STJ autoriza Fisco a arbitrar ITCMD frente a critérios estaduais para cálculo

Os estados têm plena liberdade para eleger o critério de apuração da base de cálculo do Imposto de Transmissão Causa Mortis e Doação (ITCMD), mas isso não impede que, conforme autorizado pelo Código Tributário Nacional, o Fisco estadual calcule-o por arbitramento.

A conclusão é da 1ª Seção do Superior Tribunal de Justiça, que fixou tese vinculante, por maioria de votos, em julgamento sob o rito dos recursos repetitivos.

O ITCMD é o imposto cobrado pelos estados quando há a transmissão não onerosa de bens ou direitos, como ocorre na herança ou na doação entre pessoas vivas.

A base de cálculo do tributo é o valor venal dos bens ou direitos transmitidos, como prevê o artigo 38 do Código Tributário Nacional. Mas cada estado tem o poder de editar normas sobre como esse valor deve ser apurado.

O STJ definiu que, mesmo diante dessa definição feita por leis estaduais, o Fisco pode calcular o imposto por arbitramento sempre que as informações disponíveis não refletirem o valor real do bem.

O arbitramento, nessas hipóteses, é previsto no artigo 148 do Código Tributário Nacional. Se o Judiciário veda categoricamente essa possibilidade ao Fisco, ele ofende a lei federal — e agora a tese vinculante do STJ.

Arbitramento do ITCMD

O voto vencedor foi do ministro Marco Aurélio Bellizze, que abriu a divergência e foi acompanhado por Benedito Gonçalves, Sérgio Kukina, Paulo Sérgio Domingues, Teodoro Silva Santos, Afrânio Vilela e Francisco Falcão.

Ele explicou que as formas de apuração inicial do ITCMD eleitas pela lei estadual não se confundem com o procedimento de arbitramento, que deve ser excepcional, subsidiário e vinculado.

Isso significa que o arbitramento só cabe quando os critérios eleitos pela lei estadual mostrarem-se inidôneos para calcular o valor venal do bem, ou se os documentos apresentados pelo contribuinte forem omissos.

O Fisco, portanto, tem a prerrogativa de fazer o lançamento por arbitramento e não possui nenhuma discricionariedade para decidir que isso será feito fora das hipóteses traçadas no artigo 148 do CTN.

“O procedimento de arbitramento não consubstancia prerrogativa genérica que poderia ser ignorada ou afastada pela lei local, tampouco ser genericamente suprimida por decisão judicial”, afirmou o ministro Bellizze.

Foram aprovadas as seguintes teses:

1) A prerrogativa da administração fazendária de promover o procedimento administrativo de arbitramento do valor venal do imóvel transmitido decorre diretamente do CTN, em seu artigo 148 (norma geral);

2) A legislação estadual tem plena liberdade para eleger o critério de apuração da base de cálculo do ITCMD. Não obstante, a prerrogativa de instauração do procedimento de arbitramento nos casos do artigo 148 do CTN, destinada a apuração do bem transmitido em substituição ao critério inicial que se mostrou inidôneo a esse fim, não implica em violação do Direito estadual, tampouco pode ser genericamente suprimida por decisão judicial. Seu exercício dá-se pela instauração regular prévia do procedimento individualizado apenas quando as declarações, informações ou documentos apresentados pelo contribuinte, necessários ao lançamento tributário, mostrarem-se omissos ou não merecerem a fé à finalidade a que se destinam, competindo à administração fazendária comprovar que a importância então alcançada encontra-se absolutamente fora do valor de mercado, observada necessariamente a ampla defesa e o contraditório.

Interpretação da lei estadual

Ficou vencida isoladamente a ministra Maria Thereza de Assis Moura, que votou no sentido de dar aos Tribunais de Justiça estaduais a decisão sobre a possibilidade de cada Fisco arbitrar a base de cálculo do ITCMD.

Em sua análise, a discussão é fundada no direito local. Assim, não pode ser analisada pelo STJ porque não cabe recurso especial para discutir interpretação de lei estadual. Isso porque a discussão trata da forma de apuração, não da base de cálculo.

Teses propostas por ela:

1) O direito estadual estabelece a forma de apuração do valor venal, base de calculo do ITCMD;

2) A discussão sobre o cabimento do arbitramento da base de cálculo do ITCMD em face da existência de valor de referência é fundada no direito estadual;

3) Não cabe recurso especial contra decisão que aplica os artigos 9 e 13 da Lei 10.705/2000 de São Paulo para afastar o arbitramento da base de cálculo do ITCMD.

Tema relevante

Como mostrou a revista eletrônica Consultor Jurídico, parte dos estados decide que o cálculo do ITCMD partirá de valor coincidente com a base de apuração do IPTU ou do ITR.

Para o contribuinte, a adoção da base de cálculo a partir do valor de referência é mais interessante porque evita a necessidade de avaliação do bem, e porque índices como o IPTU costumam ser mais modestos do que o real preço de mercado.

No STJ, a jurisprudência já indicava que o Fisco pode arbitrar a base de cálculo do ITCMD quando o valor declarado pelo contribuinte se mostrar incompatível com os preços praticados no mercado.

REsp 2.175.094
REsp 2.213.551

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Aposentadoria por invalidez não pode se basear em laudos antigos, decide juíza

A aposentadoria compulsória por invalidez de um servidor público precisa estar fundamentada nos laudos médicos mais completos e recentes. A decisão que desconsidera isso viola o dever de motivação previsto no artigo 50 da Lei do Processo Administrativo (Lei 9.784/1999).

Com base nesse entendimento, a juíza Aline Cristina Breia Martins Juíza, da 3ª Vara Cível e Empresarial de Marabá (PA), determinou a suspensão imediata da aposentadoria por invalidez imposta a uma oficial de Justiça e ordenou a sua reintegração provisória ao cargo.

Segundo os autos, a aposentadoria da servidora por invalidez foi fundamentada em um laudo da Junta Médica Oficial do Tribunal de Justiça do Pará. O documento se baseou em diagnósticos prévios que apontavam que a servidora sofria de transtorno afetivo bipolar e fibromialgia.

O documento, porém, ignorou laudos recentes, emitidos por profissionais que a acompanham regularmente — psiquiatra, reumatologista, psicóloga e fisioterapeuta. Esses documentos atestavam que a servidora teve melhora na condição clínica e estava apta para o exercício da função, ainda que com eventuais ajustes de jornada.

Laudo genérico

Ao analisar o caso, a juíza avaliou que o parecer da Junta Médica Oficial do TJ-PA que embasou a aposentadoria era “notoriamente genérico”, pois limitou-se a reiterar diagnósticos prévios sem analisar os laudos assistenciais apresentados pela autora.

Essa omissão, segundo a julgadora, compromete a validade da decisão. Ela ressaltou que os laudos atualizados apontam, inclusive, que a própria atividade profissional tem função terapêutica para a servidora, “de modo que o afastamento compulsório pode acarretar prejuízos irreversíveis à sua saúde mental”.

“A exigência de motivação não se satisfaz com a mera reprodução de fórmulas padronizadas ou com conclusões destituídas de análise do caso concreto. Conforme estabelece o art. 50 da Lei no 9.784/99, a Administração Pública está obrigada a indicar expressamente os fundamentos de fato e de direito de suas decisões, especialmente quando afetam diretamente a esfera jurídica de seus administrados”, disse a juíza.

A servidora foi representado pelo advogado Kayo César Araújo da Silva.

Clique aqui para ler a decisão
Processo 0811960-92.2025.8.14.0028

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STJ julga se cabe ação rescisória para adequar decisão definitiva a tese posterior

A ação rescisória não é instrumento uniformizador de jurisprudência. Assim, não serve para adequar decisão definitiva a algum entendimento posterior, mesmo que tenha sido fixado por meio de tese vinculante.

Esse entendimento foi oferecido pela ministra Regina Helena Costa, da 1ª Seção do Superior Tribunal de Justiça, no julgamento do Tema 1.299 dos recursos repetitivos.

Até o momento, apenas a relatora dos recursos especiais afetados votou. O julgamento foi interrompido nesta quarta-feira (10/12) por pedido de vista da ministra Maria Thereza de Assis Moura.

Rescisória para adequação

A possibilidade da ação rescisória é discutida no âmbito de uma demanda específica, sobre a compensação do reajuste de 28,86% sobre a Retribuição Adicional Variável (RAV) com o reposicionamento funcional de servidores previsto pela Lei 8.627/1993.

Em 2013, a 1ª Seção decidiu sob o rito dos repetitivos que “o índice de 28,86% incide normalmente sobre a RAV”.

As rescisórias sobre o tema buscam desconstituir decisões que transitaram em julgado antes dessa tese, admitindo a compensação do reajuste com o reposicionamento funcional dos servidores.

Para Regina Helena Costa, não é possível usar esse instrumento para desconstituir as decisões que se tornaram definitivas antes de 11 de setembro de 2013, aplicando-se a Súmula 343 do Supremo Tribunal Federal, que diz que “não cabe ação rescisória por ofensa a literal disposição de lei, quando a decisão rescindenda se tiver baseado em texto legal de interpretação controvertida nos tribunais”.

“A ação rescisória não é instrumento uniformizador de jurisprudência, sendo imprópria sua propositura para fazer prevalecer posicionamento posterior à formação da coisa julgada, mesmo quando oriundo de julgamento submetido aos repetitivos”, disse a relatora.

Divergência de posições

O tema é gerador de divergência no STJ. A 2ª Turma vinha mantendo a posição de que, se o reajuste sobre a RAV era alvo de interpretações díspares quando foi decidido, ele não pode ser alterado por meio de rescisória após a pacificação.

Já a 1ª Turma mudou o posicionamento para concluir que, nas hipóteses em que, após o julgamento, a jurisprudência, ainda que vacilante, tiver evoluído para sua pacificação, a rescisória pode ser provida, afastando-se a Súmula 343 do STF.

O caso em julgamento agora é importante justamente porque esse uso da ação rescisória para adequação de julgados anteriores a posições jurisprudenciais mais recentes ganhou força no Brasil.

A própria 1ª Seção do STJ afastou a Súmula 343 do STF quando decidiu, em fevereiro de 2023, que cabe rescisória para adequar o resultado de um processo tributário a uma nova orientação formada no Judiciário.

Essa autorização decorreu de uma situação considerada excepcional: tratava-se de acórdão relativo a ação coletiva sobre cobrança de tributo de trato continuado — IPI sobre a revenda de produtos importados.

Em setembro de 2024, a 1ª Seção afastou novamente a Súmula 343 do STF ao decidir que a Fazenda pode usar a rescisória para adequar sentenças definitivas anteriores à modulação da “tese do século”, restringindo o aproveitamento de créditos de PIS e Cofins.

Súmula 343 do STF

A posição, que gerou críticas na comunidade jurídica, passou a ser citada em petições enviadas ao STJ, na tentativa de ser replicada em outras situações, o que gerou até um alerta feito pelo ministro Gurgel de Faria, em junho de 2023.

No julgamento desta quarta, a ministra Regina Helena indicou que, de fato, o STJ não abandonou a Súmula 343, mas ela deixou claro que a posição se restringe à análise do reajuste de 28,86% sobre a RAV dos servidores.

“O exame sobre a possibilidade de superar a Súmula 343 limita-se à hipótese de direito material versada nos autos, dela não se podendo extrair orientação vinculante de espectro geral ou efeito expansivo para situações que não guardem identidade com a controvérsia examinada.”

A ministra sugeriu a seguinte tese:

Aplica-se o óbice do verbete sumular 343 do STF às ações rescisórias ajuizadas com base em ofensa a literal de disposição de lei (artigos 485, inciso V do CPC de 1973 e artigo 966, inciso V do CPC de 2015) que visem desconstituir títulos judiciais transitados em julgado antes do julgamento do Tema Repetitivo 548 em 11 de setembro de 2013 nos quais tenha sido reconhecida, para efeito de aplicação do reajuste de 28,86% sobre a retribuição adicional variável (RAV), a possibilidade de compensação do percentual com os supervenientes reposicionamentos funcionais da carreira de auditor fiscal da receita federal implementados pela Lei 8.627/1993.

EREsp 1.431.163
EREsp 1.910.729

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Apple não é obrigada a vender celular com carregador, diz juiz

O juiz Alessandro Bandeira, do 2º Juizado Especial Cível e das Relações de Consumo de São Luís, rejeitou a pretensão de um consumidor que ajuizou ação indenizatória depois de comprar um iPhone que não veio com o carregador.

O autor alegou prática de venda casada, ou seja, a obrigação de adquirir determinado produto do mesmo vendedor junto à compra original.

Conforme os autos, o consumidor comprou o celular e, depois de perceber que o aparelho vinha sem o carregador, ajuizou a ação. Segundo o autor, o smartphone tornou-se impróprio para uso, tendo em vista que ele não tinha o dispositivo compatível com a nova entrada do aparelho (USB tipo C).

O consumidor argumentou ainda que foi obrigado a comprar um adaptador de corrente original da Apple (peça que conecta o fio à tomada). Ele pediu, então, que a fabricante e o e-commerce pelo qual adquiriu o celular pagassem reparação por dano moral, além de restituir o valor gasto com o adaptador.

Em sua defesa, a Apple disse que não houve venda casada porque, no momento da compra, a informação sobre os acessórios que acompanham o celular estava clara. O e-commerce alegou ilegitimidade passiva, já que só intermediou a compra.

Sabia de tudo

O magistrado rejeitou todos os pedidos do autor. Para ele, não houve venda casada. “O carregamento do celular pode ser realizado sem a necessidade de um adaptador de tomada específico. O consumidor, portanto, mantém a liberdade de escolha, podendo decidir pela compra do adaptador vendido pela fabricante ou, caso prefira, buscar adaptadores vendidos por fabricantes distintos que possuem o produto à venda no mercado de consumo”, disse o magistrado.

Para o juiz, não houve coação ou imposição por parte do fornecedor, e o celular comprado poderia funcionar normalmente sem a “aquisição adicional”. Além disso, ele afirmou que o consumidor sabia o que estava comprando.

“A escolha do produto e a efetivação da compra indicam que a demandante estava ciente das condições de compra do aparelho, inclusive do fato de que ele não viria acompanhado de um carregador externo para conexão direta com tomadas, mas apenas do cabo para carregamento”, disse o juiz. Com informações da assessoria de imprensa do TJ-MA.

Processo 0802842- 69.2025.8.10.0007

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Da rigidez do Estado-Engrenagem à adaptabilidade do Estado-Organismo

O paradigma do Estado-Engrenagem está em colapso. Por décadas, concebemos o Estado como uma máquina previsível, um sistema de engrenagens perfeitamente ajustadas operando com base em três pilares que desmoronaram: a lei como pressuposto holísticoa organização em silos e o cidadão/gestor como ator plenamente racional.

É preciso questionar esses pressupostos idealizados no modo de compreender a atuação dos agentes públicos de execução e de controle. O sistema jurídico já alterou essas premissas em leis, práticas e decisões judiciais. Muitos simplesmente não acompanharam o giro normativo. A partir do questionamento dessas premissas e dos instrumentos legais disponíveis, pode-se ampliar significativamente os espaços de inovação e experimentação na administração pública. Nesse propósito, sintetizo adiante argumentos que apresentei sobre o tema no Insper/SP, a convite do movimento Pessoas à Frente, preservando o máximo possível a oralidade e a leveza da exposição presencial. [1]

Fraturas do modelo tradicional

Ilusão da lei holística

O pressuposto de uma lei holística que abraça toda a complexidade da realidade administrativa não é realista. Desde a EC 32/2001, temos clareza de que parte da decisão sobre funcionamento e estruturação da administração pública cabe ao próprio administrador. Não é mais necessário editar medida provisória para transferir um órgão de um ministério para outro. Um regulamento de organização pode estabelecer essa alteração sem afetar os direitos e deveres dos cidadãos. [2]

A administração pública, contudo, evita usar essa prerrogativa. O que ela não pode é criar órgãos ou extinguir órgãos. Mas diante dos órgãos existentes e das competências já criadas por lei, pode remanejar competências e órgãos, delegar e reordenar, otimizando a máquina administrativa. Pode fundir, cindir, estabelecer mecanismos como os centros de competência. O gestor pode e deve participar do processo normativo de funcionamento e estruturação da administração.

Problema dos silos organizacionais

A organização em silos — a ideia de que a administração pode trabalhar bem com cada um no seu cantinho — simplesmente não funciona. O mundo atual exige coordenação inter e intra-administrativa radical. O sistema jurídico já compreendeu isso e aprovou mecanismos que incentiva e operam a integração.

Mas ainda há lacunas a preencher. Falta disciplinar na administração pública sistemas de prevenção, de concentração decisória em matéria de controle, em certa medida semelhantes aos disponíveis no sistema de justiça. A excessiva demora da liberação da autorização de simples pesquisa da margem equatorial pela Petrobras ilustra bem o problema: órgãos de diferentes Ministérios Públicos, órgãos ambientais estaduais e federais, cada um a seu tempo e a seu modo a exigir as mesmas informações e a estabelecer mecanismos de controle duplicados ou redundantes, sem incidência de mecanismo algum de prevenção. Uma cacofonia de controles, que engendra custos e protela decisões públicas.

Mito do gestor plenamente racional

O terceiro pressuposto equivocado é que tanto o gestor quanto o cidadão são racionais, com compreensão clara, informada e precisa da realidade em todas as situações. Se o gestor não consegue realizar a entrega, presume-se que foi negligente, inoperante, ineficaz, inepto, merecendo censura. Muitas vezes não é nada disso. O gestor não consegue, do mesmo modo que o cidadão, ser plenamente racional e trabalhar sempre com evidências. Ele é vulnerável a informações incompletas, à pressão do tempo e a recursos limitados. E tudo isso pode e deve ser apurado nos processos administrativos.

Instrumentos para a transformação

Vencendo a aversão ao risco

A reforma da Lei de Improbidade Administrativa e a Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (Lindb), modificada pela Lei nº 13.655/2017, enfrentaram a aversão ao risco. Mas não é suficiente. É preciso reconhecer que o erro é absolutamente normal na administração pública e implantar essa mentalidade como algo ínsito no processo administrativo de controle.

No sistema francês, os servidores do Conselho de Estado são obrigados a passar dois anos em estágio nos órgãos controlados antes de integrar o órgão de controle. Precisam saber como funciona o órgão controlado para depois integrar o órgão de controle. No Brasil, o agente faz concurso para o TCU, passa 120 dias em estágio e capacitação, e vira controlador sem ter ideia de como funciona a administração real, desafiada pela incompletude das informações e a complexidade das limitações orçamentárias e materiais existentes.

Silêncio administrativo: além do positivo e negativo

A resposta preventiva tradicional do direito administrativo à inércia decisória é o silêncio positivo e negativo. Mas há problemas graves nisso. O silêncio negativo, embora cômodo, torna insegura a situação do beneficiário da declaração, abrindo apenas a via processual sem resposta efetiva. O silêncio positivo, enfatizado na Lei da Liberdade Econômica de 2019, cria riscos de desproteção ambiental e insegurança jurídica.

Propus em 2016 o silêncio translativo como alternativa. Esse mecanismo cria ônus para o servidor que não decide: passado o prazo assinalado na lei, a matéria é afetada em caráter original — não recursal — para outra autoridade, com imediata responsabilização disciplinar do gestor omisso. Cria-se arquitetura de incentivos para decidir no prazo. A área ambiental já tem esse mecanismo na legislação, sem dar esse nome: se um órgão municipal não atua, o estadual ou federal pode atuar translativamente. [3]

Posteriormente propus o reconhecimento dogmático do silêncio ablativo, ainda mais radical: a lei substitui o administrador, fulminando o espaço de decisão administrativa. Exemplo: na Lei Nacional do Ministério Público, consta norma que se o governador não escolhe o procurador-geral de justiça na lista tríplice em 15 dias, o mais votado é automaticamente definido por lei como o escolhido. O STF validou isso. Inúmeras situações poderiam ser resolvidas por silêncio ablativo, prevendo solução alternativa legal à omissão decisória. [4]

Centros de competência e decisão coordenada

É espantoso que os centros de competência não sejam estudados nos livros jurídicos. Temos em São Paulo o Poupatempo, na Bahia o SAC desde 1995, no governo federal o Colab, organismos matriciais com equivalentes em vários Estados. Alguns são órgãos formados pela cooperação operativa de vários órgãos em atuação simultânea, dando resposta uniformizada, padronizada e sistematizada ao cidadão em tempo reduzido. O Colab, especificamente, ao consolidar serviços comuns de 13 ministérios — logística, informática, gestão de pessoal — demonstrou que a integração matricial funciona: economizou R$ 2,7 bilhões em três anos, com relatórios de avaliação de impacto que comprovam a eficiência ganho. [5]

Esse é um instrumento de otimização organizativa que já existe, disposto em diversas normas. Não é preciso criar centro de competência por lei: os órgãos já estão criados, as competências já estão dadas. Um regulamento de organização que integre a força operativa desses órgãos já cria o centro de competência.

A decisão coordenada, introduzida na lei de processo administrativo da Bahia em 2006 e dez anos depois na lei federal, estabelece mecanismo processual sincrônico e concentrado. Em vez do passeio do processo entre órgãos A, B, C até resposta final, convoca-se sessão única onde todos devem se pronunciar. Nos casos de urgência, os órgãos que não se pronunciam perdem competência. Ninguém quer perder poder na administração pública. Criam-se incentivos à decisão e participação coordenada. [6]

O Estado-Organismo: novo paradigma

Proponho o modelo heurístico do Estado-Organismo ou Estado Adaptativo, que integra quatro elementos fundamentais: aprendizado, abertura, autovinculação e articulação.

Aprendizado: Denota o Estado que se defronta com contextos diversos de realidade e busca descobrir variantes de resposta a partir da experimentação. Os sandboxes regulatórios implementados pelo Banco Central, Susep e agências reguladoras, ilustram bem esse paradigma. Por igual, os municípios são microcosmos excelentes para testar iniciativas. Bolsa Família, Médico de Família — muitos nasceram dessa experimentação no nível micro.

Abertura: é o Estado que dialoga com parceiros, cidadãos, terceiro setor, empresariado. Estado que não dialoga isola-se e não aprende. O Estado como plataforma de colaboração, abrindo-se para lideranças novas, mecanismos de entrada pelo topo, concursos distintos em diferentes modalidades, não uma única forma de acesso generalista.

Autovinculação: se amplio o espaço de flexibilidade decisória do gestor, devo aumentar a exigência de autovinculação, o respeito a precedentes, a uniformização interpretativa. A Lei 9.784 estabelece no artigo 50, VII, que a administração deve motivar especialmente os atos que deixem de aplicar jurisprudência firmada, valorizando o precedente administrativo e a coerência, que valoriza a igualdade diacronicamente, como filme, não como foto.

Articulação: romper com os silos, operar em rede. A ideia ingênua de que o sistema hierárquico reconduz ao presidente da República toda a matéria administrativa é equívoco desmentido pela própria Constituição. Na administração central, temos em verdade uma “Hidra de Lerna”: União, Estado, Município possuem corpos centrais com múltiplas cabeças autônomas — poderes legislativo, judiciário, executivo, Ministério Público, Tribunais de Contas. É preciso incentivar a coordenação de unidades autônomas em torno de projetos, não a coordenação mecânica ou hierárquica. [7]

Lindb e o novo controle

A Lei nº 13.655/2017, proposta intelectualmente por Carlos Ari Sundfeld e Floriano de Azevedo Marques Neto, mas de iniciativa do senador Antonio Anastasia, requalifica a temática do controle.

O artigo 20 exige análise do contexto decisório e das consequências práticas, vedando decisão baseada apenas em valores abstratos sem identificar custos e benefícios. A prescrição impõe um ônus argumentativo para o controlador: ele precisa justificar porque sua decisão é A, B ou C, analisando obstáculos e as dificuldades reais do gestor.

O artigo 22 combate a expectativa irrealista de que o gestor sabe tudo, vê tudo, pode tudo. A análise é sempre ex post facto, posterior à realidade concreta que era de penumbra, incerta, indefinida — como vimos na Covid-19. Exigir do gestor a decisão ótima nesse cenário era absurdo. O gestor trabalha com recursos limitados, sob pressão temporal, muitas vezes sob desespero e angústias.

O artigo 28 ajuda fundamentalmente ao exigir que a responsabilização só ocorra provado o dolo ou erro grosseiro. Cria-se bloqueio à responsabilização por decisões de boa-fé, erros simples, riscos singelos inerentes a qualquer processo decisório.

Formação do controlador

A transformação paradigmática sugerida exige sair do foco da punição para a orientação, prevenção e parceria. Sair da visão retrospectiva irrealista para análise do contexto real e dos resultados. Sair do formalismo para oferecer segurança ao gestor.

Mas como incentivar isso? A segurança jurídica é base para a experimentação administrativa, transformando risco em oportunidade de aprendizado. Mas também é preciso mudar a formação dos controladores.

No Brasil, temos concurso público, depois curso de formação concentrado (média de 120 dias), sem imersão obrigatória nos órgãos fiscalizados. A formação ocorre integralmente dentro do órgão de controle, transmitindo tradição, sem foco em conviver com a realidade concreta do decisor. É uma formação endógena, que reproduz costumes e perpetua distanciamentos.

No sistema francês, ao contrário, há períodos prolongados de imersão prática nos órgãos controlados — não como visitantes, mas como membros temporários das equipes. Futuros controladores vivem o drama de enfrentar a névoa da realidade, as dificuldades orçamentárias, as urgências políticas, as incertezas informacionais, descobrindo na prática como isso é desafiador. Só depois dessa vivência concreta assumem funções de controle. O resultado é previsível: controladores com empatia maior e compreensão mais realista de quem decide sob pressão.

O administrador médio — alguns chamam de “médium”, porque precisa tentar prever como o órgão de controle entenderá no futuro aqueles fatos e decisões — é atacado por essa exigência de fugir de padrões ideais e abstratos. A Lindb exige isso. Mas esse modelo somente se concretizará quando ampliarmos a empatia do controlador.

Controlar melhor

Hoje temos descompasso: formação teórica distante da prática, padrões abstratos de controle, figuras idealizadas como o “administrador médio” sem conteúdo concreto, sistema de controle com viés punitivo e retrospectivo desincentivando a inovação.

Como controlador, defendo a formação mais imersiva, realista, empática no controle público. O arcabouço legal da Lindb ajuda, exigindo o primado da realidade, fim da idealização de fatos, proteção do erro simples e de boa-fé. Com esse arcabouço legal e a formação empática, temos possibilidade de mudança efetiva.

Os Tribunais de Contas começam a mudar. O TCU mostra evolução, decisões apuram cada vez mais o contexto real dos órgãos correcionado, evitando sancionamento injusto. Isso precisa se generalizar. Os ministros Antonio Anastasia, Bruno Dantas e Benjamin Zymler tem encabeçado esse avanço. A consensualidade assume algum protagonismo, o que traz o mundo dos fatos para mais perto desta ilustre Corte Administrativa.

A questão fundamental não é controlar mais, mas controlar melhor. Precisamos de novo padrão de controle conformativo e prospectivo, permitindo a experimentação e o abandono do fetiche da culpa. A recalibração do controle com legalidade, contexto, segurança jurídica, eficiência.

Existem instrumentos legais e conceitos novos para serem explorados, mecanismos inovadores de incentivo à coordenação, a presteza, a economia operacional. Centros de competência, silêncio translativo e ablativo, decisão coordenada, experimentação disciplinada, sistemas de prevenção e concentração de controle, formação empática de controladores — essas não são propostas abstratas. São realidades que já vigem parcialmente no sistema, mas precisam ser estudadas, compreendidas e otimizadas.

O desafio está posto. A transformação de mentalidades é possível. Paradigmas de compreensão sofrem mutações que somente com o tempo conseguimos identificar com clareza. Falta apenas incentivar essa virada realista e empática, que assume a falibilidade humana como inerente a qualquer atividade, e ampliar a vontade institucional para operacionalizar o que o ordenamento já permite e o que a racionalidade administrativa exige com a máxima urgência.

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[1] Novembro, 2026. Palestra integral disponível pelo link

[2] Ver aqui

[3] Revista Colunistas, 22/12/2016, nº 317. Ver, ainda, ConJur.

[4] ConJur

[5] ConJur

[6] ConJur

[7] ConJur

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Vice-presidente do TST vê resultado ‘inegável’ no modelo de trabalho da China

Embora funcione em um sistema próprio, que não pode ser comparado sem ressalvas com o brasileiro, o modelo de trabalho da China deu resultado “inegável” à economia do país. Essa avaliação é do ministro Guilherme Caputo Bastos, vice-presidente do Tribunal Superior do Trabalho.

Caputo Bastos falou sobre o assunto em entrevista à revista eletrônica Consultor Jurídico durante o IV Congresso Nacional e II Internacional da Magistratura do Trabalho, promovido em Foz do Iguaçu (PR) no final de novembro. O Anuário da Justiça do Trabalho 2025 foi lançado no evento.

“É inegável o boom que este país, que tem um sistema muito próprio e específico, alcançou em termos de produtividade, de eficiência dos seus mercados”, afirma o vice-presidente do TST.

Para que o Brasil siga o mesmo rumo, Caputo Bastos avalia que o primeiro desafio é a modernização da legislação. Na visão dele, a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) precisa ser atualizada para lidar com as transformações sociais.

“A nossa CLT, que é a bíblia de qualquer um que opera o Direito do Trabalho, tem que ser capaz de se modernizar, de se atualizar, para que nós possamos também enfrentar os novos tipos de relação social que vão surgindo com o tempo”, avalia o ministro.

Essa modernização, segundo Caputo Bastos, é essencial porque a Justiça do Trabalho tem sido constantemente chamada a dar respostas sobre novas relações trabalhistas.

O ministro afirma que o Direito, sobretudo o Direito do Trabalho, deve atuar como um freio para impedir abusos nas relações laborais, mas não pode permitir que isso atrapalhe o empreendedorismo e o crescimento do país.

“Não podemos eleger esse princípio (do combate aos abusos) como uma coisa que impeça o empreendimento, que impeça que o país cresça, que o país produza riqueza, e que essa riqueza seja distribuída entre todos e possibilite dar aos nossos cidadãos uma vida melhor.”

Clique aqui para ver a entrevista ou assista abaixo:

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Medidas atípicas de execução independem de patrimônio do devedor

A adoção de medidas atípicas de execução, como bloqueio de cartões ou apreensão do passaporte do devedor, não pode depender de indícios de que ele tenha como saldar a sua dívida. Ainda assim, sua necessidade deve ser avaliada com parcimônia e razoabilidade.

Essa é a opinião de advogados ouvidos pela revista eletrônica Consultor Jurídico sobre as teses vinculantes fixadas pela 2ª Seção do Superior Tribunal de Justiça, em julgamento recente.

Ficou decidido que a adoção dessas medidas precisa ser subsidiária, fundamentada e baseada na ponderação entre o princípio da maior efetividade da execução e o da menor onerosidade para o executado.

Com ou sem bens?

O principal acerto do colegiado, segundo os advogados, foi afastar a obrigação de demonstrar a existência de indícios de patrimônio do devedor, até por uma consequência lógica: as medidas atípicas não seriam necessárias nesse caso.

“Muitas vezes não há indícios positivos ou negativos de bens no patrimônio do devedor e, mesmo assim, a medida coercitiva pode se mostrar útil. Às vezes o devedor tem bens, mas não vive uma vida de ostentação”, pondera José Miguel Garcia Medina.

Ele destaca a necessidade de que as medidas coercitivas sejam usadas com parcimônia e talhadas para cada situação específica.

“Não faz sentido estabelecer uma medida severa como é a apreensão do passaporte em relação a alguém que não faz viagens internacionais, por exemplo. Não vai surtir resultado. É preciso usar a medida adequada para o tipo de obrigação que está em jogo.”

Rodrigo Forlani Lopes, sócio do escritório Machado Associados, entende que a ocultação de patrimônio para o deferimento de medida atípica seria um requisito inviável: se o credor tivesse prova mínima, já seria suficiente recorrer às medidas típicas como a penhora.

“As medidas atípicas existem justamente para lidar com a resistência de quem supostamente tem meios, mas impede que o patrimônio seja localizado. O critério relevante, portanto, não é a prova de riqueza, mas a necessidade concreta da medida, sua subsidiariedade e a proporcionalidade, nos termos definidos pelo STJ.”

Leitura de comportamento

O advogado acrescenta que cabe ao juiz analisar a postura do executado, como a ocorrência de comportamento que sugira tentativa de frustrar a execução. É o que vai indicar a utilidade da medida atípica em cada caso concreto.

“Por isso, a eficácia não pode ser presumida e exige fundamentação específica sobre como aquela medida pode, de fato, contribuir para o adimplemento.”

Regina Céli Martins, sócia do VBD Advogados, nota que a intenção dos ministros do STJ foi evitar que se aplicassem essas medidas contra quem se tornou juridicamente insolvente. Logo, é preciso observar casuisticamente o cabimento desses atos.

“Da forma prevista anteriormente, isto é, o credor ter o dever de demonstrar indícios da existência de bens, acabaria por tornar a tese praticamente inaplicável, pois, havendo indícios da existência de bens, o credor pediria a execução de tais bens, e não a aplicação de medidas atípicas.”

Teses fixadas

As turmas de Direito Privado do STJ têm jurisprudência pacífica quanto ao cabimento dessas medidas e já decidiram que elas devem durar o tempo suficiente para dobrar a renitência do devedor.

Em julgamento de 2023, o Supremo Tribunal Federal também validou o uso de meios atípicos de execução, entendendo que eles valorizam o acesso à Justiça e aumentam a eficiência do sistema.

Leia a tese:

Nas execuções cíveis submetidas exclusivamente ao Código de Processo Civil, a adoção judicial de meios executivos atípicos é cabível, desde que, cumulativamente:

1) Sejam ponderados os princípios da efetividade e da menor onerosidade do executado;

2) Seja realizada de modo prioritariamente subsidiário;

3) A decisão contenha fundamentação adequada às especificidades do caso;

4) Sejam observados os princípios do contraditório, da proporcionalidade e da razoabilidade, inclusive quanto à sua vigência temporal.

REsp 1.955.539
REsp 1.955.574

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Prescrição intercorrente aduaneira, Tema 1.293/STJ: seu raio de alcance

A coluna Território Aduaneiro celebrou seus quatro anos de existência [1] e na quinta-feira passada (4/12), lançou o livro homônimo, já em seu terceiro volume, com os artigos publicados durante o ano de 2024 [2], obra prefaciada por Ernane Argolo Checcucci.

Nestes anos, alguns temas estiveram na ordem do dia dos tribunais administrativos e do judiciário, aguçando seu debate nesse espaço e sendo tratados por mais de um dos colunistas, quando não por todos. Essa intensa produção de conteúdo tem oferecido contribuição para o desenvolvimento e crescimento do Direito Aduaneiro em nosso país. A partir dessa constância de publicações e da efervescência dos temas, outros estudiosos também pesquisam, escrevem, publicam e isso retroalimenta esse ciclo virtuoso de debates.

No campo das decisões judiciais, nos últimos anos, podem ser lembradas algumas relevantes em matéria aduaneira que acolheram o entendimento da União em detrimento da posição defendida pelos intervenientes. Cite-se o REsp no 1.576.199/SC, rel. min. Mauro Campbell, reconhecendo a possibilidade de revisão aduaneira, independentemente do canal de parametrização.

A decisão foi muito bem recebida pela Administração Aduaneira, contrariando a posição amplamente defendida pelas empresas. Outro caso julgado pelo STJ, o REsp no 1.799.306, rel. min. Francisco Falcão, tratou da divergência em torno da inclusão da capatazia no valor aduaneiro. Também aqui a decisão final foi desfavorável aos importadores. No Supremo Tribunal Federal, o julgamento do RE no 1.090.591, rel. min. Marco Aurélio, culminou com a fixação do Tema 1.042 convalidando entendimento favorável às retenções de mercadorias no curso do despacho aduaneiro até que satisfeitas as exigências da fiscalização.

Mais recentemente, entretanto, a decisão final do STJ aplicando a prescrição intercorrente à matéria aduaneira, conforme fixado no Tema 1.293, não agradou à União. Não obstante, e por óbvio, não é função do judiciário agradar a qualquer das partes e sim, conforme as normas de competência aplicáveis, analisar os casos, julgando os litígios visando pacificá-los, estabilizando as relações a partir do seu pronunciamento. Igualmente, é bom que se diga, as partes atingidas podem concordar, ou não, com a decisão final, mas ambas estão a ela vinculadas, obrigadas a respeitá-la. Definir sua extensão e conteúdo, portanto, é o ponto que surge, obrigando as partes a interpretá-la corretamente. É o desafio que se tem hoje em face do trânsito em julgado do Tema 1.293/STJ.

Sobre a matéria diversos colegas já se debruçaram oferecendo valiosas contribuições. [3] Visando somar mais uma visão acerca do entendimento e o alcance da fixação jurisprudencial, propõe-se uma incursão pela teoria da norma jurídica observando lições de Paulo de Barros Carvalho [4], Sacha Calmon Navarro Coêlho [5] e Marco Aurélio Greco. [6]

Nessa incursão, recorda-se a teoria de Hans Kelsen e de Carlos Cóssio, a primeira tendo a norma sancionatória como primária e a segunda definindo a norma primária ou endonorma, onde se encontra a conduta prescrita desejada, e a norma secundária ou perinorma, onde se localiza a sanção pelo descumprimento da primária ou endonorma. Ambas, entretanto, estruturas modeladas em hipótese e consequência, em relação de causa hipotética que se concretizada no mundo fático atrai a consequência. [7]

Na norma primária tem-se um objeto, um núcleo central, que delimita a conduta prescrita e eleita pelo sistema jurídico como desejada. Para que seja cumprida independentemente da vontade do seu destinatário, o mesmo sistema fixa o comando secundário que, na mesma estrutura de hipótese/consequência, traz na sua primeira parte (hipótese) a previsão de não cumprimento da norma primária. Em sua anatomia, tanto a primária, quanto a secundária, possuem hipótese e consequência. São compreendidas através da equação: se A é, B deve ser ou  se não B deve ser C. Exemplo:

Norma primária. Hipótese: importar produto estrangeiro tendo como exportador pessoa vinculada ao importador. Consequência: informar a vinculação na declaração de importação.
Norma secundária. Hipótese: não informar a vinculação na declaração de importação. Consequência: recolher 1% de multa sobre o valor aduaneiro da operação.

Se o importador seguir a norma primária, não atrairá a sanção prevista na secundária. Se desobedece aquela, sofre a reprimenda dessa. Tal ordem de ideias auxilia na análise e delimitação das sanções aduaneiras, bem como na definição da relação jurídica aduaneira e, por conseguinte, podem colaborar no entendimento e aplicação do Tema 1.293/STJ.

Sanções aduaneiras

Sobre as sanções, considerando-as uma consequência de um ato ilícito, estão presentes nos diversos ramos do direito como civil, administrativo, tributário ou aduaneiro. Na sua essência e estrutura ontológica não se distinguem. Podem merecer tratamento distinto, tendo regulação diferente, ou não, sem que deixem de ser ontologicamente idênticas.

Pode-se conceituar a sanção administrativa como medida aflitiva imposta pela Administração Pública em função da prática de um comportamento ilícito. Elas podem ter natureza trabalhista, processual, administrativa, tributária, aduaneira. A definição de sua natureza está diretamente ligada às obrigações descumpridas. O que permite qualificar uma sanção como aduaneira é a natureza jurídica da infração estar diretamente vinculada a deveres afetos ao controle aduaneiro. É na norma primária, na hipótese definida pelo legislador como comportamento ou abstenção desejados, que devem se concentrar os esforços do intérprete para localizar a sanção aduaneira e, portanto, a infração de natureza aduaneira.

Paulo Coimbra para defender a autonomia das sanções tributárias face às administrativas, argumenta que as sanções da administração são amplas e crescentes, podendo incidir sobre diversos temas a partir da sua função fiscalizadora e repressiva. Defende o autor que reconhecer (sub)espécies de sanções administrativas justifica-se na medida em que haja peculiaridades relevantes ao seu estudo e compreensão, quanto a suas fontes, interpretação, imputação, procedimento sancionador e prescrição. [8] O reconhecimento das sanções aduaneiras reforça a autonomia do Direito Aduaneiro.

Com foco em outro aspecto, mas na mesma linha de reconhecimento da norma jurídica aduaneiro, com hipótese voltada a tutelar o controle aduaneiro, Solon Sehn [9] escreveu sobre a relação jurídica aduaneira, reconhecendo-a como sendo de natureza não obrigacional, conceituando-a como expressão de direitos e deveres do particular e do Estado que surgem com a transição da fronteira, que é autônoma em relação à obrigação de pagar os tributos aduaneiros ou eventuais prestações pecuniárias relativas à defesa comercial. Ao tratar da materialidade do fato jurídico aduaneiro, o autor reforça a estrutura da norma jurídica aduaneira.

Aplicação do Tema 1.293/STJ

Isso posto, recordem-se as teses firmadas no Tema 1.293/STJ [10]:

“1. Incide a prescrição intercorrente prevista no art. 1º, § 1º, da Lei 9.873/1999 quando paralisado o processo administrativo de apuração de infrações aduaneiras, de natureza não tributária, por mais de 3 anos.
1 A natureza jurídica do crédito correspondente à sanção pela infração à legislação aduaneira é de direito administrativo (não tributário) se a norma infringida visa primordialmente ao controle do trânsito internacional de mercadorias ou à regularidade do serviço aduaneiro, ainda que, reflexamente, possa colaborar para a fiscalização do recolhimento dos tributos incidentes sobre a operação.
2 Não incidirá o art. 1º, § 1º, da Lei 9.873/99 apenas se a obrigação descumprida, conquanto inserida em ambiente aduaneiro, destinava-se direta e imediatamente à arrecadação ou à fiscalização dos tributos incidentes sobre o negócio jurídico realizado.”

A aplicação da prescrição intercorrente, que serve a valores essenciais e caros ao ordenamento jurídico, como a segurança jurídica e a previsibilidade, decidida em última instância pelas turmas que compõem a 1ª Seção do STJ, com efeitos vinculantes para o judiciário e para o Carf, imprescinde da definição do que sejam as infrações aduaneiras de natureza não tributária para sua correta aplicação. Para tanto, desde logo, utilizando a norma jurídica primária aduaneira, tem-se que devem ser consideradas infrações aduaneiras todas aquelas descrições postas nas normas secundárias que tenham, em sua hipótese, o descumprimento de obrigações de natureza aduaneira que visem primordialmente tutelar o controle aduaneiro.

Para delimitar a norma de conduta aduaneira cuja inobservância configura uma infração aduaneira, o STJ estabeleceu que a norma primária deve conter uma obrigação cujo objetivo vise primordialmente (portanto não única e exclusivamente, e sim precipuamente, principalmente) o controle do trânsito internacional de mercadorias (assim entendida a entrada e saída de mercadoria do território aduaneiro) ou a regularidade do serviço aduaneiro (observância das normas aduaneiras, respeito ao controle aduaneiro). Outrossim, fez um reforço de demarcação no item 3 do Tema 1.293/STJ, ao excluir da aplicação da prescrição intercorrente aquelas infrações que, inobstante inseridas em ambiente aduaneiro, fossem destinadas direta e imediatamente à arrecadação de tributos.

As bordas fixadas pelo STJ dirigem o intérprete para que aprofunde sua análise na norma jurídica primária e secundária, que verifique portanto o teor da hipótese e da consequência de cada uma delas, extremando-as de tal modo que sua natureza se aflore e possam ser designadas ao grupo que pertencem. Nesse ponto, ainda que tenham natureza aduaneira tributária, ou tributária aduaneira, a questão a ser respondida é se primordialmente destinam-se a tutelar o controle aduaneiro, ou se visam direta e imediatamente promover a arrecadação de tributos.

Com a devida vênia, ainda que estejam em área de interseção do direito aduaneiro e tributário e se entendam que elas são relevantes e compõe o controle aduaneiro, para efeito de aplicação do Tema 1.293/STJ, é preciso excluir da aplicação da prescrição intercorrente apenas as que visam direta e imediatamente a arrecadação tributária. As que primordialmente visam o controle aduaneiro, ainda que indiretamente, auxiliem na arrecadação dos tributos, devem ser abrangidas pela prescrição intercorrente, conforme decidiu o STJ.

A regra de exclusão fixada pelo STJ permite entrever que direta e imediatamente destinadas à arrecadação de tributos devem ser entendidas as sanções previstas pelo não recolhimento do tributo devido. É dizer, a norma primária, em sua hipótese prevê: importar produtos estrangeiros; a consequência da ocorrência da norma primária será recolher imposto de importação. A norma secundária, em sua hipótese, contém a previsão do descumprimento da norma primária, ou seja, o não recolhimento do imposto devido e, como consequência, prevê a cobrança de  multa de ofício de 75% sobre o valor do imposto não recolhido. Indiscutivelmente, ainda que inserida em ambiente aduaneiro, a infração e a multa visam direta e imediatamente a arrecadação de tributos.

Outrossim, a multa de 100% aplicada em casos de subfaturamento por falsidade ideológica não se afigura como uma obrigação e infração que direta e imediatamente vise a arrecadação. Visa primordialmente a regularidade do serviço aduaneiro e assegurar o controle aduaneiro, ainda que, reflexamente, possa colaborar para a fiscalização do recolhimento dos tributos incidentes sobre a operação. Dois aspectos reforçam esse entendimento: (i) há multa específica prevista para punir o recolhimento a menor dos tributos devidos, essa sim não sujeita à prescrição intercorrente porque direta e imediatamente destinada à arrecadação; (ii) até pouco tempo, a penalidade aplicada nesses casos era pena de perdimento das mercadorias, que não visava direta e imediatamente a arrecadação de tributos senão punir o infrator por ofender gravemente a o controle aduaneiro.

Outros exemplos podem auxiliar na compreensão dos contornos das teses fixadas pelo STJ. Vejamos: a multa de 1% prevista no artigo 711, I, do RA/09. Sua hipótese: classificar incorretamente a mercadoria na NCM. Essa hipótese visa primordialmente assegurar a conformidade da operação, assegurando o tratamento aduaneiro e administrativo previstos nas normas. A sanção em tela não visa direta e imediatamente a arrecadação de tributos, ainda que, reflexamente, possa colaborar para a fiscalização do recolhimento dos tributos incidentes sobre a operação. A infração, in casu, pode se consumar mesmo quando não há tributo a ser recolhido.

Alguns trechos dos acórdãos do STJ que lastreiam a formação das teses do Tema 1.293 auxiliam bastante na sua compreensão, como esse do voto do min. relator Paulo Sérgio Domingues, no REsp n 2.147.578/SP: “No leading case mencionado, consignou a eminente Relatora que o impasse resolve-se a partir do exame da finalidade precípua da obrigação em xeque, de modo que ‘somente se empresta cariz tributário às obrigações cujo escopo repercuta, de maneira direta, na fiscalização e na arrecadação das exigências fiscais, não bastando, portanto, mero efeito indireto de imposições cominadas com finalidades diversas’”.

O debate do tema em tela é sobremaneira relevante na medida em que, além de definir um critério que terá efeitos práticos sobre casos concretos que estão paralisados por anos a fio, o que não é favorável a ninguém, diz também com o reconhecimento da relação jurídica, do fato jurídico e das sanções aduaneiras, por fim e ao cabo, com sua própria autonomia, tão clara e insofismável para todos que já a reconhecem e defendem, mas ainda jovem e ameaçada por ainda não estar plenamente consolidada.

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[1] Disponível em: O Direito Aduaneiro e a ‘cereja do bolo’: bodas do DL 37/1966 .

[2] Editora Amanuense: aqui

[3] Artigo dos colegas de coluna Rosaldo Trevisan e Liziane Meira, e do autor convidado Arnaldo Dornelles. Disponível em: As multas aduaneiras e o raio simplificador. Alguns artigos publicados sobre o tema: de autoria de Rosaldo Trevisan e Maurício Timm, disponível em:  Tema STJ 1.293 — bom para quem?, , de Carlos Daniel Neto, disponível em: Tema Repetitivo 1.293: a pedra filosofal do Carf?, e de Fernando Pieri e Pedro Mineiro, disponível em: Prescrição intercorrente e infrações aduaneiras: o tempo é o senhor da razão.

[4] CARVALHO, Paulo de Barros. Teoria da norma jurídica. São Paulo: Max Limonad, 2002, 4ª ed.

[5] COÊLHO, Sacha Calmon Navarro. Teoria e Prática das Multas Tributárias. Infrações tributárias e sanções tributárias. Rio de Janeiro: Forense, 2ª ed, 1992, p. 15.

[6] GRECO, Marco Aurélio. Norma jurídica tributária, São Paulo: EDUC, Saraiva, 1974.

[7] CARVALHO, Paulo de Barros. Teoria da norma jurídica. São Paulo: Max Limonad, 2002, 4ª ed., p. 39-49.

[8] SILVA, Paulo Roberto Coimbra. Direito Tributário Sancionador. São Paulo: Quartier Latin, 2007, p. 106-107.

[9] SEHN, Solon. Curso de Direito Aduaneiro. Rio de Janeiro: Forense, 2025, p. 9-12 e 686-693.

[10] REsp 2.147.578/SP e 2.147.583/SP

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Quem paga a dívida trabalhista: STF e Justiça do Trabalho em conflito

O Supremo Tribunal Federal redesenhou o alcance da Justiça do Trabalho sobre o incidente de desconsideração da personalidade jurídica (IDPJ). Em dois julgamentos recentes, a corte fixou parâmetros mais restritivos para que o Judiciário especializado atue nesse tipo de processo. No primeiro, decidiu que empresas de um mesmo grupo econômico que não participaram da fase de conhecimento não podem ser incluídas na execução, nem mesmo depois da instauração do IDPJ, autorizado apenas nos casos de sucessão empresarial ou abuso de personalidade. No segundo, em decisão monocrática, o ministro Gilmar Mendes decretou que o juízo falimentar é o competente para apreciar incidentes de desconsideração envolvendo empresas em recuperação judicial ou falência.

As decisões marcam um ponto de inflexão na competência da Justiça do Trabalho na visão do STF. O pano de fundo do primeiro caso, debatido no Tema 1.232, de repercussão geral, consistia na possibilidade de incluir companhias de um mesmo grupo econômico na execução da sentença trabalhista, ainda que não tivessem participado do processo desde o início.

O relator, ministro Dias Toffoli, chegou a admitir a possibilidade, desde que o IDPJ fosse instaurado para garantir às organizações uma oportunidade de se defender. De acordo com ele, o redirecionamento da execução “nunca prescindiu da observância dos princípios constitucionais do contraditório, da ampla defesa e do devido processo legal, por meio de um procedimento mínimo” que permitisse à empresa a oportunidade de se manifestar — e que esse rito seria o IDPJ.

Toffoli, no entanto, reviu seu voto depois das ponderações apresentadas pelos ministros Cristiano Zanin e Gilmar Mendes. Para Zanin, o cumprimento da sentença não pode ser estendido se o reclamante não indicar os corresponsáveis solidários ainda na fase de conhecimento. E mesmo neste caso, o redirecionamento da execução trabalhista somente é possível nas hipóteses de sucessão empresarial ou abuso de personalidade. Na avaliação do ministro, “a mera existência de grupo econômico, sem a presença desses requisitos, não autoriza a desconsideração da personalidade jurídica”. Gilmar Mendes endossou a tese e admitiu o IDPJ desde que fique provado o uso da pessoa jurídica para lesar credores e a prática de ilícitos.

Ao final, a tese fixada pela maioria consolidou uma posição mais restritiva: o cumprimento da sentença trabalhista não pode ser imposto a empresas que não participaram da fase de conhecimento do processo. Além disso, cabe ao trabalhador indicar as pessoas jurídicas como corresponsáveis solidários já no início do processo. Exceções a essa regra são as hipóteses de sucessão empresarial e abuso de personalidade jurídica, desde que haja a instauração do IDPJ. A decisão de repercussão geral também vale para os processos anteriores à Reforma Trabalhista de 2017 e deve ser observada por todos os Tribunais Regionais do Trabalho (TRTs).

A ministra Delaíde Arantes, do Tribunal Superior do Trabalho (TST), acompanhou o julgamento e afirmou que se alinha ao primeiro voto do ministro Dias Toffoli, favorável apenas à instauração do incidente antes da inclusão de empresas de um mesmo grupo na fase de execução do crédito trabalhista. “Instaurando o IDPJ, a empresa tem como se defender. Na outra linha, como ficou decidido, a empresa devedora somente pode ser incluída lá na fase de cognição. No nosso sistema, isso não funciona muito bem”, afirmou ao Anuário da Justiça.

Na avaliação da ministra, a decisão do STF tende a reduzir ainda mais o índice de trabalhadores que conseguem receber os valores devidos. “Estatísticas do Conselho Superior da Justiça do Trabalho mostram que, das decisões com trânsito em julgado, apenas 33% dos trabalhadores efetivamente recebem. É um índice muito baixo. E quando analisamos o porquê disso acontecer vemos várias empresas terceirizadas que fecharam, que o titular não mora mais no Brasil, que houve algum processo de encerramento fraudulento. E o resultado é que, na ponta, o trabalhador não recebe”, afirmou. “Então eu diria, dentro desse raciocínio, que essa decisão do STF vai contribuir para que esse índice seja ainda menor”, criticou.

O segundo caso foi decidido em setembro, em decisão monocrática do ministro Gilmar Mendes na Reclamação 83.535, e tratou da competência da Justiça Trabalhista para apreciar o IDPJ em situações de falência. Ao analisar recurso contra decisão da 8ª Turma do TRT-2/São Paulo, o ministro afirmou que o colegiado descumpriu a Súmula 10 do STF, que proíbe órgãos fracionários de um tribunal de afastar a aplicação de uma lei ou parte dela, ainda que sem declarar sua inconstitucionalidade.

No caso, o TRT-SP afastou a incidência do artigo 82-A, parágrafo único, da Lei 11.101/2005, com redação da Lei 14.112/2020 — a nova Lei de Recuperação e Falências. Segundo o dispositivo, a desconsideração da personalidade jurídica da sociedade falida somente pode ser decretada pelo juízo falimentar.

Mendes baseou a sua decisão em julgamento anterior da corte (ADI 3.934/DF e RE 583.955), em que foi definida a competência da Justiça do Trabalho apenas para conhecer das ações trabalhistas, enquanto a execução dos créditos deveria ser redirecionada ao juízo falimentar. No julgamento, o ministro não só reconheceu violação à Súmula 10/STF como decretou a competência do Judiciário comum para apreciar IDPJs em caso de recuperação e falência.

“A referida exigência visa a resguardar o princípio da igualdade também entre credores da mesma classe, considerando a possibilidade de habilitação de tais créditos no juízo universal. A continuidade de execuções individuais no juízo laboral, com desconsideração da personalidade jurídica e constrição de bens dos sócios, gestores ou administradores, pode resultar em tratamento desigual entre créditos de mesma natureza, em prejuízo da paridade que deve nortear o processo concursal”, escreveu Mendes.

Em casos anteriores, o STF havia se recusado a apreciar recursos com o mesmo questionamento. Exemplo é o Recurso Extraordinário com Agravo 1.247.897, com provimento negado em junho de 2020 por, entre outros motivos, “ausência de repercussão geral do tema relativo a eventual conflito de competências entre os juízos trabalhista e falimentar para processamento de execução de crédito trabalhista em caso de desconsideração de personalidade jurídica”.

Nos agravos regimentais 1.195.915 e 1.231.812, as decisões também foram por não conhecer e negar provimento, respectivamente. Os três casos são anteriores à Lei 14.112/2020, que fixou expressamente a competência do juízo falimentar para apreciar IDPJs. Nesse contexto, a decisão mais recente proferida pelo ministro Gilmar Mendes imprime nova perspectiva à discussão — e o que antes era visto como questão processual passou a ser tratado como tema de competência constitucional, agora à luz da Súmula Vinculante 10.

Paralelamente, o Tribunal Superior do Trabalho também está para julgar a competência da Justiça do Trabalho para processar e julgar incidentes de desconsideração da personalidade jurídica. A questão está submetida ao Plenário no Tema 26/TST. A corte convocou uma audiência pública para o dia 13 de novembro de 2025, a fim de debater o tema.

A controvérsia, por sua vez, parece longe de ser pacificada. A 2ª Seção do Superior Tribunal de Justiça (STJ) coleciona decisões em que reconhece a competência da Justiça do Trabalho para instaurar o IDPJ contra empresas em processos de recuperação ou falência. Esses precedentes inspiram TRTs a decidirem no mesmo sentido. Exemplo é o acórdão do TRT-10/Distrito Federal e Tocantins (Agravo de Petição 0001242-11.2024.5.10.0111), de janeiro de 2025, que autorizou esse ramo especializado do Judiciário a desconsiderar a personalidade jurídica de empresa em processo falimentar. No TST, também não há unanimidade. Em outubro de 2024, a 8ª Turma entendeu que a Justiça do Trabalho pode valer-se do incidente nos casos em que a falência ou recuperação judicial da empresa é posterior à entrada em vigor da Lei 14.112/2020 (RR 0000006-29.2017.5.09.0133).

O ministro Ives Gandra Filho reconhece que o tema ainda provoca muita discórdia e força o Supremo a contrariar decisões da Justiça do Trabalho. “Chamo isso de voluntarismo jurídico. Não interessa se o Supremo disse alguma coisa, não interessa se o legislador pensou diferente. Vale o meu sentido de Justiça, e é isso o que gera toda essa insegurança jurídica”, avaliou para o Anuário da Justiça.

Delaíde Alves Miranda Arantes acredita que a decisão do TST no Tema 26 trará luz à questão. “A preocupação não é só com a empresa, mas com a própria relação capital-trabalho que envolve as empresas nessa situação, porque é a empresa que não vai ter condição de saldar todas as suas obrigações e os trabalhadores que acabam ficando em prejuízo em razão da gestão da empresa”, ponderou.

JURISPRUDÊNCIA
GRUPO ECONÔMICO
Empresa do mesmo grupo econômico que não entrou na fase inicial do processo trabalhista pode ser incluída na execução?
NÃO. O Plenário do STF fixou tese com repercussão geral (Tema 1.232) estabelecendo que o cumprimento da sentença trabalhista não pode ser promovido contra empresa que não participou da fase de conhecimento, ainda que ela pertença ao mesmo grupo econômico da reclamada. Segundo a tese aprovada, por maioria, o trabalhador deve indicar na petição inicial todas as pessoas jurídicas corresponsáveis contra as quais pretende direcionar a execução de eventual título judicial, demonstrando os requisitos legais para isso. O STF admitiu, de forma excepcional, a inclusão de terceiros na execução apenas nas hipóteses de sucessão empresarial ou de abuso da personalidade jurídica.
Processo analisado: RE 1.387.795/STF (TEMA 1.232 de repercussão geral)

RECUPERAÇÃO JUDICIAL
Justiça do Trabalho pode decidir sobre execução de créditos trabalhistas de empresa em recuperação judicial?
NÃO. O STF decidiu que é da Justiça comum a competência para processar e julgar a execução dos créditos trabalhistas de empresa em recuperação judicial ou em processo de falência. O entendimento tem fundamento em dispositivo do Decreto-Lei 7.661/1945 que foi mantido na Lei 11.101/2005. À Justiça do Trabalho compete julgar as ações trabalhistas até a definição do crédito judicial, mas a execução cabe à Justiça comum, em respeito ao plano de recuperação judicial, que ele aprovou. “A opção do legislador foi manter o regime anterior da execução dos créditos trabalhistas pelo juízo de falência, sem prejuízo da competência da Justiça laboral quanto ao julgamento do processo de conhecimento”, diz a decisão de 2009.
Processo analisado: ADI 3.934/STF

PERSONALIDADE JURÍDICA
Justiça do Trabalho pode instaurar IDPJ em caso de empresa em recuperação judicial?
NÃO. No entendimento do ministro Gilmar Mendes, do Supremo, a Súmula Vinculante 10/STF proíbe que órgãos fracioná-rios de um tribunal de afastar a aplicação de normas, ainda que sem declarar sua inconstitucionalidade. Pela súmula, essa atribuição é do órgão especial ou pleno das cortes. A decisão reformou acórdão da 8ª Turma do TRT-2/SP que havia afastado a incidência de um trecho da legislação falimentar que fixa a competência do juízo de falências nesses casos. Mendes sustenta que cabe à Justiça do Trabalho a jurisdição de conhecimento para a apuração e liquidação dos créditos trabalhistas; admitir a desconsideração pela Justiça do Trabalho resultaria em tratamento desigual entre créditos da mesma natureza.
Processo analisado: RCL 83.535/STF

IDPJ EM FALÊNCIAS
O STF reconheceu a competência da Justiça do Trabalho para instaurar o IDPJ em casos de falência?
NÃO. Nas três decisões analisadas pelo Anuário da Justiça, o STF considerou que a controvérsia possui natureza infraconstitucional e aplicou a Sú-mula 279, que impede o reexame de fatos e provas. Na decisão mais recente (ARE 1.247.897), os ministros destacaram ainda a ausência de repercussão geral do tema relativo a eventual conflito de competências entre os juízos trabalhista e falimentar para processar a execução de crédito trabalhista em caso de desconsideração de personalidade jurídica. A decisão tem por fundamento o Tema 878 julgado em 2016, que diz que a questão “tem natureza infraconstitucional, eaela se atribuem os efeitos da ausência de repercussão geral”.
Processos analisados: ARE 1.247.897; RE 864.264 e TEMA 878; ARE 1.195.915; ARE 1.231.812

POSIÇÃO DO STJ
Justiça do Trabalho pode desconsiderar a personalidade jurídica de empresa em recuperação judicial?
SIM. A 2ª Seção do STJ entendeu que decisão da Justiça do Trabalho de instaurar o IDPJ não configura usurpação da competência do juízo da recuperação judicial. Para o colegiado, o incidente não atinge diretamente o patrimônio da empresa em recuperação. Ao contrário, é uma medida secundária que se limita a estender a responsabilidade trabalhista a sócios ou outras empresas do grupo econômico. De acordo com o acórdão, a Lei de Falências não retira de outros juízos a possibilidade de instaurar o IDPJ. Depois da Lei 14.112/2020, o STJ afirmou que, em caso de constrição de bens da massa falida, cabe ao juízo da recuperação exercer o controle do ato e, se necessário, acionar a cooperação judicial prevista no artigo 69 do CPC”.
Processos analisados: AGRG no CC 190.942/GO e CC 200.777/SP

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Nova Lei de Seguros é o tema de seminário promovido pela FGV Justiça

A FGV Justiça promoverá no próximo dia 12 o seminário “A vigência da nova Lei de Seguros: desafios e perspectivas”, primeiro grande evento promovido pela instituição dedicado à análise aprofundada da nova legislação que reformula o regime jurídico dos contratos de seguro no Brasil.

O encontro ocorrerá na sede da Fundação Getulio Vargas, na Praia de Botafogo (Rio de Janeiro), e reunirá ministros das cortes superiores, desembargadores do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, acadêmicos e especialistas do mercado segurador. O evento é gratuito, com vagas limitadas.

Sancionada em 2024 e em vigor desde 2025, a nova Lei de Seguros representa uma atualização estrutural do marco legal brasileiro do setor, modernizando dispositivos antes dispersos no Código Civil e em normas infralegais.

Entre os principais avanços da nova lei estão maior transparência e clareza na redação dos contratos, a exigência de que as exclusões de cobertura sejam expressas e inequívocas e a determinação de que, em caso de dúvida, a interpretação deve favorecer o segurado.

A programação terá duas mesas de debate que discutirão temas como “O novo marco legal dos seguros” e “O novo marco legal dos seguros e impactos econômicos” (confira abaixo a programação completa).

A mesa de abertura, às 9h30, reunirá o ministro Luis Felipe Salomão, vice-presidente do Superior Tribunal de Justiça e coordenador da FGV Justiça; Paulo Sérgio Domingues, ministro do STJ e coordenador acadêmico da FGV Justiça; e Humberto Dalla, desembargador do TJ-RJ e coordenador acadêmico da FGV Justiça.

Entre os confirmados estão gestores públicos e privados, autoridades governamentais, especialistas e pesquisadores, como Antonio Rezende, vice-presidente da Prudential Brasil; Paula Saldanha, superintendente do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES); Dyogo Oliveira, presidente da Confederação Nacional das Seguradoras (CNseg); Glauce Carvalhal, diretora jurídica da (CNseg); e Antônio Saldanha Palheiro, ministro do STJ e coordenador acadêmico da FGV Justiça.

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Serviço

Evento: Seminário “A vigência da nova Lei de seguros: desafios e perspectivas”
Data e horário: 12/10, das 9h às 13h.
Local: Praia de Botafogo, 190 – Auditório 12° andar (Rio de Janeiro)

Programação (sujeita a alterações)

9h: Credenciamento
9h30 — 10h30: Mesa de Abertura
— Luis Felipe Salomão, coordenador da FGV Justiça;
— Paulo Sérgio Domingues, ministro do Superior Tribunal de Justiça e coordenador acadêmico da FGV Justiça;
— Humberto Dalla Bernardina de Pinho, desembargador do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro e coordenador acadêmico da FGV Justiça.

10h30 — 11h15: Painel 1: O Novo Marco Legal dos Seguros
— Dyogo Oliveira, presidente da Confederação Nacional das Seguradoras (CNseg);
— Angélica Carlini, professora e Acadêmica da Academia Nacional de Seguros e Previdência (ANSP);
— Alessandro Serafin, superintendente da Superintendência de Seguros Privados (Susep);
— Moderador: Ricardo Couto, presidente do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro.

11h15 — 12h: Painel 2: O Novo Marco Legal dos Seguros e Impactos Econômicos
— Ricardo Villas Bôas Cueva, ministro do Superior Tribunal de Justiça;
— Antonio Rezende, vice-presidente da Prudential Brasil;
— Paula Saldanha, superintendente do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES);
— Moderadora: Glauce Carvalhal, diretora jurídica da Confederação Nacional das Seguradoras (CNseg).

12h — 12h30: Encerramento
— Antônio Saldanha Palheiro, ministro do Superior Tribunal de Justiça e coordenador acadêmico da FGV Justiça;
— Marco Aurélio Bezerra de Mello, desembargador do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro;
— Cláudio Dell’Orto, desembargador do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro.

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