Senado aprimorará contas públicas se limitar dívida federal via PRS 8/25

Às vésperas do 37º aniversário da Constituição de 1988, o Senado tem diante de si, mais uma vez, a oportunidade e o dever histórico de aprimorar a governança fiscal do país. O Projeto de Resolução do Senado (PRS) nº 8, de 2025, de autoria do senador Renan Calheiros, resgata a Mensagem Presidencial nº 154, de 2000, pautando a necessidade incontornável de fixar limite global para o montante da dívida consolidada da União, conforme preceitua o artigo 52, inciso VI, da Carta Magna, desde sua redação originária.

Quase quatro décadas se passaram sem que o Senado tenha se desincumbido da sua competência privativa, por mais que a matéria só demandasse apreciação unicameral da Casa da Federação. Há um quarto de século, a Lei de Responsabilidade Fiscal reiterou o comando constitucional, estabelecendo, em seu artigo 30, o dever de o Executivo remeter proposta de limites para as dívidas de todos os entes da Federação. Todavia, apenas houve balizamento da dívida dos estados, Distrito Federal e municípios no âmbito da Resolução nº 40, de 2001 (disponível aqui).

A ausência de limitação apenas para a dívida pública da União configura uma lacuna normativa que, concomitantemente, enseja assimetria federativa e compromete a transparência, o equilíbrio fiscal e o controle social das finanças públicas do país.

Tamanho vazio regulamentar de dispositivo constitucional tão sensível decorre de interdição promovida por interesses, ora coordenados, ora conflitantes do mercado financeiro e do Executivo federal em torno do limite da dívida pública da União. José Roberto Afonso, em entrevista concedida por ocasião do aniversário de 25 anos da LRF, lucidamente desvendou o impasse em comento:

Embora passados 25 anos [da edição da Lei de Responsabilidade Fiscal], você tem algumas regras muito importantes da lei que nunca foram regulamentadas. É curioso que nem mesmo aproveitando essa comemoração dos 25 anos não vimos as pessoas se mobilizando, salvo a CAE [Comissão de Assuntos Econômicos] do Senado, que disse que votaria o limite da dívida da União. Mas o governo federal parece não ter maior interesse nisso, nem o atual governo nem o anterior, e muito menos o mercado financeiro, que reclama muito e quer resultado fiscal, mas não fala em limite da dívida. Essa é uma regra que existe no mundo inteiro. No fundo, as pessoas querem restrições de gasto e de renúncia fiscal para os outros, mas não para si. No caso da dívida pública, a preocupação que existe é a de que, em momentos de crise financeira aguda, o governo precisa socorrer o sistema bancário, como já aconteceu em 2008 e na pandemia de Covid, por exemplo. Embora a legislação tenha flexibilidade nesses casos, o que eu sinto é que os credores não querem correr risco. É algo paradoxal: eles reclamam que se deve muito, mas não querem limite da dívida, que é o ponto mais relevante da LRF que falta regulamentar.

[…] O arcabouço é uma lei complementar. O problema é que, no âmbito desta lei complementar, anteciparam metas específicas de sustentabilidade da dívida da União que, na minha opinião, deveriam estar em uma lei ordinária, que muda todo ano. A LRF resolveu isso remetendo à LDO, que é uma lei ordinária. As coisas mudam, você muda. Ora se faz superávit, ora se faz menos superávit ou até déficit. Acho que acabaram deixando o arcabouço muito rígido.”

Idas e vindas no percurso da matéria fizeram com que a precedente tentativa de regulamentar a dívida pública consolidada federal (PRS nº 84, de 2007) fosse arquivada em 21/12/2018. Desde então, a omissão inconstitucional [1] e suas consequências para o agravamento [2] das contas públicas brasileiras têm sido denunciadas, sem que a longa mora legislativa tenha sido, de fato, enfrentada.

Eis o contexto em que o PRS nº 8/2025 (disponível aqui) se apresenta como uma agenda inadiavelmente necessária. Afinal, não é porque um problema é antigo que ele deixa de ser um impasse que reclama solução.

Ao longo dos últimos 37 anos, as contas públicas brasileiras têm se ressentido da falta de balizas sistêmicas, capazes de equalizar a inibição da receita e a escalada das despesas financeiras, ampliando o foco usualmente incidente sobre as despesas primárias, como se sucedeu com a Emenda nº 95, de 2016.

Mesmo após transcorridos exatamente dois anos da edição da Lei Complementar nº 200, de 2023, não foi satisfatoriamente atendida a demanda da Emenda Constitucional nº 109, de 2021, que inseriu inciso VIII no artigo 163 da CF/1988 [3], para que lei complementar explicitasse o que seria a noção de sustentabilidade da dívida pública. Isso ocorre porque o artigo 2º, §§1º e 2º da LC 200/2023 [4] reduziu o foco do que seja dívida pública sustentável apenas ao alcance de metas de resultado primário.

É sintomático que o Teto de Despesas Primárias, sucedido pelo vulgarmente conhecido Novo Arcabouço Fiscal (NAF), respectivamente EC nº 95/2016 e LC nº 200/2023, sejam ambos regimes fiscais aplicáveis exclusivamente à União, enquanto a LRF (LC nº 101/2000) é a única norma, de fato, nacional, aplicável a todos os entes da federados. Apenas essa última reiterou a necessidade constitucional de fixação de limites de endividamento indistintamente para União, estados, DF e municípios.

Sendo o Senado a Casa da Federação, soa contraditório que a câmara alta do Congresso tenha cumprido seu papel ao fixar limites para a dívida consolidada os governos locais e regionais, por meio da Resolução nº 40/2001, sem que equivalente parâmetro tenha sido estabelecido para o governo central. Essa disparidade federativa amplifica a judicialização entre os entes políticos, em meio a uma guerra fiscal cada vez mais danosa para a sociedade.

O Tribunal de Contas da União já havia manifestado preocupação clara sobre essa omissão legislativa no âmbito do seu Acórdão nº 1.084/2018-Plenário. O TCU destacou que a ausência de limites formais para a dívida pública da União compromete a responsabilidade fiscal e torna inviável a transparência e o controle social esperados em um regime democrático.

No julgamento, o Tribunal salientou que a falta dos limites demandados pelo artigo 48, XIV e pelo artigo 52, VI da Constituição, respectivamente, limites de dívida mobiliária e consolidada, dificulta o exercício do controle externo sobre a dívida pública federal. Sem tal baliza normativa, o acompanhamento da sustentabilidade fiscal da União fica comprometido, abrindo espaço para riscos macroeconômicos significativos.

Em um dos seus trechos mais destacados, o Acórdão TCU 1084/2018 buscou informar ao Senado que a omissão em regulamentar os limites de dívida federal (artigos 48, XIV e 52, VI da CF/1988, bem como artigo 30 da LRF), bem como a falta de instituição do Conselho de Gestão Fiscal (artigo 67 da LRF) constituem-se como “fator[es] crítico[s] para a limitação do endividamento público e para a harmonização e a coordenação entre os entes da Federação”. Ambas são lacunas tão significativas que impedem o ordenamento jurídico brasileiro de consolidar um marco regulatório coerente e eficaz sobre o conjunto das finanças públicas do país

Sob todos os prismas temporais, o cenário que se apresenta é historicamente grave e não se revolverá com o mero decurso negligente dos anos, como se não fosse um problema. Trinta e sete anos desde a previsão originária da Constituição de que deveria haver limites de dívida pública para todos os entes da federação, 25 anos desde que a LRF demandou a imediata edição das normas reclamadas constitucionalmente, quatro anos da Emenda Emergencial que previu a necessidade de fixação do regime de sustentabilidade da dívida pública e dois anos da LC nº 200/2023, sem que haja, de fato e de direito, um arranjo jurídico sistêmico que permita monitorar mais de perto o peso das despesas financeiras e das opções de inibição da receita sobre a dívida pública federal.

Não basta monitorar os fluxos orçamentários, sem que se avalie o estoque acumulado da dívida pública, de modo a correlacionar a sua trajetória com os impactos trazidos pelo conjunto das políticas macroeconômicas ao longo do tempo. Afinal, como bem alertado por José Roberto Afonso, na mesma entrevista anteriormente citada, não cabe apenas pautar o debate pelo prisma da política fiscal a cargo do Tesouro Nacional, sem que sejam explicitadas as suas correlações com as políticas cambial, monetária e creditícia, sob responsabilidade do Banco Central:

“Outro vício antigo difícil de se resolver no Brasil é tratar a política fiscal isolada da política monetária, e a política monetária isolada da política cambial, isolada da política comercial, isolada da política social e assim por diante. Está valendo a regra de que cada um é dono do seu quadradinho e pronto. Nós não temos política macroeconômica no Brasil. Não temos equipe econômica. O Brasil deve ser o país que mais fala em política fiscal, mas trata a política fiscal como se fosse algo independente do resto. Ela é causa e consequência: afeta as demais políticas e também é afetada por elas. Temos de voltar a ter mais debates macroeconômicos, formulação de política macroeconômica, ter um plano estratégico. E, aí sim, a política fiscal se inserir nesse contexto. Isso, inclusive, não se resolve com lei. Muito disso tem a ver com prática, com cultura.”

A ausência de um parâmetro normativo claro para a dívida pública federal permite que ela cresça de forma opaca e potencialmente ilimitada por força da atuação do Banco Central, mesmo que as metas primárias venham a ser rigorosamente cumpridas, comprometendo a sustentabilidade financeira do país. Vale lembrar que, no período de agosto de 2024 a junho de 2025, a expansão da taxa básica de juros, a taxa Selic, em 4,5% equivaleu a praticamente o montante de um piso federal anual em saúde.

Dessa forma, o Novo Arcabouço Fiscal, embora tenha tentado avançar em aspectos relevantes, não supriu integralmente a lacuna normativa que o Senado Federal tem o dever constitucional de preencher, tornando urgente a aprovação do PRS nº 8/2025 para fortalecer o regime de responsabilidade fiscal brasileiro.

Para além de proporções específicas e tempo de recondução a limites que o debate político deve avaliar no curso da tramitação da proposta normativa, o que se busca aqui é defender a oportunidade, a relevância e a viabilidade do PRS nº 8/2025. Ali está previsto o dever de o Executivo federal prestar contas regularmente sobre a dívida pública, apresentando justificativas para eventuais desvios e ações corretivas para o cumprimento dos limites. Assim, o projeto fortalece o papel fiscalizador do Senado e amplia a transparência na gestão da dívida pública.

A fixação de limites para a dívida da União não é mero detalhe ou adereço residual em face do conjunto das finanças públicas brasileiras, mas uma questão central para a responsabilidade fiscal, o pacto federativo e a segurança jurídica das contas públicas.

O PRS nº 8/2025 representa, portanto, uma oportunidade singular para o Senado Federal reafirmar sua relevância institucional, regulando o endividamento da União e fechando uma lacuna normativa que compromete a sustentabilidade das finanças públicas e o federalismo brasileiro.

Ao garantir limites claros, transparência e mecanismos de controle, o projeto favorece a estabilidade econômica e social do Brasil. Assim, na iminência de celebrar 37 anos da Constituição Cidadã, o Senado pode e deve se posicionar com visão de futuro, fortalecendo o pacto federativo, a governança pública e a confiança da sociedade nas instituições, por meio da aprovação do PRS nº 8/2025.


[1] Como esta colunista, José Roberto Afonso e Lais Khaled Porto debatemos aqui

[2] No item 9.2 da parte dispositiva do Acórdão 1084/2018-Plenário (cujo inteiro teor está disponível aqui), o Tribunal de Contas da União informou “ao Presidente do Senado Federal que a não edição da Lei prevista no art. 48, inciso XIV, e da Resolução de que trata o art. 52, inciso VI, ambos da Constituição da República, para o estabelecimento de limites para os montantes das dívidas mobiliária federal e consolidada da União, assim como da lei que prevê a instituição do conselho de gestão fiscal, constitui fator crítico para a limitação do endividamento público e para a harmonização e a coordenação entre os entes da Federação, comprometendo, notadamente, a efetividade do controle realizado pelo Tribunal de Contas da União com base no art. 59, § 1º, inciso IV, da Lei Complementar 101/2000, e o exercício do controle social sobre o endividamento público e demais limites fiscais”.

[3] Que assim dispõe: “Art. 163.  Lei complementar disporá sobre:

[…] VIII – sustentabilidade da dívida, especificando:

a) indicadores de sua apuração;

b) níveis de compatibilidade dos resultados fiscais com a trajetória da dívida;

c) trajetória de convergência do montante da dívida com os limites definidos em legislação;

d) medidas de ajuste, suspensões e vedações;

e) planejamento de alienação de ativos com vistas à redução do montante da dívida.

Parágrafo único. A lei complementar de que trata o inciso VIII do caput deste artigo pode autorizar a aplicação das vedações previstas no art. 167-A desta Constituição.”

[4] Cujo inteiro teor é o seguinte: “Art. 2º […]

§1º. Considera-se compatível com a sustentabilidade da dívida pública o estabelecimento de metas de resultados primários, nos termos das leis de diretrizes orçamentárias, até a estabilização da relação entre a Dívida Bruta do Governo Geral (DBGG) e o Produto Interno Bruto (PIB), conforme o Anexo de Metas Fiscais de que trata o § 5º do art. 4º da Lei Complementar nº 101, de 4 de maio de 2000(Lei de Responsabilidade Fiscal).

§2º. A trajetória de convergência do montante da dívida, os indicadores de sua apuração e os níveis de compatibilidade dos resultados fiscais com a sustentabilidade da dívida constarão do Anexo de Metas Fiscais da lei de diretrizes orçamentárias.”

O post Senado aprimorará contas públicas se limitar dívida federal via PRS 8/25 apareceu primeiro em Consultor Jurídico.

OEA e o Trust and Check Trader na União Europeia

O comércio internacional está vivenciando um período de muitas mudanças, incertezas e grandes desafios. O período pós-Segunda Guerra Mundial, dos acordos de Bretton Woods e da assinatura do Gatt, em 1947, pelos 23 países signatários, foi marcado pela busca dos países por promoverem regras para o comércio internacional, estimulando-o. A ideia predominante era de liberalismo, neutralidade e livre concorrência, que se fizeram presentes nos princípios regentes do Gatt, como o da não discriminação, por sua vez estabelecido nas cláusulas da nação mais favorecida e do tratamento nacional [1]. Esse compromisso inicial foi reforçado ao longo das décadas que se seguiram, com maior ou menor intensidade, culminando com a criação da Organização Mundial do Comércio (OMC), em 1995.

Nesse período e nos anos que se seguiram, o mundo assistiu ao crescimento do fluxo global de comércio, do liberalismo, do multilateralismo e do deslocamento das unidades de produção para locais onde os custos fossem menores, com alocação de unidades de grandes corporações internacionais em países asiáticos e do leste europeu, permitindo o desmembramento da fabricação dos produtos e a formação das cadeias globais de valor. Cada etapa de um produto final passou a ser produzida em uma jurisdição distinta, sendo reunidas para montagem e exportação. Esse fenômeno ficou conhecido como offshoring, seguindo a lógica de produção e distribuição do just in time. Os anos que se seguiram à criação da OMC foram marcados pela globalização e o crescimento vertiginoso do comércio global, promovendo, entre outros efeitos, a retirada de milhares de pessoas da linha da pobreza [2].

Não obstante, uma série de acontecimentos tem impactado esse modelo e o cenário global de comércio, promovendo significativas alterações. A Covid-19 e a suspensão do fluxo global de pessoas e mercadorias  foram exemplos disso. Esse evento provocou a reflexão das empresas multinacionais e dos governos quanto à necessidade de terem suas fontes de produção mais próximas. Destacou também que, em situações de ameaça e necessidade, cada país defende o seu interesse, e que a dependência de produção de um só país eleva o nível de risco e subordinação, o que ameaça a soberania e autonomia das nações. Surgem os conceitos do nearshoringreshoring e do just in case, como reação à realidade vivenciada na pandemia. A guerra da Rússia com a Ucrânia e os conflitos no Oriente Médio são outros eventos que provocam grandes inseguranças e incertezas, instabilidade e divisão, pressionando a redefinição do comércio internacional.

Nos EUA, desde o período do primeiro governo de Trump, o discurso protecionista defendido sob o slogan “American First” levou à adoção de medidas contrárias aos princípios da OMC, outrora defendidos por esse mesmo país. Nessa linha, os EUA, desde 2017, vêm bloqueando a nomeação de juízes para o Órgão de Apelação da OMC, o que culminou com a paralisação do órgão em dezembro de 2019. A situação retirou da OMC a capacidade de analisar e julgar, em grau de recurso, conflitos comerciais entre os países membros, consequentemente, de aplicar sanções, reduzindo seu poder e representatividade no comércio global. O retorno de Trump à Casa Branca culminou em medidas contrárias e de ruptura com as regras da OMC, deflagrando verdadeira guerra tarifária em todo o mundo. As medidas de 2 de abril e de 1º de agosto marcaram flagrante desrespeito dos EUA com o sistema multilateral de comércio e o confronto com os princípios e regras de comércio estabelecidas no âmbito da OMC. Por mais que se tente, de certa forma, envernizar tais medidas de alguma sustentação de legitimidade, na exceção ao princípio de não discriminação por segurança nacional, elas carecem de base legal para se sustentarem.

Tudo isso impacta os custos de produção pelo mundo, especialmente em países como o Brasil, que tiveram definidas contra si pelos EUA, tarifas de 50% para 35,9% dos produtos de suas exportações para importadores americanos [3]. O Brasil adotou medidas para mitigar os enormes impactos [4]. O Plano Brasil Soberano [5] prevê, entre outras medidas:

  • prorrogação de prazos do drawback suspensão, inclusive do drawback intermediário (por mais um ano), medida essa aplicada também ao Recof, através da IN RFB n2276/2025;
  • diferimento do vencimento dos tributos federais (por dois meses);
  • prioridade na restituição e ressarcimento de tributos (PER/DCOMP);
  • novo Reintegra: 3,1% (grandes e médias empresas); 6% (micro e pequenas empresas).

Em meio a tudo isso, as empresas e os países que se veem prejudicados pelos efeitos da guerra tarifária foram compelidos a buscar soluções e alternativas, como identificar novos mercados, avaliar a possibilidade de mudarem a sede de sua planta produtiva para países não atingidos pelo tarifaço, utilizarem regimes aduaneiros especiais, como o depósito alfandegado certificado (DAC), que lhes dê prazo para a remessa física das mercadorias para os EUA, permitindo negociações e redirecionamentos para outros mercados.

Aduana e seus desafios

Nesse cenário, e a Aduana, como fica? Cada vez com mais funções e responsabilidades, e maior pressão para cumprir as normas internas nas fronteiras, como tem acontecido ao longo das décadas que se seguiram à criação da Conselho de Cooperação Aduaneira (CCA), em 1953. De um órgão responsável por cuidar principalmente da arrecadação de tributos, passou à função de grande guardião e protetor da sociedade, com um leque de temas expressivamente ampliado.

Nesse sentido, a Organização Mundial das Aduanas (OMA) e de resto as aduanas globais têm dois objetivos principais: (1) assegurar um ambiente favorável ao comércio legítimo, facilitando o fluxo de mercadorias, e (2) exercer o controle das operações, com foco no cumprimento das normas aduaneiras e na segurança da sociedade. À arrecadação dos tributos, somaram-se diversos outros temas para a fiscalização aduaneira se ocupar. Para citar alguns: a segurança contra o terrorismo, em face do tráfico, de drogas, de armas, de pessoas, as ameaças químicas, à saúde, ao meio ambiente, as novas demandas de controle de operações de empresas que poluem mais, ou menos, o controle de entradas de mercadorias cuja origem seja fruto de trabalho em condições escravas, controle de mercadorias que descumprem regras sanitárias e ameaçam a saúde da sociedade, que não seguem os padrões de qualidade, produtos falsificados, grandes ameaças no e-commerce cross-border, dado seu volume e riscos de fraude nas declarações de valores e pagamento de tributos. Diante de tudo isso, continuamente, as aduanas se veem desafiadas, a ampliar sua capacidade, reinventar-se e desenvolver mecanismos que lhe permitam cumprir sua missão.

Reforma aduaneira europeia

Para enfrentar esses desafios e se preparar para o futuro, a União Europeia publicou, em maio de 2023, normas para realizar uma reforma aduaneira, com visão de futuro, promovendo a sua preparação para atuar em 2040. Nesse pacote, os pilares são o estabelecimento de uma Autoridade Aduaneira da União Europeia para centralizar informações e dar suporte às autoridades aduaneiras de cada país membro; a criação de uma plataforma de dados aduaneiros da UE – Customs Data Hub – que permitirá, de um lado, a melhoria nos controles e, de outro, a simplificação dos procedimentos; um novo regime normativo para o e-commerce indicando as plataformas como importadores e devedores – deemed importers (importadores considerados), ampliando a capacidade de análise e gestão de risco dessas transações; criação da figura do Trust and Check Trader (TCT)que deverá conceder a aduana um amplo acesso aos seus sistemas e dados, em tempo real, tendo em contrapartida benefícios, como liberar suas importações no seu próprio estabelecimento, apurando si mesmo, os valores a recolher [6].

Em relação ao TCT, o reconhecimento será possível somente para importadores e exportadores, diversamente do que hoje permite o Operador Econômico Autorizado (OEA) vigente na União Europeia [7], na medida que são elegíveis também agentes de carga, despachantes aduaneiros, transportadores, depositários, terminais portuários e aeroportuários. Para ser reconhecido TCT, não basta ser AEO, há requisitos adicionais que deverão ser atendidos. Lado outro, os benefícios serão mais atrativos e palpáveis do que aqueles atualmente assegurados aos OEA, permitindo entrever um modelo mais avançado e atrativo. O OEA se manterá, para novos pedidos até 1/3/2032, valendo a certificação até 31/12/2037, quando passa a valer o TCT.

Nesse quadro de conformidades e segurança, de facilitação e controle, a figura de um operador que se aproxima da aduana e se posiciona como seu parceiro, que declara e promove ações para comprovar seu desejo de conformidade, de cumprimento espontâneo das normas e adoção de critérios de procedimentos que contribuem com a segurança nas cadeias globais de valor, tem se comprovado, desde a sua idealização, como essencial e indispensável. É preciso ter elementos objetivos para separar “o joio do trigo”. Nesse sentido, os programas operadores confiáveis têm que ser difundidos e propagados visando amplo reconhecimento de sua importância. Outrossim, é imprescindível que as administrações aduaneiras concedam os benefícios mais amplos e tangíveis possíveis a fim de se manter o estímulo e o resultado positivo na equação de investimentos/custos versus benefícios.

OEA, Brasil

No Brasil, segundo dados atualizados até 30/5/2025, publicados em 1/9/2025 [8], 683 CNPJs são certificados, sendo que cerca de 30% dos valores importados, seja em número de declarações registradas, ou valor CIF, estão sendo realizados por empresas OEA. Certamente o estoque de pedidos de certificação, sendo analisado, permitirá que esses volumes se ampliem. No entanto, para que se atinja o objetivo original do programa, de se ter 50% das declarações registradas por OEA, algumas medidas precisam avançar:

a) diferimento dos tributos na importação: está prevista no artigo 76, 3º, da LC 214/2025, a possibilidade de ocorrer, nos termos de regulamento, em relação ao IBS e à CBS. Também está previsto nos artigos 19 e 20 do PL 15/2024, para todos os tributos federais, podendo ser estendido ao AFRMM, à Taxa da Marinha Mercante e aos direitos antidumping. Essa medida deve ser implementada o quanto antes para todas as empresas OEA em relação a todos os tributos incidentes na importação, sejam federais ou estaduais;

b) ampliação do programa às tradings: notadamente com a migração das operações para o Portal Único e para a DUIMP, a ampliação da capacidade de gerenciar os riscos é notória e permitirá que essas empresas que desejem ser parceiras da RFB também estejam no rol daquelas elegíveis;

c) imediata inclusão do despachante aduaneiro: como elo presente em quase todas as declarações registradas no país, o despachante aduaneiro precisa ser inserido e poder demonstrar seu compromisso com a conformidade e a segurança, auxiliando a aduana no seu dever de gerenciar riscos de maneira inteligente e eficaz;

d) desembaraço no domicílio do importador: permitir que os operadores OEA nas modalidades segurança e conformidade possam receber suas cargas e transportá-las de imediato para seus estabelecimentos, e lá promoverem a sua liberação;

e) dispensa de garantia para entrega de mercadorias em caso de exigências no curso de um despacho de importação, separando o fluxo físico da carga, das questões discutidas em termos de aplicação de normas, exceto se o caso for de proibição daquela importação. Nesse sentido, destacam-se a norma 5.4 da CQR/OMA e o artigo 3.1 do AFC/OMC;

f) Priorização na compensação de créditos decorrentes de retificação e cancelamento de declarações, quando aplicável: priorização ou a definição de um prazo para a compensação de créditos decorrentes da retificação ou cancelamento de declarações;

g) autorregularização: possibilidade prevista no artigo 21 do PL 15/2024, de forma que o interveniente OEA seja comunicado quanto à identificação de alguma infração, permitindo-lhe realizar sua autodenúncia. Essa realidade afastaria a aplicação das penalidades de ofício impróprias a um interveniente que preza por boas práticas já avaliadas e convalidadas pela administração aduaneira. Se incorre em eventuais erros, são escusáveis. Seria o caso de lhe assegurar a regularização sem aplicação de nenhuma penalidade, ou multa de mora, tão somente exigindo-lhe a atualização do crédito, se devido.

Tais medidas, inclusive, ampliariam a capacidade competitiva das empresas brasileiras, notadamente daquelas OEA e exportadoras para os EUA, que precisam de todos os reforços possíveis nesse momento de grandes desafios. Essas alterações poderiam ser incluídas, ainda que de modo excepcional, para auxiliá-las nesse momento, em conjunto com as demais medidas já adotadas pelo Governo Federal.

Congresso

Sobre o tema Trust and Check Trader, na sexta-feira, dia 05/09,  participaremos da XVII Reunião Mundial de Direito Aduaneiro, promovido pela ICLA – International Customs Law Academy [9], na cidade do Porto, em Portugal, em painel sob o título Padrões para cadeias logísticas seguras e a redefinição do OEA para o T&C Trader”. Antecedendo esse painel, Rosaldo Trevisan, colega dessa coluna, moderará o painel em que o Subsecretário de Administração Aduaneira, dr. Fabiano Coelho, fará conferência sobre “Riscos para segurança, proteção do cidadão e comércio internacional legítimo. O Congresso iniciará amanhã com a participação de congressistas de mais de 30 países, prosseguindo com dois dias de intensas atividades.

Em um cenário tão incerto e desafiador no comércio internacional, a reunião de tantos estudiosos e especialistas, certamente, propiciará, pela permuta de experiências, novas ideias, reflexões, e oxalá, alternativas e soluções para uma atividade aduaneira eficiente que possa auxiliar na promoção do comércio global legítimo e seguro.


[1] TREVISAN, Rosaldo. O imposto de importação e o direito aduaneiro internacional. São Paulo: Aduaneiras, 2017, p. 86-89.

[2] Há estudos do Banco Mundial e da OMC sobre os efeitos positivos da globalização para redução da pobreza. Disponível em linklink . Acesso: 29/8/2025.

[3] Disponível em: link . Acesso em 29/08/2025.

[4] Segundo estudos realizados pela CNI, a queda no PIB brasileiro será de R$ 19,2 bilhões (0,16%), a redução nas exportações de R$ 52 bilhões e a deve ocorrer a perda de 110 mil postos de trabalho. Disponível em: link . Acesso em 29/08/2025.

[5] Disponível em: link . Acesso em 29/08/2025.

[6] PICKETT, Eric and WOLFFANG, Hans-Michael. The European Commission’s Proposal for a Modernised Union Customs Code: A Brief IntroductionWorld Customs Journal, vol. 17, Issue 02, 2023, September 30, 2023. Disponível em: link. Acesso em 29/8/2025.

[7] LEONARDO, Fernando Pieri. O AEO no direito aduaneiro europeu. In: PEREIRA, Tania Carvalhais (ed.). Direito Aduaneiro: coletânea de textos. Lisboa: Universidade Católica, 2022.

[8] Disponível em: link. Acesso em 29/8/2025.

[9] https://www.iclaweb.org/porto-portugal2025

O post OEA e o Trust and Check Trader na União Europeia apareceu primeiro em Consultor Jurídico.

‘Gentileza e compaixão’: Frank Caprio viralizou com julgamentos humanos e bem-humorados

“Onde pessoas e casos são atendidos com gentileza e compaixão”. A sinopse do reality show norte-americano Caught in Providence descreve dessa forma a sala do Tribunal Municipal de Providence (Rhode Island) devido aos quase 40 anos de atuação de Francesco Caprio (1936 – 2025) no juízo.

Filho de imigrantes italianos, o juiz Frank Caprio, como ficou conhecido, conquistou o público com sua forma humanizada e bem-humorada de conduzir julgamentos e apreciar infrações de trânsito na capital do estado de Rhode Island, nos EUA.

As sessões eram gravadas e exibidas no programa que, segundo informação da ABC News, foi ao ar por mais de duas décadas na televisão local, até ser transmitido nacionalmente a partir de 2018. Por ocasião da aposentadoria do magistrado em 2023, a última temporada do show foi lançada no ano seguinte.

canal oficial do Caught in Providence no YouTube conta com 2,9 milhões de inscritos e reúne mais de 1.900 vídeos. E foi a publicação de trechos do programa na internet que contribuiu para a disseminação global da fama de Frank Caprio como “o juiz mais gentil dos Estados Unidos” e, depois, do mundo.

Justiça de verdade

É difícil considerar a alcunha indevida após assistir ao julgamento de Victor Coella, cuja gravação viralizou em 2019. O vídeo mostra a ida do homem, à época com 96 anos, ao tribunal. Ele havia sido multado por ultrapassar o limite de velocidade em uma área escolar.

Caprio permite ao réu apresentar sua versão do fato. Então o réu conta que estava levando seu filho ao hospital. Explica que o filho era pessoa com deficiência, tinha 63 anos e lutava contra um câncer.

“Você é um bom homem, representa tudo aquilo que são os Estados Unidos: aqui está, aos noventa, e continuar tomando conta da sua família… É algo maravilhoso. Senhor, eu te desejo tudo de bom, desejo o melhor para o seu filho. O seu caso está encerrado. Boa sorte, que Deus te abençoe”, diz o julgador depois de ouvir a história.

Frank Caprio morreu na quarta-feira (20/8), aos 88 anos, ao tratar um câncer no pâncreas. Deixou a esposa, Joyce E. Caprio, com quem foi casado por mais de 50 anos e teve cinco filhos, sete netos e dois bisnetos.

Assista ao julgamento de Victor Coella:

O post ‘Gentileza e compaixão’: Frank Caprio viralizou com julgamentos humanos e bem-humorados apareceu primeiro em Consultor Jurídico.

Justiça Penal precisa focar na macrocriminalidade

As estatísticas referentes à Justiça Criminal reforçam a ideia de que o melhor caminho a ser tomado é o da despenalização (substituição, legislativa ou judicial, da pena de prisão por sanções de outra natureza), sobretudo dos delitos de menor potencial ofensivo, para que o Poder Judiciário possa cuidar daquilo que realmente interessa, que é o combate aos crimes de grande repercussão social.

Essa foi a análise feita pelo ministro Reynaldo Soares da Fonseca, do Superior Tribunal de Justiça, em entrevista à série Grandes Temas, Grandes Nomes do Direito, na qual a revista eletrônica Consultor Jurídico ouve alguns dos nomes mais importantes do Direito sobre as questões mais relevantes da atualidade.

Na visão do ministro, o Poder Judiciário tem processado um volume impressionante de casos criminais, dos quais uma parte significativa corresponde a processos de menor importância, o que acaba tornando o trabalho dos magistrados inviável.

“Nós chegamos a ter 109 milhões de processos no território brasileiro, numa população de 210, 215 milhões. Desse percentual, uma parte assustadora corre na esfera penal, o que, evidentemente, nos leva a ‘enxugar gelo’ ou trabalhar com aquilo que não é tão importante. Daí porque essas estatísticas reforçam que o caminho é a Justiça Penal negociada”, diz Fonseca.

Segundo o ministro, a aplicação dos institutos despenalizadores — como a transação penal, a suspensão condicional do processo e a composição civil — aos casos de menor gravidade ajuda a reduzir a superlotação dos presídios, ao evitar condenações ao regime fechado.

Além disso, diz o ministro, permite que casos de grande impacto na sociedade possam ser solucionados com mais rapidez.

“Nós temos o fenômeno da macrocriminalidade, que não pode ser esquecido, pois se não tratarmos disso, vai campear a impunidade”, disse Fonseca. “Temos que estimular a Justiça Penal negociada para evitar, inclusive, a prescrição dos processos na fase da investigação”, disse ele em conversa sobre o painel “Desafios atuais da Justiça Criminal”, durante o XIII Fórum de Lisboa, promovido em julho na Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa.

Clique aqui ou assista abaixo a entrevista:

O post Justiça Penal precisa focar na macrocriminalidade, diz ministro apareceu primeiro em Consultor Jurídico.

STF suspende análise de dupla responsabilização por crime eleitoral e improbidade

O ministro Gilmar Mendes, do Supremo Tribunal Federal, pediu vista, nesta segunda-feira (25/8), dos autos do julgamento no qual o Plenário discute a possibilidade de dupla responsabilização em caso de crime eleitoral e ato de improbidade administrativa.

Com o pedido de vista, a análise foi suspensa. O fim da sessão virtual estava previsto para a próxima sexta-feira (29/8).

O caso tem repercussão geral, ou seja, a tese estabelecida servirá para casos semelhantes nas demais instâncias do Judiciário. A Corte vai definir, no mesmo julgamento, qual é o ramo da Justiça competente para analisar ações de improbidade por condutas que também configurem crime eleitoral.

Antes da interrupção, três ministros haviam votado no sentido de reconhecer a possibilidade de dupla responsabilização e deixar os julgamentos de ações de improbidade a cargo da Justiça comum quando a conduta também for considerada crime eleitoral.

O caso de origem diz respeito a Arselino Tatto (PT), ex-vereador de São Paulo. Quando o político ainda estava no cargo, a Justiça estadual determinou a quebra de seu sigilo bancário e fiscal para investigar um suposto ato de improbidade administrativa.

A defesa de Tatto solicitou que o caso fosse enviado à Justiça Eleitoral. O Tribunal de Justiça de São Paulo rejeitou o pedido. Por isso, o então vereador recorreu ao STF.

No último mês de abril, o ministro Alexandre de Moraes, relator do recuso no STF, suspendeu a tramitação e o prazo de prescrição de todas as ações do país que tratam da possibilidade de dupla punição por crime eleitoral e improbidade administrativa.

Voto do relator

Alexandre considerou possível a dupla responsabilização pelo crime eleitoral de caixa dois e por ato de improbidade administrativa. Ainda segundo ele, se a Justiça eleitoral reconhecer que o delito não ocorreu ou que o réu não foi o autor, a decisão “repercute na seara administrativa”.

Por fim, o magistrado votou pela competência da Justiça comum para processar e julgar ações de improbidade por atos que também configurem crime eleitoral.

Antes do pedido de vista, Alexandre foi acompanhado por Cármen Lúcia e Cristiano Zanin.

O relator lembrou que, conforme a jurisprudência do STF, se a conduta de um agente público pode ser considerada, ao mesmo tempo, crime eleitoral e ato de improbidade, ele pode responder por ambos de forma simultânea.

O ministro citou o § 4º do artigo 37 da Constituição, segundo o qual a ação de improbidade deve tramitar “sem prejuízo da ação penal cabível”. Pela mesma lógica, nada impede que o mesmo fato seja analisado pela Justiça Eleitoral.

“A independência de instâncias exige tratamentos sancionatórios diferenciados entre os atos ilícitos em geral (civis, penais e político-administrativos) e os atos de improbidade administrativa”, explicou. O mesmo vale para quando a conduta for enquadrada ao mesmo tempo como crime eleitoral e ato de improbidade.

Segundo ele, essa independência é relativa: “Quando decidido na instância eleitoral sobre a inexistência do fato, ou pela negativa de autoria, essas causas hão de se comunicar na esfera da responsabilidade civil pela prática de ato ilícito.”

Por outro lado, o próprio Tribunal Superior Eleitoral considera que a Justiça Eleitoral não deve constatar dano aos cofres públicos e enriquecimento ilícito quando a conduta for analisada em uma ação de improbidade.

De acordo com Alexandre, a ação de improbidade protege o patrimônio público e a “moralidade administrativa”. Já o Direito Eleitoral protege a legitimidade e a normalidade das eleições.

Assim, se a mesma conduta gerar os dois tipos de ação, “tanto a lisura do processo eleitoral quanto a probidade administrativa” serão protegidos. “Trata-se de ações autônomas que vão ser processadas e julgadas em instâncias diversas, sob enfoques também distintos”, indicou o ministro.

Competência

O relator destacou que a jurisprudência do Supremo é favorável à competência da Justiça Eleitoral para julgar tanto crimes eleitorais quanto comuns quando forem conexos.

Mas, segundo ele, para que uma ação seja processada e julgada pela Justiça Eleitoral, é preciso demonstrar que as condutas “decorrem das diversas fases do processo eleitoral” ou podem interferir no exercício do mandato.

Ou seja, fatos não relacionados “à legitimidade e à normalidade das eleições, higidez da campanha, igualdade na disputa e liberdade do eleitor” estão fora da jurisdição eleitoral. É o caso das questões relativas à “probidade e moralidade administrativa”.

O TSE entende que a Justiça Eleitoral não deve julgar atos de improbidade, mas apenas investigar se houve interferência ilícita na eleição — seja política ou econômica, com o intuito de beneficiar ou fortalecer candidaturas.

Alexandre ainda recordou que existem situações nas quais a inelegibilidade depende da comprovação de ato doloso de improbidade administrativa, o que é definido na Justiça comum.

No caso de Arselino Tatto, o ministro não viu impedimento para que a ação prossiga na Justiça comum para verificar se houve ato de improbidade.

Clique aqui para ler o voto de Alexandre
ARE 1.428.742

O post STF suspende análise de dupla responsabilização por crime eleitoral e improbidade apareceu primeiro em Consultor Jurídico.

Cláusula de não-concorrência sem limite de tempo é anulável, diz STJ

A cláusula de não-concorrência sem limitação temporal é inválida e anulável. Isso implica na existência de um pedido expresso e de uma sentença, o que afasta que seja feita de ofício pelo juiz da causa.

A conclusão é da 3ª Turma do Superior Tribunal de Justiça, que deu provimento ao recurso especial de uma particular para reformar sentença que reconheceu, de ofício, a nulidade da cláusula.

O caso é de duas ex-sócias que tinham lojas de roupas infantis no mesmo prédio, uma de frente para a outra. Quando a sociedade foi encerrada, elas decidiram que cada loja ficaria para uma delas, com determinações específicas.

Essas regras foram definidas por meio de cláusula de não-concorrência em um instrumento particular assinado por ambas. Uma das lojas só venderia roupas para crianças até quatro anos e a outra, a partir dessa idade.

Quando uma delas descumpriu o combinado, a outra ajuizou a ação para cobrar indenização por perdas e danos. O Tribunal de Justiça de Santa Catarina afastou a punição por entender que a cláusula é nula por não ter qualquer limitação temporal.

Cláusula de não-concorrência eterna

Relatora do recurso especial, a ministra Nancy Andrighi explicou que, de fato, cláusulas de não-concorrência não podem ser estabelecidas de forma ilimitada, sem restrições. Quando são feitas assim, não podem produzir efeitos.

O caso, no entanto, é de anulabilidade e não de nulidade. A diferenciação existe porque a invalidade do negócio afeta interesses privados e pode ser sanada. Portanto, a cláusula pode ser anulada a pedido das partes.

Já a nulidade poderia ser reconhecida se houvesse violação de normas de ordem pública. Nesses casos, o vício não pode ser corrigido ou confirmado. O juiz tem o poder de definir a nulidade de ofício, sem pedido expresso.

“Na vedação à cláusula de não-concorrência sem limitação temporal, embora se reconheça haver interesse social na preservação da livre concorrência e da livre iniciativa, o que se protege é a ordem privada”, disse a ministra.

Sendo anulável, a ausência de limitação da cláusula de não-concorrência pode ser sanada, não tem efeito antes de ser alvo de sentença, deve ser alegada pelos interessados e não pode ser reconhecida de ofício

Dentre as normas do Código Civil que sustentam essa interpretação está a do artigo 177, que diz que “a anulabilidade não tem efeito antes de julgada por sentença, nem se pronuncia de ofício”.

“Portanto, diante da ausência de pedido e contraditório acerca da ausência de limitação temporal na cláusula de não-concorrência, deve ser afastada a nulidade decretada de ofício”, concluiu a relatora.

Clique aqui para ler o acórdão
REsp 2.185.015

O post Cláusula de não-concorrência sem limite de tempo é anulável, diz STJ apareceu primeiro em Consultor Jurídico.

STJ avalia início do prazo recursal em caso de dupla intimação eletrônica

A Corte Especial do Superior Tribunal de Justiça começou a avaliar na quarta-feira (20/8) passada qual será o início do prazo recursal nos casos em que ocorre a dupla intimação da decisão judicial, pelo portal eletrônico e pelo Diário da Justiça eletrônico (DJe).

O tema está em análise sob o rito dos recursos repetitivos. O colegiado vai fixar uma tese vinculante, que terá observância obrigatória nas instâncias ordinárias. O julgamento foi interrompido por pedido de vista do ministro Sebastião Reis Júnior.

Relator dos recursos, o ministro João Otávio de Noronha votou por definir que, em tais casos de duplicidade de intimação, o prazo recursal seja contado pela data de acesso no portal eletrônico, quando ele ocorrer antes da publicação no DJe.

Para ele, a ciência inequívoca da intimação por meio do site torna-a válida e suficiente para que se inicie o prazo, nos termos do artigo 5º, parágrafo 3º da Lei 11.419/2006.

Caso de dupla intimação

A posição é condizente com a forma que o Conselho Nacional de Justiça regulamentou o tema na Resolução 455/2022 e 569/2024, mas diverge de decisão da própria Corte Especial do STJ, anterior a elas.

Em 2021, o colegiado decidiu que, na hipótese de os advogados das partes sofrerem dupla intimação sobre o mesmo ato processual, a que ocorrer pelo portal eletrônico do tribunal deve prevalecer sobre a feita pelo Diário da Justiça Eletrônico (DJe).

Para o ministro Noronha, a mudança é necessária porque o CNJ instituiu um novo paradigma de comunicações processuais, segundo o qual os prazos passam a ser contados exclusivamente com base na publicação no DJe ou no domicílio judicial eletrônico.

Modulação dos efeitos

Essa regulamentação feita pelo CNJ ainda levou o relator a propor a modulação temporal dos efeitos da tese — ou seja, para que ela seja aplicável a partir de determinada data, preservando os casos anteriores.

Isso porque, hoje, todos os prazos processuais serão contados com base nas publicações feitas no Domicílio Judicial Eletrônico ou no Diário de Justiça Eletrônico Nacional, onde estão centralizadas as intimações de decisões.

O ministro Noronha propôs que a nova tese do STJ valha para casos após 16 de maio de 2025, quando houve a unificação das intimações pelo CNJ.

Nesse ponto divergiu o ministro Humberto Martins, que adiantou voto. Ele concordou com a tese, mas propôs um novo marco: que a tese seja aplicada apenas para as intimações após o trânsito em julgado do recurso especial em julgamento.

Tese proposta

Havendo duplicidade de intimação, prevalece como termo inicial da contagem do prazo recursal a data de acesso à intimação no portal eletrônico, desde que anterior à publicação no Diário da Justiça eletrônico (DJe).

A partir de 16 de maio de 2025, o termo inicial para contagem dos prazos será exclusivamente a publicação no Diário de Justiça Eletrônico Nacional ou a comunicação efetivada pelo Domicilio Judicial eletrônico, conforme regulamentação do CNJ.

REsp 1.995.908
REsp 2.004.485

Fonte: Conjur

Crédito presumido na cadeia do agronegócio para IBS/CBS

No artigo desta semana trataremos da análise inicial do instituto do crédito presumido para fins de IBS e CBS na cadeia do agronegócio, tema que será objeto inclusive de nossa palestra, no grandioso e relevante evento “VII Congresso Nacional de Direito Agrário”, sediado em Uberlândia (MG) entre os dias 20 e 22 de agosto.

Além disso, não poderia deixar de prestar, com muita dor no coração, minha homenagem e palavras de eterna gratidão ao querido mestre de todos nós, o professor dr. Paulo de Barros Carvalho, que nos deixou recentemente. Seu falecimento causa um vazio que, inegavelmente, não será preenchido, uma vez que sua trajetória e legado é incomparável.

Que Deus continue a zelar por ti querido e grande professor!! Obrigado por tudo!

IBS/CBS: não cumulatividade e previsão constitucional do crédito presumido

Como é de conhecimento, o setor do agronegócio recebeu um regime diferenciado do IBS e da CBS, como enuncia o artigo 9º, da Emenda Constitucional n. 132/2023:

Art. 9º A lei complementar que instituir o imposto de que trata o art. 156-A e a contribuição de que trata o art. 195, V, ambos da Constituição Federal, poderá prever os regimes diferenciados de tributação de que trata este artigo, desde que sejam uniformes em todo o território nacional e sejam realizados os respectivos ajustes nas alíquotas de referência com vistas a reequilibrar a arrecadação da esfera federativa.

Entre as pilastras mestras deste regime diferenciado para o agronegócio, temos a possibilidade de produtor rural (pessoa física ou jurídica) não ser contribuinte regular de IBS e CBS, levando o respectivo fornecimento de bens e serviços por estes a gerar crédito presumido, quando da aquisição por contribuintes:

  • 4º O produtor rural pessoa física ou jurídica que obtiver receita anual inferior a R$ 3.600.000,00 (três milhões e seiscentos mil reais), atualizada anualmente pelo Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA), e o produtor integrado de que trata o art. 2º, II, da Lei nº 13.288, de 16 de maio de 2016, com a redação vigente em 31 de maio de 2023, poderão optar por ser contribuintes dos tributos de que trata ocaput.
  • 5º É autorizada a concessão de crédito ao contribuinte adquirente de bens e serviços de produtor rural pessoa física ou jurídica que não opte por ser contribuinte na hipótese de que trata o § 4º, nos termos da lei complementar, observado o seguinte:
    I – o Poder Executivo da União e o Comitê Gestor do Imposto de Bens e Serviços poderão revisar, anualmente, de acordo com critérios estabelecidos em lei complementar, o valor do crédito presumido concedido, não se aplicando o disposto no art. 150, I, da Constituição Federal; e
    II – o crédito presumido de que trata este parágrafo terá como objetivo permitir a apropriação de créditos não aproveitados por não contribuinte do imposto em razão do disposto no caput deste parágrafo.

O texto constitucional, portanto, ao estabelecer que na cadeia do agronegócio teríamos produtores rurais não contribuintes, o quais, quando do fornecimento de bens e serviços, não gerariam crédito ordinário da não cumulatividade, dada a não tributação da operação, trouxe a previsão do crédito presumido.

Com relação ao crédito presumido, a Emenda Constitucional determina que a Lei Complementar irá autorizar ao Poder Executivo e  Comitê Gestor revisar, anualmente, o seu respectivo valor. Todavia, caberá à Lei Complementar os critérios para tal revisão.

Por sua vez, o texto constitucional traça com clareza o objetivo que deverá o crédito presumido concretizar, ou seja, “permitir a apropriação de créditos não aproveitados por não contribuinte do imposto”. Naturalmente, ao leitor mais atento, poderia questionar: mas este direito ao crédito presumido, apropriando de créditos não aproveitados por não contribuinte somente se aplica ao IBS, tendo em vista a expressão “imposto”?

Verdadeiramente, não me parecer se esta a pretensão do legislador constitucional, configurando falha técnica de redação, pois, o produtor rural, quando não contribuinte, ele será de ambos os tributos — IBS e CBS — de tal sorte que a consequência natural será a concessão de crédito presumido levando em consideração ambas as espécies tributárias. Bem por isso, há de se ler a expressão “imposto” como tributo, mais especificamente IBS e CBS.

Natureza jurídica: não se trata de benefício ou incentivo

Um aspecto relevante a ser analisado e fixado como premissa diz respeito ao fato de que o crédito presumido na cadeia do agronegócio não configura benesse ou incentivo fiscal.

Esta afirmação já resulta do que dispõe o artigo 156-A, § 1º, X, preceituar que: “não será objeto de concessão de incentivos e benefícios financeiros ou fiscais relativos ao imposto ou de regimes específicos, diferenciados ou favorecidos de tributação, excetuadas as hipóteses previstas nesta Constituição;”

Vejam que o constituinte diferenciou incentivos e benefícios financeiros ou fiscais de outros tratamentos tributários, como o caso dos regimes específicos, diferenciados ou favorecidos.

Ora, o crédito presumido é resultado do regime constitucional diferenciado e favorecido, que prevê este direito aos adquirentes (contribuintes) de produtos e serviços de produtor rural não contribuinte. Trata-se de um direito subjetivo do adquirente contribuinte regular de IBS/CBS e não uma mera benesse, principalmente, no setor do agronegócio, diante de suas características e finalidades. [1]

Não cuida de pura e simples concessão, a fim de “beneficiar”, simplesmente, o setor, uma vez que resulta de princípios regentes da presente reforma tributária, notadamente, a não cumulatividade e neutralidade.

A Constituição, tratando do IBS e CBS, a partir da Emenda Constitucional n. 132/2023, enuncia no art. 156, § 1 e VII [2] que:

  • 1º O imposto previsto nocaput será informado pelo princípio da neutralidade e atenderá ao seguinte:
    (…)
    VIII – será não cumulativo, compensando-se o imposto devido pelo contribuinte com o montante cobrado sobre todas as operações nas quais seja adquirente de bem material ou imaterial, inclusive direito, ou de serviço, excetuadas exclusivamente as consideradas de uso ou consumo pessoal especificadas em lei complementar e as hipóteses previstas nesta Constituição;

Se há neutralidade, a decisão negocial de adquirir de produtor rural contribuinte ou não contribuinte não pode ser decorrente do crédito ser o básico ou o presumido.

Daí porque, o constituinte reconheceu que, no caso do crédito presumido, visando observar a neutralidade e não cumulatividade na cadeia [3], ele deverá, nos termos da Lei Complementar, “permitir a apropriação de créditos não aproveitados por não contribuinte do imposto”.

Com isso, o crédito presumido, a fim de cumprir efetivamente a neutralidade e não cumulatividade, deve, forçosamente, refletir a tributação de IBS e CBS sofrida pelo produtor rural não contribuinte em suas aquisições no exercício da atividade, transferindo-a aos adquirentes quando do fornecimento de bens e serviços.

Este posicionamento gera relevantes consequências.

A uma. A a possibilidade de interpretação ampla e finalística, que não se restrinja à literalidade (artigo 111, do Código Tributário Nacional), muito menos de caráter restritivo.

A duas. É dever impositivo ao legislador complementar e respectiva regulamentação cumprir plenamente os propósitos descritos no texto constitucional quanto à concretização, por meio do crédito presumido, da neutralidade e não cumulatividade.

Regulamentação pela Lei Complementar nº 214/2025

Em tais condições, a regulamentação infraconstitucional possui a grande missão de manter a cadeia do agronegócio em harmonia com a neutralidade e não cumulatividade, o que se deu por meio do artigo 168 da Lei Complementar n. 214/2025, a qual analisaremos no artigo da próxima semana.

_________________________________

[1] -V. CALCINI, Fabio Pallaretti. Tributação no Agronegócio: algumas reflexões. Londrina: THOTH, IBDA, CONJUR, 2023. Cf ainda: aqui;

[2] – “art. 195, § 16. Aplica-se à contribuição prevista no inciso V do caput o disposto no art. 156-A, § 1º, I a VI, VIII, X a XIII, § 3º, § 5º, II a VI e IX, e §§ 6º a 11 e 13.”

[3] Mesmo antes da Emenda Constitucional n. 132, já sustentamos que o crédito presumido aplicado ao setor, por exemplo, para PIS/COFINS, não é incentivo ou benesse, mas cumprimento das peculiaridades do setor e não cumulatividade: CALCINI, Fabio Pallaretti. PIS/Cofins, crédito presumido e MP 1.227/24: efeitos nefastos ao agro

O post Crédito presumido na cadeia do agronegócio para IBS/CBS (parte 1) apareceu primeiro em Consultor Jurídico.

Carf aplica tese do STJ sobre prescrição de matéria aduaneira não tributária

O prazo de três anos para a prescrição intercorrente previsto no artigo 1º, parágrafo 1º, da Lei 9.873/1999 incide sobre processos administrativos a respeito de questões aduaneiras não tributárias, conforme a tese firmada pelo Superior Tribunal de Justiça no julgamento do Tema Repetitivo 1.293.

Esse entendimento foi reafirmado pela 1ª Turma Ordinária da 4ª Câmara da 3ª Seção do Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf) no julgamento de um recurso voluntário apresentado contra multa por interposição fraudulenta aplicada pela Fazenda Nacional contra uma importadora.

O precedente do STJ foi reconhecido pelo relator do processo, conselheiro Laércio Cruz Uliana Júnior, durante a leitura de seu voto. Apesar da norma, a prescrição não foi aplicada ao caso concreto porque o recurso foi interposto dentro do prazo previsto.

Gustavo Henrique Campos, advogado tributarista do escritório /asbz, ressalta que a manifestação do relator é importante por indicar que só atos decisórios interrompem a prescrição, indicando uma possível mudança de entendimento do Carf.

“Em outros processos que tratavam da prescrição intercorrente, o Carf havia optado por sobrestar o julgamento com base no artigo 100 do Regimento Interno, que prevê essa possibilidade quando há decisão de mérito do STF ou do STJ pendente de trânsito em julgado, o que é o caso do Tema Repetitivo 1.293”, disse o advogado.

“Devemos acompanhar, assim, se o Carf passará a aplicar imediatamente a tese firmada pelo STJ aos casos de multas aduaneiras ou se essa foi uma decisão isolada porque o prazo para prescrição intercorrente não havia fluído e o parágrafo único ao artigo 100 do Regimento Interno permite que o sobrestamento não seja aplicado quando o julgamento puder ser concluído independentemente de manifestação quanto ao tema afetado.”

Na mesma linha, o sócio do escritório Daniel & Diniz Advocacia Tributária Carlos Augusto Daniel Neto considerou correta a aplicação da tese do STJ. Ele prevê debates sobre o assunto no conselho.

“A discussão dos marcos interruptivos da prescrição intercorrente deverá ocorrer no âmbito do Carf, no seu contexto específico e na verificação da aplicabilidade do Tema 1.293 aos casos concretos, mas não se pode ignorar, como o relator colocou, a observância estrita do artigo 2º da Lei nº 9.873/99 e da jurisprudência judicial pacífica sobre o tema.”

Processo 10314.720151/2021-31

O post Carf aplica tese do STJ sobre prescrição de matéria aduaneira não tributária apareceu primeiro em Consultor Jurídico.

Avanço digital explica explosão de estelionatos, não exigência de representação

O número de estelionatos explodiu nos últimos anos no Brasil. Porém, isso não se deve à inclusão na lei da necessidade de representação da vítima para o oferecimento da ação penal, segundo especialistas ouvidos pela revista eletrônica Consultor Jurídico. Para eles, o crescimento dos casos se deve ao maior uso de meios digitais pela população.

Anuário Brasileiro de Segurança Pública de 2025 revelou que houve um acréscimo de 408% nos registros do crime de estelionato no país entre 2018 e 2024. Só no ano passado, o Brasil teve aproximadamente 2,2 milhões de casos, o que equivale a quatro golpes por minuto.

Em 2019, com a lei “anticrime” (Lei 13.964/2019), passou a ser exigida a representação da vítima para o Ministério Público mover ação por estelionato. Antes disso, tratava-se de um crime de ação penal pública incondicionada.

Em 2021, o Supremo Tribunal Federal entendeu que as alterações legais quanto à necessidade de representação devem ser aplicadas aos processos em andamento, mesmo após o oferecimento da denúncia, desde que antes do trânsito em julgado (HC 180.421).

Sem relação

O delegado da Polícia Civil de Santa Catarina Lucas Neuhauser Magalhães, especialista em Direito Penal e Processual Penal pela Universidade Presbiteriana Mackenzie, afirma que, quando alguém decide cometer o crime de estelionato, não está preocupado se a vítima vai oferecer a representação criminal ou não.

“A grande verdade é que o estelionatário sempre imagina que não vai ser pego. E, ainda que seja pego, após as inúmeras camadas que ele utiliza para disfarçar a sua verdadeira identidade, ele sabe que dificilmente vai enfrentar uma pena privativa de liberdade. Então, geralmente, o crime compensa, porque a chance de ser descoberto é baixa e, se o for, a punição será branda.”

Segundo Magalhães, o notável aumento do número de estelionatos se deve tanto à condição de ser um “crime que vale a pena” quanto às mudanças na dinâmica do delito. Especialmente o maior uso de meios digitais, inclusive para a circulação de dinheiro, o que foi impulsionado pela epidemia de Covid-19.

“Estelionatários passaram a ter a percepção de que o meio digital era mais interessante, porque traz um risco pessoal muito menor para os próprios criminosos. O sujeito não vai ter o risco de puxar uma arma de fogo no meio da rua, tomar um tiro, para, de repente, roubar R$ 200 de alguém que raramente carrega dinheiro vivo hoje em dia. Aplicando um golpe virtual, ele pode obter uma quantia muito maior da vítima sem ter de se expor tanto.”

O sociólogo Daniel Hirata, coordenador do Grupo de Estudos dos Novos Ilegalismos da Universidade Federal Fluminense (Geni-UFF), também entende que a exigência de representação da vítima não é o principal fator para o crescimento expressivo dos registros de estelionato no Brasil.

“Esse aumento está muito mais relacionado à maior facilidade de cometimento desses crimes, especialmente pela ausência de instrumentos eficazes na área de segurança pública — em sentido amplo — para investigação, análise criminal e persecução penal que estejam à altura do desafio. A possibilidade de realizar golpes com baixo risco de repressão e alta lucratividade é o que tem atraído cada vez mais criminosos para essa modalidade, sobretudo com o uso de meios digitais. Trata-se de um cenário em que a chance de punição é reduzida, enquanto o retorno financeiro é elevado, incentivando a prática.”

Representação faz sentido

O desembargador do Tribunal de Justiça de São Paulo Marcelo Semer, doutor em Direito Penal e Criminologia pela Universidade de São Paulo (USP), ressalta que a representação é necessária apenas para a propositura da ação penal, o que não necessariamente afeta o registro dos crimes. Portanto, não é isso o que explica o aumento de estelionatos. Semer, inclusive, defende que outros delitos patrimoniais cometidos sem violência estejam sujeitos à representação da vítima.

“Muitas vezes, as situações se resolveram, as partes se compuseram, e as vítimas não têm interesse no prosseguimento da ação. Penso que elas deveriam ser consultadas. Eu apostaria no crescimento das relações e dos negócios virtuais para justificar o aumento de estelionatos, sinal de que ainda falta um aprendizado sobre os cuidados de cada tipo de transação. O Brasil é um país com altíssimo engajamento na internet e pouco conhecimento digital. Isso justifica, por exemplo, o altíssimo índice de fake news e sua influência por aqui, como já se apurou em outras pesquisas.”

Nessa mesma linha, a defensora pública do Rio de Janeiro Lúcia Helena Oliveira, mestre em Direito pela Universidade Estácio de Sá, destaca a necessidade de promover a educação digital para reduzir o número de estelionatos.

“Os golpes, com utilização de meios digitais, são cada vez mais frequentes e cada vez mais sofisticados. Há, ainda, uma falta de informações de muitas pessoas com relação a práticas digitais e eventuais golpes. Muitos desconhecem as nuances de tais práticas e como a sofisticação pode levar à obtenção de vantagens ilícitas. Penso que, nesse caso, seria necessário fomento à política pública de atualização e esclarecimento para as vítimas em potencial, ou melhor dizendo, esclarecimento de toda a sociedade.”

Na visão de Lúcia Helena, o fim da exigência de representação da vítima não ajudaria a reduzir o número de crimes. Isso porque o tipo penal do estelionato já sofreu algumas alterações que não influíram na quantidade de ocorrências.

“Quando se pensa no sentido de haver a representação para que haja ação penal pelo crime de estelionato, sugere-se algumas observações. A primeira é que não são todos os casos em que se exige representação. O legislador cuidou de preservar várias hipóteses, como, por exemplo, quando a vítima for pessoa criança ou adolescente, ou tiver mais de 70 anos de idade. A segunda é que exigir a representação é dar preferência à vontade da vítima, permitindo que ela possa escolher, mas isso não significa impunidade. O que precisamos é trazer mais esclarecimentos à população sobre seus direitos, de forma que a pessoa possa exercer seu direito de forma segura, evitando até mesmo a revitimização.”

O post Avanço digital explica explosão de estelionatos, não exigência de representação apareceu primeiro em Consultor Jurídico.