Medida cautelar de suspensão do exercício do mandato parlamentar: o primeiro caso

No último 30 de abril, às vésperas do feriado do Dia do Trabalho, a Mesa Diretora da Câmara dos Deputados entrou com representação em desfavor do deputado Gilvan da Federal (PL-ES), por procedimento incompatível com o decoro parlamentar. Mas diante das várias representações que já tramitaram por aquela Casa Legislativa, o que isso teria de importante?

A resposta não é óbvia, mas tem um aspecto histórico: foi o primeiro caso de aplicação do artigo 15, XXX, do Regimento Interno da Câmara dos Deputados (RICD), que trata da competência da Mesa para propor medida cautelar de suspensão do exercício do mandato parlamentar.

E o motivo desse ineditismo é patente: o dispositivo foi inserido no RICD em junho do ano passado, 2024. A propósito, a esse respeito, interessa ver como se deu sua propositura e tramitação. Lembrando que, como já mencionado em diversas ocasiões nesta coluna Fábrica de Leis, impulsionar uma proposição é algo custoso politicamente falando, necessitando de muita articulação e confluência de interesses.

Em 11/6/2024, foi apresentado o Projeto de Resolução (PRC) nº 32/2024, que alterava o “Regimento Interno da Câmara dos Deputados para dispor sobre medida cautelar de suspensão do exercício do mandato parlamentar”.

Na semana anterior à apresentação do PRC, a Câmara foi palco de diferentes ocorrências. Uma delas aconteceu durante um debate acirrado na Comissão de Direitos Humanos, Minorias e Igualdade Racial (CDHM), ocasião em que a Deputada Luiza Erundina (PSOL-SP), à época com 89 anos, teve um mal-estar e chegou a ser hospitalizada. Noutro episódio, os deputados André Janones (Avante-MG) e Nikolas Ferreira (PL-MG) discutiram no Conselho de Ética e Decoro Parlamentar tendo que ser separados pela polícia legislativa, assessores e outros parlamentares. Estes e outros incidentes provocaram manifestações de lideranças de diferentes partidos demandando limites mais rígidos diante do clima de crescente hostilidade, o que teria culminado na apresentação do PRC.

Na justificação do PRC, foi consignado que o objetivo primordial seria “prevenir a ocorrência de confrontos desproporcionalmente acirrados entre parlamentares, que, em algumas ocasiões, têm culminado inclusive em embates físicos” comprometendo “o funcionamento democrático e a imagem institucional do parlamento”, a proposta buscaria, portanto, implementar mecanismos para “coibir comportamentos agressivos e garantir que as discussões […] ocorram dentro de parâmetros aceitáveis de civilidade e respeito”.

Cronologia

Na sessão do mesmo dia, 11/6/2025, tem-se uma sequência de fatos importantes: (1) foi apresentado requerimento de urgência (artigo 155, RICD), pelo deputado Doutor Luizinho (PP-RJ), do mesmo partido do então presidente, Arthur Lira (PP-AL), subscrito pelo líder do bloco União/PP/Federação PSDB-Cidadania/PDT/Avante/Solidariedade e PRD; pelo líder da federação PT-PCdoB-PV; e pelo líder do bloco MDB/PSD/Republicanos/Podemos, representando, assim, a maioria absoluta da composição da Casa; (2) o requerimento de urgência foi aprovado, retirando a tramitação do PRC da Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania (CCJC), para onde o projeto seria encaminhado, e remetendo a matéria diretamente ao Plenário; (3) o deputado Domingos Neto (PSD-CE), corregedor da Câmara, foi designado relator da matéria no Plenário; (4) foi apresentado o parecer preliminar de Plenário pelo relator.

Originalmente, o projeto autorizava a Mesa a suspender liminarmente o mandato, um grande poder para a Mesa Diretora. Neste sentido, alguns movimentos de obstrução indicam que o PRC não era unanimidade (e.g., apresentação de requerimento de retirada de pauta, pelo PL e pelo Novo; de votação nominal da retirada de pauta, pelo Novo; de votação nominal da matéria, também pelo Novo; e de cinco destaques para emendas e para votação em separado).

Após intensas negociações, no dia seguinte, 12/6/2025 o PRC nº 32/2024 foi discutido, votado e aprovado na forma de subemenda substitutiva global (quando o relator apresenta um texto único em substituição ao originalmente apresentado, refletindo o maior consenso a que se chegou após a discussão da matéria). A votação foi quase unânime, 400 votos sim, 29 não, uma abstenção, num total de 430 votos válidos. Ato contínuo, foi aprovada a redação final; apresentado o autógrafo (documento oficial que representa a versão final do projeto aprovado e que, no caso em questão, segue para promulgação); promulgado o texto na forma da Resolução nº 11/2024, publicado no Diário da Câmara dos Deputados (DCD) no dia seguinte, 13/6/2024. Ou seja, testemunhou-se uma tramitação em tempo recorde do PRC nº 32/2024.

O texto final permite à Mesa Diretora propor a suspensão por até seis meses, por medida cautelar, do mandato de deputado federal por quebra de decoro parlamentar. A Mesa tem o prazo de cinco dias úteis do conhecimento do fato para oferecer a proposta de suspensão. A decisão deverá ser deliberada pelo Conselho de Ética e Decoro Parlamentar em até três dias úteis, com prioridade sobre demais deliberações. Diferente de outras representações, essa não passa pela CCJC. Da decisão cabe recurso ao Plenário apresentado pelo deputado acusado, no caso da decisão pela suspensão; ou pela Mesa, no caso de decisão pela não suspensão (no texto inicial, havia a previsão de recurso apresentado por um décimo dos parlamentares – 52 deputados – ou líderes que representassem esse número). O Plenário aprecia o recurso na sessão imediatamente subsequente, em votação aberta, sendo necessário o quórum qualificado de maioria absoluta (257 deputados) para manutenção da suspensão. Igualmente, caso o Conselho de Ética não decida no prazo previsto, a matéria é enviada ao Plenário, que sobre ela deliberará na sessão imediatamente subsequente, com prioridade.

Pedagogia

Ainda que a decisão em última instância seja do Plenário da Casa, cumpre mencionar que a medida, mesmo após as modificações promovidas na redação original após a discussão da matéria, concentrou poderes nas mãos da Mesa (ainda que tenha excluído a possibilidade de decisão unilateral do presidente da Câmara sobre o tema, o que acontece para outras matérias de competência da Mesa).

O efeito pedagógico imediato da aprovação da Resolução nº 11/2024 pode ser percebido observando-se um breve histórico quantitativo de representações por conduta atentatória ou incompatível com o decoro parlamentar no âmbito da Câmara dos Deputados, no horizonte recente dos últimos seis anos. Em 2019, foram 21 representações. No ano de 2020, quando foi declarada a pandemia de Covid-19, a interrupção das atividades presenciais no Legislativo e, consequentemente, o início dos trabalhos por meio do Sistema Deliberativo Remoto (tratado aqui), não foi apresentada nenhuma representação. Em 2021, os números começaram a voltar a subir, com 12 representações. Em 2022, foram 27. No ano de 2023, totalizaram 29. Entretanto, no ano de 2024, foram apenas cinco representações, todas no primeiro semestre do ano. A representação contra o deputado Gilvan da Federal é a primeira após a promulgação da Resolução nº 11/2024, e isso em quase um ano!

O pedido da suspensão cautelar do mandato do deputado Gilvan da Federal se deu por supostas ofensas à ministra das Relações Institucionais, Gleisi Hoffmann, proferidas durante reunião da Comissão de Segurança Pública e Combate ao Crime Organizado (CSPCCO), na qual havia sido convocado o ministro da Justiça e Segurança Pública, Ricardo Lewandowski, realizada em 29/4/2025.

A representação foi assinada pelo presidente da Casa, Hugo Motta (Republicanos-PB), pelo segundo vice-presidente, Elmar Nascimento (União-BA); pelo primeiro secretário, Carlos Veras (PT-PE); pelo segundo secretário, Lula da Fonte (PP-PE); e pela terceira secretária, Delegada Katarina (PSD-SE). O primeiro vice-presidente, que é do mesmo partido que Gilvan da Federal, não assinou o documento.

O desfecho, conforme o novo rito prevê, foi célere. O relator no Conselho de Ética e Decoro Parlamentar, deputado Ricardo Maia (MDB-BA), inicialmente apresentou parecer favorável à suspensão por seis meses, mas após discurso em Plenário do representado, comprometendo-se a mudar de comportamento, apresentou novo parecer sugerindo a suspensão cautelar do mandato pelo período de três meses. O parecer foi aprovado no Conselho de Ética, em 6/5/2024, por 15 votos favoráveis e quatro contrários. No mesmo dia, o despacho oficializando a suspensão cautelar foi publicado. O deputado Gilvan da Federal teria manifestado que não recorreria da decisão.

E assim parece ter chegado ao fim a primeira aplicação do artigo 15, XXX, do RICD, não em sua totalidade, uma vez que não se chegou a apresentar recurso que levaria a apreciação ao Plenário, mais ainda sim, histórica.

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Regulação no comércio exterior: até onde deve ir a liberdade contratual?

Em tempos de greve da Receita Federal e seus severos reflexos sobre o comércio exterior, mais do que os tempos de despacho e a preocupação com retenções indevidas, é comum que velhos temas voltem ao debate. É o caso, por exemplo, dos altos custos relacionados a cobranças de armazenagem, demurrage e outras taxas e despesas relacionadas.

Nosso intuito em abordar essas questões não é o de trazer conceitos, tampouco é de reacender disputas sobre a abusividade de certas cobranças. O que se busca é discutir qual seria a perspectiva mais adequada para essas questões. São eles temas de direito privado e, portanto, devem se restringir ao olhar concorrencial e contratual do Direito Marítimo e Portuário? Ou se, no fundo, trata-se de questão aduaneira que, como tal, merece um maior cuidado e limitação por parte dos órgãos governamentais?

Aduaneiro, Marítimo ou Portuário?

Oportuno distinguir, de forma breve e sucinta, as principais diferenças entre esses ramos do Direito. Afinal, eles costumam ser agrupados como disciplinas congêneres no âmbito acadêmico por terem, direta ou indiretamente, o comércio exterior como pano de fundo.

Em que pese o “cenário comum” – principalmente no Brasil, em que aproximadamente 90% do total comercializado com o exterior é escoado pela via marítima [1] – existem diferenças significativas entre essas áreas e cujo desconhecimento não apenas dificulta o aprimoramento do conteúdo técnico, mas acaba também refletindo em vácuos de poder e regulação relevantes.

Partindo-se de uma visão pragmática, cabe iniciar as distinções pelo Direito Aduaneiro, foco principal desta coluna, e que é um ramo do Direito Público que se debruça sobre as regras relativas à operacionalização e regulamentação da importação e da exportação de mercadorias, principalmente sob o ponto de vista do controle e da fiscalização das fronteiras nacionais [2].

Já o Direito Marítimo trata das normas que regem as atividades marítimas, envolvendo o transporte de mercadorias e de pessoas e todas as relações jurídicas que ocorrem nos mares e oceanos e, portanto, possui foco nas relações privadas e comerciais que ocorrem neste contexto.

Por fim, o Direito Portuário disciplina as operações que ocorrem dentro dos portos, como a gestão das atividades portuárias, o trabalho realizado nessas instalações e as atribuições dos operadores portuários.

Esses dois últimos ramos têm seu surgimento e muitas de suas premissas derivadas do Direito Público, mas se tratam de disciplinas jurídicas que se desenvolvem no mundo privado e, portanto, possuem grande proximidade com questões civis e contratuais. Talvez por isso sejam comumente chamados de “primos ricos” do Direito Aduaneiro, visto que a liberdade contratual e a existência de regulamentação menos severa fazem com que as quantias envolvidas em atividades e, consequentemente, nas disputas, costumem ser consideráveis.

Autoridades envolvidas

Em termos práticos, o que se verifica é que os temas considerados como “aduaneiros” ou diretamente relacionados à operacionalização do comércio exterior costumam ser direcionados para a competência da Aduana (RFB) ou da Secex. Por sua vez, assuntos voltados à infraestrutura e logística de comércio exterior são normalmente conduzidos por outras autoridades, com destaque para a Agência Nacional de Transportes Aquaviários (Antaq).

Essa divisão, que já vem de muito tempo, possui diversas implicações. Mais do que isso: impõe pesos e medidas completamente distintas para a condução de assuntos e políticas que deveriam, em grande parte, andarem juntas e serem abordadas com um olhar comum.

Enquanto o comércio exterior do mundo aduaneiro é discutido e gerido com vistas ao aumento da transparência e de simplificações e reduções de burocracias que tornem as operações compatíveis e previsíveis independentemente do porto de entrada ou saída em que ocorram, o comércio exterior do mundo portuário e marítimo parece possuir uma filosofia distinta.

Não queremos, de maneira nenhuma, insinuar que as autoridades que gerenciam o universo marítimo e portuário não busquem transparência e previsibilidade, assim como não podemos exaltar as autoridades aduaneiras por efetivamente promoverem e aplicarem esses relevantes princípios, já que o caminho rumo ao sucesso é longo e bastante tortuoso.

Mas é fato que o Direito Aduaneiro possui um modelo de aplicação em que as regras devem ser as mesmas para todos os envolvidos, independente de onde estejam e, com isso, tem-se (ao menos em teoria) uma base de equidade em termos de direitos e deveres de cada interveniente ou operador envolvido.

Já o Portuário e Marítimo, por serem pautados no direito privado, acabam priorizando a bandeira da liberdade contratual e da autorregulação do mercado. Além de que foram sendo construídos e revisados gradativamente ao longo das décadas, à medida que o comércio exterior e às necessidades de infraestrutura e logísticas cresciam.

O resultado dessa expansão passiva, por assim dizer, foi a utilização e a coexistência de diferentes modelos, contratos e estruturas de concessão e permissão, fazendo com que as empresas privadas envolvidas na mesma atividade, mas autorizadas em momentos diversos e por contratos específicos, nem sempre tivesses as mesmas obrigações e/ou cobrassem taxas equivalentes em suas atividades.

Essa falta de uniformidade, à longo de prazo, se tornou um problema. Visto que além dos usuários não poderem contar com os mesmos recursos e funcionalidades a depender do ponto de entrada e saída a que estivessem sujeitos, o valor a ser pago pelos serviços essenciais a serem prestados também poderia variar de forma significativa.

O caso da Antaq

Por exemplo, em 2023, a Antaq apresentou resultado de estudo que visava avaliar os custos imputados a importadores certificados no Programa Operador Econômico Autorizado (OEA) e que usufruíam do chamado despacho sobre as águas. O resultado apresentado buscou comparar os preços praticados por 9 diferentes terminais, localizados em diferentes regiões, incluindo AM, BA, PR, SP, SC, RJ e PE.

O que mais chamou a atenção foi a significativa variação dos preços praticados por esses terminais quanto à prestação de serviços análogos, relativos ao desembarque, movimentação e entrega de mercadorias desembaraçadas sobre águas. Enquanto o menor preço avaliado foi o cobrado por um terminal em Manaus, com valor de R$ 1.257,00 o maior preço identificado se deu em Santos, chegando a R$ 4.137,79. Ou seja, dentre terminais e atividades comparados pelo estudo, verificou-se uma variação de 329%.

Em que pese a existência de esforços contínuos da Antaq para buscar coibir práticas abusivas e lesivas à concorrência, existindo inclusive iniciativas em parceria com o Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade), como o Memorando de Entendimentos nº 01/2021 relativo à análise de cobrança sobre Serviços de Segregação e Entrega de Cargas (SSE), é fato que prevalece neste universo regras em prol da livre concorrência e da contratualidade, fazendo com que o lucro de concessionárias e permissionárias – altamente variável e muitas vezes arbitrário – seja um fator de impacto ao custo total da importação.

Sabe-se que o tema de concessão e permissão de serviços públicos é complexo, visto que o Estado espera que os privados assumam função pública de forma muito mais eficiente do que era feito sob a gestão governamental e tragam investimentos e modernizações para o setor, ao passo que os usuários sempre exigirão que a contraprestação seja mínima e controlada.

Trata-se de uma equação delicada, mas que somente pode ser devidamente balanceada se houver, por um lado, preocupação real com os custos envolvidos e com a necessidade de que os prestadores dos serviços sejam remunerados de forma adequada (nem menos, nem mais do que o aceitável) e que os valores cobrados não sejam abusivos ou altos o suficiente para provocarem distorções sobre os preços de importação e exportação efetivamente praticados.

Como resolver?

O discurso parece ser claro, mas e a prática? Sabemos que os problemas do comércio exterior são complexos e não cabem em um mero artigo de coluna.

Dito isso, artigos como o ora publicado podem não possuir extensão e envergadura para “terminar” um tema, mas possuem, certamente, espaço para lançar ideias e provocações que possam abrir debates sérios, relevantes e possíveis.

Na coluna de 09/08/2022, escrevi sobre Onde fica o Direito Aduaneiro na discussão sobre o THC2? e defendi que Antaq, Cade e TCU esqueciam que o tema, embora enquadrado sob o véu marítimo-portuário, possuía significativos aspectos aduaneiros e, portanto, deveria ser avaliado também sob o prisma das regras das regras da OMC, em especial, do Acordo sobre a Facilitação do Comércio (Decreto nº 9.326/2018) no que se referia a proibição de que as taxas relacionadas a importação fossem arbitrárias e não guardassem relação com o custo dos serviços efetivamente prestados.

Passados quase três anos, a sugestão de que a precificação de serviços essenciais ao comércio exterior e sobre os quais não há forma efetiva de ingerência dos usuários na negociação seja balizada pelo custo do que for efetivamente prestado ainda parece válida.

Afinal, o momento atual engloba diversas situações preocupantes: (1) a greve dos auditores da RFB, que contribui para o aumento dos casos de cobrança de demurrage e taxas extras de armazenagem; (2) a existência de mais de 20 mil ações tramitando no Poder Judiciário discutindo a abusividade do modelo vigente de sobrestadia; (3)  a validação de cobranças de demurrage que superam o próprio valor da carga transportada; e (4) o fato do governo ainda defender que não existem fundamentos sólidos para a imposição, regulamentação e monitoramento dos valores, condições e práticas relativas a esses temas[3].

Alguém já se questionou por que a Antaq é convidada para eventos de comércio exterior, aduaneiros inclusive, que vem negociando participação dentro do Programa OEA-Integrado, mas que nunca ocupou assento no Comitê Nacional de Facilitação do Comércio (Confac)? Que embora diversas agências regulatórias façam parte da lista de intervenientes do comércio exterior, como Anvisa, Anatel, Ancine e ANP e que, em tal condição, sejam chamadas a cooperar com as regras e diretrizes voltadas à facilitação do comércio, da transparência e da redução dos custos de fronteiras, isso não ocorre com a Antaq?

O que isso quer dizer?

Esses questionamentos e preocupações não são uma crítica ao modelo de gestão da Antaq e de outros órgãos envolvidos em seu universo. Sabe-se o quanto a Agência trabalha, dialoga e busca construir pontes com o setor privado em prol de um melhor ambiente regulatório – além de contar com equipe técnica e atualizada. O ponto é que isso é feito de forma completamente isolada dos demais órgãos que interferem no comércio exterior e, consequentemente, sob premissas e regras que, muitas vezes, não estão alinhadas ao que o mundo aduaneiro necessita.

Se o foco de qualquer gestão regulatória, independentemente do assunto, é garantir soluções coordenadas, transparentes e voltadas ao interesse público, torna-se indispensável garantir que todos os elos da cadeia, públicos e privados, estejam alinhados e engajados em torno de princípios, estruturas e objetivos comuns.

O que, por que e para que se regula? No caso do comércio exterior, verifica-se que essas respostas estão longe de serem respondidas de forma coerente e uníssona. E, até que todos os entes envolvidos passem se comunicar e a alinhar condutas e objetivos de forma clara, avanços concretos continuarão a ser apenas promessas.


[1] De acordo com dados oficiais do Comextat, em 2024, 88% do valor em USD comercializado com o exterior foi escoado pela via marítima, ao passo que, quando o parâmetro é peso (kg), o total movido pela via marítima sobre para 98% do total do comércio exterior.

[2] Para discussões mais profundas e versem sobre autonomia do Direito Aduaneiro, recomenda-se as seguintes obras: BASALDÚA, Ricardo. Introduccion al Derecho Aduanero. Buenos Aires: Abeledo Perrot, 2008; BERR, Claude. Introduction au Droit Douanier. Paris: Economica, 2008; PONCE, Andrés. Derecho Aduanero Mexicano. Ciudad de Mexico: ISEF, 2002; e COTTER, Juan. Derecho Aduanero y Comercio Internacional. Buenos Aires: IARA, 2018.

[3] A exemplo do que restou decidido no Acórdão ANTAQ n. 120/2023.

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Câmara dos Deputados instala grupo de trabalho para sistematizar leis federais

 

A Câmara dos Deputados instala nesta terça-feira (20) o grupo de trabalho de consolidação das leis. Na ocasião, também será apresentado o plano de trabalho do colegiado, que é coordenado pelo deputado Weliton Prado (Solidariedade-MG) e tem como relator o deputado Duarte Jr. (PSB-MA).

A reunião ocorrerá às 13h40, no plenário 15.

A Lei Complementar 95/98 determina que a consolidação das leis consistirá na integração de todas as normas pertinentes a determinado tema em um único diploma legal. A intenção é suprimir dispositivos conflitantes, repetitivos e desatualizados.

O grupo de trabalho da Câmara vai congregar a legislação federal para oferecer um sistema normativo mais acessível e integrado.

O novo colegiado terá 21 integrantes titulares.

Fonte: Câmara dos Deputados

O aumento do número de deputados e a governabilidade responsável

Se aprovada pelo Senado, proposta pode corroer ainda mais a racionalidade do processo legislativo do país

Elaborado por parlamentares preocupados apenas e tão somente com suas bases eleitorais, portanto sem nenhum compromisso com o futuro econômico e social do país, o aumento de 513 para 531 vagas na Câmara dos Deputados poderá, caso venha a ser aprovado pelo Senado, corroer ainda mais a racionalidade do processo legislativo do país, multiplicando os problemas técnicos e os embates políticos na formulação de políticas públicas.

E isso ocorrerá especialmente no âmbito poder central, pois as pressões em favor da multiplicação dos diferentes tipos de emendas parlamentares irão aumentar, limitando a discricionariedade do governo federal.

Pela concepção original do regime democrático federalista e bicameralista, que foi adotado primeiramente pelos Estados Unidos no final do século 18, a distribuição dos assentos na Câmara dos Deputados é definida com base no número de eleitores de cada estado.

Por isso, nesse país a maioria dos assentos é ocupada pelos estados mais geograficamente maiores e mais populosos, como Nova York, Texas e Califórnia. Para compensar essa desigualdade, o Senado exerce um papel equilibrador, evitando que os estados pequenos e com menor número de eleitores fiquem sem condição de atender suas demandas.

Com o objetivo de preservar os interesses da minoria frente a uma eventual voracidade dos parlamentares dos estados mais populosos, assegurando desse modo um certo equilíbrio federativo, o Senado americano representa os estados. Independentemente de seu tamanho geográfico e do tamanho de suas respectivas populações, todos eles têm dois senadores.

Com isso, o estado do Maine, com 1,4 milhão de habitantes e uma área geográfica de 91.633 km² tem nessa casa legislativa a mesma força política do estado da Califórnia, que conta com quase 40 milhões de habitantes vivendo numa área geográfica de 423.970 mil km².

Ainda que tenha se inspirado no modelo federalista e bicameralista americano, por várias razões o Brasil o desvirtuou com a passagem do tempo. Por razões de espaço, chamo a atenção de apenas um deles.

Trata-se de um fator de manipulação dos resultados eleitorais que ficaram evidenciados durante a ditadura militar, especialmente entre 1975 e 1977. Consciente de que na eleição de 1978 o MDB – então partido de oposição – ganharia as eleições, permitindo a ascensão de um civil ao poder e devolvendo os militares aos quartéis, o presidente da República, general Ernesto Geisel, promoveu a fusão dos estados do Rio de Janeiro e da Guanabara, sob alegação de que eles formavam uma só unidade socioeconômica. Depois, dividiu Mato Grosso, capital Cuiabá, criando o estado de Mato Grosso do Sul, capital Campo Grande.

Como no Sudeste o MDB tinha enorme peso eleitoral, a fusão da Guanabara com o Rio de Janeiro retirou três vagas no Senado e reduziu significativamente o número de deputados da região na Câmara. Inversamente, como no Centro-Oeste a Arena predominava, a criação do estado de Mato Grosso do Sul deu-lhe mais três vagas no Senado e mais uma bancada na Câmara. Com isso, a ditadura se manteve, “elegendo” por maioria congressual, em outubro de 1978, o general João Baptista Figueiredo.

Mesmo com a redemocratização do país essa estratégia voltou a ser posta em prática. Na Constituinte, por exemplo, parlamentares das regiões Centro-Oeste e Norte – as menos populosas do país – dela se valeram para aumentar seu poder no Congresso. Criaram o estado do Tocantins, com base numa área antes pertencente a Goiás. Converteram os territórios de Roraima e do Amapá em estados. Independentemente de suas respectivas populações serem diminutas, deram-lhe o direito de contar na Câmara com um mínimo de oito vagas. Ao mesmo tempo, aprovaram um teto de 70 deputados para os estados mais populosos, o que prejudicou principalmente São Paulo.

O agravamento da distância entre a super-representação das regiões Nordeste, Norte e Centro-Oeste e a sub-representação das regiões Sudeste e Sul foi uma das consequências dessas mudanças. Esse problema agora vai aumentar ainda mais pois, das 18 novas vagas previstas, 12 se destinam às regiões já sobrerrepresentadas.

Outro problema está no fato de que, além do aumento de R$ 64,6 milhões nos gastos da Câmara, os ocupantes das novas vagas quase certamente ampliarão as pressões para transferir – sem qualquer critério técnico – recursos da União para suas bases.

Para se ter ideia desse problema, entre 2020 e 2024, Roraima, que tem uma população de cerca de 717 mil habitantes, recebeu, em média, R$ 1.900 por habitante em emendas parlamentares. Já São Paulo, que tem quase 46 milhões de habitantes, recebeu, em média, somente R$ 38 por habitante, em emendas parlamentares.

Distorções como essas se tornam ainda mais preocupantes quando os centros de pesquisa advertem que o valor das emendas parlamentares aprovado para 2025, no total de R$ 50,4 bilhões, já é superior à somatória dos recursos livres para investimento direto de 30 dos 39 ministérios do governo federal. E chegam às raias do absurdo, uma vez que, por meio de emendas parlamentares e de bancada, os parlamentares controlam diretamente os gastos em suas bases eleitorais, o que reduz a dependência dos parlamentares com relação à Presidência da República.

Em sua defesa, muitas autoridades municipais e estaduais alegam que a Constituição aumentou os gastos das prefeituras e estados com direitos sociais sem criar novas fontes de recursos para que os entes subnacionais pudessem cumprir as novas obrigações.

O problema, contudo, é que não se pode despir um santo para vestir outro. Dito de outro modo: não se pode exaurir recursos federais, destinados a toda sociedade brasileira em seu conjunto, para repassá-los – sem transparência e rastreabilidade – a municípios e estados que se limitam a gastá-los mais com interesses paroquiais, eleitoreiros e cartoriais do que com políticas estruturantes.

Quanto maior é a manutenção de estratégias de feudalização de poderes locais de porte pequeno e médio em pleno século 21, sob a justificativa provinciana e inverídica de muitos prefeitos de que eles conhecem o país melhor do que os tecnocratas de Brasília, mais surgem indagações que precisam de respostas urgentes num contexto econômico como o atual, que exige mais foco e qualidade nos gastos públicos, priorização na formação de capital humano, reorganização de despesas e negociações com os três níveis de poder para a formulação, implementação de políticas de médio e longo prazo.

Quais as noções que prefeitos e governadores têm das obrigações do Estado? A que estratégia as diferentes autoridades governamentais podem recorrer para assegurar mais qualidade na formulação de políticas públicas e na gestão de recursos escassos?

Quando parlamentares fisiológicos e prefeitos desprovidos de maior formação técnica vão compreender que, mais do que tentar aumentar os valores de suas emendas para desperdiçá-los com shows sertanejos e campinhos de futebol, é preciso diferenciar Estado e governo?

Quando, em vez de sobrecarregar Tribunais de Contas e o Ministério Público, irão agir com vistas à criação de condições mínimas para uma governabilidade fundada em competência técnica, impessoalidade, planejamento, definição de metas e uma coordenação eficiente capaz de recuperar a noção de poder público?

Fonte: Jota

Comprador de imóvel em leilão não deve pagar dívida tributária anterior

O comprador de um imóvel em leilão não é responsável por dívida tributária anterior ao arremate do bem.

Com esse entendimento, a Vara Única de Porangaba (SP) declarou inexigíveis os impostos referentes aos exercícios anteriores ao arremate de um imóvel em hasta pública. A decisão atendeu ao pedido dos compradores em um mandado de segurança.

Segundo o processo, os autores arremataram o bem em fevereiro de 2022. Embora a carta de alienação tenha sido expedida no mesmo dia, foi registrada na matrícula em setembro daquele ano.

Os compradores relatam que pediram a guia para o pagamento dos tributos devidos a partir da data da arrematação. A prefeitura informou, porém, que só emitiria uma guia com o valor total dos débitos, incluindo os exercícios de 2017 a 2022.

A administração municipal invocou o artigo 130 do Código Tributário Nacional (Lei 5.172 /1966), que prevê a sub-rogação de créditos tributários relativos a impostos sobre a propriedade do imóvel ao comprador.

Cobrança indevida

Em sua decisão, o juiz Mário Henrique Gebran Schirmer argumentou que o parágrafo único do próprio artigo 130 do CTN ampara o pedido dos compradores. O dispositivo afirma que “no caso de arrematação em hasta pública, a sub-rogação ocorre sobre o respectivo preço”, o que isenta o adquirente de responsabilidade por débitos preexistentes.

Conforme lembrou o julgador, o entendimento foi consolidado pelo Superior Tribunal de Justiça no julgamento do Tema 1.134, que fixou a seguinte tese: “Diante do disposto no art. 130, parágrafo único, do Código Tributário Nacional, é inválida a previsão em edital de leilão atribuindo responsabilidade ao arrematante pelos débitos tributários que já incidiam sobre o imóvel na data de sua alienação”.

“Portanto, assiste razão ao impetrante, na medida em que o adquirente não pode ser responsabilizado pelo pagamento dos débitos tributários relativos a fatos imponíveis ocorridos em momento anterior à realização da hasta pública”, escreveu o julgador.

Os advogados Paulo Roberto Athie Piccelli e Alessandra Kawamura, do escritório Paulo Piccelli e Advogados Associados, representaram os compradores do imóvel.

Clique aqui para ler a decisão
Processo 1000971-76.2024.8.26.0470

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TRF3 concede isenção do IPI para carro novo adquirido por beneficiário do BPC

Colegiado considerou que regulação não impede acumulo do benefício para pessoas com deficiência com a isenção tributária para carros

O Tribunal Regional Federal da 3ª Região (TRF3) concedeu isenção do Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI) para aquisição de carro novo por pessoa com deficiência que recebe o Benefício de Prestação Continuada (BPC). Na decisão, a 4ª Turma considerou que a legislação veda o acúmulo apenas dos benefícios previdenciários, não impedindo a concessão de benefício fiscal para PCDs, prevista na lei do IPI.

A ação foi proposta por um homem com Transtorno do Espectro Autista (TEA) e beneficiário do BPC que pedia o acesso à isenção do IPI, negada por decisão administrativa da Receita Federal. Segundo os autos, o homem, apresentado como “incapaz para os atos da vida civil”, já teria requisitado o acesso ao benefício fiscal em outras compras de carros.

Em primeiro grau, a 1ª Vara Federal de Jaú negou o direito à isenção ao afirmar que, por ter feito sucessivas aquisições de carros novos em valores superiores a R$ 40 mil, o beneficiário demonstrou riqueza incompatível com um titular do BPC. A sentença considerou que, por receber o benefício para pessoas em situação de miserabilidade econômica e social, o homem não teria renda para cumprir o requisito de acesso à isenção do IPI, que exige a comprovação de disponibilidade patrimonial compatível com o valor do veículo.

“As sucessivas aquisições de automóveis novos em valores consideráveis demonstram signos presuntivos de riqueza absolutamente incompatíveis com um titular de benefício assistencial de prestação continuada, cuja finalidade é subtrair da miséria pessoas com deficiência ou idosas, a partir de 65 anos de idade”, afirmou o juiz federal Samuel de Castro Barbosa Melo.

Ao revisar o caso, a desembargadora federal Leila Paiva, relatora da ação, considerou que não cabe à Receita Federal fazer deduções sobre a situação econômica familiar em casos de requerimento de isenção do IPI. Para ela, a análise deve verificar somente se o contribuinte é portador de algum tipo de deficiência e se comprovou a disponibilidade financeira compatível com o valor do veículo.

“Eventual capacidade econômica do requerente ensejaria tão somente a revisão do benefício assistencial pela autoridade competente, não sendo motivo para negativa de isenção do IPI para aquisição de veículo automotor”, destacou.

No recurso, o beneficiário sustenta que não forjou a sua situação financeira para conseguir o BPC e que a compra dos veículos decorre da venda de imóvel pelo seu pai. Segundo a ação, por ser “incapaz para os atos da vida civil”, o carro seria utilizado por sua mãe com a finalidade de facilitar a locomoção.

O colegiado deu provimento ao recurso do beneficiário, entendendo que o acesso ao BPC não restringe a concessão de isenção tributária do IPI para aquisição de veículo automotor.

O caso tramita na ação 5000157-44.2020.4.03.6117

Fonte: Jota

Declaração Universal dos Direitos da Humanidade: mudanças climáticas e chamado mudança

Homem passando diante de termômetro de rua indicando temperatura de 40 graus

Paradoxo na civilização: o estado de emergência climática

O mundo atual foi tomado pela mobilização contínua dos termos alarme, urgência, exceção, emergência. Este conjunto de termos é seguido por um outro conjunto de termos: perigo, risco, extremo, epidemia, calamidade, enchente, catástrofe. Aparentemente, está-se diante de um grupo de palavras em circulação no discurso cotidiano. Mas, e o que vem a seguir? Que consequências delas se pode extrair?

Ora, um outro conjunto de palavras: fome, mortes, migrações forçadas, refugiados climáticos. Enfim, diante deste dicionário de termos (da crise climática) e de uma gramática do tempo (da história do presente), forma-se a linguagem e a equação dos de nossos dias. Está-se diante de um conjunto de fatores que esgotam as possibilidades de saída, diante do ponto-de-não-retorno em que nos encontramos. Isto já deveria ter sido suficiente para criar o alarme e, para além dele, tomarem-se as medidas necessárias. O tema tem chamado a atenção, pelas situações extremas enfrentadas pela população e, em artigo recente, o filósofo Vladimir Safatle defendeu a ideia de se decretar um Estado de emergência climática [1].

A ameaça que surge no horizonte (e, não se trata mais de um horizonte distante, mas do horizonte do agora) tem a característica de fazer soar a sirene, na medida em que torna a exceção (catástrofe como acontecimento que escapa ao ordinário) algo duradouro (permanente, constante) [2] e, exatamente por isso, desastroso à capacidade humana de reorganização. Aliás, a qualidade dos eventos excepcionais é exatamente esta, qual seja, o efeito de surpresa provocado pelo caráter não controlado, não previsível e de consequências arriscadas. De certa forma, as “trombetas escatológicas” já soaram e a humanidade não escutou, tendo-se passado a época dos paliativos e medidas de longo prazo. A questão já está posta para o presente (e nem concerne mais, apenas, às futuras gerações).

É por isso que o etnólogo francês Bruno Latour, em sua obra Diante de Gaia, nos convoca a aprender a ouvir, pois o apelo não é desmedido e nem deve ser em vão [3]. O fato é que, debruçados sobre o tempo presente, deveríamos reconhecer que algo deu errado em nossa concepção “civilizatória“. Nada disso é novidade, pois o ambientalismo já vem chamando a atenção para estes riscos desde os anos 1970. A invocação constante do termo “Antropoceno” designa um conjunto de impactos humanos sobre o planeta que não devem ser negligenciados para uma análise mais detida da questão [4]. Em poucas palavras, a transição da ‘civilização do carbono’ a uma ‘civilização de economia verde’ depende de uma severa reversão do estado avançado em que se encontra a degradação ambiental em todo o mundo.

Esgotamento da natureza e os riscos à humanidade

A questão chama a atenção para o papel da reflexão filosófica em tempos de eventos extremos. A equação arriscada do presente aconselha a uma revisão crítica, profunda e consciente — para a qual, através da ideia de sustentabilidade, o filósofo Leonardo Boff já vem chamando há tempos [5] — de qual é, e de qual tem sido, a nossa relação com a natureza, de qual lugar lhe destinamos, de como a abordamos e de que forma temos retribuído à generosidade com a qual ela nos abrigou durante séculos. Se a tudo que contorna o homem se deve chamar (simplesmente) de coisa, então, tudo o que circunda o homem foi tornado (à imagem e semelhança do mercado) objeto, e é exatamente esta a visão de mundo a ser alterada. Impõe-se pensar que humanos e não-humanos formam uma unidade de vida, onde se um sofre, os demais também sofrem [6].

Mudanças climáticas e o chamado à mudança

As mudanças climáticas vieram para ficar e, com seus impactos, elas alteram tudo. Elas são capazes de colapsar a ordem estabelecida. De fato, não é mais possível continuar a insistir no mesmo modelo. A lógica continuísta do sistema econômico insiste num modelo falido e desastroso, na medida em que exploratório e predatório. Os limites planetários já foram rompidos, e, agora, urge reconhecer que a árdua tarefa de reparação, proteção e cuidado demandará esforços significativos para produzir efeitos concretos (de curto, médio e longo prazo).

Assim, as mudanças climáticas contêm em si uma mensagem, qual seja, o chamado à mudança. O chamado à mudança envolve: 1) mudança de consciência; 2) mudança de concepção; 3) mudança de atitude; 4) mudança de políticas; v.) mudanças econômicas. Nestes termos, a mudança hoje não é uma questão de posição de mundo, ideologia política, ou ainda, de opção moral. Antes, ela deve ser capaz de conclamar a todo(a)s por algo de interesse comum. Sem mudança não há futuro possível! A proteção da natureza é hoje a (própria) proteção do homem, na forma da proteção às presentes gerações e, também, às futuras gerações [7].

Palavra de ordem do momento: desaquecimento ou barbárie

imperativo categórico kantiano de nosso tempo não é outro, senão: “Age de modo a preservar o meio ambiente para garantir a sobrevida planetária da humanidade!”. Trata-se de um imperativo que relaciona o eu ao outro, inequivocamente. É isto, ou barbárie. Mais ainda, ao acompanhar o pensamento da filósofa francesa Corine Pelluchon, é para dizer que a palavra de ordem destes tempos é: “Reparemos o mundo!” [8].

Isto significa que não é necessário aguardar o retorno a um estado de natureza hobbesiano — o que implicaria a guerra de todos contra todos (homo homini lupus) — para ter consciente que diante de recursos escassos e condições limítrofes de sobrevivência, a guerra generalizada seria o tônus da coexistência planetária.

A escassez de alimentos, os prejuízos na agricultura, o desaparecimento de espécies e a perda da subsistência para comunidades tradicionais implicam num risco exasperado para a humanidade. Sem nenhum exagero, os dados da Acnur apontam que dos 120 milhões de deslocados forçados do mundo, ¾ são de pessoas que vivem em países atingidos por fortes consequências decorrentes das mudanças climáticas [9].

Ações globais, esforços concertados, mudanças estruturais e políticas públicas são necessárias, devem estar integradas e são de implementação imediata, para que se possa (ao menos) minorar os efeitos daquilo que já está em curso no mundo. De toda forma, torna-se urgente que um paradigma normativo seja votado pela ONU para representar o locus simbólico desta nova fronteira de luta pelo direito e, também, para apontar no sentido de um consenso global sobrea temática, manifestação de uma baliza normativa comum a todos os povos.

Teor normativo da Declaração e a economia verde

Atualmente, o paradigma normativo que pode servir de baliza normativa comum é a Declaração Universal dos Direitos da Humanidade (Déclaration Universelle des Droits de l´Humanité – Paris, 2015). No dia 13 de maio de 2025 (Genebra – Palácio das Nações Unidas), celebrou-se a data em que a Declaração completou 10 anos de existência (2015-2025), tendo sido confeccionada por ocasião da COP 2015, realizada em Paris (França).

O evento celebrativo tem sentido ambíguo, ao menos do ponto de vista jurídico. E isso porque, de um lado, enaltece a sua existência como intenção normativa, mas, de outro lado, cria um ambiente de pressão por sua adoção pela ONU, pois passados 10 anos, luta-se (ainda) por sua transformação num documento que confere complementação e atualidade à Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948), agora sob os desafios diretos das mudanças climáticas.

Em sua tessitura enunciativa, a Declaração Universal dos Direitos da Humanidade está composta por quatro princípios, seis direitos e cinco deveres. Ela inaugura uma visão integrativa entre humanos e não-humanos, em seu artigo 5º [10]. A sua proposta geral está voltada para o estímulo a uma economia verde, de baixo carbono e que valorize a preservação ambiental, o replantio e a conservação dos ecossistemas da biosfera, conectando os interesses das presentes e futuras gerações, bem como as diversas formas de vida que coexistem no planeta. Em verdade, ela é um convite à renovação da esperança em torno da preservação da vida e da integração das diversas formas de vida num único espírito de fraternidade universal. O nosso dever primeiro é o de confirmar a sua importância e suportar a sua aprovação como sendo o documento jurídico símbolo de nossa era.


Bibliografia

ACNUR. Sem escapatória: na linha de frente das mudanças climáticas, conflitos e deslocamento forçado. Novembro, 2024. Disponível em https://www.acnur.org/br/media/sem-escapatoria-na-linha-de-frente-das-mudancas-climaticas-conflitos-e-deslocamento-forcado. Consultado em 28.04.2025.

AGAMBEN, Giorgio. Estado de exceção. Tradução de Iraci D. Poleti. São Paulo: Boitempo, 2004.

ANGUS, Ian. Enfrentando o antropoceno: capitalismo fóssil e a crise do sistema terrestre. Trad. Glenda Vincenzi e Pedro Davoglio. São Paulo: Boitempo, 2023.

BOFF, Leonardo. Sustentabilidade. Petrópolis: Vozes, 2012.

COOKE, Maeve, Reenvisioning freedom : human agency in times of ecological disaster, in Constellations, London, Sage, 30, 2023, p. 119-127.

GORDILHO, Heron José de Santana. Direito ambiental pós-moderno. Curitiba: Juruá, 2009.

KRENAK, Ailton, Ecologia política, in Ethnoscientia, v. 3, n. 2, 2018, ps. 01-02. Disponível em https://periodicos.ufpa.br/index.php/ethnoscientia/article/viewFile/10225/Krenak%202018. Acesso em 01.04.2025.

LATOUR, Bruno. Diante de Gaia: oito conferências sobre a natureza no Antropoceno. Trad. Maryalua Meyer. São Paulo: UBU, 2020.

PELLUCHON, Corine. Reparemos o mundo: humanos, animais, natureza. Trad. Felipe Rodolfo de Carvalho. Porto Alegre: Editora Zouk, 2024.

SAFATLE, Vladimir. Decretar o estado de emergência climática, in Folha de São Paulo, Tendências e Debates, 01 de fevereiro de 2025. Disponível em https://www1.folha.uol.com.br/opiniao/2025/02/decretar-o-estado-de-emergencia-climatica.shtml. Acesso em 27/03/2025.


[1] Safatle, Decretar o estado de emergência climática, in Folha de São Paulo, Tendências e Debates, 01.02.2025.

[2] Cf. Agamben, Estado de exceção, 2004, p. 19.

[3] “As advertências de Cassandra só serão levadas em conta se dirigidas a pessoas que têm ouvido para as trombetas escatológicas” (Latour, Diante de Gaia: oito conferências sobre a natureza no Antropoceno, 2020, p. 248).

[4] A respeito, consulte-se Angus, Enfrentando o antropoceno: capitalismo fóssil e a crise do sistema terrestre, 2023.

[5] “Ela é fruto de um processo de educação pela qual o ser humano redefine o feixe de relações que entretém com o universo, com a Terra, com a natureza, com a sociedade e consigo mesmo dentro dos critérios assinalados de equilíbrio ecológico…” (Boff, Sustentabilidade, 2012, p. 149).

[6] “Da mesma forma, a ecologia, a justiça social e a causa animal estão ligadas, porque elas pressupõem igualmente refletir sobre os limites planetários e sobre o lugar que conferimos, no seio da nossa existência, aos outros, humanos e não humanos” (Pelluchon, Reparemos o mundo: humanos, animais, natureza, 2024, p. 39).

[7] Cf. Gordilho, Direito ambiental pós-moderno, 2009, p. 85 e seguintes.

[8] “Pois a hora da reparação é aquela do evitamento do pior e da superação do caos” (Pelluchon, Reparemos o mundo: humanos, animais, natureza, 2024, p. 20).

[9] A este respeito, consulte-se o Relatório da Acnur. Sem escapatória: na linha de frente das mudanças climáticas, conflitos e deslocamento forçado. Novembro, 2024.

[10] Art. 5º: “L’humanité, comme l’ensemble des espèces vivantes, a droit de vivre dans un environnement sain et écologiquement soutenable”; “A humanidade e todas as espécies vivas têm o direito de viver num ambiente saudável e ecologicamente sustentável”.

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Projeto aumenta pena para crime de estelionato cometido contra maior de 60 anos

O Projeto de Lei 461/25 reduz de 70 para 60 anos a idade a partir da qual se aplica o acréscimo de pena de 1/3 ao dobro quando o crime de estelionato for cometido contra idoso ou vulnerável.

Em análise na Câmara dos Deputados, o texto foi apresentado pela deputada Ely Santos (Republicanos-SP) e altera o Código Penal.

“Atualmente, o Código Penal estabelece essa proteção apenas para pessoas com 70 anos ou mais, mas a legislação brasileira já reconhece como idoso aquele que possui 60 anos ou mais, conforme o Estatuto do Idoso”, afirma a deputada.

“Considerando que pessoas a partir dos 60 anos frequentemente são mais vulneráveis a fraudes e golpes financeiros, é imprescindível adequar a legislação penal para garantir maior proteção a essa parcela da população”, acrescenta Ely Santos. 

Fonte: Câmara dos Deputados

Sob o CPC/1973, honorários só podem ficar abaixo de 1% do valor da causa se houver justificativa específica

Com base no artigo 20, parágrafo 4º, do Código de Processo Civil (CPC) de 1973, a fixação de honorários advocatícios em patamar inferior a 1% do valor da causa é considerada irrisória, salvo justificativa específica que demonstre a adequação da verba de sucumbência.

Esse entendimento levou a Corte Especial do Superior Tribunal de Justiça (STJ) a reformar decisão da Primeira Turma que fixou honorários em valor abaixo do mínimo legal. Para a Corte Especial, a afirmação de que o percentual de 1% seria exorbitante no caso não foi fundamentada adequadamente.

Segundo o processo, o Tribunal Regional Federal da 1ª Região (TRF1) arbitrou os honorários sucumbenciais em R$ 10 mil, numa causa de R$ 240 milhões em 2015. Houve recurso ao STJ, cuja Primeira Turma aumentou o valor para R$ 200 mil.

Nos embargos de divergência submetidos à Corte Especial, foram indicados como paradigmas acórdãos que consideraram irrisória a fixação de honorários abaixo de 1%.

Jurisprudência presume que menos de 1% é valor irrisório

O relator dos embargos de divergência, ministro Sebastião Reis Júnior, destacou o fato de que, em todos os julgados analisados no caso, o arbitramento de honorários advocatícios foi discutido tendo como parâmetro o artigo 20, parágrafo 4º, do CPC de 1973.

Ele apontou que, tanto no acórdão da Primeira Turma quanto nos dois paradigmas apresentados pela parte embargante, o impedimento da Súmula 7 do STJ foi afastado diante do reconhecimento de que os honorários advocatícios haviam sido fixados em patamares irrisórios pelos tribunais de origem.

“Não obstante ser possível, diante das circunstâncias fáticas do caso, arbitrar equitativamente honorários advocatícios abaixo de 1% do valor da causa, faz-se necessária justificativa apta a superar a presunção firmada por esta corte”, disse.

Na hipótese em julgamento, o ministro observou que o acórdão embargado não fez nenhuma consideração quanto ao trabalho desenvolvido pelo advogado, nada dizendo sobre a natureza ou importância da causa, o tempo gasto, o lugar da prestação do serviço ou o grau de zelo exigido do profissional. A decisão – apontou – limitou-se a afirmar que o percentual de 1% sobre o valor da causa representaria uma condenação exorbitante em honorários e transbordaria os parâmetros firmados pelo STJ.

Na avaliação do relator, não há razão concreta para justificar essa afirmativa, e por isso deve prevalecer o entendimento de que são presumidamente irrisórios os honorários fixados abaixo de 1% do valor da causa.

Leia o acórdão no EREsp 1.652.847.

Fonte: STJ

STJ vai fixar tese sobre citação por app de mensagens ou redes sociais em ações civis

A Corte Especial do Superior Tribunal de Justiça vai definir tese vinculante sobre a validade da citação em ações cíveis por meio de aplicativo de mensagens ou de redes sociais.

O colegiado afetou dois recursos especiais ao rito dos repetitivos, sob relatoria do ministro Sebastião Reis Júnior. A previsão regimental é de que o julgamento seja feito em até um ano.

O tema não é novo, mas foi pouco explorado na jurisprudência do STJ. Até hoje, só foi decidido colegiadamente três vezes — duas delas pela 3ª Turma, que julga temas de Direito Privado.

Por esse motivo, os ministros Ricardo Villas Bôas Cueva e Raul Araújo se opuseram à afetação e ficaram vencidos. Para eles, seria necessário mais acórdãos para amadurecimento do debate.

O ministro Sebastião Reis Júnior citou dados da Comissão Gestora de Precedentes, que identificou 76 decisões monocráticas sobre o tema.

“No contexto apresentado, pode-se ter como madura a matéria submetida ao rito do recurso especial repetitivo, circunstância que possibilita a formação de um precedente judicial dotado de segurança jurídica”, disse.

Citação por WhatsApp

Para a 3ª Turma do STJ, a citação por WhatsApp é nula, mas pode ser validada se cumprir seu papel de dar plena e inequívoca ciência ao destinatário sobre a ação judicial da qual é alvo.

Isso implica que a citação seja feita por meio de conteúdo límpido e inteligível, de modo a não suscitar dúvidas no citado.

Como mostrou a revista eletrônica Consultor Jurídico, essa estratégia para citação por vezes causa mais problemas do que soluções, por criar insegurança jurídica e impulsionar nulidades.

De acordo com o Código de Processo Civil, a citação pode ser feita pelo correio, por meio de carta precatória ou rogatória, por oficial de Justiça, em cartório judicial ou por publicação de edital (quando o paradeiro do citando é desconhecido).

Em 2015, foi acoplada ao Código de Processo Civil a hipótese de citação por meio eletrônico (e-mail), mas não existe obrigatoriedade e há uma série de regulamentações que têm de ser cumpridas.

Sinal dos tempos

Fato é que o WhatsApp e aplicativos análogos têm sido cada vez mais incorporados nos atos judiciais — talvez nenhum tão relevante quanto a citação.

O Conselho Nacional de Justiça já autoriza que a intimação seja feita dessa forma — o informe de que houve um novo ou ato em um processo já conhecido e em andamento.

Também têm sido admitidos diversos tipos de notificação, como a feita ao devedor, desde que se comprove o envio e entrega da mensagem — posição recentemente unificada pelo STJ.

A Corte Especial ainda decidiu não suspender os processos ou recursos especiais que tratem sobre o tema enquanto aguarda o julgamento e definição da tese.

Clique aqui para ler o acórdão de afetação
REsp 2.160.946
REsp 2.161.438

O post STJ vai fixar tese sobre citação por app de mensagens ou redes sociais em ações civis apareceu primeiro em Consultor Jurídico.