Um milhão de habeas corpus no STJ: mais ou menos justiça?

O instrumento jurídico mais ágil para preservar o direito à liberdade, quando utilizado de forma desvirtuada – às vezes totalmente abusiva –, acaba por prejudicar a própria prestação de justiça a quem precisa.



Ao longo do dia 12 de dezembro de 2024, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) recebeu 625 habeas corpus – um número tão elevado quanto comum na rotina da corte –, mas o conteúdo de um deles chamou atenção: trazia o pedido de prisão do presidente da Rússia, Vladimir Putin, sob o argumento de que a medida seria necessária para cumprir decisão emitida pelo Tribunal Penal Internacional.

Classificado pelo presidente da corte, ministro Herman Benjamin, como “inusitado“, o caso é curioso não apenas pelo personagem em questão, mas pela contradição entre o pedido e a natureza do habeas corpus – instituto criado para assegurar a liberdade da pessoa, não para restringi-la.

Ainda assim, a petição, como todas que chegam à Justiça, precisou ser analisada e decidida – não apenas de forma monocrática, mas também em colegiado e pela Vice-Presidência do STJ, após sucessivos recursos internos –, juntando-se aos mais de um milhão de habeas corpus recebidos pelo tribunal em sua história – marca atingida em 30 de abril deste ano.

Em uma era marcada pelo avanço da litigância em larga escala, o habeas corpus ocupa lugar central no cotidiano do STJ. Concebido para ser acionado diante de ameaça ou coação ilegal ao direito de ir e vir, tornou-se, ao longo dos anos, uma das ações mais manejadas na Justiça brasileira, revelando não apenas o alcance democrático do instituto, mas também o uso distorcido que dele tem sido feito.

Por trás da impressionante quantidade de habeas corpus impetrados no STJ, emergem questões como as fragilidades do sistema recursal, as dificuldades estruturais das cortes sobrecarregadas e a defasagem entre legislação e jurisprudência.

As consequências vão muito além do atraso na tramitação dos processos. O excesso de habeas corpus, especialmente nos colegiados de direito penal, tem prejudicado o cumprimento da missão mais importante do STJ: uniformizar a aplicação das leis por meio do julgamento do recurso especial.

Impetrações sem suporte legal mínimo justificam a aplicação de multas

Absurdos como o requerimento de prisão do presidente russo não são raros. No plantão judiciário de 20 de dezembro de 2024 a 31 de janeiro deste ano, foram protocolados no STJ habeas corpus para impedir a cantora Cláudia Leitte de participar de uma audiência pública e invalidar um pregão eletrônico do Tribunal Superior do Trabalho para aquisição de itens utilizados em eventos.

Após analisar uma série de habeas corpus de um mesmo impetrante, o presidente do STJ aplicou multa de R$ 6 mil pela reiteração de pedidos sem qualquer base constitucional ou legal. O comportamento – que, segundo afirmou Herman Benjamin no julgamento do HC 980.750, configura ato atentatório à dignidade da Justiça e litigância ímproba – foi punido com base no artigo 77, II e IV, e parágrafos 2º ao 5º, do Código de Processo Civil (CPC), entre outros dispositivos legais.

Em 2024, muitas situações semelhantes foram identificadas nos mais de 89 mil habeas corpus analisados apenas pela Terceira Seção – órgão do STJ que julga os casos da área criminal.

Características do habeas corpus o tornam um instrumento atrativo

A lista de habeas corpus manifestamente incabíveis, com temas que passam longe de qualquer violação ao direito de locomoção, é extensa e variada. A corte já recebeu, por exemplo, um pedido de guardas municipais para obter porte de arma. Em outro caso, o impetrante pretendia uma espécie de “licença para beber e dirigir”: ele queria um habeas corpus preventivo para não se submeter ao exame de bafômetro.

Houve ainda o habeas corpus manejado contra o Tribunal de Justiça do Piauí para questionar a substituição do peticionamento em papel pelo peticionamento eletrônico. Na ocasião, a ministra Laurita Vaz (aposentada), relatora, definiu a pretensão como “descabida” e afirmou que demandas como aquela só contribuíam para o abarrotamento dos tribunais.

A preocupação manifestada por Laurita Vaz e pelo presidente do STJ se confirma em números. O tribunal demorou 30 anos para atingir a marca de 500 mil habeas corpus, mas levou apenas seis anos para dobrar o quantitativo.

O cenário da Terceira Seção ilustra o problema. Segundo o ministro Ribeiro Dantas, que presidiu o colegiado de março de 2023 a fevereiro de 2025 e é o relator do HC 1.000.000, os habeas corpus correspondem a quase 70% dos casos analisados nos órgãos julgadores de direito penal. “Isso desfigura, de certa maneira, o que se espera da jurisdição do STJ em matéria criminal”, avalia o magistrado.


Previsto no artigo 5º, inciso LXVIII, da Constituição Federal, o habeas corpus é um poderoso aliado na proteção do direito à liberdade de locomoção, pois é gratuito, não exige maiores formalidades e tem tramitação mais rápida. 

Na mesma linha do texto constitucional, o atual Código de Processo Penal (CPP) dispõe no artigo 647: “Dar-se-á habeas corpus sempre que alguém sofrer ou se achar na iminência de sofrer violência ou coação ilegal na sua liberdade de ir e vir, salvo nos casos de punição disciplinar.”

Devido às suas características, o habeas corpus se tornou um instrumento atrativo também para quem deseja outras coisas que não preservar a liberdade do indivíduo diante de coações ou ameaças ao direito de locomoção. Não é de estranhar, portanto, o aumento de sua utilização nos últimos anos, sobretudo com a facilidade de acesso aos tribunais trazida pelo processo eletrônico.

O que mais preocupa o Judiciário, pelo volume, não são nem os pedidos que de tão despropositados chegam a soar folclóricos, e sim o uso do habeas corpus como panaceia para tentar reformar toda e qualquer decisão desfavorável no processo penal – inclusive proferidas em outros habeas corpus –, em substituição aos recursos previstos na legislação.

História da Justiça no Brasil revela uso amplo do habeas corpus

A utilização do habeas corpus no Brasil é antiga. Ribeiro Dantas conta que ele surgiu no país por meio de decretos, nos tempos do Império, mas a sua introdução expressa no ordenamento jurídico se deu no CPP de 1832. A Constituição republicana de 1891 elevou o instituto à categoria de garantia constitucional.

“É essa Constituição (não se sabe até hoje se foi de propósito ou se foi um esquecimento, isto é, se foi um silêncio simples ou um silêncio eloquente) que diz que se daria habeas corpus para qualquer violação por ilegalidade ou abuso de poder. Não se explicitava que era o direito à livre locomoção”, recorda o ministro.

Com isso, prossegue Ribeiro Dantas, advogados reivindicavam diversos direitos por meio de habeas corpus, e o Supremo Tribunal Federal (STF) reconhecia o caráter mais amplo da ação. Apenas em 1926, uma emenda constitucional definiu que o habeas corpus deveria ser impetrado para assegurar a liberdade de locomoção. Mesmo assim, o instrumento já havia se consolidado, nas palavras do magistrado, como um “bebê grandão”.

Modelos adotados em outros países são mais restritivos

O ministro Rogerio Schietti Cruz, membro da Terceira Seção e presidente do Núcleo de Gerenciamento de Precedentes e de Ações Coletivas (Nugepnac) do STJ, aponta que o habeas corpus, de fato, se estabeleceu como um instrumento de uso mais extenso e flexível, especialmente em comparação com modelos adotados em outros países.

“No Brasil”, relata Schietti, “o habeas corpus foi ampliando seu leque de incidência de tal modo que, hoje, tudo que ocorre no processo penal, ou mesmo antes dele, pode ser objeto de um habeas corpus. É uma tradição nossa difícil de mudar, porque se você, de alguma forma, criar limitações, isso causará reações, além da desproteção a alguns direitos que são alcançados por uma interpretação bem ampla do instituto”.

A dificuldade para limitar o habeas corpus à sua finalidade expressamente prevista na Constituição e no CPP tem a ver também com o fato de que o Brasil viveu – em um passado não muito distante – mais de 20 anos de ditadura militar. Nesse período, entre as muitas arbitrariedades perpetradas pelo Estado, houve a edição do Ato Institucional número 5 (AI-5), cujo artigo 10 suspendeu a concessão do habeas corpus nos casos enquadrados como “crimes políticos, contra a segurança nacional, a ordem econômica e social e a economia popular”.

Com a redemocratização, a chamada Constituição Cidadã de 1988 restabeleceu o devido processo legal, e o habeas corpus – impulsionado pelo sentimento de rejeição ao arbítrio anterior – passou a ser admitido na jurisprudência para corrigir situações apenas indiretamente ligadas à liberdade de locomoção.

Habeas corpus substitutivo de recurso próprio e overruling

Segundo o defensor público Marcos Paulo Dutra, coordenador de Defesa Criminal e do Núcleo de Defesa dos Direitos Humanos da Defensoria Pública do Rio de Janeiro, o habeas corpus, atualmente, simboliza a democratização do acesso à Justiça e é um instrumento fundamental para a superação de entendimentos jurisdicionais (overruling).

“Quando pensamos na guinada promovida pelo STJ a respeito do reconhecimento pessoal e fotográfico, isso se deu por meio do habeas corpus, o que é sensacional”, afirma o defensor.

Ao falar sobre o aumento das impetrações, ele lembra o debate jurisprudencial em torno da admissibilidade do chamado habeas corpus substitutivo de recurso especial ou substitutivo de recurso ordinário constitucional.

“O STJ tem uma jurisprudência consolidada que não admite o denominado habeas corpus substitutivo. Mas, em muitíssimos casos, os ministros, com acerto, evoluem e acabam concedendo a ordem de ofício, tamanhas as teratologias identificadas”, observa Dutra.

Via paralela mais ágil e desestímulo ao uso do recurso especial

Na avaliação do advogado criminalista Caio César Domingues de Almeida, autor do livro Habeas Corpus na Jurisprudência dos Tribunais Superiores, a atual arquitetura recursal tem levado os operadores do direito a enxergar no habeas corpus uma via paralela – e mais ágil – para garantir a apreciação de questões urgentes, especialmente quando há alguma possibilidade de risco à liberdade do acusado.

Para ele, o sistema atual desestimula o uso regular do recurso especial, cujas exigências procedimentais muitas vezes inviabilizam o exame do mérito.

Como forma de enfrentar o número excessivo de habeas corpus, o advogado sugere uma flexibilização que permitisse à defesa pleitear medidas de urgência diretamente no corpo do recurso especial, à semelhança do que já ocorre com a concessão de habeas corpus de ofício em certos casos. “Essa possibilidade traria mais segurança aos advogados, que hoje recorrem ao habeas corpus temendo que a discussão de direito nem sequer seja apreciada nos tribunais superiores”, diz.

Ministro alerta para necessidade de atualização do CPP

Essa percepção encontra eco no próprio STJ. O ministro Ribeiro Dantas alerta que o uso massivo do habeas corpus se relaciona diretamente com a defasagem do CPP, em vigor desde 1941. Para ele, a legislação brasileira não foi atualizada para lidar com a complexidade e as demandas do processo penal contemporâneo, especialmente no que se refere à celeridade na análise de decisões interlocutórias que afetam a liberdade do réu.

Ribeiro Dantas traça um paralelo histórico com o uso excessivo do mandado de segurança entre as décadas de 1970 e 1990, quando esse instrumento funcionava como uma espécie de “válvula de escape” para ineficiências do processo civil.

Segundo ele, somente após reformas profundas no CPC – que tornaram os mecanismos recursais mais funcionais e acessíveis –, o mandado de segurança perdeu seu caráter emergencial e passou a ser utilizado de forma mais racional. No processo penal, no entanto, o ministro destaca que faltam instrumentos processuais adequados para lidar com situações que não podem esperar.

“Nesses casos, o habeas corpus muitas vezes se apresenta como a única via rápida e eficaz, diante de recursos ordinários excessivamente formais, complexos e morosos”, comenta o ministro.

Leis em descompasso com jurisprudência geram “avalanche” de ações

Para o jurista Guilherme de Souza Nucci, desembargador do Tribunal de Justiça de São Paulo, o maior problema não se encontra no manejo do habeas corpus ou na esfera do processo penal, mas sim na falta de atualização de alguns normativos, como a Lei 11.343/2006 (Lei de Drogas).

O magistrado, que é autor de obras na área do direito penal e do direito processual penal, aponta que as drogas respondem por mais de 50% da carga de trabalho da Justiça criminal, mas esse dado não recebe a devida atenção por parte do legislador. O resultado dessa lentidão é que os tribunais superiores acabam definindo parâmetros que já poderiam estar no texto legal, como é o caso da descriminalização, decidida no STF, do porte de até 40 gramas de maconha para uso pessoal.

Outro exemplo citado pelo magistrado diz respeito à incidência do princípio da insignificância. Ele lembra que, nesse caso, o STJ já estabeleceu filtros em sua jurisprudência.

“Mas onde está na lei? Não tem. Então, o advogado vai reclamar junto ao STJ o tempo todo. Nós temos que atualizar a lei penal utilizando os próprios institutos que os tribunais estão adotando, para que pare a avalanche de habeas corpus reclamando, muitas vezes, o óbvio”, declarou Nucci.

Uma resposta efetiva diante da violação de direitos

Em meio ao debate sobre o uso excessivo do habeas corpus, a história do vídeo abaixo mostra como, apesar das distorções e do volume preocupante de impetrações, esse instrumento continua a representar uma resposta efetiva à violação de direitos fundamentais. No caso de Romário dos Santos, foi a decisão do STJ no HC que fez a diferença entre uma condenação injusta e o restabelecimento da paz em sua vida.​

A série especial HC 1 milhão: mais ou menos justiça? debate o aumento expressivo do uso desse instrumento constitucional, trazendo diferentes pontos de vista sobre o fenômeno e o seu impacto nas atividades dos tribunais.

No próximo domingo: o papel de cada ator do Sistema de Justiça no ingresso massivo de habeas corpus no STJ.

Fonte: STJ

Tributação das altas rendas e miscelânea metódica no cálculo do redutor previsto pelo PL 1.087

O Brasil tem um sistema tributário regressivo e que, portanto, termina por onerar proporcionalmente mais quem tem menos capacidade contributiva. Isso decorre de muitos fatores distintos, mas, fundamentalmente, em razão de termos um sistema majoritariamente baseado na tributação sobre o consumo (que é ínsita e estruturalmente regressiva) em comparação com a tributação da renda e do patrimônio.

Esse efeito regressivo é acentuado no âmbito do imposto de renda das pessoas físicas por um histórico longo de não correção monetária da tabela que prescreve as faixas de tributação e, ainda, pela previsão de poucas e concentradas faixas de alíquotas nominais. Isso gera a tributação de rendas de pessoas com baixa capacidade contributiva, com a fixação de uma progressividade acentuada apenas nas faixas iniciais de renda.

Parece encontrar foros de consenso a ideia de que algum ajuste de rota é necessário. Em que pese esse diagnóstico, a reforma da tributação sobre o consumo, com a criação dos novos Imposto sobre Bens e Serviços (IBS) e Contribuição sobre Bens e Serviços (CBS), com uma alíquota combinada que pode girar em torno de 28%, parece desmentir a conclusão de que os últimos movimentos legislativos estão modalizados com esse propósito.

De todo modo, no âmbito da tributação da renda, surge agora o Projeto de Lei nº 1.087/25, que tem por objeto a implantação, no Brasil, de uma espécie de imposto mínimo sobre a renda, destinado a contribuintes que tenham auferido renda superior a R$ 600 mil. O projeto prevê a incidência desse Imposto de Renda das Pessoas Físicas Mínimo (IRPFM) sobre pessoas que aufiram rendas superiores a esse valor, sendo que a aplicação da alíquota máxima de 10% fica reservada para contribuintes que aufiram R$ 1,2 milhão ou mais.

Como começa a ser exposto pela doutrina especializada, o projeto pode ser criticado por diversos fundamentos, a começar pela falta de transparência quanto ao real objetivo da mudança que, ao final e ao cabo, pretende tributar dividendos recebidos por pessoas físicas [1], ainda que a hipótese de incidência prevista seja ligeiramente mais ampla. Além disso, já surgem vozes sustentando que o IRPFM não é propriamente um adicional do imposto de renda das pessoas físicas, tratando-se, em verdade, de um novo imposto que apenas poderia ser criado por meio de lei complementar [2]. Também não faltam críticas quanto ao fato de o IRPFM não distinguir sociedades de capital e sociedades de pessoas, o que gera uma tributação potencialmente injusta e desigual [3].

O objetivo deste pequeno texto é tratar de um ponto específico do projeto: a criação do que foi chamado, no texto do PL, de um “redutor” do IRPFM no caso de pagamento de lucros e dividendos. O redutor deve ser aplicado para evitar que a cobrança do imposto mínimo acarrete uma tributação final que, considerada a carga tributária da pessoa jurídica e da pessoa física segundo parâmetros próprios fixados no projeto, ultrapasse a alíquota nominal do Imposto de Renda das Pessoas Jurídicas (IRPJ) e da Contribuição Social sobre o Lucro (CSL). De modo bastante objetivo, o redutor é aplicado quando a soma das alíquotas efetivas da pessoa jurídica e da pessoa física ultrapassar o limite da alíquota nominal combinada.

A presença desse redutor parece ser uma resposta antecipada do governo a eventuais críticas sobre o fato de que, no final do dia, haverá tributação de dividendos, sem a redução correspondente das alíquotas incidentes na tributação corporativa. A resposta que o redutor parece ofertar é: ninguém pagará mais do 34%, mesmo que venha a ser considerada a carga tributária cumulada da pessoa jurídica e da pessoa física após a incidência do IRPFM. O projeto, portanto, nessa óptica, apenas eliminaria uma situação de subtributação.

O mecanismo, no entanto, merece revisão, especialmente na parte em que prevê a mensuração da carga tributária efetiva das pessoas jurídicas pela razão entre o valor efetivamente pago de IRPJ e CSL e o lucro contábil apurado no exercício pelas pessoas jurídicas.

Não há dúvida de que a apuração das bases de cálculo do IRPJ e da CSL parte do lucro contábil apurado pelas entidades, mas, por uma série de razões jurídicas (razões essas que são sempre tomadas como relevantes pelo legislador) com ele não se confunde. O chamado lucro real é, nos termos da legislação de regência, calculado a partir do lucro contábil com adições e exclusões que o legislador considera pertinentes, para que a renda (tributável do ponto de vista jurídico) do contribuinte possa ser efetivamente onerada.

Isso não deve causar qualquer surpresa, já que a contabilidade é informativa e preparada com propósitos de reconhecimento, mensuração e evidenciação da posição econômica do contribuinte, enquanto a norma tributária, voltada à oneração da renda, não acolhe, de forma direta, a base de cálculo contábil, realizando ajustes, ora para aumentar a base (adições), ora para reduzi-la (exclusões). O lucro contábil e o lucro real, portanto, dificilmente coincidem, pois são grandezas diversas que servem a propósitos absolutamente distintos. No lucro presumido, do mesmo modo, quase sempre existe um descasamento entre o lucro contábil e o lucro fiscal, apurado pela aplicação de um percentual de presunção fixado em lei. A regra simplificadora se aplica para a mensuração da base tributável.

Condão de embaralhar

Se assim o é, a chamada carga tributária efetiva suportada pelas empresas será, em regra, de 34%, já que o imposto pago deveria ser dividido pela base imponível tributária (o lucro real ou o lucro presumido), e não sobre uma base (o lucro contábil) que sequer serve como parâmetro de mensuração da renda auferida pela pessoa jurídica.

De modo singelo: o tributo pago por uma pessoa jurídica, calculado pela aplicação da alíquota de 34% sobre a base legalmente prescrita, conforma uma carga efetiva de 34%. A tentativa de se mensurar a carga efetiva com base em outros parâmetros, como o lucro contábil, é arbitrária, notadamente porque esse dado serve a outro propósito e sequer é juridicamente tributável como renda. Como já decidiu o Supremo Tribunal Federal (RE nº 606.107), conceitos contábeis e jurídicos não se confundem, sendo indevida a subordinação da tributação a critérios contábeis.

O mecanismo de tributação mínima, como posto no projeto, tem o condão de embaralhar uma série de subregimes tributários que foram (ou deveriam ter sido) pensados com o objetivo de cumprir certas políticas públicas, já que ele gera um efeito transversal na tributação de todas as espécies de renda. Isso termina gerando uma tributação de rendimentos que, por algum fundamento constitucional, foram desonerados. Ora, ou esses rendimentos foram desonerados com um objetivo nobre e, portanto, não podem ser, depois, onerados (ainda que via um IRPFM). Ou, não, não estão amparados num fundamento constitucional (são “privilégios odiosos”) e, então, o caminho deve ser a revogação da desoneração e não sua tributação sub-reptícia.

Anda mal, portanto, o projeto de lei quando cria essa espécie de redutor, altamente complexo e que dificilmente surtirá efeitos concretos, já que é construído com base em uma miscelânea de critérios distintos, talvez porque moldado apenas para servir de resposta à crítica de que o projeto aumenta a tributação das pessoas físicas sem reduzir, de forma correspondente, a tributação das pessoas jurídicas, embaralhando o atual modelo brasileiro de integração da tributação da renda.


[1] SCAFF, Fernando Facury. Tributação disfarçada de dividendos e distribuição disfarçada de lucros. Conjur, 14/04/2025. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2025-abr-14/tributacao-disfarcada-de-dividendos-e-distribuicao-disfarcada-de-lucros/

[2] BIFANO, Elidie Palma. Projeto de Lei 1.087/25: estamos diante de mais uma confusão tributária? Conjur, 02/04/2025. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2025-abr-02/o-projeto-de-lei-1-087-25-estamos-diante-de-mais-uma-confusao-tributaria/

[3] DERZI, Misabel; e MOURA, Fernando. Isenção de IR até R$ 5.000: atecnias em busca de maior justiça tributária. Conjur, 28/03/2025. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2025-mar-28/pl-1087-2025-atecnias-em-busca-de-maior-justica-tributaria/

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Repetitivo define percentuais e fixa base de cálculo para honorários na desistência de desapropriação

Sob o rito dos recursos repetitivos (Tema 1.298), a Primeira Seção do Superior Tribunal de Justiça (STJ) estabeleceu que a fixação de honorários advocatícios devidos pelo autor, em caso de desistência de ação de desapropriação por utilidade pública ou de constituição de servidão administrativa, deve seguir os percentuais definidos no artigo 27, parágrafo 1º, do Decreto-Lei 3.365/1941 (entre 0,5 e 5%), tendo como base de cálculo o valor atualizado da causa.

De acordo com o colegiado, esses percentuais não são aplicáveis somente se o valor da causa for muito baixo, hipótese em que os honorários serão arbitrados por apreciação equitativa, nos termos do artigo 85, parágrafo 8º, do Código de Processo Civil (CPC).

Com a fixação da tese jurídica, podem voltar a tramitar os recursos especiais e agravos em recurso especial que discutem a mesma questão e que estavam suspensos à espera desse julgamento. O entendimento definido pela Primeira Seção deverá ser observado pelos tribunais de todo o país na análise de casos semelhantes.

Base de cálculo segue regra supletiva do artigo 85, parágrafo 2º, do CPC

O ministro Paulo Sérgio Domingues, relator do repetitivo, destacou que o Supremo Tribunal Federal (STF), ao julgar a ADI 2.332, já debateu a constitucionalidade da regra sobre honorários inserida no Decreto-Lei 3.365/1941. Na ocasião, foi reconhecida a validade da base de cálculo e dos percentuais da verba sucumbencial definidos especificamente para ações expropriatórias.

Na hipótese de desistência da ação de desapropriação ou de constituição de servidão administrativa, entretanto, o ministro explicou que não há como aplicar a base de cálculo prevista no decreto-lei. Segundo ele, isso se dá porque a sentença não definirá indenização alguma, uma vez que não ocorrerá perda da propriedade imobiliária ou imposição de ônus ou restrição para a fruição do bem imóvel pelo seu proprietário.

“À falta de condenação ou de proveito econômico efetivo, já foi dito que não há suporte jurídico para o estabelecimento da base de cálculo dos honorários nos moldes do artigo 27, parágrafo 1º, do Decreto-Lei 3.365/1941, de modo que essa base será fixada de acordo com norma jurídica supletiva prevista no artigo 85, parágrafo 2º, do CPC, tomando-se em conta, então, o valor atribuído à causa”, afirmou o ministro.

Percentual dos honorários independe de existência de condenação

Quanto aos percentuais dos honorários, o relator avaliou que os valores previstos no Decreto-Lei 3.365/1941 representam norma especial que não depende da existência ou inexistência de condenação do expropriante. Segundo ele, a desistência da ação não faz desaparecer o suporte jurídico de aplicação do decreto-lei – que, como lei especial, prevalece sobre a norma geral.

Paulo Sérgio Domingues acrescentou que o entendimento deve ser flexibilizado quando o valor da causa for irrisório. Nesse caso, prosseguiu o ministro, devem ser afastados os parâmetros especiais de percentuais e base de cálculo de honorários para que seja aplicado o arbitramento por apreciação equitativa, a fim de impedir que a verba sucumbencial seja fixada em patamar incompatível com a dignidade do trabalho advocatício.

Instâncias ordinárias não aplicaram as disposições do decreto-lei

Um dos recursos representativos da controvérsia (REsp 2.129.162) foi interposto em ação movida pela Companhia Energética de Minas Gerais (Cemig) para a constituição de servidão administrativa sobre um imóvel particular, com o objetivo de construir uma linha de distribuição de energia elétrica. Quase um ano depois, após a concessionária desistir da ação, o juízo de primeiro grau arbitrou os honorários em 10% do valor da causa, com base nos artigos 85 e 90 do CPC. O Tribunal de Justiça de Minas Gerais manteve o parâmetro adotado, deixando de aplicar a regra do artigo 27, parágrafo 1º, do Decreto-Lei 3.365/1941.

“Deve ser reformado o acórdão recorrido, já que a solução do caso concreto que dele emana está em desconformidade com a jurisprudência sedimentada no âmbito deste STJ, bem como com a tese jurídica ora estabelecida”, concluiu o ministro ao determinar o retorno do processo ao tribunal de origem para que os honorários sejam novamente arbitrados.

Leia o acórdão no REsp 2.129.162.

Fonte: STJ

Procurador diz que “pejotização” é forma de burlar legislação

O titular da Coordenadoria Nacional de Combate às Fraudes nas Relações de Trabalho do Ministério Público do Trabalho (MPT), o procurador Renan Kalil, disse que a “pejotização” é uma forma de burlar a legislação trabalhista.

Em entrevista à Agência Brasil, Kalil afirmou que a pejotização é uma fraude. 

“Ela ocorre quando alguém quer contratar um trabalhador, ou seja, que precisa de alguém que trabalhe com subordinação, que cumpra um horário, que vai receber um salário fixo, enfim, que preencha os requisitos da relação de emprego, mas ele [o empregador] opta por contratar essa pessoa como pessoa jurídica, como forma de fraudar a legislação trabalhista, de mascarar a relação de emprego”, afirmou.

Segundo ele, para que contratação de uma pessoa jurídica seja considerada legítima, é preciso que ela cumpra três requisitos: a transferência da atividade contratada pelo tomador de serviço para a PJ contratada, a autonomia da empresa contratada e a capacidade econômica da PJ para desenvolver o trabalho. Esses critérios, de acordo com o procurador, não são encontrados nas relações de trabalhos “pejotizadas”.

“Isso não quer dizer que não possa haver uma contratação de pessoa jurídica, que a gente não possa ter um trabalho autônomo que seja realizado de forma autêntica”, explica. “Quando temos um trabalho pejotizado, não encontramos nenhuma dessas três características. É por causa disso que a gente identifica que a lei não está sendo corretamente observada. O trabalhador pejotizado não tem direito trabalhista algum”.

“Pejotização” é um termo usado para caracterizar contratações de trabalhadores como pessoas jurídicas (PJ) pelas empresas, em vez de assinar a carteira de trabalho. Essa modalidade ganhou força com a reforma trabalhista, realizada em 2017, que permitiu a terceirização do trabalho para atividades-fim da empresa.

Desde então, milhares de processos chegaram às varas da Justiça do Trabalho, em que trabalhadores contratados como PJ buscavam reconhecimento de vínculo empregatício. De acordo com o Ministério Público do Trabalho (MPT), de 2020 a março de 2025, foram ajuizadas 1,21 milhão de reclamações trabalhistas sobre o assunto.

Em abril deste ano, o ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Gilmar Mendes decidiu suspender todos os processos sobre pejotização de trabalhadores no país. 

A decisão do ministro do STF gerou reação de magistrados, procuradores e advogados trabalhistas, que realizaram, nessa quarta-feira (7), manifestações em cidades como o Rio de Janeiro, São Paulo e Brasília, para destacar a importância da competência da Justiça do Trabalho sobre essa questão.

Fonte: EBC

Súmula 308 não é aplicável em casos de alienação fiduciária, decide Quarta Turma

O tribunal de segundo grau havia aplicado em favor dos compradores de boa-fé, por analogia, o entendimento que o STJ adotou para imóveis hipotecados na crise da construtora Encol, nos anos 1990.

A Quarta Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) concluiu que o entendimento firmado na Súmula 308 da corte não pode ser aplicado, por analogia, aos casos que envolvem garantia por alienação fiduciária. Para o colegiado, não é possível estender uma hipótese de exceção normativa para restringir a aplicação de uma regra jurídica válida.

Segundo o processo, uma construtora, pretendendo obter crédito para um empreendimento imobiliário, alienou fiduciariamente um apartamento e uma vaga de garagem a uma administradora de consórcios.

Três anos depois, apesar de os imóveis pertencerem à credora fiduciária, a devedora fiduciante entregou-os, por meio de contrato de promessa de compra e venda, para outra empresa, que, por sua vez, transferiu a duas pessoas os direitos contratuais sobre os bens. Estas, ao saberem que a propriedade dos imóveis havia sido consolidada em nome da credora fiduciária, devido à falta de pagamento por parte da devedora, entraram na Justiça.

O recurso especial foi interposto pela administradora de consórcios após o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul (TJRS) dar razão aos autores da ação e desconstituir a consolidação da propriedade fiduciária. A corte local entendeu que seria possível a aplicação analógica da Súmula 308 do STJ aos casos envolvendo garantia por alienação fiduciária.

Súmula está relacionada à compra de imóveis pelo SFH

O relator na Quarta Turma, ministro Antonio Carlos Ferreira, comentou que a Súmula 308 versa sobre imóveis, dados como garantia hipotecária, que foram adquiridos no âmbito do Sistema Financeiro da Habitação (SFH), o qual tem normas mais protetivas para as partes vulneráveis da relação. Conforme lembrou, a súmula surgiu diante do grande número de processos decorrentes da crise financeira da construtora Encol, que culminou com sua falência em 1999.

Segundo o ministro, a análise dos julgamentos que deram origem ao enunciado sumular revela que o financiamento imobiliário do SFH foi o principal fundamento para invalidar, perante os compradores de imóveis da Encol, as hipotecas firmadas entre a construtora e os bancos. Tanto que foi consolidado no STJ o entendimento de que a Súmula 308 não se aplica nos casos de imóveis comerciais, limitando-se àqueles comprados pelo SFH.

Devedor fiduciante não é dono do imóvel

Em seu voto, o relator afirmou que não há como justificar a aplicação da Súmula 308 à alienação fiduciária, tendo em vista a distinção de tratamento jurídico entre os dois tipos de devedores: “Quando o devedor hipotecário firma um contrato de promessa de compra e venda de imóvel com terceiro de boa-fé, ele está negociando bem do qual é proprietário. No entanto, essa situação distingue-se significativamente daquela do devedor fiduciante, uma vez que, ao negociar bem garantido fiduciariamente, estará vendendo imóvel que pertence ao credor fiduciário”.

De acordo com a jurisprudência do STJ, acrescentou Antonio Carlos Ferreira, a venda a non domino (aquela realizada por quem não é dono do bem) não produz efeitos em relação ao proprietário, não importando se o terceiro adquirente agiu de boa-fé. “Se o devedor fiduciante negociou bem imóvel de titularidade do credor fiduciário sem sua expressa anuência, esse acordo apenas produzirá efeitos entre os contratantes”, completou.

O ministro observou ainda que a eventual aplicação da Súmula 308 aos contratos de alienação fiduciária poderia prejudicar os próprios consumidores, pois o aumento do risco resultaria em elevação do custo de crédito. “É essencial haver segurança jurídica e econômica nos contratos de alienação fiduciária para garantir a estabilidade das relações contratuais entre as partes envolvidas, bem como para promover o desenvolvimento econômico e o acesso ao crédito de forma responsável”, concluiu.

Fonte: STJ

A batalha das inteligências artificiais em que não há vencedores

A pergunta que faço é: pode um Poder do Estado se dar ao luxo de atuar com ferramentas que invariavelmente irão “alucinar”?

 

Há algum tempo venho me dedicando a alertar sobre os perigos da inteligência artificial para o Direito — e para o mundo todo. Aqui mesmo na ConJur já falei sobre os riscos que a inteligência artificial representa em diversos textos. Nas últimas semanas tenho abordado alguns casos específicos, em que nossa vida cotidiana está cada vez mais se aproximando das distopias futuristas (ver aqui e aqui).

Ainda que de minha parte a preocupação com a inteligência artificial e a alta dependência tecnológica devam ser um tema que deve ser tratado com maior seriedade por parte da comunidade jurídica, há setores que abraçam efusivamente a inteligência artificial como solução para os seus problemas.

No Brasil, poucos setores falam tanto em inteligência artificial quanto o Poder Judiciário. Enquanto empresas do setor privado tratam com cautela os processos de automatização por meio de inteligência artificial — sobretudo porque não dispõe do domínio tecnológico necessário para controlar os algoritmos criados por algumas poucas empresas internacionais — no primeiro minuto em que essas tecnologias se apresentaram como viáveis o Judiciário brasileiro se lançou às mãos de robôs, chatbots e quejandos. Todavia, as consequências fáticas da adoção prematura deste tipo de tecnologia começam a pipocar por todos os lados. A pressa do Judiciário gera monstros.

1. O futuro é um tribunal de robôs?

Conforme a “Pesquisa uso de inteligência artificial (IA) no Poder Judiciário: 2023” realizada pelo Conselho Nacional de Justiça, 66% dos tribunais do país fazem uso de inteligência artificial, tendo sido mapeados 140 projetos em desenvolvimento pelos tribunais do país [1]. O campeão de projetos é o Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul é campeão com 12 projetos de inteligência artificial em desenvolvimento (!!!).

 

Sem dúvida esses dados já estão obsoletos. Observado que os dados publicados pelo CNJ são referentes ao ano de 2023 e estes já davam conta de que havia um crescimento de 22% em uso de inteligência artificial nos tribunais em relação ao ano de 2022, se for mantida esta proporção de crescimento no uso IA, ao final de 2025 quase 100% dos tribunais do país farão uso de inteligência artificial. Os algoritmos estavam chegando e chegaram.

Claro, tenho plena ciência de que esses números podem perfeitamente desacelerar em face de limitações orçamentarias e técnicas nos mais diversos tribunais do país. No entanto, a cada dia somos bombardeados com notícias sobre os novos robôs e inteligências artificiais que vem sendo desenvolvidos pelos tribunais. A cada semana, um novo robô.

2. E o juiz resolveu usar a inteligência artificial para aumentar a produtividade…

Diante do incentivo à adoção da inteligência artificial como solução para “aumentar a produtividade” e “otimizar recursos” em uma larga escala institucional pelo Poder Judiciário, infelizmente não me causa espanto que essa passe a ser utilizada como forma de resolver questões mais singelas… como a produtividade individual de magistrados.

Em uma recente publicação realizada pelo portal Migalhas, há informação de que um magistrado está sendo investigado pela corregedoria do Tribunal de Justiça do Estado do Maranhão por uso indevido de inteligência artificial para aumento de sua produtividade (ver aqui).

Conforme a reportagem, o referido magistrado saltou – magistralmente – de uma produtividade média mensal de 80 sentenças, em agosto de 2024, para 969 decisões, muitas delas com padrão textual uniforme. Além disso, nas decisões do magistrado foi identificada ausência de fundamentação ou análise de provas, distribuição indevida de processo por prevenção e, especialmente, o uso inadequado de ferramentas de inteligência artificial, com a criação de “precedentes inexistentes”, gerando insegurança jurídica.

Eis um dos problemas centrais da inteligência artificial generativa que vem se propagando diariamente: o que IA não sabe, ela inventa. Já falei sobre isso anteriormente, inclusive apontando que IA disse que eu disse coisas que nunca falei.

3. Sobre alucinações produzidas pela inteligência artificial

A cada dia mais e mais casos de petições e decisões que resolveram inventar jurisprudência para confirmar os vieses aos quais esses robôs e chatbots foram condicionados desde o princípio.

Nesse sentido, vale mencionar matéria publicada pelo The New York Times, que dá conta exatamente deste que pode ser apontado como o problema central prático — para além dos problemas éticos óbvios — a geração de respostas absolutamente dissociadas dos fatos por parte da inteligência artificial, as chamadas alucinações (ver aqui).

Conforme a reportagem, quanto mais sofisticados ficam os modelos matemáticos utilizados para construir as inteligências artificiais que estão disponíveis ao público se transformam, maior o número de alucinações elas produzem. Nos modelos mais modernos de inteligência artificial testados pelo New York Times, o percentual de alucinações chegou a 79% (!!!) e os desenvolvedores afirmam: essas alucinações podem ser reduzidas, mas nunca deixarão de existir.  O que me dizem os adeptos da IA do Brasil?

A pergunta que faço é: pode um Poder do Estado se dar ao luxo de atuar com ferramentas que invariavelmente irão “alucinar”?

O caso do juiz do Maranhão serve como ilustração daquilo que já afirmei anteriormente, não se trata de uma simples questão de revisão das respostas geradas pela inteligência artificial ou de um defeito de operação do usuário em elaborar corretamente o comando para que a inteligência artificial gere a respostas adequadamente.

Se tais inteligências artificias foram criadas para “solucionar problemas”, se eles não resolverem os de problemas imediatamente, são inúteis. Por essa mesma razão as inteligências artificiais disponíveis no mercado nunca dirão que não tem as respostas que estão sendo buscadas. Pior: tem gente vendendo a produção dos robôs.

4. Venda de petições feitas por IA

De outra parte, em mais uma reportagem recente, temos a notícia de que a Justiça Federal do Rio de Janeiro, atendendo ao pedido de tutela de urgência formulado em ação civil pública ajuizada pela OAB-RJ, determinou a suspensão das atividades de uma plataforma que prometia a criação de petições iniciais para Juizados Especiais, por apenas R$ 19,90 (ver aqui).

A ação civil pública ajuizada pela OAB afirma que a referida plataforma oferecia petições iniciais com argumentação jurídica padronizada, formulada por inteligência artificial, podendo ser protocolada imediatamente nos juizados especiais.

Ainda que o caso concreto da plataforma que oferecia petições para os juizados especiais mediante pagamento de R$ 19,90 demonstre uma camada extra de picaretagem, qual a diferença entre esta plataforma e os chatbots que já estão disponíveis “gratuitamente” na internet? Afinal, ainda que não se tenha que pagar uma soma em dinheiro, o pagamento se dá através de informações que são fornecidas pelo usuário voluntariamente a plataforma.

Todavia, quando observamos o conteúdo daquilo que é “produzido” tanto pela “IA fazedora de petições iniciais para juizados especiais por R$ 19,90” e o Chat GPT — apenas para citar o chatbot mais popular — o resultado é o mesmo e provavelmente tem a origem no mesmo lugar: plágio.

Eis mais uma evidência concreta daquilo que já afirmei por diversas vezes: aquilo que se chama de inteligência artificial generativa é apenas uma máquina de plágio.

5. Petições geradas por IA v. decisões por IA: a batalha final ou a crônica de um desastre anunciado?

Diante desse quadro temos uma situação distópica que cada dia parece mais real: de um lado petições iniciais criadas por inteligência artificial, de outro lado decisões geradas por inteligência artificial para responder as petições. E o que a IA não sabe? Ela inventa. Ah! E claro, tudo isso supervisionado por um dos 14 robôs desenvolvidos pelo tribunal…

Vejam que o quadro caótico que estou apontando não está ligado à forma de que a ferramenta está sendo usada pelos usuários — como os entusiastas da IA costumam acusar aqueles apontam seus perigos — a questão é que própria IA esteja na equação, porque ela está fazendo aquilo que foi programada: gerar solução para um problema.

Eis o busílis. Se a inteligência artificial é a apontada como solução para os problemas humanos de um dos Poderes do Estado, o problema está na solução ofertada.

Nesse sentido, o próximo grande mote dos tribunais no Brasil já está decidido: litigância predatória. O Superior Tribunal de Justiça formulou uma tese ao julgar o Tema 1.198, possibilitando que o magistrado determine que a parte autora emende a petição inicial para demonstrar o interesse de agir e autenticidade da postulação. Ciente de que a tese — fixada pela Corte Especial do STJ e, portanto, “precedente qualificado” — poderia gerar problemas de abusos por parte do próprio Judiciário, o relator do caso afirmou que essas poderiam ser controladas pontualmente. Como isso será feito, ninguém sabe.

Pois bem, conforme o relatório do CNJ, dos 140 projetos de inteligência artificial que estão em desenvolvimento pelos tribunais do país, 15 deles estão vinculados à litigância predatória. E se robô alucinar e identificar uma demanda equivocadamente? Em um país em que impera o realismo jurídico, quantos terão seus direitos solapados?

De fato, deve ser observado que a principal queixa efetuada pelos magistrados no Brasil é a de excesso de processos. Afirmam que em lugar algum no mundo há tantos processos quanto no Brasil. É necessário simplificar, automatizar, diminuir a quantidade de recursos etc. Todavia, a pergunta sobre as razões pelas quais o número de demandas não para de crescer, raramente é feita. Há uma ampla negligência acerca da razão pela qual a vida brasileira vem sendo tão judicializada. De novo: por que será que há tantas demandas e tantos recursos? Há muitas respostas circulando. Mas, são lidas? Compreendidas?

Fazendo uma analogia com a medicina, estamos apenas tratando os sintomas de uma doença mais profunda que está matando o paciente. Pior, para tratar a doença do paciente estamos implementado um tratamento que pode matar todos os outros pacientes que estão em tratamento.

Na distopia futurista Duna, de Frank Herbert, o fim do mundo como conhecemos foi gerado por uma guerra entre os seres humanos e os computadores e robôs conscientes. Apesar da vitória humana sobre as máquinas e sua consequente destruição total, um mandamento foi fundamental foi estabelecido: “não farás máquina à semelhança da mente humana”.

Sempre digo que a literatura chega antes. Ainda é tempo de aprendermos com ela antes que o nosso mundo se torne efetivamente uma distopia. Até porque, no nosso mundo, corremos o sério risco de perder a guerra… Ou já a perdemos? Quando nos deparamos com um caso como o do juiz do Maranhão, parece improvável que possamos vencer.

 


[1] CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA. Pesquisa uso de inteligência artificial (IA) no Poder Judiciário: 2023. Brasília, 2023. Disponível em: https://bibliotecadigital.cnj.jus.br/jspui/handle/123456789/858

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Juízes se mobilizam contra suspensão de processos sobre pejotização

A suspensão nacional de todos os processos que discutem a validade de contratos via pessoa jurídica (pejotização), determinada pelo ministro Gilmar Mendes, do Supremo Tribunal Federal (STF), acendeu o alerta entre juízes do Trabalho, que participaram nesta quarta-feira (7) de mobilização em várias capitais em defesa da competência constitucional da Justiça do Trabalho. No Rio de Janeiro, o ato foi realizado em frente do Tribunal Regional do Trabalho (TRT), no centro da cidade.

No dia 14 de abril, o ministro Gilmar Mendes decidiu suspender a tramitação de todos os processos na Justiça brasileira que discutam a legalidade da pejotização, em que empresas contratam prestadores de serviços como pessoa jurídica, evitando criar uma relação de vínculo empregatício formal.  A suspensão, determinada no Tema 1389 de repercussão geral, paralisa processos que discutem o reconhecimento de vínculo empregatício em contratos com pessoa jurídica – prática crescente em setores como tecnologia, saúde e economia, sobretudo em plataformas digitais.

As 24 associações dos Magistrados do Trabalho (Amatras), a Associação Nacional das Magistradas e dos Magistrados da Justiça do Trabalho (Anamatra), a Associação Nacional dos Procuradores das Procuradoras do Trabalho (ANPT) e a Associação Brasileira da Advocacia Trabalhista (Abrat) assinaram um manifesto conjunto reforçando a importância da competência da Justiça do Trabalho, que foi reiterado durante a mobilização nacional convocada pelas entidades.

 “Apesar da importância do tema em discussão no STF, a ausência de prazo para o julgamento de mérito amplia a insegurança institucional e compromete o andamento de processos sensíveis no âmbito da Justiça do Trabalho, incluindo ações sobre trabalho análogo ao escravo”, afirmou a juíza Daniela Muller, presidente da Associação dos Magistrados da Justiça do Trabalho da 1ª Região (Amatra1).

Rio de Janeiro

No ato realizado na capital fluminense, o juiz titular da 5ª Vara do Trabalho da capital fluminense, Ronaldo Callado, secretário-geral da Anamatra, alertou para os riscos da decisão do ministro Gilmar Mendes. Para ele, a suspensão em todo o país dos processos sobre pejotização pode levar ao esvaziamento da Justiça do Trabalho.

Segundo Callado, a Justiça do Trabalho desde sempre é a Justiça responsável por eventualmente analisar uma fraude numa suposta relação civil ou comercial. Ele destacou que é a Justiça do Trabalho que desmascara a fraude para dizer se há um vínculo de emprego.

“Essa decisão do ministro Gilmar Mendes simplesmente manda suspender todos esses processos em qualquer fase. São milhares de processos. Caso essa decisão seja confirmada, se ele disser que os juízes do Trabalho não têm competência nesses casos, todos esses processos vão para a Justiça comum, que vai ter que apreciar tudo isso”, disse.

“A Justiça do Trabalho é a mais célere porque o que está em jogo são verbas alimentares. A Justiça Comum vai dar conta disso? É uma questão constitucional que não poderia ser dirimida pelo STF sem passar pelo Congresso Nacional. Até pode haver uma mudança na competência na Justiça do Trabalho, mas tem que seguir todo um processo legislativo”, completou o magistrado.


Entidades fazem ato em defesa da competência da Justiça do Trabalho, no Tribunal Regional do Trabalho, no centro do Rio de Janeiro – Foto: Tomaz Silva/Agência Brasil

Para o secretário-geral da Anamatra, o problema é que a decisão do ministro Gilmar Mendes é muito ampla e não está só ligada à pejotização.

“O ministro fez questão de esclarecer que ela abrange qualquer tipo de relação. Inclusive de entregadores, de motoboys, que são pessoas simples, são os nossos reclamantes frequentes na Justiça do Trabalho. Isso, a nosso ver, vai fazer, se aprovada e a competência for para a Justiça comum, com que todo mundo vá agora contratar sob um falso regime que não seja o de emprego porque, para decidir essa controvérsia, não será mais na Justiça do Trabalho, vai ser na Justiça comum, que demora muito mais, que não tem esse olhar social que nós temos. Vai haver um esvaziamento total da Justiça do Trabalho. Quem vai querer contratar empregado? Ninguém mais vai querer contratar”, reforçou.

Na avaliação dele, um dos efeitos da decisão pode ser a queda da arrecadação do governo. “Vão fazer MEIs, parcerias. Tudo aparentemente lícito, mas que na prática é um vínculo de emprego. O governo vai perder muito em arrecadação porque não vai ter mais recolhimento de INSS, de várias verbas em que incidem impostos. Isso é um problema que tanto os poderes Legislativo e Executivo deviriam estar mais inseridos nessa discussão”, completou Callado.

A diretora da Associação dos Juízes do Trabalho (Ajutra) e titular da 9ª Vara do Trabalho da capital fluminense, Taciela Cordeiro Cylleno, disse que os juízes do Trabalho têm verificado que recentes decisões do STF não reconhecem ou questionam a competência dessa Justiça especializada para processar e julgar processos que envolvam relações trabalhistas.

“A Justiça do Trabalho recebeu a missão constitucional da pacificação social dos conflitos trabalhistas, não só os conflitos relacionados às relações de emprego previstas na CLT, mas a toda e qualquer relação de trabalho. É extremamente importante que essa competência seja mantida na Justiça do Trabalho, principalmente neste momento que vivemos de revolução tecnológica onde novas formas de trabalho estão surgindo”, destacou a juíza.

Segundo a diretora da Ajutra, há um receio institucional dos juízes do Trabalho, dos procuradores do Trabalho e dos sindicatos de que a decisão do ministro Gilmar Mendes propicie que as relações, quando criadas pelas pessoas jurídicas, sejam tratadas como relações civis e não relações de trabalho. Neste caso, seriam relações entre duas empresas, e a competência para processar e julgar não seria da Justiça do Trabalho e sim da Justiça comum.

“No nosso sentir, a Justiça comum não estaria amparada tecnicamente, academicamente e com o dia a dia do nosso cotidiano de lidar com as relações que envolvem o trabalho humano. Essa decisão da pejotização é simbólica. Essas lides por si só não representariam um esvaziamento completo da competência da Justiça do Trabalho, mas ela tem um caráter a meu ver bastante simbólico em relação a todas as outras lides que envolvem o trabalho humano. O receio institucional é que isso leve a outras decisões semelhantes e que acabem por gerar de fato o esvaziamento da competência da Justiça do Trabalho”, afirmou a magistrada.

O diretor de Prerrogativas da Amatra1 e juiz do trabalho substituto do TRT da 1ª Região, Rafael Pazos Dias, disse que o ato teve como objetivo fortalecer a competência da Justiça do Trabalho em razão de decisões do STF que vêm restringindo a atuação do órgão ao cassar decisões da Justiça do Trabalho que têm reconhecido vínculos de emprego quando constatadas as fraudes nessas relações.

“A decisão do ministro Gilmar Mendes não vem isolada. Já é uma tendência nas últimas decisões do STF uma restrição da nossa competência e uma liberalização das outras formas de contratação em detrimento da relação de emprego”, afirmou Dias.

O ministro Gilmar Mendes foi procurado para se pronunciar sobre o ato das associações trabalhistas por meio de sua assessoria, mas não quis comentar.

Brasília

Na capital federal, a Associação Nacional das Magistradas e dos Magistrados da Justiça do Trabalho (Anamatra), a Associação Nacional dos Procuradores das Procuradoras do Trabalho (ANPT) e a Associação Brasileira da Advocacia Trabalhista (Abrat) – associações representativas, respectivamente, da magistratura do Trabalho, do Ministério Público do Trabalho e da advocacia trabalhista em âmbito nacional – realizaram a mobilização no Foro Trabalhista.

O ato teve o apoio da Associação dos Magistrados do Trabalho da 10ª Região (Amatra 10/DF e TO), da seccional da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB-DF) e da Associação de Advogados Trabalhistas do Distrito Federal (AATDF).

Fonte: EBC

Boas práticas e diretrizes internacionais para o processo legislativo democrático

Há uma crescente atenção de diversas organizações internacionais para a necessidade de democratizar o processo legislativo. Como destaca Tímea Drinóczi, para além da expansão da realização de análises de impacto legislativo ex ante em diversos países, organizações internacionais passaram a se dedicar à disseminação de boas práticas e diretrizes (guidelines) democráticas para o processo legislativo como estabelecimento de padrões de legística, fortalecimento da participação social e aumento da transparência das atividades parlamentares [1].

O presente artigo apresenta em visão panorâmica iniciativas recentes de algumas organizações internacionais que têm apontado boas práticas e diretrizes para o processo legislativo democrático, fazendo-se, quando possível, vinculações com o cenário brasileiro. Apresentam-se, em breves linhas, essas iniciativas com algumas conclusões gerais ao final.

Uma das organizações mais tradicionais é a União Interparlamentar – Inter-Paliamentary Union (IPU). Fundada em 1889, é sediada em Genebra e congrega mais de 180 Parlamentos nacionais, inclusive o Brasil. Sua atuação é destinada a promover a cooperação entre os Parlamentos para fortalecimento de suas capacidades institucionais e suas democracias. Alguns de seus temas de maior atenção são a resiliência democrática e os parlamentos, participação feminina na política, transformação digital e combate à crise climática.

Entre suas iniciativas, destacam-se os World e-Parliament Reports, sendo o mais recente de 2024, em que são apontadas as principais tendências de transição digital dos Parlamentos [2]. Como o Report demonstra, há uma tendência acentuada no período pós-Covid 19 de que as inovações digitais sejam permanentemente incorporadas às práticas parlamentares, gerando desafios de transparência, segurança e inclusão digital e oportunidades de aumento da participação social e resiliência democrática em contextos de crise. Há também o robusto “Indicadores para os Parlamentos Democráticos”, lançado em 202 [3], em que há 25 indicadores do caráter democrático dos parlamentos, já com estudos de casos em que países os utilizaram para avaliar suas instituições e práticas.

Outra instituição que tem se destacado é a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), na qual é o Brasil é um país associado com possível ingresso pleno futuro. Na OCDE, há dois principais órgãos que trabalham o tema das boas práticas e diretrizes em processo legislativo e democracia.

O primeiro deles é o Comitê de Política Regulatória, cuja missão é fortalecer a produção de normas jurídicas – legislativas e administrativas – com base em evidências empíricas de forma estratégica e inovadora. Em 2012, foi adotada a importante Recomendação para a Política Regulatória e Governança [4], que sugeriu a seus membros a adoção de uma política regulatória ampla (whole-of-government) fundada em princípios de transparência e participação social, bem como a adoção de boas práticas como a análise de impacto ex ante e avaliação constante de estoque regulatório. O Comitê também faz regularmente a avaliação de políticas regulatórias de determinados países (Regulatory Police Outlook [5]). O Brasil é um dos países regularmente avaliados, sendo que o Relatório de 2022 (Regulatory Reform in Brazil [6]) ressalta, dentre outras sugestões, a necessidade de criação de uma política nacional de melhoria da qualidade regulatória, inclusive envolvendo o Poder Legislativo. No plano do Poder Executivo federal, a retomada do Programa de Fortalecimento da Capacidade Institucional para Gestão em Regulação (PRO-REG – Decreto 11.738/2023) e os Decretos 10.411/2020 e 11.243/2022 dialogam diretamente com essas recomendações.

Destaque e conclusões

Ainda no âmbito da OCDE, em 2022 foi criada a “Iniciativa Reforçando a Democracia” coordenada pelo Comitê de Governança Pública, tendo cinco pilares-chave: 1) combate à desinformação, 2) ampliação da participação social, 3) representação política, transparência na vida pública e igualdade de gênero, 4) práticas de sustentabilidade e 5) democracia digital. Um relatório de 2024 sobre a implementação desses pilares por diversos países retrata, entre outros, a necessidade de repensar respostas estatais lentas em face da desinformação digital e formas inovadoras e criativas de ampliar a participação social nas atividades do poder público no geral e dos parlamentos, em específico [7].

Outra instituição que tem ganhado destaque na atuação internacional a respeito da democratização do processo legislativo é o Escritório para Instituições Democráticas e Direitos Humanos – Office for Democratic Institutions and Human Rights (ODIHR) –, da Organização para Segurança e Cooperação na Europa). Atualmente com 57 países membros da Europa, Ásia Central e América do Norte, a Organização tem uma atuação destacada na cooperação com países de transição democrática mais recente na avaliação e produção de sugestões para o fortalecimento de eleições transparente e justas e do caráter democrático das normas jurídicas que regem o processo legislativo.

Uma publicação recente que se destaca é o Guidelines on Democratic Lawmaking for Better Laws [8], em que são apresentados 17 princípios para o legislar democrático, entre eles os pré-requisitos do processo legislativo: respeito aos princípios democráticos, aderência ao Estado de Direito e respeito aos direitos humanos. Como já destacado em outra oportunidade [9], trata-se de um documento pioneiro focado especialmente na produção legislativo do direito, do seu potencial democrático, boas práticas parlamentares e desafios contemporâneos. Embora produzido por uma organização com atuação mais regionalizada, podem servir de inspiração para outros países, inclusive o Brasil, uma vez que apresentam rica experiência prática de problemas e soluções enfrentadas por parlamentos.

No âmbito das Américas, há o Parlamericas, entidade instalada em 2001, no âmbito da Organização dos Estados Americanos (OEA), como fórum de compartilhamento de experiências e cooperação entre os parlamentos americanos. Atualmente 35 parlamentos nacionais participam do Parlamericas, inclusive o Brasil. Entre suas publicações, se destacam o Mapa para Abertura Legisaltiva 2.0, de 2021 [10], em que há a descrição de diretrizes e iniciativas para o fortalecimento transparência, accountability, participação social e ética na condução das atividades parlamentares.

Diante desse cenário de multiplicidade de documentos, apontam-se quatro conclusões.

É no mínimo curioso perceber que o debate sobre os princípios – aqui não em sentido jurídico, mas de diretrizes políticas – do processo legislativo seja objeto de maior atenção internacional relativamente a pouco tempo. Desde as revoluções liberais do século 17 e 18, entende-se que os parlamentos são órgãos centrais dos governos representativos e, mais recentemente, das democracias representativas, com suas regras e formalidades.

Contudo, é nas últimas décadas, com as transições democráticas especialmente em países da América Latina, leste Europeu, África e Ásia e as constantes crises da democracia representativa, que se aprofundam as demandas por maior qualidade e democraticidade dos trabalhos parlamentares. Como Elsa Pilichowski, diretora de Governança Pública da OCDE e responsável pelo programa Reforçando a Democracia, destaca: “(..) não é que nossas democracias não estão funcionando como elas costumavam funcionar – são as expectativas dos cidadãos que mudaram” [11]. Há, portanto, novas demandas de transformação democrática do processo legislativo e não apenas um retorno a um idealizado modelo de deliberação do passado.

Em segundo lugar, é possível notar alguns pontos largamente comuns nos diversos documentos e diretrizes sobre o legislar democrático. Diretrizes como respeito à democracia e aos direitos humanos, aumento da participação social e de minorias políticas, legislação com base em evidências e análise de impacto legislativo, igualdade de gênero na política e aumento do uso de ferramentas digitais nas atividades parlamentares, apenas para mencionar alguns, são contemplados nos diversos documentos e apontam para aspectos da transformação dos parlamentos no século 21.

Esses pontos comuns podem oferecer o substrato político para justificar e oferecer alternativas para reformas do arcabouço jurídico a respeito da produção legislativa do direito. Como aponta Edoardo Celeste em relação à grandes declarações de direito do século 18 e, mais recentemente, às diversas declarações de direitos digitais produzidas inclusive por entidades do terceiro setor, há um movimento histórico de que pautas inicialmente políticas do constitucionalismo expressadas em documentos esparsos e não vinculantes sejam incorporadas ao discurso jurídico e, posteriormente, transformadas em direito vigente nos planos nacionais [12]. Essa pode ser justamente a tendência no caso da democratização do processo legislativo a partir dessas diretrizes internacionalmente compartilhadas.

Em terceiro lugar, há uma percepção compartilhada de que a transformação dos parlamentos depende, de um lado, de estável compromisso político dos representantes parlamentares e, de outro, institucionalização por meio de regras e instituições dedicadas a essas atividades. Embora a produção legislativa não seja uma atividade meramente técnica, mas essencialmente política na qual diversas visões de mundo e ideologias são apresentadas para o debate público antes da tomada de decisão, há uma dimensão crescente da incorporação de boas práticas regulatórias para o processo legislativo, que requerem pessoal e instituições com algum grau de independência para produzirem informações para subsídio dos parlamentares. Além disso, a participação social por meio de canais institucionalizados cada vez mais é percebida como um elemento central do processo legislativo e não apenas algo que pode ou não ocorrer a critério exclusivo da maioria parlamentar.

Por fim, e a título de conclusão, abre-se amplo campo para estudos e pesquisas. Para mencionaram-se apenas alguns deles: 1) comparação entre os documentos e perspectivas das organizações internacionais sobre o caráter democrático do processo legislativo, 2) ) análise da colaboração entre essas instituições entre si e os parlamentos nacionais e regionais, 3) estudos de caso para a incorporação dessas diretrizes aos diferentes parlamentos nacionais e regionais, 4) relação dessas diretrizes com o direito positivo vigente de diversos países, com destaque para sua tradução em normas jurídicas constitucionais, legais e regimentais, bem como a prática de sua revisão judicial, e 5) estudos de caso do impacto dessas diretrizes sobre o processo legislativo de leis em concreto para avaliar suas potencialidades e desafios. Como é fácil perceber, trata-se de empreitada que mobiliza diversas áreas do conhecimento entre elas a teoria política, ciência política, política comparada, direito constitucional, direito parlamentar e direito regulatório. Fica, portanto, o convite.


[1] Tímea Drinóczi, “Quality Control and Management in Legislation: a Theoretical Framework”, KLRI Journal of Law and Legislation 7 (2017), p. 73.

[2] https://www.ipu.org/resources/publications/reports/2024-10/world-e-parliament-report-2024

[3] https://www.parliamentaryindicators.org/

[4] https://www.oecd.org/en/publications/2012/11/recommendation-of-the-council-on-regulatory-policy-and-governance_g1g3fce5.html

[5] https://www.oecd.org/en/publications/oecd-regulatory-policy-outlook-2025_56b60e39-en.html#:~:text=Adopt%20regulatory%20reviews%20to%20revise,potential%20for%20risk%2Dbased%20enforcement.

[6] https://www.oecd.org/en/publications/2022/06/regulatory-reform-in-brazil_da75f3f8.html

[7] https://www.oecd.org/en/publications/2024/10/the-oecd-reinforcing-democracy-initiative_458501ab.html

[8] https://www.osce.org/odihr/558321

[9] Victor Marcel Pinheiro, “Review: ODIHR Guidelines on Democratic Lawmaking for Better Laws”, Theory and Practice of Legislation 12 (2024), pp. 344-357.

[10] https://www.parlamericas.org/uploads/documents/Road_map_2.0_ENG.pdf

[11]  Entrevista, “Time to act: Nurturing our democracies for the 21st century”, OECD Podcasts, 2022.

[12] Edoardo Celeste, “Digital Constitutionalism: The Role of Internet Bill of Rights”, London, Routledge, 2023, pp. 116-7.

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Nova regra de supervisão judicial não se aplica a recuperação concedida antes da lei

Embora a nova Lei de Recuperação Judicial e Falências, de 2020, tenha entrado em vigor com aplicação imediata aos processos pendentes, foram mantidos os “atos processuais praticados e as situações jurídicas consolidadas” sob a vigência da norma anterior. As novas regras sobre supervisão judicial, portanto, não se aplicam aos planos de recuperação que foram aprovados e homologados antes de lei entrar em vigor.

Relógio e martelo de juiz sobre calendário

Com base nessa interpretação, a 3ª Turma do Superior Tribunal de Justiça decidiu que o prazo de carência para início dos pagamentos da recuperação da rede Hotéis Othon não afeta o início do prazo de supervisão judicial.

Quando o plano foi aprovado e a recuperação judicial da rede hoteleira foi concedida, a nova lei ainda não havia entrado em vigor. O artigo 61 da lei original, de 2005, previa apenas que, a partir da decisão de concessão, o devedor permaneceria em recuperação até cumprir todas as obrigações previstas no plano que vencessem até dois anos depois.

Após a mudança na legislação, o mesmo artigo passou a prever que o juiz pode ordenar a manutenção do devedor em recuperação judicial até o cumprimento dessas mesmas obrigações, “independentemente do eventual período de carência”.

No plano aprovado e na decisão que concedeu a recuperação à Hotéis Othon, havia a previsão de um prazo de carência de quatro anos para o início do pagamento da maior parte dos débitos.

Após a nova lei entrar em vigor, o Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro determinou que o prazo de supervisão judicial começasse “independentemente do prazo de carência”.

Em recurso ao STJ, a Companhia Estadual de Águas e Esgotos do Rio de Janeiro (Cedae), uma das credoras da rede hoteleira, alegou que a regra não se aplicava ao caso, já que a recuperação foi concedida antes de a nova lei entrar em vigor. O TJ-RJ, porém, decidiu aplicar o entendimento da nova norma.

O ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, relator do caso, acatou os argumentos da Cedae. Ele lembrou que a nova Lei de Recuperação Judicial faz menção ao artigo 14 do Código de Processo Civil, segundo o qual “a norma processual não retroagirá e será aplicável imediatamente aos processos em curso, respeitados os atos processuais praticados e as situações jurídicas consolidadas sob a vigência da norma revogada”.

Recurso negado

Apesar de ter concordado com os argumentos da Cedae sobre a supervisão judicial, a 3ª Turma do STJ negou o recurso e manteve a decisão tomada pelo TJ-RJ. Isso porque a estatal pediu a nulidade do prazo de carência de quatro anos concedido à Hotéis Othon, e o relator considerou que esse prazo não pode ser alterado devido à teoria do isolamento dos atos processuais.

Ele ressaltou que o TJ-RJ não poderia decidir sobre o início do prazo de supervisão judicial ou do prazo máximo de carência previsto no plano de recuperação, pois são temas reservados à deliberação dos credores.

“Assim, ainda que não se possa aplicar a nova redação do art. 61 da Lei nº 11.101/2005 ao caso, observado o disposto no art. 14 do Código de Processo Civil e a teoria do isolamento dos atos processuais, a hipótese é de manutenção do resultado do julgado, que reflete a vontade dos credores ao aprovarem os termos do plano de recuperação judicial, com a previsão de carência de 48 (quarenta e oito) meses para início dos pagamentos, sem nenhuma ressalva quanto à prorrogação do termo inicial do prazo de supervisão judicial”, escreveu o relator.

Clique aqui para ler o voto do relator
REsp 2.181.080

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Terceira Turma nega pedido para que administradora de consórcio seja obrigada a registrar cessão de crédito

O colegiado levou em conta que nenhuma norma impõe à administradora a obrigação de efetuar o registro da cessão de direitos creditórios a pedido do cessionário, com o qual ela não tem nenhum vínculo.

A Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) decidiu que a administradora de consórcio não é obrigada a efetuar o registro, em seus assentamentos, a pedido do cessionário, da cessão de direitos creditórios inerentes a uma cota de consórcio cancelada.

Segundo o processo, uma empresa adquiriu, por meio de instrumento particular, os direitos de crédito relativos a uma cota de consórcio cancelada. Na sequência, ajuizou ação contra a administradora do consórcio para que esta fosse obrigada a anotar, em seu sistema, que ela – a empresa adquirente – havia se tornado cessionária do crédito, e por isso a administradora deveria se abster de pagar o crédito cedido ao consorciado cedente, “sob pena de ter que pagar de novo”.

O juízo de primeiro grau negou os pedidos, por entender que a cessão de cota de consórcio deve observar o disposto no artigo 13 da Lei 11.795/2008. Contudo, o Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP) reformou a sentença e condenou a administradora a anotar em seu sistema a cessão realizada.

No recurso ao STJ, a administradora do consórcio sustentou que, para haver uma transferência de cotas, a sua anuência prévia seria indispensável, mas essa regra não foi observada no caso.

Regulamento do consórcio tem regra para transferência

Segundo o relator, ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, a jurisprudência do STJ entende que a eficácia de uma cessão de crédito está condicionada apenas à notificação do devedor, como disposto no artigo 290 do Código Civil (CC).

Apesar disso, o ministro ressaltou que não se pode desconsiderar o artigo 286 do mesmo código, que dispõe que o credor pode ceder o seu crédito desde que isso não contrarie a convenção firmada com o devedor.

O relator observou, no entanto, que esse não seria o aspecto mais importante para a solução da controvérsia, tendo em vista que, na demanda, não foram questionadas propriamente a validade e a eficácia da cessão de crédito, mas apenas o dever de anotação e registro do negócio jurídico celebrado pelo consorciado com um terceiro, e a pedido deste, nos assentamentos cadastrais da administradora de consórcio.

Não há lei que obrigue o registro

Villas Bôas Cueva destacou que “não há, nem na Lei 11.795/2008 nem nas normas editadas pelo órgão regulador e fiscalizador (Resolução BCB 285/2023), nenhuma disposição obrigando a administradora de consórcio a efetuar o registro da cessão de direitos creditórios, a pedido do cessionário, com o qual aquela não mantém nenhum vínculo obrigacional”.

Ele enfatizou que, mesmo sendo válida a cessão de crédito – questão que não estava em julgamento –, não se poderia criar a obrigatoriedade de anotação e registro do negócio jurídico, como pretendido pela autora da ação.

“Deve o cessionário assumir os riscos de sua atividade, não podendo impor à administradora de consórcios obrigações que ela só tem para com o próprio consorciado”, concluiu o relator.

Leia o acórdão no REsp 2.183.131.

Fonte: STJ