Indenização por abordagem constrangedora

A decisão que condenou um supermercado do Paraná a pagar R$ 6 mil de indenização por danos morais a uma adolescente abordada de forma vexatória por um segurança é destaque na edição desta semana do programa STJ Notícias. A reportagem entrevistou a jovem, que foi acusada de furto e era menor de idade na época do fato.  

Clique para assistir no YouTube:   

Fonte: STJ

De grandes fortunas a racismo, STF acumula ações que discutem omissão do Congresso

Tramitam no Supremo Tribunal Federal 12 ações diretas de inconstitucionalidade por omissão (ADOs) pendentes de julgamento, nas quais se alega omissão do Congresso na criação de leis para fazer valer normas constitucionais. Esse cenário em que os comandos não são detalhados na legislação traz prejuízos para a efetivação de políticas públicas e contribui para a instabilidade política e jurídica do país, dizem especialistas entrevistados pela revista eletrônica Consultor Jurídico.

As ações discutem temas que são frequentes na Justiça e nos debates entre o governo federal e parlamento, como o imposto sobre grandes fortunas (artigo 153, inciso VII, da Constituição) e o crime de negar ou impedir emprego em empresa privada em razão da raça ou cor (artigo 5º, inciso XLII).

Fachada do Congresso

Em toda a sua história, o STF recebeu um total de 93 ADOs. Entre aquelas ainda não julgadas no mérito, há também algumas com alegações de omissão dos Legislativos estaduais, do Executivo nacional e até da Agência Nacional de Aviação Civil (Anac).

Mas o maior volume histórico sempre foi direcionado ao Congresso, responsável direto pelo texto da Constituição e cuja atuação impacta o país inteiro.

Omissões enfraquecem regras

“A Constituição de 1988 foi construída com uma série de mandamentos que deveriam ser posteriormente regulamentados por meio de leis complementares e ordinárias. Isso já estava previsto desde o início e essa, de fato, foi a intenção do constituinte, para diversos temas”, explica o procurador federal André Rufino do Vale, professor de Direito Constitucional do Instituto Brasileiro de Ensino, Desenvolvimento e Pesquisa (IDP).

Mas, segundo ele, a “inação legislativa”, quase 37 anos depois, “deve ser encarada como omissão institucional, para a maioria dos temas carentes de regulamentação”.

Na visão de Vale, “uma Constituição que carece de regulamentação forma um ordenamento jurídico lacunoso e que dificulta a concretização de direitos e de políticas públicas importantes”.

Para o advogado Georges Abboud, também professor de Direito Constitucional do IDP, as omissões do Congresso mostram “indubitavelmente déficits de normatividade da Constituição e da execução de seu programa político”. Ou seja, “se os projetos da Constituição não são implementados por lei, há, em algum grau, defasagem na vinculação do próprio texto constitucional”.

Ele afirma que os parlamentares não podem adotar a ideia de que alguns dispositivos constitucionais são “mais obrigatórios do que outros”, pois essa mentalidade “favorece o clientelismo e a permanência de formas oligárquicas de pensar o país”.

Desde o momento em que entram em vigor, todos os trechos constitucionais têm “alguma eficácia imediata” — ainda que seja apenas “destinada a mandar que algo seja feito”. Assim, os congressistas não podem “decidir quais pontos da Constituição devem ou não ser realizados”, porque tais escolhas já foram feitas quando esses pontos foram aprovados.

Enquanto não há “sanção efetiva” das promessas constitucionais, de acordo com Abboud, “as questões omissas acabam ficando ao sabor dos ventos políticos ou até mesmo regulamentadas pelo STF, que posteriormente recebe, inevitavelmente, críticas muitas vezes injustas”.

A advogada constitucionalista Vera Chemim concorda que as lacunas mantidas “são responsáveis pela não efetivação dos direitos constitucionais, principalmente os direitos fundamentais individuais e coletivos”. A falta da legislação exigida pela Constituição também “prejudica a sua efetividade e enfraquece a sua força normativa”.

A situação ainda “embaraça a gestão pública, provocando a sua ineficácia, ineficiência e inefetividade no alcance dos seus objetivos e resultados”. Outro efeito, segundo a  advogada, é “o agravamento da instabilidade política e jurídica já reinante na conjuntura brasileira”

Confira a lista das 12 ADOs sobre possível omissão do Congresso ainda pendentes de julgamento:

Número da ação Dispositivo constitucional não regulamentado Tema
ADO 40 Artigo 98, inciso II Criação da Justiça de paz*
ADO 47 Artigo 32, § 4º Regras sobre uso das polícias e do Corpo de Bombeiros Militar pelo governo do DF
ADO 55 Artigo 153, inciso VII Instituição do Imposto sobre Grandes Fortunas
ADO 62 Artigo 245 Assistência do poder público a herdeiros e dependentes carentes de vítimas de crimes dolosos
ADO 69 Artigo 5º, inciso XLII Falta de previsão de pena de prisão para o crime de negar ou impedir emprego em empresa privada em razão da raça ou cor
ADO 70 Artigo 18, § 4º Período em que os estados podem criar, incorporar, fundir e desmembrar municípios
ADO 73 Artigo 7°, inciso XXVII Direito dos trabalhadores à proteção em face da automação
ADO 77 Artigo 243 Expropriação de propriedades com exploração de trabalho escravo para destinação à reforma agrária e a programas de habitação popular, além de confisco de bens apreendidos
ADO 81 Artigo 7º, inciso I Direito dos trabalhadores à proteção do emprego contra despedida arbitrária ou sem justa causa
ADO 83 Artigo 7º, inciso XX Direito à proteção do mercado de trabalho da mulher
ADO 84 Artigo 5º, incisos X e XII Uso de ferramentas e programas de monitoramento secreto de aparelhos de comunicação pessoal por órgãos e agentes públicos
ADO 86 Artigo 231, § 6º Falta de definição sobre o que configura “relevante interesse público da União” nos processos de reconhecimento, demarcação, uso e gestão de terras indígenas
*A alegação é de omissão tanto do Congresso quanto das Assembleias Legislativas estaduais e dos Tribunais de Justiça

À mercê do Congresso

A falta de regulamentação de trechos da Constituição passa pelo jogo de interesses da política. Chemim aponta que o Legislativo vive diversos conflitos internos e externos com o Executivo.

O grande número de partidos políticos contribui para a falta de consenso e dificulta a formação de maioria para aprovação de leis, diz. Cada partido pressiona para que temas de seu interesse particular ou demandas populares de determinadas regiões sejam pautadas. Muitas vezes, isso atropela “outras necessidades nacionais que demandam uma legislação não priorizada por falta de interesse político”.

Outro fator, na visão da advogada, é a falta de conhecimento dos próprios parlamentares sobre a importância da regulamentação de “dispositivos constitucionais que são determinantes para o desenvolvimento social, político, cultural e econômico do país”.

Ela cita ainda a falta de recursos e de tempo, que afeta o funcionamento ideal da Câmara e do Senado. Atualmente, as omissões também são perpetuadas devido ao “cenário de instabilidade política e econômica decorrente da polarização político-ideológica e do recrudescimento do conflito entre o Poder Legislativo e o STF”.

Os motivos para a falta de regulamentação podem variar conforme o tema. No caso da ADO 73, que questiona a omissão do Legislativo com relação à proteção dos trabalhadores diante da automação (direito previsto no inciso XXVII do artigo 7º da Constituição), Georges Abboud entende que a resistência remete “a posturas que nossas classes altas guardam como heranças de comportamentos senhoris de épocas em que o trabalho pouco qualificado era abundante e largamente utilizado”.

Algumas lacunas se relacionam, segundo ele, com “posturas corporativistas”. É o caso da ADO 40, que trata da criação da Justiça de paz — voltada a promover conciliações e, por exemplo, celebrar casamentos. Embora ela esteja prevista no inciso II do artigo 98, nunca foi implementada.

Outras omissões “carregam as marcas do nosso passado (e presente) oligárquico”. O constitucionalista cita como exemplo a ADO 86, na qual se discute o que seria interesse público para fins de demarcação e uso de terras indígenas; e a ADO 55, que contesta a falta de criação do Imposto sobre Grandes Fortunas (IGF).

“Em muitos momentos da nossa história, como é de sabença, projetos nacionais foram preteridos em favor de projetos de elites regionais”, completa.

ADO 70 discute o período em que os estados podem criar, incorporar, fundir e desmembrar municípios. Abboud indica que ela “tem contornos eleitorais, tributários e orçamentários”, além de gerar disputas entre entes federativos — afinal, “um município é sempre uma peça nova no tabuleiro político”.

Problema histórico

Há ainda questões com “antecedentes históricos nas desigualdades sociais que atravessam o Brasil desde sempre”, que “prestam homenagem ao nosso passado escravista, excludente, patrimonialista e sempre autoritário em potência”.

É o caso da ação sobre o IGF; da ADO 69, que contesta a falta de pena de prisão para quem nega emprego em razão da raça ou cor; e da ADO 83, que busca incentivos específicos direcionados à proteção do mercado de trabalho da mulher, prevista no inciso XX do artigo 7º da Constituição.

“Apesar de todas as omissões serem lamentáveis, aquelas referentes a questões de gênero e cor, bem como as questões indígenas, são particularmente problemáticas porque se referem a mazelas sociais antigas do nosso país e impedem que, por aqui, as promessas da modernidade se cumpram efetivamente”, diz o advogado.

Chemim entende que o Congresso deixou alguns temas “para serem regulamentados em momentos oportunos do ponto de vista político e social”.

Para a constitucionalista, a depender do assunto, o Legislativo “deverá sentir a temperatura junto à sociedade, verificando se aquela legislação encontrará eco suficiente, no que se refere ao grau de maturidade do ponto de vista social e a consequente acolhida favorável àquela regulamentação”. Isso é o que acontece, segundo ela, com o IGF.

Por outro lado, na sua visão, a proteção do trabalhador em face da automação é “um tema atual e de grande repercussão social, por se destinar a uma minoria que precisa desse tipo de proteção que deveria ser urgentemente disciplinada em lei, por razões óbvias”.

André do Vale acredita que o artigo 5º da Constituição já deveria ter sido regulamentado por inteiro (todos os seus incisos). “Da mesma forma, os direitos sociais dos trabalhadores (dos setores público e privado), assim como dos indígenas, há muito deveriam ter regulamentação completa”, conclui.

Correndo atrás

O saldo de 12 ADOs sobre omissão do Congresso pendentes de julgamento só não é maior porque o Supremo intensificou a análise de ações do tipo nos últimos anos. Só neste ano, duas foram julgadas. Desde 2023, foram sete no total.

Na decisão mais recente, do último mês de maio, o Plenário do STF reconheceu a omissão do Congresso por não classificar como crime em lei a conduta de retenção dolosa de salário do trabalhador. Os ministros também estipularam um prazo de 180 dias para que os parlamentares preencham a lacuna.

Já em fevereiro, a corte mandou os congressistas regulamentarem em até dois anos o direito dos trabalhadores à participação, de forma excepcional, na gestão das suas respectivas empresas.

No último ano, os magistrados estipularam um prazo de 18 meses para o Legislativo federal aprovar uma lei que garanta a proteção do meio ambiente na exploração de recursos do Pantanal mato-grossense. Também em 2024, foi determinado o mesmo prazo para a regulamentação do adicional de penosidade (benefício para quem atua com trabalhos extremamente árduos e desgastantes, seja física ou psicologicamente) para os trabalhadores.

Em 2023, o Supremo ordenou aos parlamentares a regulamentação da licença-paternidade em até 18 meses; a criação do Fundo de Garantia das Execuções Trabalhistas (Funget), formado por multas decorrentes de condenações trabalhistas e da fiscalização do trabalho, no prazo de dois anos; e o reajuste da proporção do número de vagas na Câmara em relação à população de cada estado, até o final deste mês de junho de 2025.

O post De grandes fortunas a racismo, STF acumula ações que discutem omissão do Congresso apareceu primeiro em Consultor Jurídico.

Para Motta, é possível um marco regulatório sobre inteligência artificial comum para o BRICS

 

O presidente da Câmara dos Deputados, Hugo Motta (Republicanos-PB), afirmou que é possível construir um marco regulatório comum entre os países do BRICS sobre o tema da inteligência artificial (IA). Segundo ele, os países do bloco têm um alinhamento político semelhante, e compartilhar as experiências entre eles sobre o tema da IA pode ajudar a evitar erros e garantir uma legislação mais equilibrada. O assunto já é objeto de discussão na Câmara.

Uma comissão especial foi criada por Motta para debater o Projeto de Lei 2338/23, do Senado, que regulamenta o uso da IA no Brasil. A proposta classifica os sistemas de inteligência artificial quanto aos níveis de risco para a vida humana e de ameaça aos direitos fundamentais. Também divide as aplicações em duas categorias: inteligência artificial e inteligência artificial generativa.

Realidade mundial
Motta destacou que o tema já é realidade em todo o mundo, e o Brasil não pode ficar para trás nesse debate. “É importante porque o mundo todo tem se organizado por meio dessa nova tecnologia. A IA tem avançado e mudado até a nossa própria forma de enxergar o mundo. Temos de trabalhar para que não tenhamos uma legislação restritiva, tampouco não ter nenhum tipo de regulação”, defendeu o presidente.

“Discutir isso de forma parceira com os países do BRICS é poder entender quais experiências estão adotando para que o Brasil possa fazer a sua construção interna”, disse Motta.

Mudanças climáticas
O presidente também cobrou dos países desenvolvidos que contribuam com fundos de defesa do meio ambiente em países emergentes. Para Motta, não há outra alternativa a não ser financiamento de políticas públicas por parte dos países ricos que ajudem a mitigar os impactos da ação humana sobre o meio ambiente.

Segundo ele, muitas vezes o Brasil é injustiçado no cenário internacional. “O tema das mudanças do clima nos preocupa, mas o Brasil tem sido injustiçado, temos o agronegócio que alimenta a população mundial, temos um Código Florestal duro e, muitas vezes, somos cobrados por falta de conhecimento dos demais países”, afirmou.

Motta afirmou que hoje o país é um player global nas áreas de agricultura e pecuária e que busca, cada vez mais, assumir compromissos com o meio ambiente e com as mudanças climáticas.

Fonte: Câmara dos Deputados

Direito Penal Tributário: entre infrações fiscais e delitos

Ocorreu nos dias 21 e 22 de maio de 2025 o 3º Congresso Iberoamericano de Direito Penal Tributário, em Bogotá, Colômbia, coordenado por Juan Manuel Álvares Echague, professor de Direito Tributário da Universidade de Buenos Aires, e por José Manuel Almudi Cid, professor de Direito Tributário e atual Diretor da Universidade Complutense de Madrid. A anfitriã foi a Universidade Javeriana da Colômbia, representada pelo professor de Direito Penal José Carlos Prias, que nos recepcionou em conjunto com outros professores, dos quais destaco o tributarista Maurício Plazas.

Estiveram presentes profissionais de direito penal e de direito tributário de 11 países, sendo, do Brasil, eu e Marcelo Campos. Foi um exercício de interdisciplinariedade e reconhecimento dos diferentes estágios das duas disciplinas acerca desse objeto conjunto, no amplo panorama das Américas. Um livro com cerca de 1.400 páginas foi lançado, incluindo textos de autores brasileiros, sendo Marcelo Campos um dos cocoordenadores da obra. [1]

A parte que me coube naquele latifúndio de conhecimentos foi analisar a diferença entre infrações fiscais delitos com referência ao direito brasileiro. Adaptei o texto que lá expus para ser divulgado nesta ConJur em três textos quinzenais nesta coluna Justiça Tributária.

Sendo publicada em partes, fica parecendo uma série de streaming, com três episódios. Aqui vai o primeiro.

As decisões de política governamental

Machado de Assis, um dos maiores escritores brasileiros, publicou em 1882 um conto denominado O Alienista no qual relata o regresso do médico Simão Bacamarte à pequena cidade de Itaguaí, “filho da nobreza da terra e o maior dos médicos do Brasil, de Portugal e das Espanhas”, tendo estudado em Coimbra e em Pádua. Sua especialidade era a psiquiatria e logo passou a observar o comportamento dos habitantes da cidade. Pouco a pouco, foi identificando sinais de loucura em cada um deles, recolhendo-os ao hospício que havia criado, denominado Casa Verde.

“De todas as vilas e arraiais vizinhos afluíam loucos à Casa Verde. Eram furiosos, eram mansos, eram monomaníacos, era toda a família dos deserdados do espírito. Ao cabo de quatro meses, a Casa Verde era uma povoação. Não bastaram os primeiros cubículos; mandou-se anexar uma galeria de mais trinta e sete.”

O número de pessoas consideradas loucas crescia a cada dia, o que ocasionou diversas rebeliões na cidade, todas em vão. Bacamarte recolheu ao hospício até mesmo sua esposa, por ele considerada louca, além de vários políticos. Em determinado momento 80% dos habitantes da cidade estavam recolhidos à Casa Verde.

Após algum tempo de exame dos pacientes, o psiquiatra declarou que diante dessa quantidade de pessoas recolhidas ao hospício, ele assumira a convicção de que a verdadeira doutrina não era aquela que estava professando, mas a oposta, e, portanto, se devia admitir como normal e exemplar o desequilíbrio das faculdades mentais e como loucos todos os casos em que houvesse um equilíbrio dessas faculdades.

Com isso, Bacamarte libertou todos os que estavam recolhidos ao manicômio e, observando-se, “achou em si as características do perfeito equilíbrio mental e moral; pareceu-lhe que possuía a sagacidade, a paciência, a perseverança, a tolerância, a veracidade, o vigor moral, a lealdade, todas as qualidades, enfim, que podem formar um acabado mentecapto”.

Considerou-se, portanto, como sendo o único habitante da cidade com essas características, e decidiu se encarcerar no hospício para estudar a si mesmo e se curar. Faleceu ao final de dezessete meses de autoisolamento.

Este conto de Machado de Assis nos diz muito sobre a diferença entre infrações e crimes. Se toda infração for considerada um crime, as prisões passarão a estar repletas e as ruas vazias. Deve ser adotada com muita cautela a decisão de política governamental que estabeleça a distinção entre o que a sociedade deve considerar como uma infração e como um crime que acarrete o cerceamento da liberdade do indivíduo, e, em alguns casos, até sua vida.

Aqui se identifica um primeiro ponto do problema, que se refere à política governamental: deve-se criminalizar amplamente todas as condutas que violam as normas jurídicas?

Estacionar em local proibido ou não pagar uma conta de energia elétrica são infracções, apenadas com multas ou algum cerceamento de direitos, como se vê na possibilidade de suspensão da carteira de habilitação de motorista ou no cancelamento do fornecimento de energia elétrica. Todavia, se até mesmo essas infrações forem capituladas como delitos e os infratores considerados criminosos e encarcerados, estaremos defronte ao mesmo problema enfrentado pelo psiquiatra do conto O Alienista.

Filosoficamente pode-se afirmar que, se tudo é, nada é. Por outras palavras, se tudo for considerado como crime, sem distinção entre as condutas que atingem de forma mais ou menos intensa alguns direitos, ao final de certo tempo haverá a banalização da prisão, e a ameaça de encarceramento por condutas menos danosas acarretará a necessidade da escalada de maiores penalidades para as condutas mais complexas, fazendo com que o direito penal perca sua função primordial de proteção dos bens jurídicos verdadeiramente essenciais a uma sociedade. [2]

Nesse sentido, um Estado que alarga demais o punitivismo para infrações menores, se constituirá em um Estado policialesco, vigilante ao extremo acerca da conduta de seus cidadãos, sob pena de encarceramento. Em sentido oposto, caso as infrações maiores não sejam devidamente apenadas, haverá um Estado leniente, pois nem mesmo as infrações mais sérias a bens jurídicos sensíveis será considerada como crime.

É necessário fazer distinções de grau infracional, separando as lesões menores das maiores, acarretando que algumas venham a ser punidas com penas mais leves, tão somente pecuniárias (como nas infrações de trânsito), e outras com penas mais severas, como ocorre nos crimes contra a vida, cujo encarceramento é a regra geral em muitos sistemas jurídicos, havendo alguns que atribuem a pena de morte.

Para tanto, existe um limite aplicável aos países que se constituem em verdadeiros Estados Democráticos de Direito, que é o Princípio da Intervenção Penal Mínima, de modo que a atuação do Estado por meio do Direito Penal seja restrita ao mínimo necessário, sendo utilizada apenas quando os demais ramos do Direito se mostrarem insuficientes para proteger os bens jurídicos relevantes. Esse princípio é também conhecido como última ratio e se fundamenta na ideia de que o Direito Penal é a forma mais gravosa de intervenção estatal, evitando o excesso punitivo.

O direito tributário, que regula as relações entre o Fisco e os contribuintes, serve para arrecadar recursos das pessoas privadas, físicas e jurídicas, para os cofres públicos. Sua delimitação encontra-se nos direitos fundamentais dos contribuintes, que podem ser classificados como relativos: (1) à proteção dos contribuintes; (2) ao tratamento isonômico na tributação; (3) à boa administração fiscal, e (4) às garantias para o exercício dos direitos fundamentais.

O principal desses direitos fundamentais de proteção dos contribuintes é a Legalidade, pois a análise de todos os demais parte dele. Fiscalmente é importante o Princípio da Reserva Legal Tributária, que determina que só é possível instituir ou aumentar tributo se lei específica assim o estabelecer. E criminalmente é importante considerar o secular Princípio da Reserva Legal Penal, de que não há crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem prévia cominação legal. Este conjunto de princípios, que se configuram em direitos fundamentais, é imprescindível para a delimitação do que seja uma infração fiscal e do que seja um delito.

Logo, uma primeira distinção entre infrações e crimes deve ser visualizada na política governamental acerca do direito sancionatório em geral, distinguindo o que deve ser protegido sob o manto do direito penal, o mais rigoroso em uma sociedade, pois, no limite, acarreta a perda da liberdade dos indivíduos. E isso deve ocorrer por meio de lei em sentido estrito, a Reserva Legal Penal, observado o Princípio da Intervenção Penal Mínima, cerne do Estado Democrático de Direito.

Normas brasileiras sobre direito penal tributário

Estabelecida a delimitação político-normativa, deve-se analisar as normas introduzidas no direito positivo de cada país.

A Constituição brasileira de 1988 estabelece no artigo 5º, inciso LXVII, que “não haverá prisão civil por dívida, salvo a do responsável pelo inadimplemento voluntário e inescusável de obrigação alimentícia e a do depositário infiel”. Isso aponta para o fato de que são necessárias normas que tipifiquem condutas como crimes, mesmo nos casos de não pagamento de tributos, que se constituem tão somente como dívidas civis, embora tendo como credor o Estado.

No Brasil foram criadas normas específicas para o direito penal tributário, instituídas pela Lei 8.137/1990, que estabelece como delitos as seguintes condutas, obedecendo a Reserva Legal Penal.

O artigo 1º estabelece que “Constitui crime contra a ordem tributária suprimir ou reduzir tributo, ou contribuição social e qualquer acessório, mediante as seguintes condutas …”. Desse comando normativo são tipificadas diversas condutas que exigem dolo específico de reduzir ou suprimir tributo, em cinco incisos:

(I) “Omitir informação, ou prestar declaração falsa às autoridades fazendárias”; que se constitui em um crime formal, pois independe da obtenção do resultado pretendido.
(II) “Fraudar a fiscalização tributária, inserindo elementos inexatos, ou omitindo operação de qualquer natureza, em documento ou livro exigido pela lei fiscal”. Trata-se de crime material, pois depende do resultado, isto é, precisa ter ocorrido a efetiva redução ou supressão de tributo.
(III) “Falsificar ou alterar nota fiscal, fatura, duplicata, nota de venda, ou qualquer outro documento relativo à operação tributável”; que pode ser crime formal ou material, a depender do caso concreto.

(IV) “Elaborar, distribuir, fornecer, emitir ou utilizar documento que saiba ou deva saber falso ou inexato”, que se constitui em um crime material.
(V) “Negar ou deixar de fornecer, quando obrigatório, nota fiscal ou documento equivalente, relativa à venda de mercadoria ou prestação de serviço, efetivamente realizada, ou fornecê-la em desacordo com a legislação”, que se constitui em um crime formal.

Todos esses tipos criminais previstos do artigo 1º da Lei 8.137/90 são apenados com reclusão de dois a cinco anos, e multa.

Existe ainda o artigo 2º da mesma Lei, prevendo crimes tributários culposos ou omissivos impróprios, embora ainda se exija dolo específico para alguns. O artigo 2º é centrado nas obstruções à fiscalização e descumprimento de obrigações acessórias que viabilizam a correta arrecadação tributária. Os diversos incisos dessa norma tipificam condutas específicas que frustram a ação fiscalizatória da Fazenda Pública, com ou sem a intenção de suprimir tributos, sendo considerados crimes formais ou omissivos próprios, com penas mais leves, entre 06 meses e dois anos de detenção.

É previsto no artigo 2°: “Constitui crime da mesma natureza”, daí surgindo os seguintes incisos:

(I) “Fazer declaração falsa ou omitir declaração sobre rendas, bens ou fatos, ou empregar outra fraude, para eximir-se, total ou parcialmente, de pagamento de tributo”.
(II) Deixar de recolher, no prazo legal, valor de tributo ou de contribuição social, descontado ou cobrado, na qualidade de sujeito passivo de obrigação e que deveria recolher aos cofres públicos”. Adiante se analisará a decisão do STF — Supremo Tribunal Federal no RHC 163.334-SC, que estabeleceu o que se deve entender por “tributo descontado ou cobrado” referente ao crime de apropriação indébita fiscal.
(III) “Exigir, pagar ou receber, para si ou para o contribuinte beneficiário, qualquer percentagem sobre a parcela dedutível ou deduzida de imposto ou de contribuição como incentivo fiscal.”
(IV) “Deixar de aplicar, ou aplicar em desacordo com o estatuído, incentivo fiscal ou parcelas de imposto liberadas por órgão ou entidade de desenvolvimento”.
(V) Utilizar ou divulgar programa de processamento de dados que permita ao sujeito passivo da obrigação tributária possuir informação contábil diversa daquela que é, por lei, fornecida à Fazenda Pública.”

Como se verifica, os tipos penais estabelecidos pela legislação brasileira são próprios para condutas fiscais, regulando propriamente o direito penal tributário, sem a utilização direta do Código Penal, o que é diverso do que se verifica em outras jurisdições latino-americanas.

*Tal como uma série de streaming, aguardem a 2ª parte (ou episódio), que circulará em 15 dias neste mesmo espaço da coluna Justiça Tributária.

_______________________________

[1] ÁLVAREZ ECHAGÜE, Juan Manuel et al. (dir.). Derecho Penal Tributario Latinoamericano: Estudio y análisis comparado de los principales regímenes penales que regulan el delito fiscal. Buenos Aires: Editorial Ad-Hoc, 2025.

[2] Nesse sentido, ver: OLIVEIRA, Regis Fernandes de. Infrações e sanções administrativas. 2ª ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2005.

O post Direito Penal Tributário: entre infrações fiscais e delitos (parte 1) apareceu primeiro em Consultor Jurídico.

Projeto destina 50% das multas por infrações à Lei Anticorrupção para o combate à corrupção

 

O Projeto de Lei 4579/24 determina que 50% do valor das multas de condenações por corrupção sejam revertidos para o combate a esse crime. Pelo texto, o dinheiro deverá ser usado para a compra de armas pela Polícia Federal, a construção de delegacias especializadas e a capacitação de policiais, entre outras iniciativas.

Em análise na Câmara dos Deputados, a proposta altera a Lei Anticorrupção.

De acordo com os autores, deputados Duda Ramos (MDB-RR) e Amom Mandel (Cidadania-AM), a mudança vai possibilitar “melhorias substanciais nas estruturas que atuam para garantir a lisura do trato da coisa pública, com ações preventivas e repressivas”.

Próximos passos
O projeto tramita em caráter conclusivo e será analisado pelas comissões de
Segurança Pública e Combate ao Crime Organizado; de Finanças e Tributação; e de Constituição e Justiça e de Cidadania. Para virar lei, precisa ser aprovado pela Câmara e pelo Senado.

 

Fonte: Câmara dos Deputados

IOF: a gula do governo às custas da segurança jurídica

A sociedade brasileira testemunha, mais uma vez, a insaciedade arrecadatória do governo federal: a partir da edição dos Decretos 12.466 e 12.467 no final de maio de 2025, foram majoradas significativamente as alíquotas do IOF incidente sobre operações de crédito, câmbio e seguros, além de sua expandida, de forma controversa, hipótese de incidência.

Um movimento que, sob o verniz da discricionariedade regulamentar outorgada ao Poder Executivo, atenta contra a legalidade, a segurança jurídica e a previsibilidade – elementos indispensáveis para a confiança dos investidores e a credibilidade do ambiente econômico.

Com os novos decretos, a alíquota diária do IOF-Crédito passou de 0,0041% para 0,0082%, enquanto a alíquota fixa adicional saltou de 0,38% para 0,95%. A carga anual poderá chegar a 3,95%, mais que o dobro da anterior. Em um contexto econômico de juros altos, o setor privado tende a enfrentar dificuldades para viabilizar novos financiamentos.

Apesar da natureza extrafiscal do IOF, os novos decretos carecem de motivação clara que justifique sua edição, além da necessária arrecadação para se contrapor ao crescente gasto público e supostamente “cumprir a meta fiscal”. 

Embora este ponto também suscite discussões constitucionais relevantes, este artigo se limita à análise das alterações promovidas pelos parágrafos 23 e 24 introduzidos no artigo 7º do Decreto 6.306/2007, que promoveram a equiparação das “operações de crédito”, sujeitas, portanto, à incidência do imposto, às “antecipações de pagamentos a fornecedores” e os “demais financiamentos a fornecedores (“forfait” ou “risco sacado”).

É importante lembrar: nem toda transação que envolva crédito, no sentido econômico do termo, pode ser considerada uma operação de crédito para fins de incidência do IOF-Crédito. Para que o imposto seja devido, é indispensável que haja a constituição de uma obrigação pendente a ser adimplida pelo tomador dos recursos. Operações estritamente comerciais, como antecipações de pagamento a fornecedores não se enquadram nesse conceito. 

Esse entendimento, inclusive, já foi reconhecido pela jurisprudência, pela doutrina especializada e até mesmo pela própria Receita Federal. A Solução de Divergência COSIT 9/2016 consolidou o entendimento de que só há operação de crédito, e, consequentemente, incidência de IOF, quando o cedente de um título assume responsabilidade pelo seu pagamento no caso de inadimplência do devedor original. Sem essa co-obrigação, o que se tem é uma cessão definitiva de direitos, sem os elementos jurídicos próprios de uma operação de crédito.

As hipóteses de incidência do IOF-Crédito, consolidadas no Decreto 6.306/2007, derivam de disposições constantes de lei: 

  • O artigo 7º, inciso I, do Decreto-Lei 1.783/80 estabelece a incidência sobre empréstimos, inclusive abertura de crédito e desconto de títulos;
  • O artigo 58 da Lei 9.532/97 estabelece a incidência sobre alienações de direitos creditórios resultantes de vendas a prazo para empresa que exercer atividade de factoring; e
  • O artigo 13 da Lei 9.779/99 estabelece a incidência sobre mútuos de recursos financeiros quando o mutuante for pessoa jurídica.

Em 2020, o Supremo Tribunal Federal (STF), ao julgar a Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 1.763, considerou constitucional o artigo 58 da Lei 9.532/1997, que prevê a incidência de IOF-Crédito sobre as operações de factoring, mesmo sem co-obrigação. No entanto, esse precedente não legitima a ampliação da hipótese de incidência do imposto promovida pelos novos decretos. Naquela oportunidade, o STF analisou uma hipótese de incidência prevista em lei, que não se confunde com ato infralegal do Poder Executivo. 

A equiparação promovida pelos novos decretos, portanto, além de contrariar os conceitos de operação de crédito do Direito Privado, viola o princípio da legalidade, constante da Constituição Federal. Note-se que a observância ao princípio da legalidade, neste caso, demandaria a edição de uma lei complementar para tratar da matéria. Ademais, vale lembrar que a legislação expressamente veda a possibilidade de emprego de analogia que resulte na exigência de tributo não previsto em lei (artigo 108, parágrafo 1º do Código Tributário Nacional).

A insegurança jurídica se intensifica com a ausência de definição sobre quem seria o fornecedor referido na norma. O decreto não delimita o alcance do termo, o que abre espaço para interpretações amplas e controvérsias quanto às operações sujeitas ao IOF-Crédito. Diante dessa lacuna, as autoridades fiscais e os contribuintes podem recorrer a referências do Direito Privado – como do Código Civil ou do Código de Defesa do Consumidor, sem necessária uniformidade. 

A confusão persiste na análise de outras operações comuns no mercado. Se quem cede o crédito à instituição financeira é um terceiro alheio à relação obrigacional original (que gerou o crédito), poderia ele ser considerado fornecedor? Ou essa operação escaparia à nova regulamentação?

No caso de operações clássicas de antecipação de pagamento a fornecedores, o fornecedor cede seus créditos a uma instituição financeira e recebe os valores antes do vencimento. Nessa estrutura, é o fornecedor quem obtém os recursos e, sendo o tomador do crédito, quem deveria figurar como contribuinte.

O artigo 7º, § 24 do Decreto 6.306/07, no entanto, indica que o devedor seria o sujeito passivo do tributo – o que é juridicamente incoerente, já que o fornecedor não assume qualquer obrigação futura. Isto é, a relação jurídica se extingue com a cessão do crédito, eis que não há coobrigação.

Nas operações conhecidas como risco sacado, o cenário pode ser distinto. Dado que não há na regulamentação uma definição clara do termo risco sacado, o conceito decorre da prática empresarial, que engloba tanto operações de financiamento ao fornecedor, quanto operações em que o próprio sacado é o devedor, que tem sua dívida assumida pela instituição financeira.

Nesse caso, na prática, não há cessão de crédito nem relação contratual entre banco e fornecedor. Assim, a própria redação do decreto contraria, no nosso entender, a operação contemplada, já que não há, nesse caso, sequer adiantamento ou mesmo qualquer forma de financiamento ao fornecedor. 

Essas indefinições não são meros detalhes técnicos ou lacunas: são gatilhos diretos de insegurança jurídica e imprevisibilidade. Quando o contribuinte não consegue identificar se está ou não sujeito ao tributo, qual é o fato gerador, quem é o sujeito passivo e como deve cumprir a obrigação, o risco de interpretações divergentes, inclusive contrárias ao posicionamento historicamente defendido pela própria RFB, aumenta exponencialmente.

Normas tributárias precisam ser claras, coerentes e previsíveis. Quando não são, tornam-se obstáculos à atividade econômica. Os limites impostos pela legalidade e pela segurança jurídica não podem ser afastados pelos interesses meramente arrecadatórios.

Diante disso, é possível que a nova – e controversa – normativa venha a ser modificada, especialmente considerando que, no plano político, o Congresso Nacional já solicitou ao governo a apresentação de medidas alternativas à majoração de tributos. Até a conclusão deste artigo, no entanto, não havia manifestação oficial nesse sentido.

Em paralelo, mais de 20 Projetos de Decreto Legislativo (PDLs) foram protocolados com o objetivo de sustar os efeitos dos decretos. Caso o Congresso Nacional não assuma esse papel moderador, restará ao Poder Judiciário exercer sua função de guarda da Constituição, restaurando segurança jurídica e confiabilidade a um sistema tributário que não pode continuar operando à base do improviso e da voracidade arrecadatória.

Fonte: Jota

O backlash da grande feitiçaria que é a inteligência artificial

Quase todos “os desafios do século 21”, diz Ronai, implicam alguma reflexão sobre as ciências e as tecnologias. A Filosofia tem feito isso, mas, ao menos um dos temas indicados acima, os desafios da IA, é novo para nós.

Ronai faz parte, como eu, de uma geração que pensou sobre a tecnologia usando metáforas, alegorias, metonímias, perguntas e premissas simples… mas complexas.  A principal metáfora foi a do aprendiz de feiticeiro.

A principal pergunta era sobre a natureza das tecnologias, se eram neutras ou não. A principal premissa era a do perigo eminente que elas traziam. Para quem ainda não sabe, Ronai explica a metáfora do aprendiz de feiticeiro, que se refere a situações nas quais, movidos por algum desejo pouco refletido, começamos a fazer algo que, logo a seguir, não conseguimos mais controlar; surgem consequências que não previmos, que podem ser desastrosas.

A história original chama-se exatamente O Aprendiz de Feiticeiro e foi escrita por Goethe, faz mais de 200 anos. Nela, um aprendiz de feiticeiro, na ausência de seu mestre, usa uma fórmula mágica para fazer com que uma vassoura faça o trabalho de limpeza que cabia a ele.

No entanto, o aprendiz não conhece o feitiço para parar a vassoura. Ela segue trazendo água até que a casa fica inundada.

Aprendeu-se essa história sem saber que era de Goethe. Nem Disney contou pra gente. Veja-se o filme Fantasia, em que Mickey era o aprendiz, que tinha que esperar a volta do mestre para resolver o problema. A metáfora firmou-se, pois era boa para falar dos riscos inerentes a novos conhecimentos e tecnologias.

Não quero a volta do lápis. Nem do ábaco. Ou da Olivetti. Lembro de quando escrevi minha dissertação de mestrado. Com uma máquina de escrever. O xerox desbotava, lembram?  Mas daí a que um robô escreva em meu lugar… a distância vai até a vassoura do aprendiz de feiticeiro.

A metáfora do aprendiz de feiticeiro pode ser vista como uma variação sobre um tema filosófico venerável, a questão dos efeitos colaterais da ação humana. As nossas ações não se resumem às intenções declaradas. E acrescenta Ronai: quando compro pão e queijo na padaria da esquina, para ter algo de comer, eu movo a corrente do mundo das vacas, das farinhas, do dinheiro, dos impostos, da minha saúde. O mundo não é movido apenas pelas nossas intenções. A metáfora do aprendiz vale não apenas para os efeitos colaterais das coisas e tecnologias que criamos (a energia nuclear) mas para ações humanas triviais, como dar (ou não) “bom dia” a alguém.

E o tema do perigo? Para Ronai, a metáfora do aprendiz de feiticeiro sugere que podemos desencadear forças que escaparão de nosso controle. É isso mesmo. Cada um de nós já experimentou isso, de alguma forma, de algum jeito. Em certo sentido somos todos aprendizes de feiticeiros.

Exercemos a arte da feitiçaria quando falamos: fazemos coisas com palavras, como no livro de John Austin: promessas, votos, juramentos, declarações, desculpas, apostas, mentiras, perdões, pedidos e dezenas de outras formas de fazer coisas com palavras que sempre tem consequências. E que nem sempre avaliamos bem.

O Direito parece ser o locus privilegiado em que habitam os aprendizes de feiticeiro. E já sentimos o perigo. Picaretagens a mil. Advogados fraudadores querendo enganar os tribunais. Juízes utilizando robôs para limpar a pauta e poder jogar golfe. Estagiários terceirizando trabalho ao ChatGPT. E gente que nunca escreveu um fonograma na vida agora escreve livros… com ChatGPT. Outro dia um italiano enganou o mundo, lançando um novo conceito (hipnocracia). E a malta acreditou. Bem-feito (leiam aqui). Torço para a briga.

Os robôs já podem fazer desenhos tão ou mais bem elaborados que os humanos. Agora surgiu um novo robô da Google. Os chineses também inventaram um novo. Os robôs já fazem dublagem. Imitam vozes. E falam.

No Direito, fazem petições melhores que os advogados, que nem se dão conta de que isso mostra o fracasso da humanidade. Se uma máquina faz coisas melhores que o homem, então teríamos que, até por vaidade, parar para pensar. Eis o paradoxo: se a IA der certo, dará errado. Porque nos ultrapassa(rá).

Lembremos do cão que atirava crianças na água para ganhar suculentos bifes, caso contado por dois cientistas de Oxford no Parlamento britânico e que contei aqui no ConJur. O cachorro também aprendeu de forma generativa.

Por enquanto o robô alucina quando alguém lhe pede pesquisas – afinal, ele precisa dar uma resposta, mesmo que alucinadamente.

Daí a pergunta: e quando o robô conseguir encontrar, por exemplo, no Direito, a resposta certa para os casos mais complexos, buscando os corretos precedentes, com inclusão das técnicas de overruling e distinguishing em dimensão superior a qualquer humano com razoável formação? O que será do Direito? E o que sobrará para os estudiosos, se o robô faz tudo melhor?

Outro dia um querido amigo disse, corretamente, que a doutrina jurídica ainda tinha muito valor; só que ele mesmo dias antes fazia uma ode ao ChatGPT. E aos precedentes (que não são precedentes).

Eis a questão. O perigo está na máxima representada pela alegoria do trapezista que, de tão competente e treinado, achou que poderia voar. E se estatelou no chão. Porque trapezista, por melhor que seja, não sabe voar.

O consolo? Talvez esteja no fato de que robô não desce escada. Por enquanto.

O post O <i>backlash</i> da grande feitiçaria que é a inteligência artificial apareceu primeiro em Consultor Jurídico.

STJ pode criar regras para o tráfico privilegiado? A resposta está na Constituição

A iminente apreciação dos Temas Repetitivos 1.154 (REsp 1.963.433/SP, REsp 1.963.489/MS e REsp 1.964.296/MG) e 1.241 (REsp 2.059.576/MG e REsp 2.059.577/MG) pelo Superior Tribunal de Justiça desperta grave preocupação no campo da Teoria Geral da Constituição e da legalidade penal. O ponto central em debate — a possibilidade de o Judiciário modular a aplicação da causa de diminuição do §4º do artigo 33 da Lei de Drogas com base em critérios objetivos como quantidade ou variedade da substância apreendida — ultrapassa os limites interpretativos admissíveis no regime constitucional vigente.

A Lei nº 11.343/2006 nasceu de um processo legislativo minucioso, iniciado com o PLS 115/2002, apresentado pelo então senador Ramez Tebet. Durante a tramitação, foram incorporadas diversas propostas legislativas (PLs 6.108/2002 e 7.134/2002), consolidando um texto que buscou equilibrar repressão ao narcotráfico com um olhar diferenciado sobre o réu primário, de bons antecedentes e não vinculado a organizações criminosas.

O próprio texto da exposição de motivos do projeto de lei foi categórico:

“Não olvidando a importância do tema, e a necessidade de tratar de modo diferenciado os traficantes profissionais e ocasionais, prestigia estes o projeto com a possibilidade […] de redução das penas […]”.

É nesse ponto que se evidencia a essência normativa da causa de diminuição prevista no §4º do artigo 33: um dispositivo de clemência penal calibrado por critérios subjetivos — primariedade, bons antecedentes, não envolvimento com organização criminosa e não dedicação a atividades criminosas. Nada além disso foi exigido pelo legislador. Portanto, a tentativa de criar um “padrão de modulação” com base quantitativa ou qualitativa, por via judicial, representa indevida extrapolação do papel que a Constituição reserva ao Judiciário.

A Constituição de 1988 delineia com clareza a repartição de funções entre os Poderes (artigo 2º). A competência para legislar sobre matéria penal é exclusiva do Congresso Nacional. O Judiciário, como guardião da Constituição (artigo 102, caput), não pode criar norma penal nova, sob pena de violação direta aos princípios da legalidade estrita (artigo 5º, II) e da reserva legal penal (artigo 5º, XXXIX). Criar um critério novo — como tornar a quantidade da droga um fator isolado para afastar o tráfico privilegiado — equivale, em última análise, a editar nova norma penal sem respaldo do Poder Constituinte Derivado. Isso compromete não apenas a segurança jurídica, mas a própria legitimidade da jurisdição penal.

Mais grave ainda: ao vincular a concessão do tráfico privilegiado a marcos objetivos rígidos, a jurisprudência propõe um verdadeiro rebaixamento da individualização da pena e da isonomia penal. Resta, então, uma política punitiva enviesada, desprovida de base empírica, que trata desiguais como se iguais fossem — primando por um simbolismo penal que não encontra respaldo constitucional nem eficácia real.

A tentativa de fixar balizas quantitativas para o §4º do artigo 33 da Lei nº 11.343/2006 revela um fenômeno perigoso: a judicialização da política criminal em sua forma mais aguda. A jurisprudência deixa de ser instrumento de concretização da norma e se torna mecanismo de criação normativa — invertendo a lógica democrática da separação de Poderes.

Exemplo disso é a atual tramitação no Senado do PLS 4.999/2024, que propõe disciplinar expressamente o uso da quantidade como critério modulador da causa de diminuição. A simples existência do projeto já é suficiente para demonstrar que o Legislativo entende tratar-se de matéria a ele reservada. Caso contrário, não haveria proposta de lei: bastaria aguardar o STJ decidir.

Não há evidência científica sólida, nem mesmo qualquer artigo científico, que assegure que o agravamento da pena, com base na quantidade e variedade da droga, reduza a criminalidade. Ao contrário, o excesso punitivo desarticula políticas públicas mais eficazes e reforça a seletividade penal — direcionada, quase sempre, à população mais vulnerável.

Não se trata, aqui, de negar a gravidade do tráfico de drogas. Mas sim de reafirmar que o combate ao crime deve se dar nos marcos do Estado Democrático de Direito. O Judiciário não pode, sob o pretexto de eficiência punitiva, invadir competência legislativa. Quando o faz, desrespeita a Constituição, viola o pacto federativo e compromete a legitimidade da jurisdição penal.

Extrapolação e fidelidade

A decisão a ser proferida nos Temas Repetitivos 1.154 e 1.241 pelo STJ tem o potencial de redefinir, de forma profunda e controversa, a aplicação do tráfico privilegiado. Ao fazê-lo com base em critérios que extrapolam o texto legal, o Judiciário se aproxima de um legislador positivo — em flagrante descompasso com os princípios estruturantes da Constituição de 1988.

O Direito Penal não pode ser reconstruído por interpretações, ainda que bem intencionadas. A fidelidade ao texto constitucional não é obstáculo à Justiça — é seu fundamento. E a Constituição não autoriza o Judiciário a substituir o Parlamento. Autoriza, apenas, a guardar a Lei Maior.

O post STJ pode criar regras para o tráfico privilegiado? A resposta está na Constituição apareceu primeiro em Consultor Jurídico.

Projeto proíbe fiscos de compartilhar informações bancárias de clientes

O Projeto de Lei Complementar (PLP) 235/24 proíbe as administrações tributárias – como Receita Federal e secretarias da Fazenda – de celebrar convênios para compartilhar informações sobre transações bancárias de clientes, como PIX e compras com cartão. A proposta está em análise na Câmara dos Deputados.

O texto também deixa claro que o acesso a essas informações dependerá de autorização judicial e será concedido apenas quando necessário para apurar crimes previstos na Lei do Sigilo Bancário, como lavagem de dinheiro e sonegação fiscal.

“O objetivo é deixar ainda mais claro que o acesso a essas informações, inclusive do PIX, somente pode se dar mediante quebra de sigilo, decretada por autoridade judiciária em cada caso específico”, disse o deputado Evair Vieira de Melo (PP-ES), autor do projeto.

Próximos passos
O projeto será analisado pelas comissões de Finanças e Tributação, e de Constituição e Justiça e de Cidadania (CCJ). Depois seguirá para o Plenário.

Fonte: Câmara dos Deputados

Julgamento virtual sem intimação dos advogados é nulo, diz STJ

É nulo o julgamento de recurso de apelação em sessão virtual realizada sem a intimação dos advogados das partes.

Com esse entendimento, a 3ª Turma do Superior Tribunal de Justiça deu provimento ao recurso especial para anular um julgamento do Tribunal de Justiça de São Paulo.

O caso é de ação de indenização por danos materiais e morais contra uma construtora, por particulares que compraram um apartamento térreo pelo atrativo de ter uma área privativa externa.

A construtora instalou nesse local a caixa de gordura para armazenamento de dejetos de todo o sistema de esgoto do edifício, o que causou transtornos com mau cheiro, infestação de insetos e manutenção periódica para limpeza.

A ação foi julgada procedente para condenar a construtora a pagar indenização pela desvalorização do imóvel, além de R$ 10 mil por danos morais.

Julgamento virtual relâmpago

A apelação foi distribuída ao relator no TJ-SP em 22 de setembro de 2020 e julgada no dia seguinte, de forma virtual e sem intimação das partes. A corte deu provimento ao recurso da construtora e afastou a condenação por danos morais.

O tribunal paulista afastou nulidade pela ausência de prejuízo pelo julgamento virtual. Relator do recurso especial, o ministro Ricardo Villas Bôas Cueva reformou essa posição e anulou o acórdão, determinando novo julgamento.

Para ele, houve violação do artigo 935 do Código de Processo Civil, prevê que entre a data da publicação da pauta e a da sessão de julgamento decorrerá, no mínimo, o prazo de cinco dias.

Prejuízo evidente

O julgamento sem a intimação das partes ainda ofende o artigo 937 do CPC, segundo o qual será dada a palavra aos advogados das partes para oferecerem sustentação oral.

“Diversamente do afirmado pela Corte de origem nos aclaratórios, não há como afastar a existência de prejuízo para os recorrentes, mormente tendo sido provido o recurso da recorrida, sem que lhes fosse oportunizada a devida sustentação oral e a entrega de memoriais”, disse.

“Cumpre assinalar que a celeridade não autoriza o afastamento de regras que garantem a observação do contraditório”, acrescentou o ministro Cueva. A votação na 3ª Turma do STJ foi unânime.

Clique aqui para ler o voto de Villas Bôas Cueva
REsp 2.136.836

O post Julgamento virtual sem intimação dos advogados é nulo, diz STJ apareceu primeiro em Consultor Jurídico.