadas.

Por exemplo, é preciso ter plantas na sala. As plantas aliviam o nosso ambiente. É preciso ter o ambiente separado para que se possa separar os sentimentos, normalmente, de receio com os quais as pessoas chegam a uma sala de audiência. É preciso que esse receio se afaste e elas fiquem abertas a essa nova postura, que é mudar os sentimentos.

ConJur — A escolha de móveis e cores também tem a ver com isso?
Nancy Andrighi — Muitos anos atrás, eu fui estudar cromoterapia, porque a cor também faz muito bem para o espírito. Então tomei conhecimento de que a cor lilás, diferente do violeta, mas um lilás claro, ajudava muito o ser humano a abrir o seu coração, mudar o sentimento, fazer uma transmutação daquele comportamento que sempre teve para um outro que fosse ornado principalmente de compaixão, de um olhar de irmandade, de fraternidade, de se colocar no lugar do outro e, acima de tudo, dialogar. É para fazer as pessoas falarem o que elas estão sentindo, o que não pode nunca ser feito em uma audiência formal do Poder Judiciário. Lá seguimos regras muito rígidas. É por isso que aqui, nesta sala, nós pudemos pintar uma das paredes com essa cor de desarmamento do espírito. Temos cadeiras diferenciadas, não temos aquele formalismo, usamos cores.

ConJur — Vamos passar um pouco pelo rito que vai ser estabelecido aqui. Como vai ocorrer? O relator vai participar da mediação ou conciliação?
Nancy Andrighi — As partes podem ambas requerer ao relator que o processo venha para cá para ser feita a mediação. O relator também pode sugerir para as partes, mas aí terá de haver a concordância delas, senão não tem jeito. O relator pode tentar fazer a conciliação e mediação, mas não se aconselha quando ele não tiver os cursos especializados e as técnicas que são usadas aqui.

Quando o processo vem para cá, ele é distribuído. Nós temos várias áreas de aperfeiçoamento entre os próprios conciliadores e mediadores. Por exemplo, se é uma questão de família, vamos direcionar essa distribuição para o mediador que seja formado em família. Paralelamente a isso, estamos pensando em fazer um quadro de técnicos voluntários que possam nos ajudar.

Distribuído o caso para o conciliador, são feitas as intimações e marcadas as audiências. Nós sempre pedimos que o comparecimento seja pessoal, porque o olho no olho facilita muito o diálogo. Às vezes, as pessoas moram longe, não têm condição de vir. Então, nós temos os instrumentos adequados para fazer a participação via online.

ConJur — As partes vêm com advogado?
Nancy Andrighi — Sempre com o advogado. Aí, alcançado um acordo, é devolvido o processo para o ministro relator, ele homologa e está encerrado. É muito simples. O intuito do Cejusc é ser o mais simples possível.

ConJur — Quais são as experiências da senhora com os métodos alternativos de resolução de conflitos?
Nancy Andrighi — Eu estudo e trabalho com conciliação e mediação desde 1977, quando ninguém acreditava ainda. Eu era juíza no Rio Grande do Sul. Nós estávamos vários juízes morando numa mesma comarca, porque as comarcas das quais nós éramos titulares não tinham lugar para morar, então ficamos todos em Rio Grande. E à noite não tínhamos o que fazer nesse local. Começamos a nos reunir e pensar uma forma de receber as pessoas e conversar com elas sobre os conflitos da sociedade, porque o juiz de primeiro grau tem muito mais ligação com a população de onde está prestando a jurisdição. E essas pessoas, então, começaram a ser atendidas à noite.

Depois de fazer concurso de novo, para Brasília, eu pensei em trazer para cá essa experiência, então comecei a fazer esse trabalho na circunscrição de Taguatinga e Ceilândia, que na época era uma só. Estou completando neste ano 49 anos de magistratura. Imagine há 40 e tantos anos o que era você falar em conciliação quando só se pensava em processo, em seguir o rito direitinho. A minha comarca não tinha nem luz. Havia todo um envolvimento maior de nós, juízes, com a população. E aqui eu encontrei um campo muito fértil. Aqui as pessoas têm uma compaixão mais acentuada do que era no início lá no Rio Grande do Sul.

ConJur — Por quê?
Nancy Andrighi — O povo gaúcho é mais radical, talvez, em sua postura. Para abrir mão da sua posição, ele leva algum tempo. Então, era mais difícil. Aqui eu encontrei muito mais facilidade. Depois vieram os juizados, onde a gente dava prioridade para as conciliações. Durante muito tempo, as conciliações foram feitas à noite aqui no TJ-DF. A gente ocupava as salas de audiência depois que os juízes terminavam. E nesse ínterim eu sempre procurei estudar. Encontrei um curso de mediação, mas em nível de mestrado, que fiz na Argentina, onde a Universidade Kurt Bösch, da Suíça, que é uma das que sempre pregaram a necessária divulgação e o incentivo à conciliação, tem uma sede. Durante três anos eu fiz o mestrado, que me foi muito produtivo. Inclusive, nós aprendemos e treinamos mediação em sequestro de pessoas. Foi um curso extremamente produtivo, com um lado pragmático muito interessante.

E por que a sede é na Argentina? Porque é um dos países que prezam muito a conciliação prévia. Eles não têm o obstáculo constitucional que nós temos no acesso à Justiça. No Brasil, pela Constituição, ninguém pode criar nenhum obstáculo ao cidadão para que ele entre com uma ação. Lá é o oposto: nenhum cidadão pode se dirigir ao Judiciário sem antes passar por um dos escritórios que são específicos de mediação, fiscalizados pelo Ministério da Justiça, e os conciliadores e mediadores são treinados em curso oficial. Se você não levar uma certidão de um escritório desses, de que passou por lá e não houve possibilidade de conciliação, a sua petição inicial é recusada na distribuição ao Judiciário.

ConJur — A conciliação em situações de sequestro eu jamais imaginaria…
Nancy Andrighi — Não posso dizer que foi agradável. Nós ficamos juntos na fronteira — eles fizeram uma verdadeira fronteira na frente da casa onde estava acontecendo o sequestro — para que pudéssemos participar, ouvindo e vendo qual era o trabalho do mediador. É tão intenso o trabalho do mediador lá que eles participam na delegacia. E o mediador, naquela manhã onde aconteceu o sequestro, era um vereador, que também tinha dado algumas aulas para nós. O ânimo que eles têm e a confiança que eles têm nesses dois institutos (mediação e conciliação) é muito grande.

ConJur — Essa recepção à mediação e à conciliação, que foi maior no Distrito Federal do que no Rio Grande do Sul, foi alterada ao longo dos anos? Há uma evolução disso no Brasil?
Nancy Andrighi — Até um determinado tempo, vamos dizer, até 1990, não se falava em mediação. Só se falava em conciliação. A mediação entrou no Brasil por interferência do Direito norte-americano. Mesmo tendo a Argentina tão próxima, a mediação não entrava aqui. E daí veio aquela Justiça multiporta, todos aqueles outros modelos.

Uma outra questão é por que chamamos de “formas alternativas de solução de conflitos” e “formas adequadas de solução de conflitos”. Na verdade, no início, foi para ser alternativo, que é uma tradução do Direito americano. Acontece que aqui no Brasil nós tivemos, durante um tempo, uma vertente do Direito que trabalhava o chamado Direito alternativo, o Direito achado na rua. Era uma visão bem diferenciada do Direito. Para o Poder Judiciário, esse termo “Direito alternativo” ficou bem desgastado. Então, para que não unissem essa expressão alternativa, nós encontramos uma solução que foi chamar de adequada. Então, hoje, nós chamamos de “métodos adequados de solução de conflitos”.

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Reflexões sobre recursos repetitivos e fortalecimento da Justiça social

Autoridades destacaram papel coletivo na construção de um Judiciário mais eficiente e sensível às demandas previdenciárias

A conferência “O julgamento de recursos repetitivos do STJ e sua importância no sistema previdenciário” marcou o encerramento do congresso Fluxos Procedimentais e os Desafios da Instrução Concentrada, na tarde de sexta-feira (11/4). Reunindo ministros do Superior Tribunal de Justiça (STJ) e autoridades da Justiça Federal da 3ª Região, o encontro refletiu sobre o papel social do Judiciário na construção de uma Justiça mais acessível para a população que depende da Previdência Social.

A mesa de encerramento foi conduzida pelo presidente do Tribunal Regional Federal da 3ª Região (TRF3), desembargador federal Carlos Muta, e teve como conferencistas os ministros do STJ, Sérgio Kukina e Paulo Sérgio Domingues. Também participaram o vice-presidente do TRF3, desembargador federal Johonsom di Salvo; a diretora da Escola de Magistrados da Justiça Federal da 3ª Região (EMAG), desembargadora federal Marisa Ferreira dos Santos; e a juíza federal Vânila Cardoso André de Moraes e o juiz federal Otávio Henrique Martins Port, ambos auxiliares da Corregedoria-Geral da Justiça Federal (CG).

Ao dar início à conferência, o presidente da mesa, desembargador federal Carlos Muta, celebrou a realização do congresso e destacou a importância do intercâmbio de ideias entre os diversos ramos da Justiça Federal. “É com imensa alegria que tivemos a oportunidade de realizar oficinas discutindo temas fundamentais para a nossa missão de prover jurisdição social, especialmente no campo da Previdência. Eventos como este fortalecem a Justiça Federal”, afirmou.

Ele também destacou o papel inovador da Justiça Federal, citando os centros de inteligência e a própria instrução concentrada como mecanismos de transformação. “A Justiça Federal hoje é inovação. Temos uma grande capacidade de inovar por meio dos centros de inteligência. A Instrução Concentrada é o início de um movimento — que ele se torne uma iniciativa concreta em toda a jurisdição, envolvendo outras discussões.”

Desafios previdenciários

Durante sua exposição, o ministro Sérgio Kukina destacou o crescimento da população idosa no Brasil e os desafios que isso impõe ao sistema da Previdência Social e à Justiça Federal. “O tema previdenciário é um campo muito sensível, que lida com a dignidade da pessoa humana. Não podemos virar as costas para aqueles que nos procuram. O modelo de recursos repetitivos nasceu para evitar que as mesmas questões sejam discutidas indefinidamente. Nossa missão é dar respostas com celeridade e segurança jurídica”, afirmou.

Na mesma linha, o ministro Paulo Sérgio Domingues refletiu sobre o papel social da magistratura diante da realidade brasileira. “Não estamos lidando com favores, mas com direitos. O magistrado que se compromete com o caso concreto busca a solução, mesmo que isso dê mais trabalho. Esperamos o dia em que o Estado resolva a maioria das demandas e que apenas o residual chegue à Justiça”, argumentou.

Observatório

Outro destaque do evento foi a apresentação do Observatório da Instrução Concentrada, anunciado pela juíza federal Vânila Cardoso André de Moraes. A iniciativa, que reúne magistrados(as), advogados(as), procuradores(as) e representantes de instituições envolvidas na aplicação da Recomendação CJF n. 1/2025, busca acompanhar, de forma colaborativa, os impactos da Instrução Concentrada e propor melhorias.

“Identificamos muitos temores em relação à Instrução Concentrada, especialmente quanto à sua aplicação nacional. Com o Observatório, queremos manter esse canal de união e cooperação para avaliar os resultados concretos e sugerir novos caminhos. O trabalho conjunto é o único caminho para transformar a realidade e garantir que a Justiça cumpra seu papel social”, explicou a juíza federal.

A desembargadora Marisa Ferreira dos Santos, que coordena o Observatório, também comemorou o encerramento do congresso e reforçou a importância de encontros como esse para o fortalecimento da atuação judicial e institucional. “A Instrução Concentrada é uma ponte entre a técnica e a sensibilidade social. Precisamos evoluir nesse caminho com diálogo e compromisso”, disse.

Evento

O congresso Fluxos Procedimentais em Temas Previdenciários e os Desafios da Instrução Concentrada aconteceu, em 10 e 11 de abril, no Tribunal Regional Federal da 3ª Região (TRF3), em São Paulo (SP).

Promovido pelo Centro de Estudos Judiciários do Conselho da Justiça Federal (CEJ/CJF), em parceria com o TRF3 e a EMAG e com apoio da Associação dos Juízes Federais do Brasil (AJUFE), o encontro pioneiro reuniu especialistas de todo o País para debater soluções que tornem a Justiça mais rápida, eficiente e próxima da população.

Fonte: CJF

Prisão cautelar não pode ser mantida apenas com fundamento na pena aplicada

A Sexta Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) revogou a prisão preventiva de um homem condenado em primeira instância, por entender que a fundamentação para a manutenção da prisão cautelar se baseou apenas na pena aplicada. Para o colegiado, restou caracterizado o constrangimento ilegal, o que justificou a revogação da medida.

O relator do caso, ministro Og Fernandes, explicou que a única fundamentação utilizada pelo juízo para manter a prisão cautelar foi a quantidade da pena aplicada: nove anos de reclusão. “Como se observa, na sentença condenatória, não há fundamentação concreta para a manutenção da segregação cautelar”, completou.

Tribunal de origem não pode acrescentar fundamento para suprir omissão

O ministro ressaltou que a decisão do magistrado nem sequer indicou que os motivos que levaram à decretação da prisão anteriormente persistiam a ponto de justificar a necessidade da manutenção no julgamento da apelação.

Og Fernandes destacou que a jurisprudência do STJ é no sentido de que o tribunal de origem não pode acrescentar fundamentos inexistentes ao julgar um habeas corpus para suprir omissão do juízo que manteve a prisão. Segundo apontou, o tribunal tentou legitimar indevidamente o ato coator.

Por fim, o ministro salientou que, em razão de o direito de recorrer em liberdade ter sido negado também aos demais corréus pelo mesmo motivo, eles tiveram suas prisões revogadas da mesma forma.

Leia o acórdão no RHC 212.836.

Fonte: STJ

Bens e direitos digitais, além da herança, são essenciais na reforma do Código Civil

Bens e direitos digitais, além da herança deles, são essenciais na reforma do Código Civil. Foi isso o que afirmaram especialistas no assunto na última sexta-feira (11/4), no terceiro encontro da série “Reforma do Código Civil em Foco”, ocorrido na FGV do Rio de Janeiro. O anteprojeto da reforma do código foi apresentado em abril de 2024 por uma comissão de juristas criada pelo Senado.

O evento tem a coordenação do ministro Luis Felipe Salomão, vice-presidente do Superior Tribunal de Justiça, presidente da comissão de juristas para a reforma do Código Civil e coordenador da FGV Justiça.

Salomão afirmou que em breve deve ser constituída uma comissão especial para analisar o anteprojeto no Senado. A expectativa é que o texto possa ser votado pelo Senado e pela Câmara dos Deputados ainda em 2025.

“O Código Civil é a constituição do cidadão comum. Ele cuida do dia a dia, desde antes do nascimento da pessoa natural e da pessoa jurídica, passando pelo nascimento, pelos contratos que ela realiza, pelas empresas que ela constitui, pelas uniões que ela desenvolve, até a sua morte, e para além da morte também, com a sucessão. É a norma da cidadania”, apontou o ministro.

Herança digital

A ministra Nancy Andrighi, do Superior Tribunal de Justiça, lançou luz sobre um dos temas mais complexos e ainda pouco regulamentados do Direito Civil contemporâneo: a herança digital, que é regulada pelo anteprojeto do novo Código Civil.

Falando remotamente, a magistrada compartilhou reflexões sobre os desafios jurídicos que emergem com o advento da era digital — especialmente no contexto de inventários e sucessões.

“O falecido não deixa senha, não nomeia administrador. E nós, juízes, temos o dever de entregar todos os bens aos herdeiros. Mas e quando esses bens são digitais, intangíveis e, por vezes, carregam segredos que podem causar dor?”, provocou Nancy.

Nova categoria de bens

A ministra destacou a ausência de uma legislação específica que trate dos bens digitais no Código Civil, no Marco Civil da Internet ou em outras normas vigentes. Ela defendeu que a era digital não só ampliou o espectro dos direitos da personalidade como também introduziu uma nova categoria de bens jurídicos — os bens digitais.

Esses bens, segundo ela, podem ser classificados como patrimoniais, com valor econômico mensurável (como criptomoedas ou arquivos valiosos); existenciais, ligados a direitos da personalidade (como diários, mensagens, fotos íntimas); e híbridos, com aspectos patrimoniais e existenciais simultâneos.

Andrighi foi além: propôs uma classificação quanto à transmissibilidade, dividindo os bens digitais em transmissíveis (que podem ser herdados) e intransmissíveis (que não devem ser repassados aos herdeiros por envolverem aspectos íntimos ou cláusulas contratuais de sigilo).

A ministra compartilhou dilemas concretos enfrentados por juízes em inventários digitais. “Cartas de amor a amantes desconhecidos, revelações sobre doenças, contratos sigilosos. Será que o falecido gostaria que isso fosse entregue à família?”, questionou.

Ela apontou que, por força do princípio da saisine — que assegura aos herdeiros o direito a todos os bens deixados pelo falecido — o juiz se vê diante de uma contradição: como cumprir esse princípio se parte da herança pode causar dor, humilhação ou violar a intimidade de terceiros?

Inventariante digital

Para lidar com a complexidade dos bens digitais, Andrighi sugeriu a criação de um incidente processual específico, denominado “incidente de identificação, classificação e avaliação dos bens digitais pós-morte”. Esse incidente, tramitaria de forma apensada ao inventário principal e permitiria, segundo ela, que os bens físicos e tradicionais fossem partilhados normalmente, enquanto os digitais passariam por análise própria.

Para isso, ela propõe a nomeação de uma nova figura técnica: o inventariante digital, que atuaria como perito judicial com acesso autorizado ao conteúdo digital do falecido. Esse profissional seria o responsável por elaborar um relatório minucioso sobre o que foi encontrado no ambiente virtual, permitindo ao juiz decidir, com mais segurança, o que deve ou não ser transmitido aos herdeiros.

Desafios contemporâneos

A desembargadora Jaqueline Montenegro, do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, destacou a distância crescente entre a legislação civil em vigor e a realidade da sociedade contemporânea.

“Temos hoje um código que nasceu velho”, afirmou a magistrada, referindo-se à atual legislação civil, escrita na década de 1970 e promulgada apenas em 2002. Para ela, o Código já não oferece respostas adequadas às novas demandas sociais, tecnológicas e identitárias, resultando em insegurança jurídica e desafios práticos para juízes e operadores do Direito.

Jaqueline destacou que as transformações sociais — do empoderamento feminino às novas configurações familiares — exigem uma revisão profunda da legislação civil. Segundo ela, o Código Civil atual foi elaborado sob premissas ultrapassadas, como o casamento indissolúvel e a figura de uma mulher sem autonomia econômica. “Não somos mais a mulher do código de 2002”, pontuou.

Entre os pontos positivos da proposta de reforma do Código Civil analisada no evento, a desembargadora ressaltou o fortalecimento da autonomia da vontade no Direito Sucessório, a desburocratização dos procedimentos de família e o reconhecimento da capacidade civil de pessoas com deficiência. Ela também apontou avanços na regulação da reprodução assistida e nas questões envolvendo direitos digitais — embora tenha reconhecido que esses ainda trazem muitas “perplexidades”.

Direitos digitais

Para Jaqueline, é preciso distinguir, por exemplo, os direitos digitais existenciais — como perfis em redes sociais — dos patrimoniais, como contas monetizadas e criptomoedas, que hoje compõem o espólio de muitos cidadãos. “Estamos diante de uma nova realidade que o código antigo não prevê. Precisamos urgentemente estabelecer regras claras para o mundo digital pós-morte”, defendeu.

Apesar dos avanços apontados, a desembargadora reconheceu que há lacunas importantes no texto em discussão, como a ausência de um tratamento mais profundo para questões de gênero, famílias plurais e uniões poliafetivas. “A questão do poliafeto precisa ser enfrentada. Essa é uma realidade. Tirando a pauta de valores daqui ou de acolá, ela está posta”, declarou.

A magistrada destacou ainda o papel de juristas que se dedicam à reforma legal como uma forma de doação à sociedade. Ela concluiu afirmando que uma reforma ideal deve integrar valores constitucionais aos princípios clássicos do Direito Civil: eticidade, socialidade e operabilidade.

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Projeto altera regra para liberação simplificada de recursos para herdeiros

O Projeto de Lei 4402/24 limita a 40 salários mínimos (atualmente R$ 60.720) o valor máximo existente em cadernetas de poupança e em fundos de investimento que poderá ser liberado a herdeiros sem necessidade de inventário ou arrolamento.

O texto em análise na Câmara dos Deputados altera a Lei 6.858/80, que trata do pagamento, aos dependentes ou sucessores, de valores não recebidos em vida pelo titular. Essa norma procura facilitar a liberação de pequenos valores.

“A lei tem como critério um indexador [OTN] que não mais existe”, explica o autor da proposta, deputado Celso Russomanno (Republicanos-SP). “Isso cria um problema de interpretação para a atualização do valor máximo permitido”, acrescentou.

Próximos passos
O projeto tramita em caráter conclusivo e será analisado pelas comissões de Finanças e Tributação; e de Constituição e Justiça e de Cidadania. Para virar lei, terá de ser aprovado pela Câmara e pelo Senado.

Fonte: Câmara dos Deputados