Balanço estatístico dos colegiados de direito penal é marcado por expressiva diminuição do acervo

Os três colegiados do Superior Tribunal de Justiça (STJ) especializados em direito penal divulgaram o balanço estatístico referente ao primeiro semestre de 2025. Em conjunto, os colegiados registraram uma redução de mais de 24 mil processos no estoque – o dado demonstra a produtividade dos ministros no período e os resultados da atuação dos juízes convocados temporariamente para auxiliar os gabinetes da Terceira Seção.

Terceira Seção

Entre janeiro e junho de 2025, a Terceira Seção recebeu 1.170 processos e baixou 1.205, com pequena redução no estoque processual. Foram realizados 1.708 julgamentos – 1.394 de forma monocrática e 314 em sessão.

Presidida pelo ministro Antonio Saldanha Palheiro, a Terceira Seção é composta pelos integrantes da Quinta e da Sexta Turma.

Quinta Turma

Na Quinta Turma, foram distribuídos 29.402 processos e baixados 42.655 – uma expressiva redução de 13.253 no acervo. No total, 54.459 decisões foram proferidas nos primeiros seis meses do ano, sendo 39.427 individuais e outras 15.032 colegiadas.

O presidente do colegiado, ministro Reynaldo Soares da Fonseca, destacou que os bons resultados obtidos no primeiro semestre tiveram a contribuição dos juízes de primeiro grau convocados pelo STJ para atuarem temporariamente em auxílio aos ministros da Terceira Seção. Ele também elogiou o trabalho dos servidores dos gabinetes, “sem os quais não teríamos realizado nem um quinto ou um sexto do trabalho que nós fizemos”.

A turma também é composta pelos ministros Ribeiro Dantas, Joel Ilan Paciornik e Messod Azulay Neto e pelo desembargador convocado Carlos Cini Marchionatti.

Sexta Turma

A Sexta Turma recebeu 29.645 processos e baixou 40.647 – redução de 11.002 ações no acervo. No período, o colegiado realizou 57.740 julgamentos, sendo 42.455 monocraticamente e 15.285 em sessão.

Presidida pelo ministro Sebastião Reis Júnior, a Sexta Turma também é composta pelos ministros Og Fernandes, Rogerio Schietti Cruz e Antonio Saldanha Palheiro, além do desembargador convocado Otávio de Almeida Toledo.

Fonte: STJ

Órgãos julgadores especializados em direito privado registram mais de 62 mil decisões em seis meses

Os três colegiados do Superior Tribunal de Justiça (STJ) especializados em direito privado divulgaram os números referentes ao primeiro semestre de 2025. Juntos, eles proferiram mais de 62 mil decisões, o que demonstra a alta produtividade dos ministros no período.

Segunda Seção

Na Segunda Seção, foram recebidos 1.907 processos e baixados 1.706. Nos seis primeiros meses do ano, o total de julgamentos foi de 2.909 – 2.385 de forma monocrática e outros 524 em sessão.

A Segunda Seção é presidida pelo ministro Ricardo Villas Bôas Cueva e formada pelos integrantes da Terceira e da Quarta Turma.

Terceira Turma

Os ministros da Terceira Turma receberam 18.407 processos no primeiro semestre e baixaram 21.629, resultando em uma redução de 3.222 no acervo. Foram proferidas 30.714 decisões, sendo 13.660 monocráticas e 17.054 colegiadas.

Presidida pelo ministro Humberto Martins, a Terceira Turma é integrada pela ministra Nancy Andrighi e pelos ministros Ricardo Villas Bôas Cueva, Moura Ribeiro e Daniela Teixeira.

Quarta Turma

Nos primeiros seis meses do ano, a Quarta Turma recebeu 18.358 processos e baixou 20.905, com diminuição de 2.547 casos no acervo. O número total de julgamentos chegou a 29.009, 17.171 deles de forma monocrática e os outros 11.838 em sessão.

Presidida pelo ministro João Otávio de Noronha, a Quarta Turma é composta pela ministra Isabel Gallotti e pelos ministros Raul Araújo, Antonio Carlos Ferreira e Marco Buzzi.

Fonte: STJ

Inconstitucionalidade do artigo 24-A do Estatuto da OAB: direito penal do amigo e inimigo estrutural

O artigo 24-A do Estatuto da Ordem dos Advogados do Brasil (Lei 8.906/94) garante ao advogado o recebimento de até 20% dos bens universalmente bloqueados do cliente como forma de pagamento dos honorários advocatícios, exceto em crimes da Lei de Drogas.

Esta ressalva, alvo de crítica neste artigo, fere princípios fundamentais da CRFB/88 como da dignidade humana e devido processo legal. A análise se dá com base em um estudo jurídico, histórico e político, visando demonstrar a inconstitucionalidade da exceção contida no dispositivo aplicada aos delitos da Lei 11.343/06.

Direito de constituir advogado como instrumento do processo democrático

A Constituição (artigo 133) assegura que o advogado é indispensável à administração da justiça, e a constituição do defensor é parte inegociável do devido processo legal (artigo 5º, LIV e LV). A limitação imposta pelo artigo 24-A do EOAB nega ao acusado o direito de constituir advogado com recursos próprios. A norma, ao excluir a Lei de Drogas, afronta os pilares da processualidade democrática.

O Código de Processo Penal estabelece, em seu artigo 261, que ninguém poderá ser acusado sem a presença de um defensor. Já o artigo 263 dispõe que, caso o acusado não tenha um defensor constituído, o juiz deverá nomear um, ressalvando-se o direito do acusado de indicar outro de sua confiança.

Assim, a marcha processual depende não apenas da atuação de um defensor, mas daquele de livre escolha e confiança do acusado. Portanto, o direito de constituir advogado de sua confiança é uma garantia constitucionalizada, irrenunciável e indisponível. Se não há advogado legitimamente constituído, não há processo.

Autobiografismo político como gestador do dispositivo do EAOAB

O artigo 24-A do EAOAB tem origem legislativa no Projeto de Lei nº 5284/2020, de autoria do deputado Paulo Abi-Ackel (PSDB-MG), que propunha alterações em diversos dispositivos do Estatuto da Advocacia. No entanto, o referido projeto, em sua proposição inicial, não continha o dispositivo em discussão.

Posteriormente, o PL recebeu diversas alterações propostas pelo deputado Lafayette de Andrada (REP-MG), que, entre os anos de 2020 e 2022, introduziu o dispositivo e realizou modificações em sua redação. Em um primeiro momento, acertadamente, previa-se o direito da parte ré, nos casos de bloqueio universal, à destinação de até 20% do montante ao advogado constituído, para pagamento de honorários advocatícios e custas da defesa, mediante autorização judicial.

Entre o ano de 2020 e a apresentação do Parecer Preliminar de Plenário nº 10, às 11h38 do dia 15 de fevereiro de 2022, o projeto de lei não continha qualquer ressalva à Lei de Drogas. Contudo, ao anoitecer da mesma data, às 19h40, foi apresentado o Parecer Preliminar de Plenário nº 11, pelo relator, deputado Lafayette de Andrada, já incluindo a controversa — e inconstitucional — ressalva ao referido dispositivo, sem que houvesse qualquer emenda parlamentar que justificasse tal modificação.

Não bastasse a inclusão realizada ao final do expediente, momento em que muitos parlamentares já não se encontravam na Casa, chama atenção o fato de que, já na manhã do dia seguinte, 16 de fevereiro de 2022, o projeto foi submetido à votação e aprovado pela maioria. E menos de cinco meses depois, foi sancionado pelo então presidente Jair Bolsonaro, cuja retórica política sempre esteve fortemente pautada no combate ao tráfico de drogas.

Faz-se imprescindível delinear a trajetória do deputado Lafayette de Andrada, relator do projeto de lei e responsável pela apresentação da redação do artigo 24-A. Lafayette é deputado federal, advogado, professor de Direito e Ciência Política; filho, neto e sobrinho de deputados; além de descendente do jurista e patriarca da Independência, José Bonifácio de Andrada e Silva, e do inconfidente mineiro José Aires Gomes. Suas principais atuações incluem os cargos de vice-líder do Partido Republicanos, vice-presidente da Comissão de Constituição, Justiça e de Cidadania da Câmara dos Deputados, e presidente da Frente Parlamentar Mista em Defesa da Advocacia Pública no Congresso. Verifica-se, portanto, que a “ciência” do Direito, a prática da advocacia e sua relação ancestral com a política não são meros detalhes.

Ocorre que Lafayette de Andrada foi também o autor da inclusão, no “pacote anticrime” (Lei nº 13.964, de 24 de dezembro de 2019), do artigo 316 do Código de Processo Penal, que dispõe que o juiz poderá, de ofício, revogar ou novamente decretar a prisão preventiva, desde que presentes os requisitos legais.

Em 10 de outubro de 2020, com base no artigo 316 do Código de Processo Penal — incluído no “pacote anticrime” por iniciativa de Lafayette de Andrada —, o ministro do STF Marco Aurélio Mello concedeu liberdade a André Oliveira Macedo, conhecido como “André do Rap”, apontado como um dos líderes do Primeiro Comando da Capital (PCC). Após a expedição do alvará de soltura e a ampla repercussão midiática, o Supremo Tribunal Federal foi alvo de duras críticas. No mesmo dia, o então presidente do STF, Luiz Fux, revogou a decisão e determinou novamente a prisão de André do Rap. No entanto, ele já havia fugido e, até o momento (2025), permanece foragido.

decisum do ministro Marco Aurélio, em 2020, gerou intenso debate sobre a soltura de um conhecido membro do crime organizado e levantou críticas ao artigo 316 do CPP, incluído por iniciativa do deputado Lafayette de Andrada, bem como de sua pessoa [1].

As críticas vieram, em grande parte, de eleitores da direita, apontando uma incompatibilidade político-ideológica entre a família Bolsonaro e o deputado. Isso porque, além de ser o autor do dispositivo utilizado para fundamentar a soltura, de ofício, de um narcotraficante por um magistrado, Lafayette de Andrada dividia com Flávio Bolsonaro o mesmo partido político.

A controvérsia ganhou ainda mais repercussão quando os eleitores passaram a ver Lafayette não apenas como desalinhado aos ideais do ex-presidente, mas como o responsável pela medida que resultou na impunidade de um narcotraficante. Em contrapartida, o deputado declarou que:

“Repudio com veemência as reportagens veiculadas na imprensa que, por desconhecimento ou malícia, associam a soltura do traficante André de Oliveira Macedo, o André do Rap, a meu nome” […] “Não havia motivo para a soltura de André do Rap. Sou contrário à liberdade para criminosos. Fui autor de várias modificações que endureceram o texto do pacote anticrime. Entre eles, o que dificulta a progressão de regime, o que proíbe a ‘saidinha’ para crimes hediondos, o que amplia a pena para crimes cometidos com armas de uso proibido, entre outros. Esclareço, por fim, que sou daqueles que pensa que lugar de bandido é na cadeia” (UOL, 2020).

O deputado Lafayette de Andrada, ainda que sem intenção, acabou simbolizando, por alguns anos, a figura de um político contrário às causas defendidas pela “direita” e conivente com a perpetuação do crime de tráfico de drogas no país. Esse episódio parece ter abalado sua relação com a família Bolsonaro e com os eleitores então no “poder” — especialmente quando se observa, neste trabalho, que a criação do artigo 24-A do EOAB teria representado, supostamente, sua principal tentativa de defesa ou reafirmação política.

Curiosamente, desde a soltura de “André do Rap”, em 10 de outubro de 2020, até a tarde do dia 15 de fevereiro de 2022, o artigo 24-A apresentava apenas a redação que assegurava a destinação de até 20% do patrimônio universalmente bloqueado ao advogado regularmente constituído.

Contudo, na 11ª versão do parecer — apresentada às 19h40 do dia anterior à votação do projeto — foi incluída, sem qualquer justificativa jurídico-democrática plausível ou emenda parlamentar, a ressalva inconstitucional referente aos procedimentos regidos pela Lei de Drogas. Menos de cinco meses depois, o projeto seria sancionado pelo então presidente Jair Bolsonaro.

Após o deputado federal Lafayette de Andrada — que, à época, integrava o mesmo partido de Flávio Bolsonaro — ter sido publicamente apontado por eleitores de Jair Bolsonaro como um parlamentar que contribuiu, por meio do artigo 316 do Código de Processo Penal, para a soltura de um notório traficante internacional e líder do PCC, sua aparente decisão de incluir, no artigo 24-A, uma exceção excessivamente combativa — e flagrantemente inconstitucional — ao tráfico de drogas, na noite anterior à votação do projeto e a apenas cinco meses da sanção presidencial, sugere um possível gesto de realinhamento político com o então presidente da República e sua base eleitoral.

A inserção tardia e silenciosa da medida sugere uma possível tentativa de evitar questionamentos midiáticos que pudessem barrar o sancionamento da redação. Ao mesmo tempo, o deputado ainda teria, durante o governo Bolsonaro, uma espécie de “trunfo” nas mãos, caso sua posição político-criminal voltasse a ser questionada.

Por que a ressalva para a Lei de Drogas?

O artigo 24-A, visa garantir o direito à defesa mesmo em caso de bloqueio total de bens, mas negar essa garantia em crimes de drogas, fere diametralmente a Constituição. Ainda que o tráfico de drogas seja tratado de forma mais rigorosa em diversas normas e tratados, não há base constitucional para a supressão de direitos fundamentais.

Ademais, sustentar que a Defensoria Pública poderia suprir essa lacuna também não possui cabimento e previsão legal: a Defensoria é voltada apenas aos hipossuficientes e não possui estrutura equiparada (isonômica) ao Ministério Público.

A exclusão aos crimes da Lei de Drogas prejudica milhares de advogados criminalistas e atinge de forma desproporcional populações vulneráveis, principalmente negras e pobres. Ao impedir o exercício pleno do direito de defesa nesses casos, cria-se uma distorção inaceitável do processo penal democrático.

Direito penal do inimigo estrutural como garantia do direito penal do amigo

Surge a seguinte questão: qual seria a razão de não incluir, nessa ressalva, crimes como organização criminosa, prevaricação, corrupção, terrorismo, homicídio, comércio ilegal de armas de fogo, crimes ambientais, lavagem de dinheiro e outros delitos financeiros e fiscais, considerando que muitos, de alguma forma, estão conectados ao narcotráfico ou garantem a sua perpetuação?

A resposta está no fato de que o Direito Penal do Inimigo garante, por sua vez, o direito penal do amigo. Os crimes geralmente associados às classes desfavorecidas ganham os holofotes, enquanto os crimes que ameaçam a ordem financeira, o meio ambiente e a administração pública — em grande parte cometidos pela alta sociedade burguesa — permanecem sob o próprio controle dos holofotes: ninguém os vê. Assim, resta a esses grupos a alternativa de, inteligentemente, adequar, burlar e instrumentalizar o Direito para atender às suas próprias vontades. O Direito Penal do Inimigo, ao reforçar uma ordem social desigual, acaba por perpetuar essa desigualdade.

Conclusão

A razão para a flagrante inconstitucionalidade de parte do artigo 24-A insere-se no contexto do Estado de Coisas Inconstitucional, em que tudo parece diametralmente oposto à proposta da Constituinte de 1988. Diversos motivos se apresentam para justificar a inclusão da ressalva relativa aos crimes previstos na Lei de Drogas e, embora aparentemente dispersos, eles não são desconexos. De um lado, é possível que a ressalva tenha se originado de uma manobra política voltada à reaproximação do relator do projeto com figuras no poder e à proteção contra acusações de suposta leniência com o tráfico de drogas. De outro, ela reflete um processo histórico de enfrentamento ao narcotráfico na América Latina, frequentemente marcado pela ausência de limites legais.

Entretanto, há algo ainda mais profundo: a presença do direito penal estrutural do inimigo em diversas instituições públicas, autarquias e fóruns. Esse direito penal estrutural, claramente voltado para o desvio de atenção dos ilícitos praticados pelos “amigos”, contaminou até mesmo a instituição que deveria ser a maior defensora da processualidade democrática: a Ordem dos Advogados do Brasil.

Por fim, este trabalho propõe um debate técnico, com a participação dos legitimados do processo, da comunidade jurídica e acadêmica, para sustentar a inconstitucionalidade parcial do artigo 24-A do EAOAB perante o STF, em defesa dos princípios do Estado democrático de Direito.


Referências

BRASIL. Decreto-Lei nº 3.689, de 3 de outubro de 1941. Código de Processo Penal, disponível aqui

BRASIL. Lei Nº 11.343, de 23 de agosto de 2006. Institui o Sistema Nacional de Políticas Públicas sobre Drogas. Disponível aqui.

BRASIL. Lei nº 13.964 de 24 de dezembro de 2019, aperfeiçoa a legislação penal e processual penal, acesso em: 28 de novembro de 2024, disponível aqui.

BRASIL. Lei Nº 8.906, de 4 de julho de 1994. Dispõe sobre o Estatuto da Advocacia e a Ordem dos Advogados do Brasil, disponível aqui.

CÂMARA DOS DEPUTADOS. PL 5.284/2020. Projeto de Lei. Altera a Lei no 8.906, de 4 de julho de 1994, que dispõe sobre o Estatuto da Advocacia e a Ordem dos Advogados do Brasil – OAB, para incluir disposições sobre a atividade privativa de advogado, a fiscalização, a competência, as prerrogativas, as sociedades de advogados, o advogado associado, os honorários advocatícios e os limites de impedimentos ao exercício da advocacia.

FÓRUM. Deputado bolsonarista é o autor de artigo usado para libertar chefe do PCC: Lafayette de Andrada é deputado federal por Minas Gerais e pertence ao Republicanos, mesmo partido de Flávio Bolsonaro e Celso Russomanno, mas passou maior parte de sua vida política no PSDB. 12 out. 2020. Disponível aqui. 2024.

GUNTHER, Jakobs. Direito Penal do Inimigo. 1. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris. 2008.

UOL. Autor de artigo que baseou saída de André do Rap se exime e critica soltura. 12 out. 2020. Disponível aqui.

WIKIPÉDIA. Lafayette Andrada. Disponível em: https://pt.wikipedia.org/wiki/ Lafayette_Andrada. Acesso em: 28 de nov. 2024.

[1] FÓRUM. Deputado bolsonarista é o autor de artigo usado para libertar chefe do PCC: Lafayette de Andrada é deputado federal por Minas Gerais e pertence ao Republicanos, mesmo partido de Flávio Bolsonaro e Celso Russomanno, mas passou maior parte de sua vida política no PSDB. 12 out. 2020. Disponível aqui. 2024

Fonte: Conjur

Acesso a dados financeiros sensíveis: Ministério Público e polícia têm medo do Judiciário?

Na era da informação, dados pessoais são, antes de tudo, tratados como mercadorias. Justamente por essa razão, faz-se necessário o direito constitucional para assegurar sua proteção e impedir que o “ser humano seja tratado meramente como objeto ou como uma variável econômica”.. [2] O legislativo vislumbrou essa importância ao incluir a proteção de dados como direito fundamental específico (artigo 5º, LXXIX, CF) para além do sigilo tradicional dos dados (artigo 5º, XII, CF).

Esta coluna não versará sobre a questão dos dados pessoais sensíveis. O objetivo, como em texto anterior, é retomar a questão específica do sigilo dos dados financeiros e de seu compartilhamento pelo Coaf, mormente à luz das interpretações divergentes que vem sendo emprestadas ao Tema n° 990/RG:

É constitucional o compartilhamento dos relatórios de inteligência financeira da UIF e da íntegra do procedimento fiscalizatório da Receita Federal do Brasil, que define o lançamento do tributo, com os órgãos de persecução penal para fins criminais, sem a obrigatoriedade de prévia autorização judicial, devendo ser resguardado o sigilo das informações em procedimentos formalmente instaurados e sujeitos a posterior controle jurisdicional. 2. O compartilhamento pela UIF e pela RFB, referente ao item anterior, deve ser feito unicamente por meio de comunicações formais, com garantia de sigilo, certificação do destinatário e estabelecimento de instrumentos efetivos de apuração e correção de eventuais desvios.

Trata-se de tema crucial para a democracia e o tipo de Estado que aceitamos. Afinal, se aceitarmos que a investigação com quebra de sigilo pode ser feita sem o envolvimento do Judiciário, estar-se-ia criando um braço investigativo do Estado sem supervisão judicial. Noutras palavras, estar-se-ia chancelando a gestação daquilo que Ernst Fraenkel denominou um Estado Dual, situação em que o Estado — no caso de Fraenkel, o nazista —, longe de constituir uma realidade unitária, cindia-se entre a metade técnica, que observava regras e procedimentos legais, e a metade política, em que o Estado operava de forma abusiva, arbitrária e caótica. [3]

Em termos objetivos, a discussão tem como pano de fundo o artigo 15 da Lei n° 9.613/1998, [4] que impõe ao Coaf o dever de comunicar às autoridades “competentes” — leia-se, as autoridades persecutórias e especialmente o Ministério Público — quando concluir pela existência de crimes ou fundados indícios de sua prática, seja de tipos penais previstos ou não naquela lei.

O busílis reside na interpretação equivocada que às vezes é emprestada ao Tema n° 990/RG, para ver nele abarcado, também, e com base na Lei n° 9.613/1998, a possibilidade de o Ministério Público (e quiçá até mesmo a polícia) requerer diretamente ao Coaf relatórios financeiros sem a autorização prévia do Judiciário.

O problema da referida interpretação é antes de tudo normativo, justamente por subverter o que estabelece o Tema n° 990/RG. Há todo um conjunto de dispositivos que condicionam o fornecimento de dados financeiros sensíveis à reserva de jurisdição, cuja renúncia pelo Judiciário significaria restrição inconstitucional de suas próprias competências e, em última instância, diminuição do âmbito de proteção do princípio do acesso à justiça tal como previsto pelo artigo 5º, XXXV da CF.

Em primeiro lugar, o requerimento direto não é previsto pelo artigo 15, da Lei n° 9.613/1998, que só autoriza o compartilhamento espontâneo pelo Coaf e, na condição de regra restritiva de direitos fundamentais, deve ser ela própria lida restritivamente.

Além disso, a medida é expressamente vedada pelo artigo 1º, §4º da Lei Complementar n° 105/2001, que submete à reserva de jurisdição o requerimento de dados financeiros, assim como o faz, também, o artigo 3º-B, XI, “b”, “d” e “e” do CPP, incluídos pelo Pacote “Anticrime” (Lei n° 13.964/2019) e declarados constitucionais pelo STF nas ADIs 6.298, 6.299, 6.300 e 6.305.

A segunda ordem de razões que impede o requerimento sem observância da reserva de jurisdição é da ordem jurisprudencial. Nem a textualidade do Tema n° 990/RG, tampouco o caso que o originou, autorizam a compreensão de que algo além do compartilhamento espontâneo pelo Coaf foi chancelado pelo STF, e isso porque, a Corte parece ter consignado uma clara distinção entre os juízos técnicos de inteligência e de legalidade. O primeiro pertence à UIF/Coaf, e o segundo, às autoridades persecutórias, razão pela qual o pedido de compartilhamento deve ser feito à autoridade judicial, que apreciará a justificativa respectiva para tanto.

A justificativa constitucional para essa leitura, e essa é a terceira ordem de razões, é precisamente o resguardo constitucional dada à proteção de dados no art. 5º, LXXIX, para além da proteção tradicional dos dados pessoais (artigo 5º, XII). Aqui, a experiência alemã é particularmente elucidativa.

Ao decidir sobre o Censo de 1983, a Corte Constitucional Alemã Corte derivou do “direito geral de personalidade” [Allgemeinen Persönlichkeitsrecht] um “direito fundamental à autodeterminação informacional” [Grundrecht auf informationelle Selbstbestimmung], [5] que se refere ao direito de os indivíduos decidirem autonomamente quando e dentro de quais limites fatos sobre sua própria vida serão revelados, [6] sejam eles dados valiosos ou não, [7] e que é integrado, também, por uma dimensão “procedimental” de proteção por intermédio da qual o BVerfG se posicionou como um ator na implementação da proteção de dados [8] ao submeter o Legislativo a um controle de constitucionalidade que ultrapassa a etapa de elaboração legislativa para alcançar sua implementação prática. [9] [10]

Diferentemente do caso alemão, em que a “autodeterminação informacional” decorreu de uma construção jurisprudencial do BVerfG[11] a Constituição brasileira prevê atualmente a proteção de dados e a reserva de jurisdição para a autorização de seu requerimento direto ao Coaf pelo MP.

Trata-se, desse modo, de opção política legítima tomada pelo constituinte que deve ser respeitada por todos aqueles que integram lato sensu a persecução criminal, sob pena de o aparato persecutório, cioso de seus próprios meios e quiçá melindrado pelo Judiciário, constituir-se em parcela meramente “política” de um Estado tornado Dual, em que o direito é apenas seletivamente observado, tudo debaixo do argumento requentado e ad terrorem da “eficiência” no combate à corrupção, um dos motes contemporâneos da raison d’état.

Não se está aqui a discutir a possibilidade de o Coaf compartilhar espontaneamente as referidas informações quando seus mecanismos automatizados identificarem operações ou movimentações ilícitas, nem o valor probatório dos dados financeiros, tampouco a possibilidade de o Conselho fornecer tais dados ao Ministério Público.

Trata-se tão somente de respeitar a opção constitucional de submeter previamente ao Judiciário a análise da pertinência do acesso aos dados financeiros e, portanto, da restrição à regra geral de proteção dos dados pessoais dos indivíduos, até mesmo porque tais dados permanecem estáticos — não sofrerão alterações — e armazenados — não serão perdidos — nos registros do Coaf, razão pela qual não me parece existir absolutamente nenhuma justificativa para que o MP e a polícia — que também vem fazendo esse tipo de requerimento — não obedeçam a reserva de jurisdição.

Aliás, a situação provoca ainda uma outra e mais fundamental indagação: teriam parcelas do MP e da polícia medo do Judiciário? Se sim, por quais razões? Não estariam estes órgãos tão bem aparelhados e repletos de servidores competentes em condições de justificar de modo razoável a necessidade de acesso a tais dados? Por que submeter seu acesso a controle judicial a posteriori, quando o direito fundamental já foi restringido e os eventuais danos já consumados? Haveria algum argumento “político” que não poderia ser conhecido pela sua contraparte “técnica”?

Ora, ainda que a LGPD (artigo 4º, III, “d”) tenha excepcionado as atividades de investigação e repressão de infrações penais, o dispositivo seria patentemente inconstitucional se não observasse um postulado básico do constitucionalismo contemporâneo de que todo dispositivo constitucional possui alguma eficácia, ainda que simplesmente hermenêutica, como guia de interpretação para outros dispositivos constitucionais. Vale dizer, a opção político-constitucional continua vigendo e orienta a interpretação da proteção de dados pessoais quaisquer, em todos os âmbitos da atuação estatal.

O controle judicial do acesso a dados financeiros sensíveis tem como finalidade, não só garantir a sua pertinência probatória, mas dificultar a criação de um mercado paralelo de dossiês contra inimigos políticos, venda de dados, abuso de denúncias anônimas e etc.

Portanto, essa subversão degenerada que tem sido tentada em relação ao Tema n° 990/RG não viola apenas direitos fundamentais, mas também atinge a magistratura enquanto instituição democrática. Mais precisamente, autorizar que a polícia e o MP requisitem dados fiscais sem prévia autorização judicial é retirar também uma reserva de jurisdição, de modo a atingir prerrogativas da magistratura.

Nesse cenário, é fundamental que as entidades representativas da magistratura atuem para impedir que o Judiciário seja golpeado a pretexto de se favorecer, em abstrato, o combate à corrupção e ao crime organizado.

Não se trata apenas de uma questão (sensível) a ser tratada pela jurisdição constitucional; é também questão de legalidade stricto sensu e atinente às próprias garantias da magistratura, que podem, hoje ou amanhã, ser vítimas das circunstâncias que hoje autorizaram por terem sucumbido ao brado histérico e ad terrorem de que a avaliação judiciária prévia estaria a serviço do desmonte do combate à corrupção.

Após três décadas de democracia constitucional no Brasil, o Judiciário, e em especial o STF, demonstrou todo o seu empenho e credibilidade na defesa da democracia. Não há argumento que justifique blindar investigações de uma revisão judicial. Pelo contrário, impedir que o Judiciário avalie, previamente, a existência ou não de argumentos suficientes à autorização para compartilhamento de RIF, é um verdadeiro convite ao estabelecimento de um mercado ilegal de venda de dossiês e aniquilação de reputações sem sequer ter havido propositura de ação penal. A “lava jato” deveria ter ensinado algo à magistratura, MP, polícia e advogados. Frequentemente, contudo, sinto que permanecemos reféns de práticas “tão velhas quanto o mundo.

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[1] Jakob Wassermann. Golovin, 2ª ed., trad. Adonias Filho, Campinas: Sétimo Selo, 2024, p. 81.

[2] Fabian Uebele. Datenschutz und Kartellrecht, Berlim: Duncker & Humblot, 2022, p. 42.

[3] Ernst Fraenkel. „Das Dritte Reich als Doppelstaat“. In: Gesammelte Schriften, Baden-Baden: Nomos, 1999, v. II, p. 504; Georges Abboud. Direito Constitucional Pós-Moderno, 2ª ed., São Paulo: Revista dos Tribunais, 2024, p. 153 e ss.

[4] Art. 15. O COAF comunicará às autoridades competentes para a instauração dos procedimentos cabíveis, quando concluir pela existência de crimes previstos nesta Lei, de fundados indícios de sua prática, ou de qualquer outro ilícito.

[5] Fabian Uebele. Datenschutz und Kartellrecht, cit., p. 31-32. Cf. Rupert Scholz; Rainer Pitschasp. Informationelle Selbstbestimmung und staatliche Informationsverantwortung, Berlim: Duncker & Humblot, 1984, p. 11-15; 69 e ss; e Benedikt Buchner. Informationelle Selbstbestimmung im Privatrecht, Tübingen: Mohr Siebeck, 2006, p. 202 e ss.

[6] Cf. Gerhard Robbers. “Informationelle Selbstbestimmung und allgemeine Informationsfreiheit in Deutschland“. In: Juridica International, VII/2002, p. 98-105.

[7] Jörn Ipsen. Staatsrecht II: Grundrechte, 24 Aufl., Munique: Franz Vahlen, 2021, §317, p. 88.

[8] Rupert Scholz; Rainer Pitschasp. Informationelle Selbstbestimmung und staatliche Informationsverantwortung, cit., p. 56.

[9] Rupert Scholz; Rainer Pitschasp. Informationelle Selbstbestimmung und staatliche Informationsverantwortung, cit., p. 51-54.

[10] Cf. BVerfGE, 1 BvR 209, 269, 362, 420, 440, 484/83.

[11] Por todos, Jörn Ipsen. Staatsrecht II, cit., §318, p. 88.

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Tribunal adota estratégias para cumprir meta sobre julgamento de processos de improbidade

A pouco menos de quatro meses do fim do prazo para julgar todas as ações de improbidade administrativa distribuídas até 26 de outubro de 2021, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) vem acompanhando atentamente esse compromisso assumido durante o 18º Encontro Nacional do Poder Judiciário, realizado em dezembro do ano passado. Dos 69 processos identificados inicialmente, restam hoje apenas 18 pendentes de julgamento.

Para obter o engajamento na solução desses casos, a Assessoria de Gestão Estratégica do STJ tem enviado ofício bimestralmente para os gabinetes dos ministros, informando sobre os processos que se encontram na meta.

Além disso, o tribunal atualiza diariamente não só a situação da Meta 4, mas de todas as outras nove que foram acordadas no encontro nacional de 2024. A ação “tem sido primordial para o sucesso alcançado”, segundo relato enviado ao Departamento de Gestão Estratégica do Conselho Nacional de Justiça (CNJ).

Prescrição intercorrente

A data-limite para o julgamento dos processos da Meta 4 foi fixada em 26 de outubro de 2025 devido ao prazo da prescrição intercorrente de quatro anos, estabelecido pelo Supremo Tribunal Federal (STF) no julgamento do Agravo em Recurso Extraordinário (ARE) 843.989. Nessa decisão, o STF determinou que os prazos prescricionais previstos na Lei 14.230/2021, que versa sobre a improbidade administrativa, sejam aplicados a partir da sua publicação. Diante disso, no 18º Encontro Nacional do Poder Judiciário, os tribunais aprovaram mudanças na Meta Nacional 4, que diz respeito ao combate à corrupção.

Assim como o STJ, os tribunais estaduais e federais de segundo grau vêm desenvolvendo estratégias para cumprir a meta. Em todas essas cortes, a Meta 4 corresponde a um estoque de 28.379 processos.

No Tribunal Regional Federal da 4ª Região (TRF-4), por exemplo, a corregedoria e a presidência encaminharam ofício-circular a cada órgão julgador com a listagem dos processos pendentes. Pelo sistema gerencial de metas, os órgãos também recebem atualização diária de cada processo correspondente a essa meta.

O TRF-4 possui 19 processos pendentes no segundo grau e 142 no primeiro grau. Para obter sucesso no alcance do objetivo, o tribunal informou ao CNJ que as unidades judiciárias serão novamente solicitadas a zerar esses remanescentes.

Sanções

prescrição intercorrente se refere ao novo prazo em que as sanções da Lei 14.230/2021 podem ser aplicadas mesmo após os oito anos iniciais de prazo, como previsto no artigo 23. As sanções por atos de improbidade administrativa prescrevem em oito anos, contados a partir da ocorrência do fato ou, no caso de infrações permanentes, do dia em que cessou a permanência.

O artigo dispõe também que um novo prazo, de quatro anos, pode se iniciar em cinco hipóteses. Uma delas é a publicação de decisão ou acórdão do STF que confirma acórdão condenatório ou que reforma acórdão de improcedência. A outra hipótese considera o mesmo ato por parte do STJ.

O reinício da contagem do prazo prescricional ainda pode ocorrer por ajuizamento da ação de improbidade administrativa, publicação da sentença condenatória e publicação de decisão ou acórdão de Tribunal de Justiça ou Tribunal Regional Federal que confirmar sentença condenatória ou que reformar sentença de improcedência.

Uma vez que a possibilidade de ser aplicada a prescrição intercorrente para as sanções por improbidade se deu a partir da publicação da Lei 14.230/2021, os quatro anos seguintes terão sua primeira expiração em 26 de outubro de 2025.

Prioridade

A improbidade administrativa é todo ato que viole os princípios da legalidade, da impessoalidade, da moralidade, da publicidade e da eficiência na administração pública, previstos na Constituição Federal.

O julgamento do ARE 843.989 tornou mais urgente o que já era uma das prioridades do Judiciário desde 2013, com a definição da meta nacional que inclui, também, o impulsionamento dos processos sobre crimes contra a administração pública e os ilícitos eleitorais. Para esses temas, há percentuais de cumprimento específicos.

Coordenadas pelo CNJ, as metas nacionais são fruto de trabalho colaborativo junto com os tribunais de todos os segmentos. A partir de 2024, a Meta 4, voltada ao combate à corrupção, passou a ser identificada por um ícone que representa a relação da Justiça com o fim da impunidade, na cor laranja, sinalizando urgência.

Com informações da Agência CNJ de Notícias.