O Projeto de Lei 2864/24, em análise na Câmara dos Deputados, permite que os titulares de cartório (notário ou registrador) possam exercer cargo público ou magistério, mantidos os direitos e deveres e as responsabilidades civil e criminal da atividade previstos na Lei dos Cartórios.
Pela proposta, os tabeliães poderão ser eleitos para cargos no Executivo ou Legislativo, atuar como ministros ou secretários (estadual ou municipal), ou ainda ter cargo em comissão na administração direta.
Atualmente, a Lei dos Cartórios prevê a incompatibilidade do exercício da atividade notarial e de registro com qualquer cargo público. O deputado Darci de Matos (PSD-SC), autor do projeto, defende que isso seja mudado para aproveitar a experiência dos titulares de cartórios.
“Nada mais razoável do que se permitir que eles possam exercer os cargos, quando irão colocar a experiência que acumularam no exercício da sua atividade na gestão da coisa pública”, diz Matos.
Ele lembra que dispositivo parecido estava previsto no projeto que deu origem à Lei dos Cartórios, mas foi vetado pelo então presidente da República Itamar Franco, em 1994.
Passos O projeto será analisado em caráter conclusivo pela Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania (CCJ). Para virar lei, a proposta precisa ser aprovada pela Câmara e pelo Senado.
O Projeto de Lei 3339/24 altera a Lei dos Crimes Ambientais e o Código Florestal para aumentar penas e outras sanções previstas nos casos de incêndios provocados nas matas. O texto está em análise na Câmara dos Deputados.
Conforme a proposta, o crime de provocar incêndio em floresta ou em demais formas de vegetação passará a ter pena de reclusão, de 3 a 6 anos, e multa. Atualmente, a pena prevista nesse caso é de reclusão, de 2 a 4 anos, e multa.
Já o crime de causar poluição que afete ou possa afetar a saúde humana, ou que cause a mortandade de animais ou a destruição da flora, terá pena de reclusão, de 2 a 6 anos, e multa. Hoje, a pena é de reclusão, de 1 a 4 anos, e multa.
Em situações agravantes, caso a poluição provocada torne uma área imprópria para a ocupação humana, ou então exija a retirada, ainda que momentânea, dos habitantes, a pena será de reclusão, de 2 a 7 anos. Hoje, o máximo é de 5 anos.
Ainda pela proposta, quem cometer infrações ambientais que dificultem a plena prestação de serviços públicos, ao realizar, por exemplo, queimada que impeça o trânsito em estradas ou o funcionamento de aeroportos, terá a pena agravada.
Além disso, aqueles que, entre outras condutas, promovam, organizem, coajam ou instiguem o cometimento de crimes ambientais não só responderão pelos atos, mas também poderão ter a pena agravada pela natureza de sua participação.
Por fim, aqueles que fizerem uso irregular do fogo em terras públicas ou particulares ficarão proibidos de contratar com a administração pública ou de receber subsídios, subvenções ou doações que envolvam recursos públicos.
“Não podemos perder de vista que crimes contra o meio ambiente têm como vítima toda a sociedade”, disse o autor da proposta, deputado Gervásio Maia (PSB-PB), ao defender as mudanças na legislação.
Passos
O projeto será analisado pelas comissões de Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável; de Finanças e Tributação; e de Constituição e Justiça e de Cidadania. Depois, seguirá para o Plenário. Para virar lei, terá de ser aprovado pela Câmara dos Deputados e pelo Senado Federal.
A palavra Sankofa, do povo Akan de Gana, significa literalmente “voltar e pegar”. É também um princípio que possui dois símbolos Adinkras: o primeiro, uma ave mística que voa para a frente com a cabeça voltada para as costas, olhando para trás. O segundo, um coração estilizado, com espirais simétricas que ornamentam cada lado da parte lateral inferior.
Como princípio, Sankofa busca encorajar as pessoas a aprenderem com o passado para seguir em frente com seus projetos de vida alcançando seu potencial. A palavra deriva da junção de san, ko e fa; olha, busque e pegue. Também é associada a um provérbio: “Não é vergonha voltar para pegar o que você esqueceu, deixou para trás”.
Não é somente nos portões das casas brasileiras que vemos o Sankofa. O método de iniciação à ciência, revisão bibliográfica, também reflete, no espaço da academia, esse princípio, portanto, universalista mais do que “multicultural especificista”. O passado não pode ser perdido de vista durante os esforços de avanço do saber.
O projeto Exposição Ocupação Itaú Cultural, durante sua homenagem ao ex-senador Abdias do Nascimento, declarou, assim como sua viúva, como o princípio do Sankofa capturava a essência da prática ativista do inscrito no livro dos Heróis da Pátria [1]. Pioneiro em diversos espaços influenciando desde filósofos, como a destacada referência do feminismo negro brasileiro Aparecida Sueli Carneiro Jacoel [2] (SANTANA, 2001, p.13), juristas como Eunice Aparecida de Jesus Prudente [3] e demais na Teoria Crítica Racial Brasileira [4], como Dora Lúcia de Lima Bertúlio [5], e Kimberlé Willians Crenshaw, durante seu período de pesquisadora Fullbright na America Latina [6].
A comunidade afrodescendente brasileira e o movimento negro brasileiro tiveram sua pouca história escrita, quando existente, guardada em raríssimas bibliotecas que conseguiam referenciar tais Griots. Perdurou-se, e ainda perdura, a tradição oral de transmissão de saber, inclusive nos espaços onde aquelas obras encontravam-se guardadas [7].
Na última década, destacadamente, as escritas avolumaram-se. Ao mesmo tempo, essas descrições ou narrativas deixaram de ser tão completas quanto àquelas orais transmitidas pelos Griots, apesar da maior capacidade de “trânsito e viagem digital simplificados” em nosso vasto território continental e digitalizado.
Aqueles lançados em espaços sem referências de Griots, de mentoria ou de obras sobre a história da diáspora negra e brasileira, tiveram a formação sujeita a ideação de negro brasileiro [8] de seus mentores, em sua maioria não negros. Espaços onde dever-se-ia estabelecer diálogo entre culturas e não métodos de imposição de uma sobre outra, tornando-os, assim, democráticos plurais e republicanos, foram insuficientes em suas missões por falta de diversidade.
Somou-se a essa distância do saber dos Griots, nos territórios que receberam a juventude subalternizada, o fomento ao efeito Dunning-Kruger, jovens e sem referência, fomentaram o epistemicídio de predecessores enquanto popularizaram tradutores como inovadores do letramento racial de combate ao viés racial.
Convenientemente, para alguns, mentorados mantidos ignorantes da necessária precedência do método científico da revisão literária para iniciação científica, fosse da pouca bibliografia que existia fosse dos saberes Griots brasileiros, depararam-se com a popularização de um pretenso debate sobre justiça racial durante a pandemia nas redes sociais.
A pandemia não somente tornou nos testemunha do movimento Black Lives Matter (BLM), mas também nos lançou no mundo dos influencers e divulgadores científicos com ares de produtores, que sistematizavam, traduziam e compilavam, indistintos para a população em geral formando suas opiniões.
As razões de tais insuficiências e inconsistências não são oriundas, somente, da falta de formação básica sobre métodos de pesquisa e consequente não deliberada ignorância, inclusive, da necessidade de olhar para trás quando se manipula as ferramentas do direito, mas também da orientação ideológica de quem escolheu silenciar e fomentar citação seletiva, em deliberado intraepistemicídio, das lições do passado africano, afrobrasileiro, brasileiro, mundial e diáspora africana.
Fossem, os deliberadamente não epistemicidas, apresentados à importância dos clássicos, do antirracismo e do Direito, personagens como Luís Gama [9], Esperança Garcia, Abdias do Nascimento, Eunice Prudente, Dora Bertúlio, Hédio Silva, entre outros, nos primeiros contatos com os estudos do Direito, Justiça Racial e suas ciências auxiliares, teriam aprendido de início a “possibilidade de usar o direito contra o direito” [10], ou seja, conhecendo suas vidas e ativismo na “história” do país, e observando, com o olhar atento “para trás” a importância da “práxis” jurídica nos esforços de emancipação plena da diáspora africana em território brasileiro. Reconhecendo, assim, a natureza dual do direito posto, de instrumento de subalternização bem como instrumento de emancipação e conclamando à disputa.
Do mesmo modo que Luís Gama e Esperança Garcia estudaram o sistema posto para disputar proteção de direitos a si e demais subalternizados no pré-abolição, ainda é vital estudar a história dos predecessores nas disputas por Justiça Racial. Conhecedores do sistema positivado não precisam “transplantar” órgãos/institutos jurídicos”, de sistemas outros incompatíveis ao sistema nacional. Lamentavelmente, muitos não compreenderam que as disciplinas propedêuticas do direito são inerentes a formação do jurista e não complementares, estanques, ausentes do cotidiano da instrumentalização técnica profissional.
A incongruência de conclame ao resgate de pautas de justiça racial a partir de uma ignorância às precedentes referências e suas produções, tanto do conteúdo jurídico nacional quanto da nossa história, africana, afrobrasileira e a história nacional, dimensão fatual [11] da tridimensionalidade do direito brasileiro, segue ameaçando a Justiça Racial.
Agora que se inicia um novo ciclo Gregoriano, em lugar de voar impensadamente para a frente, correndo o risco de ir em direção oposta ao avanço, condenando-se a um eterno retorno enquanto enfrenta-se espantalhos [12], por que não reduzir a velocidade do voo e olhar detidamente para trás, reconhecendo a cientificidade jurídica do debate sobre justiça racial que nos precisamos fazer e reduzindo a distância do que se precisa voltar para buscar?
[4] “A teoria crítica racial, elaborada a partir da constatação dos retrocessos e da insuficiência dos avanços em direção à igualdade racial obtidos por meio da legislação dos direitos civis e da ação afirmativa, nos Estados unidos, tem origem no âmbito jurídico, mas amplia-se para as ciências sociais.” NASCIMENTO, E. L. O sortilégio da cor: identidade, raça e gênero no Brasil. Editora Selo Negro. São Paulo. 2003. p.100.
[7]Nos anos 90s a Biblioteca do Centro Cultural de São Paulo sobre história, possuía uma sessão sobre movimento negro no Brasil. Em 1990 Benedita da Silva publicava tradução de “Escrevo o que eu Quero” de Steve Biko.
[8] Em África Pré Colonial a função de mentor restringia-se àqueles que se dedicaram pelo menos há mais de 30/40 anos ao saber. Assim, a posição de Sábio, de Griot Embaixador/Genealogista, de Sobá, de Régulo da comunidade apenas era reconhecida àqueles que se dedicaram por décadas a formarem-se para ocupar tais posições. http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/ue000318.pdf
[9] É sabido que Luiz Gama valia-se, destacadamente, das normas de aplicação da lei brasileira no tempo e espaço, assim como do controle de convencionalidade, dos contratos de compra e venda de escravizados, para conquistar a liberdade de inúmeros africanos no Brasil.
[12] “A falácia do espantalho consiste em apresentar de forma caricata o argumento da outra pessoa, com o objetivo de atacar essa falsa ideia em vez do argumento em si. Deturpar, citar de maneira incorreta, desconstruir e simplificar demais o ponto de vista do adversário são formas de cometer essa falácia. Em geral, o argumento espantalho é mais absurdo que o argumento real, facilitando o ataque. Além disso, acaba levando o oponente a perder tempo defendendo-se da interpretação ridícula de seu argumento, em vez de sustentar sua posição original.” Almossawi, Ali. O livro ilustrado dos maus argumentos [recurso eletrônico] / Ali Almossawi; ilustração de Alejandro Giraldo. 1. ed. Rio de Janeiro: Sextante, 2017
A Comissão de Segurança Pública da Câmara dos Deputados aprovou, em dezembro, o Projeto de Lei 2435/24, que autoriza o delegado de polícia a apresentar diretamente ao Poder Judiciário medidas cautelares e recursos relacionados à investigação sob sua responsabilidade. O texto altera a Lei 12.830/13, que regulamenta a investigação criminal conduzida por delegado.
Mario Agra / Câmara dos Deputados
Relator na comissão, Delegado Paulo Bilynskyj
Na prática, o projeto concede aos delegados de polícia a chamada capacidade postulatória, permitindo a eles requerer algumas medidas diretamente ao juiz, sem precisar passar pelo Ministério Público. Atualmente, apenas membros do Ministério Público e advogados possuem autorização para atuar em juízo.
Pela proposta, além das atuais medidas protetivas de urgência da Lei Maria da Penha, os delegados poderão também apresentar diretamente à Justiça pedidos de:
prisão temporária ou preventiva;
busca e apreensão de pessoas ou objetos;
interceptação de comunicações ou dados;
quebra do sigilo bancário ou fiscal;
exame de insanidade mental;
sequestro ou arresto de bens.
O texto autoriza ainda o delegado de polícia a interpor recurso relacionado à medida concedida ou negada.
O autor do projeto, deputado Delegado Caveira (PL-PA), entende que a medida reflete “os interesses da sociedade e a busca incessante da verdade real no curso das investigações policiais presididas pelo delegado de polícia”. Ele sustenta que, na prática, manifestações, recursos e cautelares já são rotina na atividade policial.
Relator, o deputado Delegado Paulo Bilynskyj (PL-SP) defendeu a aprovação do projeto. “Não se vislumbra impedimento técnico para a adição de competência ou o merecido e devido reconhecimento da legitimidade recursal dos delegados. Na prática, isso certamente trará resultados excepcionais para as atividades investigativas conduzidas pelas polícias do Brasil”, afirmou.
Próximos passos A proposta será ainda analisada, em caráter conclusivo, pela Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania. Para virar lei, precisa ser aprovada pela Câmara e pelo Senado.
O Projeto de Lei 2738/24 altera o Código de Processo Penal para permitir o uso de drones para obtenção de provas em processos criminais. O objetivo do autor da proposta, deputado Kim Kataguiri (União-SP), é modernizar os métodos de investigação e facilitar a coleta de evidências em casos judiciais.
Bruno Spada/Câmara dos Deputados
Kim Kataguiri, o autor da proposta
A Câmara dos Deputados analisa o projeto.
O texto acrescenta dois artigos ao Código de Processo Penal. O primeiro deles considera lícitas as fotografias aéreas obtidas por meio de drones. Assim, essas imagens poderão ser utilizadas como prova no processo, dependendo do momento em que foram produzidas e anexadas.
O outro artigo dispensa de autorização judicial a tomada de fotografias aéreas por meio de drones. O texto considera válidos os elementos informativos obtidos dessa forma quando se destinam a auxiliar na localização de vítimas, bens ou objetos relacionados a atividades criminosas.
Receio Kim Kataguiri diz que hoje há receio de aceitar provas produzidas por drones em razão da linha tênue que separa o lícito do ilícito, no que diz respeito à violação da vida privada e do domicílio. Ele observa, por outro lado, que o entendimento jurídico é de que os direitos não são absolutos quando o interesse é público.
“O Estado deve levar em conta que, na aplicação dos direitos fundamentais individuais e sociais, há a necessidade de garantir também ao cidadão a eficiência e a segurança, evitando-se a impunidade”, defende Kataguiri.
Autorização Sobre mandado judicial para utilizar drones em investigações criminais, o parlamentar afirma que a tecnologia está ao alcance do público, podendo ser comprada em lojas físicas e virtuais. “Seu emprego não se converte numa busca capaz de suprimir a privacidade garantida pela inviolabilidade do domicílio”, argumentou o deputado.
Por essa razão, ele afirma que é a autorização judicial prévia para a realizar aerofotografias é dispensável.
Kataguiri lembra ainda que o Código de Processo Civil prevê o direito de as partes empregarem todos os meios legais e moralmente legítimos, ainda que não especificados na norma, para provar a verdade dos fatos.
Ele acrescenta que o uso de drones no combate ao crime organizado permite o levantamento de áreas de imóveis usados para ocultar o produto da prática criminosa.
Próximos passos O projeto será analisado pela Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania antes de ser votado pelo Plenário da Câmara. Para virar lei, a medida precisa ser aprovada pelos deputados e pelos senadores.
A mitologia grega nos ensina que a previsibilidade absoluta, assim como a onisciência, não faz parte da natureza humana, e que prever sempre o futuro pode ser mais sina do que virtude. A ninguém é dado o pleno domínio dos acontecimentos, razão pela qual o ordenamento jurídico confere tratamento especial às hipóteses de imprevisibilidade, disciplinando, inclusive no âmbito da administração pública, as situações emergenciais.
Diz a lenda que Sísifo, dotado de grande astúcia, vivia aplicando golpes e enganando os deuses, sempre planejando cada detalhe de seus empreendimentos ardilosos. Suas tramas eram bem-sucedidas sobretudo por sua extraordinária capacidade de prever com precisão o resultado de suas ações. Esse poder de previsão, no entanto, acabou selando seu destino, tornando-se sua punição eterna. Ele, rei de Corinto, enganou Tânatos e conseguiu neutralizar a morte, prendendo-a a uma coleira, o que ameaçou a segurança dos deuses, na medida em que os inimigos do Olimpo não mais morriam, tornando-se imunes à guerra.
Como punição, foi condenado a rolar uma grande pedra até o topo de uma montanha, a qual retornava ao sopé toda vez que atingia o cume, em um ciclo perpétuo de previsibilidade. Toda vez que iniciava a fatigante jornada de empurrar aquela rocha, já sabia de antemão que ela retornaria ao ponto de origem, tornando inútil seu desforço. A tristeza de saber exatamente o que iria acontecer pelo resto de sua vida foi sua pena.
Isso nos lembra que a imprevisibilidade faz parte da vida e é normal que sempre haja acontecimentos que fujam de nosso controle, sem que isso signifique falta de planejamento. Essa é a chamada situação emergencial, a qual é regulada no âmbito da administração pública. Evidentemente, essa não é a regra, ao contrário, a Lei de Improbidade (Lei nº 8.429/1992), em seu artigo 10, VIII, considera ato de improbidade toda ação dolosa de frustrar a licitude de processo licitatório, sancionando o administrador ímprobo com a perda de todos os bens e valores acrescidos ilicitamente ao seu patrimônio, perda da função pública, suspensão dos direitos políticos por até 12 anos, pagamento de multa civil equivalente ao dobro do dano e proibição de contratar com o poder público por até 12 anos (artigo 12 da lei, II).
Nossa CF, em seu artigo 37, XXI, determina que os contratos públicos devem ser precedidos de licitação. Assim, a regra é o planejamento adequado da ação pública, com a observância do princípio da impessoalidade e a seleção objetiva da proposta mais vantajosa ao erário, mediante um procedimento que estabeleça a justa competição entre todos os interessados em contratar com o poder público. A exceção só se apresenta quando a situação de normalidade não estiver presente, em razão da extraordinária ocorrência do evento imprevisível. A situação excepcional está prevista no artigo 75, VIII, da Lei Federal nº 14.133/2021 (antigo artigo 24, IV, da revogada Lei de Licitações – Lei Federal nº 8.666/1993). Referido dispositivo dispensa a licitação nos casos de emergência e calamidade pública.
Ninguém está livre de situações imprevisíveis que demandem ações urgentes do administrador público, sob pena de prejuízo ao erário, interrupção na prestação de serviços públicos contínuos, risco à segurança de pessoas ou comprometimento de obras, serviços, equipamentos e outros bens, públicos ou particulares.
A situação emergencial se caracteriza pela conjugação simultânea de diversos elementos e estão normatizados como pressupostos objetivos da emergência. São eles:
“a.1) que a situação adversa, dada como de emergência ou de calamidade pública, não se tenha originado, total ou parcialmente, da falta de planejamento, da desídia administrativa ou da má gestão dos recursos disponíveis, ou seja, que ela não possa, em alguma medida, ser atribuída à culpa ou dolo do agente público que tinha o dever de agir para prevenir a ocorrência de tal situação; a.2) que exista urgência concreta e efetiva do atendimento a situação decorrente do estado emergencial ou calamitoso, visando afastar risco de danos a bens ou à saúde ou à vida de pessoas; a.3) que o risco, além de concreto e efetivamente provável, se mostre iminente e especialmente gravoso; a.4) que a imediata efetivação, por meio de contratação com terceiro, de determinadas obras, serviços ou compras, segundo as especificações e quantitativos tecnicamente apurados, seja o meio adequado, efetivo e eficiente de afastar o risco iminente detectado” (Decisão Plenária n° 347/1994 do TCU).
Com efeito, é imprescindível que a urgência não tenha sido causada pela desídia ou premeditação do administrador, o qual não pode beneficiar-se de sua própria torpeza para ver-se livre do dever de licitar. Emergência é situação não desejada, não prevista e inevitável.
Deste modo, o pressuposto legal da inevitabilidade é o fato gerador da imprevisibilidade amparada pelo ordenamento jurídico e autorizadora da contratação emergencial. É exatamente esse o fator decisivo que distingue a legítima dispensa do procedimento licitatório do ato doloso de improbidade. Trata-se, portanto, da pedra-de-toque do administrador público para viabilizar a contratação emergencial, amparado nas disposições do inciso IV, artigo 24, da revogada Lei Federal nº 8.666/1993, e no atual artigo 75, VIII, da Lei Federal nº 14.133/2021. Tais julgados paradigmáticos, oriundos do Plenário do TCU, confirmam que contratação emergencial não pode ser decorrente de ausência de planejamento ou incúria do gestor público:
“A contratação emergencial destina-se somente a contornar acontecimentos efetivamente imprevistos, que se situam fora da esfera de controle do administrador e, mesmo assim, tem sua duração limitada a 180 dias, não passíveis de prorrogação (art. 24, inciso IV, da Lei 8.666/1993). (Acórdão 4570/2014- Plenário | Relator: JOSÉ MUCIO MONTEIRO).”
“É irregular a contratação tida como emergencial, por dispensa de licitação, sempre que não esteja presente o elemento da imprevisibilidade dos acontecimentos futuros, pois, nesses casos, restam demonstradas a falta de planejamento e a desídia administrativa por parte do gestor público. (Acórdão 1030/2008-Plenário | Relator: VALMIR CAMPELO).”
“A dispensa de licitação por situação emergencial caracterizada não em fatos novos e imprevisíveis, mas em situação decorrente de ausência de planejamento do gestor conduz à irregularidade das contas e à imposição de multa. (Acórdão 798/2008- Primeira Câmara | Relator: MARCOS BEMQUERER)”.
A ausência intencional de planejamento para provocar artificialmente a situação emergencial ou a demora excessiva resultante de falha da administração, descaracteriza por completo a excludente da imprevisibilidade. São exemplos disso: desconhecimento intencional de situações historicamente de risco; execução de serviços além do estritamente necessário; fracionamento das obras causando recontratações; reduzido número de fiscais ou mão de obra; inadequadas qualificações operacional e econômica das contratadas; demora judicial decorrente de questionamentos jurídicos acerca do caráter restritivo do edital; alterações contratuais não formalizadas etc. Essas inferências normalmente são identificadas como pretexto para as contratações emergenciais. São fatores ilegítimos não autorizadores das situações emergenciais. Nesses casos, não houve imprevisibilidade, na forma preconizada pela nossa legislação e jurisprudência contemporânea dos Tribunais de Contas, mas dispensa ilegal do procedimento licitatório.
Importante pontuar que a contratação emergencial nasce de situação efetivamente imprevisível e, portanto, que não pode ser perene, sendo autorizada pelo prazo de um ano e proibida a recontratação de empresa (cf. artigo 75, VIII, da Lei Federal nº 14.133/2021). No regime anterior (artigo 24, inciso IV, da Lei Federal nº 8.666/1993), não havia impedimento à seguidas recontratações com base em situação emergencial, causando um efeito de potencial perenidade em contratações diretas com a mesma empresa e consequente burla ao princípio da isonomia entre os licitantes.
Sobre tal fator, o Supremo Tribunal Federal se pronunciou, ante a provocação da Ação Direta de Inconstitucionalidade 6890, de tal forma a esclarecer o escopo do dispositivo questionado (artigo 75, VIII, da Lei Federal nº 14.133/2021): coibir contratações emergenciais sucessivas, salvo antes do decurso do prazo de um ano, conjugado ao impedimento de recontratação fundada na mesma situação. Essa interpretação conforme à Constituição Federal de 1988, respeita o princípio da satisfação do interesse público, conforme acentuado na deliberação unânime do Plenário da Excelsa Corte, da mencionada Ação Direta de Inconstitucionalidade 6890. Tal, no entanto, “não impede que a empresa participe de eventual licitação substitutiva à dispensa de licitação ou seja contratada diretamente por fundamento diverso previsto em lei, inclusive outra emergência ou calamidade pública, sem prejuízo do controle por abusos ou ilegalidades verificados na aplicação da norma.”
Em uma aplicação prática dessa leitura do artigo 75, VIII, da Lei Federal nº 14.133/2021, se for introduzida a ocorrência do fracionamento das obras, o contexto se torna violador à regra do artigo 37, XXI, da Constituição de 1988, que estabelece a obrigatoriedade da licitação e a excepcionalidade da contratação direta, situações de matriz republicana. A possibilidade legal de contratação emergencial pressupõe o requisito da autêntica imprevisibilidade, limitada no tempo e circunscrita ao objeto estritamente necessário, ante o risco à segurança de pessoas, obras, prestação de serviços, equipamentos ou bens públicos ou privados, cumprindo, em si, um princípio de matriz republicana nas sociedades contemporâneas. Aos órgãos de controle cabe sempre avaliar caso a caso, com critério, seriedade e ponderação, a fim de garantir a prestação do serviço público mediante dispensa de licitação nas hipóteses verdadeiramente necessárias, pena de afronta ao princípio republicano.
O Projeto de Lei 3271/24 determina a destinação de pelo menos 30% da remuneração pelo trabalho do preso para indenização dos danos causados pelo crime. Conforme a proposta, que está em análise na Câmara dos Deputados, o valor será destinado à vítima ou a seus dependentes, devendo ser repartido proporcionalmente caso haja mais de uma vítima.
Mário Agra/Câmara dos Deputados
Pazuello: medida compensa perdas e reafirma a importância da vítima no processo penal
Hoje, a Lei de Execução Penal já estabelece, entre as destinações da remuneração do preso, a indenização dos danos causados pelo crime, desde que determinados judicialmente e não reparados por outros meios. No entanto, não estabelece um percentual mínimo para essa destinação.
Autor do projeto, o deputado General Pazuello (PL-RJ) afirma que, na prática, são raros os casos em que parte da remuneração efetivamente se destina à indenização de danos, o que justifica trazer a reparação à vítima ou a sua família para o centro do debate.
“A reparação dos danos causados pelo crime atua como um instrumento que compensa as perdas enfrentadas e reafirma a importância da vítima no processo penal. Esse mecanismo pode ajudar a restaurar sua dignidade e apoiar a reconstrução de sua vida ou trazer o mínimo de alento e sentimento de justiça”, afirma o parlamentar. “Ademais, promove-se um sistema mais transparente e responsável, em que o impacto do crime é reconhecido de forma mais ampla”, conclui.
Tramitação O projeto tramita em caráter conclusivo e será analisado pela Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania. Para virar lei, a medida precisa ser aprovada pelos deputados e pelos senadores.
Funcionários-influenciadores do presente não diferenciam público e privado
Certa vez, em uma conversa com um colega promotor de justiça, ele me contou como precisou explicar a um prefeito de uma cidade do interior que este não tinha liberdade para contratar quem bem entendesse, sendo necessário seguir um procedimento licitatório. Irresignado, o prefeito indagou: qual, então, é a vantagem de ser prefeito?
Essa anedota ilustra com clareza uma das grandes chagas do Estado brasileiro: o patrimonialismo. Essa confusão entre o que é público e o que é privado permite que agentes do Estado utilizem bens e funções públicas para avançar seus interesses pessoais. As manifestações desse fenômeno são diversas: o uso de carros oficiais para tarefas privadas; pressão de professores em universidades federais para favorecer ou barrar a admissão de certas pessoas; nepotismo – inclusive cruzado – em tribunais, prefeituras e assembleias. Os exemplos são intermináveis.
Em Os donos do poder,[1] Faoro explica como esse vírus que contamina o “estamento burocrático” brasileiro é uma herança da colonização portuguesa, servindo às elites político-administrativas em seus projetos de perpetuação no poder e manutenção de privilégios. Um reflexo disso está no sistema tributário e seus benefícios desiguais, assim como nos penduricalhos que formam os supersalários do alto escalão do Estado brasileiro.
Hoje, com o advento da tecnologia e das redes sociais, assistimos à emergência de uma nova face desse comportamento: os funcionários-influenciadores, que utilizam suas posições públicas para fins privados, agravando o histórico problema do patrimonialismo no país.
A monetização direta
Um exemplo disso ocorre na segurança pública. Não são poucos os canais no YouTube em que policiais gravavam vídeos de suas operações e os compartilhavam para milhares de seguidores. A prática nada tem de inofensiva, além de prejudicar a própria corporação, ao expor procedimentos de enfrentamento ao crime, os policiais aumentam sua renda com ganhos em dólar.
O problema vai muito além de uma questão ética. A notoriedade que conquistaram – de forma indevida – não só garantiu que esses agentes experimentassem um acúmulo patrimonial, mas também abriu caminho para que entrassem na política, um campo onde fama muitas vezes supera competência como critério de sucesso eleitoral.
A segurança pública, no entanto, não foi o único ambiente em que a nova face do patrimonialismo se manifestou. No Congresso Nacional, que abriga algumas das posições mais bem remuneradas do país, parlamentares têm utilizado as redes sociais como ferramentas lucrativas para incrementar seus rendimentos de maneira questionável. Nesse ambiente, onde o Poder Legislativo deveria se concentrar na formulação de políticas públicas, surge a figura do “parlamentar-influenciador”.
Como demonstrou reportagem do The Intercept, deputados federais vêm explorando plataformas como o Instagram para vender assinaturas que dão acesso aos bastidores de seus mandatos, respostas a perguntas e destaques em lives. A prática não só cria um canal paralelo de remuneração, mas também mina a já debilitada confiança da população no sistema político, uma vez que se torna possível pagar pelo acesso prioritário ao representante do povo.
Embora a Câmara tenha tentado conter esse abuso ao proibir monetizações relacionadas ao exercício do mandato no YouTube, a regra já nasceu ultrapassada. A brecha deixada pela ausência de regulamentação sobre o Instagram – porque o recurso de monetização não existia na época da norma – permitiu que os deputados continuassem a encher seus bolsos com uma atividade pela qual já são generosamente remunerados.
Monetização indireta
Aqui a situação fica mais nebulosa, porque a remuneração extra é uma consequência indireta do exercício da função pública.
Em um país com níveis pornográficos de desigualdade, concursos públicos são uma das melhores formas de transformação social. Essa transformação, porém, não é apenas financeira, mas também de status. Cargos como o de magistrado ou de membro do Ministério Público carregam uma aura de realeza, alçando os concursados ao patamar de seres superiores – pelo menos aos olhos de boa parte da população.
Esses cargos estão submetidos a vedações constitucionais que impedem seus ocupantes de acumular outras funções, exceto a de professor. Contudo, as redes sociais permitem que juízes e promotores atuem também como influenciadores digitais – o que, por si só, não é um problema.
Torna-se um problema, no entanto, quando o desempenho da atividade privada prejudica o desempenho da função pública. Não são raros os casos de pessoas que abandonaram a magistratura após utilizarem a estrutura do cargo para construir novas carreiras.
Afinal, por que começar do zero se é possível se beneficiar do Estado enquanto se monta algo mais lucrativo? Entre os concurseiros, essa prática já virou piada: ser juiz tornou-se um “cargo meio” para a vida de influenciador.
A questão se complica ainda mais quando analisamos o conteúdo produzido por alguns desses “jus-influenciadores”. Alguns agentes públicos utilizam gravações de audiências que conduzem para gerar engajamento em redes sociais.
Essa prática é profundamente problemática por pelo menos três razões: (1) o fato de a audiência ser pública não implica permissão aberta para o uso do material para fins privados, especialmente por parte daqueles responsáveis pela gravação; (2) houve consentimento das partes envolvidas para a divulgação de suas imagens?; e (3) até que ponto alguém, submetido à jurisdição, está realmente livre para negar um pedido do juiz?
Veja, não estou alegando que existe, nessa situação, uma ilegalidade. Não falo de um vício de consentimento no sentido civilista. Minhas observações são direcionadas a um comportamento anticonstitucional, por violar elementos fundantes do nosso documento fundador.
Esse tipo de expediente, praticado pelos “jus-influenciadores”, não só garante que eles consigam construir uma carreira paralela àquela que já desempenham, mas também abrem portas para novas possibilidades de ganhos. “Jus-influenciadores” conseguem projeção para lançar projetos pessoais, notoriedade para participar de congressos e, por vezes, até espaço no campo político – tudo isso construído sobre a estrutura do Estado.
Um compromisso republicano
Há tentativas – ainda que tímidas – para conter essa nova face do patrimonialismo. No Congresso, por exemplo, foi apresentado um projeto de lei que proíbe qualquer tipo de monetização “pela divulgação de conteúdos, como publicações em redes sociais, incluindo áudio e vídeo, relacionados ao exercício do mandato ou produzidos com recursos públicos”.[2]
Mas isso não é suficiente. É imprescindível que instituições como o Conselho Nacional de Justiça (CNJ), o Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP) e outros órgãos de controle assumam um papel mais ativo na supervisão e responsabilização dos agentes públicos.
Esses órgãos precisam agir com celeridade e rigor para impedir que o Estado continue sendo instrumentalizado como uma ferramenta de enriquecimento privado, agravando as desigualdades que já caracterizam nossa sociedade.
A República, enquanto princípio fundamental, exige um compromisso ético e prático com a separação entre o público e o privado. Não levar esse princípio a sério não pode ser a sina de nossa nação. Afinal, as consequências de ignorar essas práticas vão muito além do simbólico: afetam diretamente a coesão social e a legitimidade democrática.
Em uma sociedade profundamente desigual como a brasileira, o poder de influência dos menos favorecidos já é dramaticamente reduzido. Quando agentes públicos utilizam suas posições para maximizar ganhos pessoais, isso aprofunda a percepção de que o sistema está estruturalmente distorcido a favor de uma casta privilegiada. Esse sentimento não apenas mina a confiança nas instituições, mas também alimenta discursos populistas e anti-elite – tendências que, em tempos recentes, se tornaram perigosamente frequentes no mundo.
Enfrentar essa nova face do patrimonialismo não é apenas uma questão moral; é um passo para fortalecer nossa República e reforçar os pilares da democracia. Permitir que agentes públicos continuem dançando sobre a linha que separa o público do privado, utilizando o Estado como instrumento de enriquecimento pessoal, não apenas perpetua desigualdades, mas também corrói a confiança da sociedade nas instituições. Proteger a República significa reafirmar que os recursos públicos existem para o benefício coletivo, e não como trampolins para ambições pessoais.
A Quarta Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) entendeu que, em uma ação que discute exclusivamente a partilha de bens, ajuizada antes do pedido de medida protetiva pela mulher, deve ser preservada a competência do juízo cível em que o processo teve início.
O caso chegou ao STJ após o juízo da vara de família declinar da competência em uma ação de partilha de bens, sob o fundamento de que o posterior pedido de medida protetiva contra o autor da demanda, acusado de violência doméstica, tornaria competente para o caso o juízo da vara de violência doméstica e familiar.
O tribunal de origem, ao solucionar o conflito de competência suscitado, fixou a vara de violência doméstica como responsável pelo processo, por entender que as ameaças supostamente feitas pelo ex-marido estariam relacionadas à divisão dos bens.
No recurso especial dirigido ao STJ, o Ministério Público alegou que o processo trata apenas da partilha do patrimônio do casal, razão pela qual deveria tramitar no juízo cível.
Divórcio ocorreu muito antes do ajuizamento da ação de partilha
A relatora, ministra Isabel Gallotti, afirmou que, no caso dos autos, não se trata de ação de divórcio ou de dissolução de união estável, mas apenas de partilha de bens, tema que foi expressamente excluído da competência dos juizados de violência contra a mulher, de acordo com o artigo 14-A, parágrafo 1º, da Lei Maria da Penha (Lei 11.340/2006).
A relatora explicou que o divórcio ocorreu cerca de três anos antes da proposição da ação de partilha de bens, que chegou a tramitar durante dois anos na vara de família antes de ser enviada para o juízo de violência doméstica, devido ao superveniente ajuizamento do requerimento de medida protetiva pela mulher.
Ao fixar a competência da vara de família para processar e julgar a partilha do patrimônio, Isabel Gallotti salientou que, mesmo que fosse o caso de ação de divórcio ou dissolução de união estável e a situação de violência doméstica tivesse começado após o início do processo, este deveria continuar tramitando preferencialmente no juízo em que se encontrasse.
O número deste processo não é divulgado em razão de segredo judicial.
O Conselho de Recursos do Sistema Financeiro Nacional (CRSFN) foi concebido, em 1985, para exercer a função de instância recursal das decisões de caráter punitivo proferidas pelo Banco Central do Brasil (BCB) e pela Comissão de Valores Mobiliários (CVM), decorrentes de processos administrativos instaurados no âmbito daquelas instituições, por força de seu poder de polícia.
Com o passar do tempo, o conselho acumulou novas atribuições, passando a ser competente também para os recursos de processos sancionadores oriundos do Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf), da Superintendência de Seguros Privados (Susep), da Polícia Federal e do Conselho Nacional de Justiça Federal (CNJ), no que diz respeito às regras concernentes às Políticas de Prevenção à Lavagem de Dinheiro.
Até sua criação, a função revisora era competência do Conselho Monetário Nacional (CMN), conforme a antiga versão do artigo 4º, inciso XXVI, da Lei nº 4.595, de 31 de dezembro de 1964.
Desse desdobramento é que surge o apelido de “Conselhinho”, pelo qual o CRSFN passou a ser conhecido na comunidade financeira e no meio dos advogados que militam na área. Essa denominação, longe de significar apequenamento da importância da instituição, traduz um colegiado respeitado no meio jurídico financeiro, pelo qual já passaram mais de 200 conselheiros que julgaram, nos 40 anos de sua existência, em torno de 8.000 processos, envolvendo matérias das mais variadas entre as competências que lhe foram atribuídas.
A composição do Conselho de Recursos, com participação paritária de integrantes do setor público e indicados pelas entidades representativas do mercado, dá ao CRSFN o porte de um verdadeiro tribunal administrativo. Com sessões abertas ao público em geral e a possibilidade de sustentação oral pelos representantes dos recorrentes, confere total transparência e legitimidade ao processo de julgamento.
O modelo de composição atual, vigente a partir da edição da Portaria MF n° 1.560, de 2023, abandonou o conceito de assento cativo por determinadas entidades, multiplicando o rol de entidades associativas que podem apresentar indicações para o processo seletivo de conselheiros, desde que se credenciem para tal fim. A composição atual do CRSFN se dá por segmentos do mercado, respeitando o equilíbrio na representatividade do SFN, fazendo parte dele o segmento de auditoria e governança corporativa, de grande relevância para a higidez das instituições.
Ao longo das últimas décadas, desde a implantação de um regime sancionador para os mercados regulados, o sistema financeiro deu passos largos. Cresceu em tamanho e complexidade. Surgiram diversas novas instituições oferecendo uma gama incontável de produtos e serviços, ampliando exponencialmente o número de clientes, consumidores e/ou investidores. Decorre disso, o aumento proporcional de assuntos incorporados ao rol de atribuições do Conselho de Recursos, à medida que se ampliam as atividades de supervisão dos órgãos reguladores desses mercados.
À medida que o tempo passa, aumenta a complexidade das operações praticadas, a sofisticação dos instrumentos e dos produtos financeiros, bem como a criatividade dos agentes que operam no sistema. São novas formas de estruturação das operações financeiras, que dificultam a compreensão e avaliação dos riscos envolvidos. São novas modalidades de instituições financeiras, a exemplo dos bancos digitais e das fintechs demandando nova regulação. Surgem, a cada dia, outros instrumentos financeiros, moedas digitais, criptomoedas, tokens etc. Tudo isso cria desafios intermináveis para os órgãos de supervisão, não só impondo a necessidade de editar novos normativos visando a proteção dos interesses dos usuários e investidores, como também de implementar práticas e sistemas eficazes para avaliar e preservar a solidez e solvência das instituições que atuam na intermediação financeira e, assim, evitar crises generalizadas de desconfiança no SFN.
As novas normas expedidas pelos reguladores vêm, nesse compasso, exigindo medidas que aumentem a capacidade de gestão dos riscos a que estão submetidas as instituições financeiras em suas operações, diante dos cenários adversos; mais efetividade dos controles internos das instituições; a qualidade da governança corporativa; a transparência e confiabilidade do sistema de divulgação de informações; a manutenção de capital próprio em níveis mínimos capazes de suportar eventuais perdas. Nesse cenário, é de se esperar que as novidades na regulação trazem consigo uma carga acentuada de disciplina para adaptação ao novo contexto, que nem sempre é alcançada pelas instituições e, com isso, operando à margem do sistema incide sobre elas as medidas de enforcement e, por consequência, o regime sancionador.
Por outro lado, a frequência, cada vez maior, no lançamento de produtos e serviços dos mercados financeiro, bancário, de valores mobiliários e de capitais, em especial com aplicação de novas tecnologias, faz inaugurar modelos de conduta sobre as quais o CRSFN tem o papel de dar interpretações e fazer julgamentos, com base em arcabouço normativo ainda jovem, muitas vezes sem qualquer referência bibliográfica ou de precedentes. Esse tem sido um desafio dos tempos atuais para o Colegiado, pois impõe a todos a busca constante para se manter atualizados, em velocidade compatível com a dinâmica dos mercados.
Nesse passo, cresce a importância do papel do Conselho de Recursos, na construção de entendimentos sobre a execução dos mecanismos de enforcement, para a qual o processo sancionador é a última morada. À medida que o Colegiado passa a dar publicidade da interpretação de qualquer norma ou procedimento, seja por meio de decisões monocráticas do seu presidente, dos acórdãos publicados, ou da aprovação de súmulas, abre-se um novo caminho a ser perseguido, seja pelos reguladores, com o fito de alinharem-se ao que foi decidido pelo órgão revisor; ou pelos regulados, no sentido de se adaptarem sobre o comando de tal decisão ou, por vezes, de construírem teses na tentativa de buscar revisão do estabelecido. O fato é que as conclusões extraídas das decisões do CRSFN não passam despercebidas pelos agentes do mercado.
As decisões do conselho têm um impacto significativo no mercado financeiro, inclusive nas questões de auditoria, pois criam precedentes que orientam as práticas de conformidade nas instituições financeiras. Isso ajuda a estabelecer padrões claros e consistentes para a auditoria interna e externa.
Ao revisar e julgar recursos contra sanções aplicadas pelos órgãos reguladores, o CRSFN promove a transparência e a confiabilidade das informações financeiras. Isso é crucial para a integridade das auditorias, pois garante que as instituições sigam as normas e regulamentos estabelecidos.
As decisões do CRSFN ajudam a identificar e mitigar riscos associados a práticas inadequadas ou ilegais. Isso é especialmente importante para as auditorias, que dependem de um ambiente regulatório estável e previsível para avaliar a conformidade e a saúde financeira das instituições.
Pode se dizer, ainda, que a atuação do CRSFN reforça a confiança dos investidores no sistema financeiro. Decisões justas e bem fundamentadas aumentam a percepção de que o mercado é bem regulado e que as instituições financeiras estão sujeitas a uma supervisão rigorosa.
Por fim, as decisões do CRSFN frequentemente resultam em recomendações para melhorias nas práticas de auditoria e governança. Os treinamentos direcionados para as equipes de auditoria incluem as decisões do CRSFN. Isso garante que os auditores estejam cientes da interpretação das mudanças regulatórias e possam aplicar corretamente as novas normas. Isso contribui para o aprimoramento contínuo dos processos e controles internos das instituições financeiras. Tanto é assim, que as auditorias ajustam seus relatórios para refletir as decisões do CRSFN, destacando áreas de risco e conformidade que foram objeto de decisões recentes.
O conselho também tem sido referência para os órgãos de primeira instância, no aprimoramento de suas técnicas de apuração e de instrução processual, bem como na busca da atuação com máxima eficiência e equilíbrio na aplicação das penalidades para o cumprimento da sua missão institucional.
Com toda a dinâmica dos mercados regulados, demandando novas regras de atuação, é de extrema importância haver um direcionamento sobre a interpretação dos atos sob a vigência das novidades. Ao que tudo indica, no âmbito do SFN, o CRSFN tem sido bússola e auxilia os agentes na navegação pelos revoltos mares da tênue diferenciação sobre o que é o possível e o que é o certo.
Referências
ALVES, Rui Fernando Ramos et al. (Coord). O NOVO REGIME SANCIONADOR NOS MERCADOS FINANCEIROS E DE CAPITAIS. Uma análise da Lei n° 13.506/17. São Paulo: Editora Iasp, 2019.
JUNIOR, Edilson Pereira Nobre. Paradigmas do Direito Administrativo Sancionador no Estado constitucional/organização Edilson Pereira Nobre Júnior- São Paulo: Editora Dialética, 2021.
MAIA FILHO, Napoleão Nunes. O Poder administrativo sancionador: origem e controle jurídico. Napoleão Nunes Maia Filho; Mário Henrique Goulart Maia. – Ribeirão Preto: Migalhas, 2012.
VIVEIROS, Ricardo et al. (Coord). Auditoria Independente, missão e responsabilidades: estudos e pareceres/Instituto de Auditoria Independente do Brasil – Ibracon, São Paulo: Ibracon, 2023.
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