Avanço digital explica explosão de estelionatos, não exigência de representação

O número de estelionatos explodiu nos últimos anos no Brasil. Porém, isso não se deve à inclusão na lei da necessidade de representação da vítima para o oferecimento da ação penal, segundo especialistas ouvidos pela revista eletrônica Consultor Jurídico. Para eles, o crescimento dos casos se deve ao maior uso de meios digitais pela população.

Anuário Brasileiro de Segurança Pública de 2025 revelou que houve um acréscimo de 408% nos registros do crime de estelionato no país entre 2018 e 2024. Só no ano passado, o Brasil teve aproximadamente 2,2 milhões de casos, o que equivale a quatro golpes por minuto.

Em 2019, com a lei “anticrime” (Lei 13.964/2019), passou a ser exigida a representação da vítima para o Ministério Público mover ação por estelionato. Antes disso, tratava-se de um crime de ação penal pública incondicionada.

Em 2021, o Supremo Tribunal Federal entendeu que as alterações legais quanto à necessidade de representação devem ser aplicadas aos processos em andamento, mesmo após o oferecimento da denúncia, desde que antes do trânsito em julgado (HC 180.421).

Sem relação

O delegado da Polícia Civil de Santa Catarina Lucas Neuhauser Magalhães, especialista em Direito Penal e Processual Penal pela Universidade Presbiteriana Mackenzie, afirma que, quando alguém decide cometer o crime de estelionato, não está preocupado se a vítima vai oferecer a representação criminal ou não.

“A grande verdade é que o estelionatário sempre imagina que não vai ser pego. E, ainda que seja pego, após as inúmeras camadas que ele utiliza para disfarçar a sua verdadeira identidade, ele sabe que dificilmente vai enfrentar uma pena privativa de liberdade. Então, geralmente, o crime compensa, porque a chance de ser descoberto é baixa e, se o for, a punição será branda.”

Segundo Magalhães, o notável aumento do número de estelionatos se deve tanto à condição de ser um “crime que vale a pena” quanto às mudanças na dinâmica do delito. Especialmente o maior uso de meios digitais, inclusive para a circulação de dinheiro, o que foi impulsionado pela epidemia de Covid-19.

“Estelionatários passaram a ter a percepção de que o meio digital era mais interessante, porque traz um risco pessoal muito menor para os próprios criminosos. O sujeito não vai ter o risco de puxar uma arma de fogo no meio da rua, tomar um tiro, para, de repente, roubar R$ 200 de alguém que raramente carrega dinheiro vivo hoje em dia. Aplicando um golpe virtual, ele pode obter uma quantia muito maior da vítima sem ter de se expor tanto.”

O sociólogo Daniel Hirata, coordenador do Grupo de Estudos dos Novos Ilegalismos da Universidade Federal Fluminense (Geni-UFF), também entende que a exigência de representação da vítima não é o principal fator para o crescimento expressivo dos registros de estelionato no Brasil.

“Esse aumento está muito mais relacionado à maior facilidade de cometimento desses crimes, especialmente pela ausência de instrumentos eficazes na área de segurança pública — em sentido amplo — para investigação, análise criminal e persecução penal que estejam à altura do desafio. A possibilidade de realizar golpes com baixo risco de repressão e alta lucratividade é o que tem atraído cada vez mais criminosos para essa modalidade, sobretudo com o uso de meios digitais. Trata-se de um cenário em que a chance de punição é reduzida, enquanto o retorno financeiro é elevado, incentivando a prática.”

Representação faz sentido

O desembargador do Tribunal de Justiça de São Paulo Marcelo Semer, doutor em Direito Penal e Criminologia pela Universidade de São Paulo (USP), ressalta que a representação é necessária apenas para a propositura da ação penal, o que não necessariamente afeta o registro dos crimes. Portanto, não é isso o que explica o aumento de estelionatos. Semer, inclusive, defende que outros delitos patrimoniais cometidos sem violência estejam sujeitos à representação da vítima.

“Muitas vezes, as situações se resolveram, as partes se compuseram, e as vítimas não têm interesse no prosseguimento da ação. Penso que elas deveriam ser consultadas. Eu apostaria no crescimento das relações e dos negócios virtuais para justificar o aumento de estelionatos, sinal de que ainda falta um aprendizado sobre os cuidados de cada tipo de transação. O Brasil é um país com altíssimo engajamento na internet e pouco conhecimento digital. Isso justifica, por exemplo, o altíssimo índice de fake news e sua influência por aqui, como já se apurou em outras pesquisas.”

Nessa mesma linha, a defensora pública do Rio de Janeiro Lúcia Helena Oliveira, mestre em Direito pela Universidade Estácio de Sá, destaca a necessidade de promover a educação digital para reduzir o número de estelionatos.

“Os golpes, com utilização de meios digitais, são cada vez mais frequentes e cada vez mais sofisticados. Há, ainda, uma falta de informações de muitas pessoas com relação a práticas digitais e eventuais golpes. Muitos desconhecem as nuances de tais práticas e como a sofisticação pode levar à obtenção de vantagens ilícitas. Penso que, nesse caso, seria necessário fomento à política pública de atualização e esclarecimento para as vítimas em potencial, ou melhor dizendo, esclarecimento de toda a sociedade.”

Na visão de Lúcia Helena, o fim da exigência de representação da vítima não ajudaria a reduzir o número de crimes. Isso porque o tipo penal do estelionato já sofreu algumas alterações que não influíram na quantidade de ocorrências.

“Quando se pensa no sentido de haver a representação para que haja ação penal pelo crime de estelionato, sugere-se algumas observações. A primeira é que não são todos os casos em que se exige representação. O legislador cuidou de preservar várias hipóteses, como, por exemplo, quando a vítima for pessoa criança ou adolescente, ou tiver mais de 70 anos de idade. A segunda é que exigir a representação é dar preferência à vontade da vítima, permitindo que ela possa escolher, mas isso não significa impunidade. O que precisamos é trazer mais esclarecimentos à população sobre seus direitos, de forma que a pessoa possa exercer seu direito de forma segura, evitando até mesmo a revitimização.”

O post Avanço digital explica explosão de estelionatos, não exigência de representação apareceu primeiro em Consultor Jurídico.

Por que reivindicar, reconhecer e assegurar um direito ao cuidado

Ele canta, ele dança, ele pula [1]. Se olharmos para o Luciano de hoje, com 41 anos, talvez não imaginemos as dificuldades que enfrentou primeiro para sobreviver e depois para florescer. Seus primeiros passos sozinhos tardaram a acontecer, e sua fala nunca completamente se desenvolveu, se bem que para todos aqueles que estejam dispostos é possível muito bem compreender seus desejos e estabelecer com ele uma comunicação.

Sua altura miúda, seu obstinado tamanho infantil de roupa, o rosto extraordinariamente moço, de um sorriso inocentemente largo a escancarar uns dentes caídos e outros ainda de leite, contrastam com a idade que aos poucos dá sinais em seu corpo. Uns fios brancos na barba, os cabelos rareando, algumas dores que assomam com mais frequência e uma indisposição para sair de casa, tudo isso nos leva a suspeitar de que Luciano, um rapaz com síndrome de down, esteja chegando à sua velhice.

A vida de Luciano é fecunda e humanamente abastada. Ele tem seus próprios temperamentos e predileções. Cultiva amizades. Gosta de ouvir o rádio, balançar na rede e rezar bem alto. Luciano se preocupa com as outras pessoas. Pergunta a elas se estão bem e diz que sente saudades. Luciano é muito querido. Não é que sua vida seja fácil, tampouco que não esbarre com dificuldades.

O intestino de Luciano contém uma má-formação que o levou diversas ocasiões a hospitalizações duradouras e a cirurgias delicadas. Seu banho tem de ser acompanhado e até mesmo o seu prato tem de ser supervisionado para que coma na quantidade certa os alimentos apropriados. Luciano nunca encontrou uma escola pública que atendesse às suas necessidades. Embora consiga segurar o lápis, ainda não consegue escrever o próprio nome.

Isso não é um problema para ele, que descobriu por si mesmo que há outras tantas formas de ser feliz. Se Luciano é feliz? Tenho certeza de que muito mais do que os que discutem o conceito de felicidade. Sua existência, fadada a não medrar dentro de certas estruturas sociais, prosperou e enriqueceu o mundo. Como isso foi possível?

Para o seu longo e árduo desenvolvimento, Luciano precisou de receber muitos cuidados. Imaginemo-lo bebê. Certamente, um bebê como os outros; ao mesmo tempo, porém, um bebê muito diferente dos outros, com precisões extremamente especiais. Como lidar, entre tantas outras coisas, com a língua saltando para fora, com a propensão para cardiopatias, com as anormalidades gastrointestinais, com os olhinhos enxergando pouco e com o intelecto para sempre comprometido? Como ele se relacionará com outras crianças? Os médicos estarão preparados para tratar da sua saúde? Ele será um dia “normal”? Como cuidar enfim de alguém como Luciano? Luciano teve a sorte de encontrar uma família que o amasse e que o acolhesse. Sua mãe era professora. Dividia o dia entre o trabalho fora de casa e o trabalho dentro de casa. Seu pai compartilhava com ela as obrigações domésticas, repartindo a responsabilidade da criação do filho. E se Luciano, no entanto, tivesse sido abandonado? Ele teria condições de subsistir e crescer? Mais ainda: ao contrário do que aconteceu, seria justo que a divisão do trabalho de cuidar de Luciano fosse reservada exclusivamente à mãe de Luciano? E quem cuida afinal daqueles que cuidam de Luciano?

O exemplo de Luciano é um dentre milhares. Elejo-o porque se trata do meu irmão e porque penso que sirva de mote para discussão a seguir. Em 23 de dezembro de 2024, foi editada no Brasil a Lei nº 15.069, que instituiu a Política Nacional dos Cuidados. Essa lei recebeu recentemente regulamentação por meio do Decreto nº 12.562, de 23 de julho de 2025. Os impactos profundos que tais normas geram no ordenamento jurídico brasileiro parecem depender ainda, no entanto, de uma compreensão dos fundamentos que a embasam. Por que, afinal, reivindicar, reconhecer e assegurar um direito ao cuidado? E o que se quer dizer realmente com ele?

Um direito revolucionário

Do caso exemplar narrado acima, extraímos a lição a respeito da essencialidade do cuidado para a vida humana. Com efeito, sem o cuidado prestado pelo seu entorno, nenhuma criança resiste, aperfeiçoa-se e chega a uma idade tal como a de Luciano. Causa espécie que tenhamos descobertos mais e mais direitos humanos, mas ainda tenhamos dificuldade em reconhecer o cuidado como um deles. Se cada nascimento traz consigo o possível milagre de algo novo, esta natalidade da condição humana de que fala Hannah Arendt não existe sem um cuidado que a geste. Noutras palavras, o novum há sempre que ser concebido, preparado e cultivado. O que existe de mais espontâneo em cada um não desabrocha espontaneamente, mas depende de um caudal de conjunções que a ideia de cuidado materializa.

Se analisados rigorosamente, todos os direitos humanos reconhecidos nos documentos internacionais e nas constituições nacionais não parecem fazer sentido sem pressupor algo de tão fundamental como o cuidado. No que concerne aos direitos liberais, o indivíduo que não recebeu cuidados não poderá circular livremente pelas ruas, expressar suas opiniões nos debates públicos, eleger seus representantes etc., se não tiver sido suficientemente cuidado. Por outro lado, relativamente aos direitos sociais, que noção expressam os direitos à saúde, à alimentação e à moradia, p. ex., senão a de que há um rol mínimo de cuidados materiais que asseguram a própria dignidade de uma vida?

Embora o “cuidado” ainda não conste expressamente do elenco de direitos fundamentais da Constituição de 1988, é fácil concluir que decorre dos princípios por ela adotados. O que a Lei nº 15.069/2024 e o Decreto nº 12.562/2025 fazem é apenas escancarar e minudenciar aquilo que era para ser óbvio: temos um direito fundamental (ou humano) ao cuidado, pois só assim conservamos a nossa existência, recuperamo-nos de danos, ofensas e doenças que sofremos e progredimos de algum modo em direção a um objetivo último que eventualmente escolhemos para nós próprios.

O direito ao cuidado é um direito revolucionário. Ele tem o condão de alterar a percepção de nós mesmos enquanto sujeitos de direitos. Com efeito, enquanto a subjetividade jurídica moderna foi forjada em torno de uma entidade artificial que ostenta atributos dificilmente alcançáveis na realidade (pois, afinal, pressupõe um sujeito hiperracional, desencarnado, fora do tempo e do espaço etc.), o direito ao cuidado só faz sentido se admitirmos que o sujeito que precisa de tal direito é um sujeito de carne e osso, situado e inserido na história, dependente e suscetível a feridas. Para dizer de modo simples, o direito ao cuidado quebra a ficção jurídica do sujeito autônomo e autossuficiente, desde sempre disposto a assumir direitos e contrair obrigações, substituindo-o pela figura mais realista de um sujeito vulnerável. O que está em causa, pois, é uma mudança antropológica radical em torno do homo juris.

Para um tal sujeito vulnerável, o cuidado não é qualquer coisa de prescindível na reprodução das vidas individuais ou dos corpos sociais. Conquanto essa devesse ser uma constatação banal, tem demandado muito trabalho teórico e empenho prático para ser admitido por aqueles que lucram com o seu desmentido ou com a sua ocultação. Joan Tronto foi uma das filósofas que sem dúvida melhor escancarou a centralidade do cuidado não só para pessoas como Luciano (i.e., para aqueles que são usualmente considerados mais frágeis ou menos independentes), mas para todas as pessoas. Mesmo um grande empresário, no auge dos seus 35 anos, gozando da mais excelente saúde, a ponto de se considerar atleta nos finais de semana, precisa de cuidados e os recebe diuturnamente, embora apenas não o perceba ou não o queira abertamente reconhecer.

Basta pensar na sua agenda diária sempre organizada, na sua casa imperceptivelmente limpa e ordenada para receber convidados, nas suas roupas até mesmo as íntimas impecavelmente lavadas e disponíveis para uso. Temos de nos perguntar, portanto: quem realiza todo esse trabalho invisível para que ele possa se sentir e ser glorificado como um self made man? O fato é que, enquanto a consciência social não desanuvia e o ordenamento jurídico por meio de suas normas e dos seus intérpretes-aplicadores não consagra a juridicidade do cuidado, este pode muito bem continuar a ser despejado nas costas de uma parcela desfavorecida da população, ao passo que uma minoria privilegiada continua a usufruir sem culpa sua desigual percepção.

Olhemos para os lares, para os hospitais, para os asilos, enfim: para todos os lugares onde cuidados são dispensados, e reflitamos – quem costuma estar ali não na condição de quem os recebe, mas de quem os presta? Pesquisas diversas confluem no sentido de que o trabalho de cuidado é majoritariamente realizado por mulheres, sobretudo mulheres subalternizadas: mulheres negras, mulheres indígenas, mulheres migrantes etc., fadadas a cuidar não só dos homens, mas também de si mesmas. Uma tal compreensão entreabre uma nova perspectiva para o direito ao cuidado. Este não se contenta com a extensão do sistema de cuidados, de tal modo que seu recebimento não mais seja o apanágio de uns poucos, mas uma prerrogativa universal, alcançável aos mais marginalizados e esquecidos da sociedade, sobre estes ainda com maior incidência.

Com efeito, para além do direito de ser cuidado, o direito ao cuidado conota o direito de cuidar sob condições justas. Concretamente, isso significa que quem já cuida tem o direito de cuidar menos e até mesmo o direito de não cuidar quando este cuidado, v.g., é excessivo, sufocante ou desproporcional, sobretudo em razão de processos históricos ou atuais de exploração e violência. Por outro lado, quem não cuida, porque foi “poupado”, porque “tem outras ocupações”, porque “acha que não é sua função” etc., tem o dever de cuidar, até mesmo de cuidar mais. Ora, não reconhecer essa dimensão do direito ao cuidado seria autorizar que a tarefa de cuidar continuasse a recair naqueles que já cuidam, sem que nenhuma modificação social de fato ocorresse. Noutras palavras, o direito ao cuidado tem uma faceta crítica e emancipatória fundamental, obrando para desfazer a distribuição desigual do trabalho do cuidado que continua a reinar dentro e fora do Brasil.

O labor de cuidar

Por óbvio, o cuidado dentro da expressão “direito ao cuidado” não é entendido de maneira romântica ou idealizada. O cuidado mantém e perpetua o nosso mundo ordinário. Enquanto tal, não se trata de uma atividade sem fadiga, que se faz apenas por amor. Por mais prazeroso que possa ser, o cuidado é um trabalho. É preciso então pensar naqueles que cuidam, i.e., naqueles que realizam o labor de cuidar. O cuidado tem sido associado nas nossas sociedades a uma tarefa eminentemente doméstica, realizada predominantemente pelas mulheres da casa, sobretudo as mães e as empregadas. Esse trabalho não costuma ser remunerado nem considerado uma atividade econômica, ao menos não prestigiada.

Se o cuidado é tão central para a existência humana e social, nada mais justo que cuidemos daqueles que cuidam. Uma tal ideia recebeu em Eva Kittay a denominação de “princípio de doulia”. Talqualmente a doula que cuida da mãe após o parto enquanto esta cuida do seu filho, todos que cuidam deveriam contar com alguém que lhes proporcione cuidados. Com isso, endossa-se um ideal de reciprocidade, de modo que aqueles que cuidam não se percebam desamparados em suas carestias. O “princípio de doulia”, se posto em execução, concorreria para desmontar o operante quadro iníquo dos cuidados: precisamente aquele em que os que mais precisam de cuidados são os que menos o recebem e mais o prestam.

Retomemos a Luciano. Proclamar o direito ao cuidado implica conceder que outras crianças com síndrome de down (e tantas outras crianças, independentemente dessa qualidade) possam ter o direito de sobreviver e florescer, e mesmo chegar aos seus 41 anos, como Luciano, sem contar com o acaso do destino de nascer numa família dotada de provisões para acolhê-lo. Dizer que se trata de um direito significa que o Estado deve garanti-lo e que qualquer um pode reivindicá-lo quando negado ou não ministrado a contento.

Proclamar o direito ao cuidado implica também que o cuidado que alguém como Luciano ou diferente do Luciano receberá não será prestado exclusiva ou prevalentemente por mulheres mães, avós, irmãs, entrecortadas por critérios de raça, classe e origem. Proclamar o direito ao cuidado implica que quem cuida de crianças, de idosos, de enfermos, de pessoas com deficiência, de todas e quaisquer pessoas (já que não há ninguém que não dependa dos cuidados de outrem) será reconhecido e bem remunerado, tendo ainda suas necessidades adequadamente atendidas. Proclamar o direito ao cuidado não é conferir tal direito apenas a pessoas como Luciano, embora pessoas como Luciano mereçam gozá-lo de modo acentuado, em razão de sua situação pessoal ou social.

Por certo, há um hiato entre a proclamação formal de um direito e o seu usufruto particular na realidade. Esse é um problema que nenhuma legislação resolve, embora ao menos o suscite. Nesse sentido, tanto a Lei nº 15.069/2024 quanto o Decreto nº 12.562/2025, ao apregoarem o direito ao cuidado, desencadeiam um processo amplo de transformação do estado de coisas, cuja efetividade está a depender, contudo, de um esforço político enérgico e duradouro. Se alterações profundas ainda estão por ser implementadas, o direito ao cuidado, em todo caso, pelo mero fato da sua sagração jurídica, provoca uma ruptura no modo como concebemos a nós próprios e os nossos direitos, permitindo-nos escapar ligeiramente dos simulacros que arquitetam nossas representações e impedem que seres humanos parecidos com Luciano ou distintos dele possam encontrar determinações propícias não só para existir com dignidade, mas também para ser feliz.

O post Por que reivindicar, reconhecer e assegurar um direito ao cuidado apareceu primeiro em Consultor Jurídico.

Tributação das instituições de pagamento: impactos da MP 1.303/2025 e da reforma tributária

Desde a criação de seu regime jurídico com a Lei nº 12.865/2013, a figura das instituições de pagamento (IP) gerou relevante controvérsia a respeito de sua natureza, em especial por conta de discussões a respeito de seu potencial enquadramento como instituição financeira, com impactos diretos na tributação de suas operações.

Embora o rol de atividades permitidas às IP seja relativamente amplo, na prática essas entidades concentram-se na oferta de serviços de processamento de pagamentos — tais como transações via QR code, terminais de captura (maquininhas), emissão de boletos, códigos para Pix, entre outros, bem como no credenciamento de estabelecimentos para aceitação de instrumentos de pagamento.

Apesar da semelhança funcional com serviços tradicionalmente prestados por bancos (como transferências financeiras, emissão de boletos, código para Pix, etc.), as IPs não podem conceder empréstimos ou financiamentos a seus clientes, limitando-se a serviços de gestão e controle de pagamentos.

O que são as instituições de pagamento

De acordo com o Banco Central, instituição de pagamento é “a pessoa jurídica que viabiliza serviços de compra e venda e de movimentação de recursos, no âmbito de um arranjo de pagamento, sem a possibilidade de conceder empréstimos e financiamentos a seus clientes”.

Em complemento, atualmente, o BC expressamente exclui as instituições de pagamento do enquadramento como instituições financeiras, asseverando que estas “não podem realizar atividades privativas destas instituições, como empréstimos e financiamentos. Ainda assim, estão sujeitas à supervisão do Banco Central”. Ou seja, as IPs não compõem o Sistema Financeiro Nacional, mas são reguladas e fiscalizadas pelo BC, conforme diretrizes estabelecidas pelo Conselho Monetário Nacional.

No cenário fiscal vigente, as instituições de pagamento não sofrem a mesma carga tributária das instituições financeiras, que, historicamente, se depararam com intensos debates e controvérsias a respeito da composição de suas receitas. A despeito disso, as instituições de pagamento não estão dispensadas de apresentar determinadas obrigações acessórias específicas do setor, como “E-Financeira”.

Sem adentrar em outras controvérsias e os impactos arrecadatórios trazidos por outros pontos da medida provisória 1.303/2025, esta norma trouxe, de forma mais imediata, importante majoração na tributação voltada às instituições de pagamento.

Carga tributária mais alta em relação a outros setores

A tributação das instituições financeiras reflete uma carga mais elevada em comparação a outros setores, em virtude da majoração da alíquota da Contribuição Social sobre o Lucro (CSL) implementada em 2008. A Medida Provisória nº 1.303/2025 introduz um importante desdobramento nesse cenário ao estender esse tratamento fiscal mais gravoso a outros entes, incluindo as instituições de pagamento e promovendo, assim, uma aproximação tributária que até então não existia.

Dentre as medidas de elevação da alíquota trazidas pela referida norma, há o considerável aumento da CSL de 9% para 15%, que deve passar a valer a partir de outubro deste ano.

Em um primeiro momento, o principal reflexo da MP 1.303/2025, portanto, parece residir na diminuição da assimetria tributária que historicamente beneficiava fintechs e IP em relação aos grandes bancos.

Ainda que o impacto imediato sobre os bancos seja limitado — uma vez que muitos detêm controladas que operam como IP, cujos resultados têm efeito moderado em seus balanços consolidados —, a medida tem o efeito de reduzir a vantagem tributária de que gozavam as fintechs e IP em relação aos bancos tradicionais.

Com isso, observa-se um possível redesenho do cenário concorrencial, com ganho de competitividade para as grandes instituições financeiras, sobretudo nos segmentos de crédito e de pagamentos.

Regime específico para tributar serviços financeiros

Além das medidas advindas da MP, a reforma tributária, consubstanciada na Emenda Constitucional 132/2023, e posteriormente regulamentada pela Lei Complementar 214/2025, reforça essa tendência ao instituir um regime específico para a tributação de serviços financeiros, aplicável tanto à Contribuição sobre Bens e Serviços (CBS) quanto ao Imposto sobre Bens e Serviços (IBS).

Ao contrário da situação atual, em que as instituições financeiras são tratadas de maneira diferenciada, sob o texto atual da Lei, a IP passará a ser tributada da mesma forma que as instituições financeiras.

A Emenda Constitucional 132/2023 estabeleceu que os serviços financeiros estarão sujeitos a regime específico de tributação e delegou competência ao legislador complementar para dispor sobre regras diferenciadas a respeito de alíquota, base de cálculo, não-cumulatividade, creditamento etc.

A Lei Complementar 214/2025, por sua vez, determinou, em rol taxativo, que diversas atividades estarão sujeitas ao regime específico, incluindo, entre elas, os arranjos de pagamento, incluídas as operações dos instituidores e das instituições de pagamentos e a liquidação antecipada de recebíveis.

Diferença entre bancos e IPs

Além da diferenciação de alíquota, o regime tributário atualmente aplicável a tais instituições apresenta uma segmentação relevante: enquanto bancos comerciais e seguradoras estão obrigatoriamente submetidas ao regime cumulativo de apuração das contribuições ao PIS e à Cofins, as IP e gestoras de recursos operam sob o regime não cumulativo. Essa distinção implica tratamentos fiscais diferenciados para atividades concorrentes, modelando a carga para cada contribuinte.

Partindo-se desta equiparação de tratamento entre instituições financeiras e instituições de pagamento trazida pela Reforma, além da mudança na carga tributária do setor, o modelo de tributação também será profundamente alterado.

O regime específico de tributação dos serviços financeiros previsto na reforma estabelece, por exemplo, que a incidência da CBS e do IBS no spread das instituições financeirasgere crédito para a empresa tomadora do serviço.

Como se vê, a reforma tributária visa a amplificar o rol de atividades econômicas e contribuintes sujeitos a regime diferenciado. A intenção do legislador fica evidente a partir dos artigos 182 e 183, que abarcam no rol de fornecedores sujeitos ao regime específico de incidência da IBS e da CBS, entidades que não estejam sob supervisão do Sistema Financeiro Nacional quando da prestação de qualquer atividade considerada “serviço financeiro”.

Assimetrias tributárias

Em uma análise conjunta das novas normas que foram publicadas, nota-se um movimento jurídico de reconfiguração do tratamento fiscal das IP, aproximando-as do regime aplicado às instituições financeiras tradicionais.

A reestruturação de assimetrias tributárias que favoreciam as IP pode ser vista, em um primeiro momento, como reflexo do objetivo do legislador de promover tratamento isonômico no setor, especialmente marcado pela disrupção tecnológica e pelo ingresso de novos investidores no mercado financeiro.

No entanto, essa aproximação tributária exige uma análise crítica do cenário econômico do setor de pagamentos, sob pena de comprometer sua dinâmica concorrencial. A extensão de encargos fiscais mais gravosos às IP não pode prescindir da consideração de que essas entidades — especialmente as fintechs e instituições de pagamento autônomas, que operam de forma independente de conglomerados financeiros — não compartilham da mesma estrutura ou acesso a fontes de financiamento que caracterizam os bancos.

Hoje, sua carga tributária mais amena se justifica como instrumento de estímulo à competitividade e à inovação, neste mercado já tão dominado pelas grandes instituições. O risco, portanto, é que a equiparação indiscriminada ao regime tributário dos grandes bancos acabe por sufocar justamente os agentes que promovem maior diversidade no sistema financeiro.

O post Tributação das instituições de pagamento: impactos da MP 1.303/2025 e da reforma tributária apareceu primeiro em Consultor Jurídico.

O necessário combate às organizações criminosas

As organizações criminosas têm se fortalecido no Brasil ao longo dos últimos 30 anos. O PCC paulista e o Comando Vermelho no Rio de Janeiro detêm uma capacidade financeira sem precedentes na América Latina.

Estes recursos lhes permitem interferir nas eleições e financiar campanhas políticas. O PCC se especializou no roubo a bancos desde o início dos anos 1990, enquanto o Comando Vermelho atuava fortemente no tráfico de armas e entorpecentes desde os anos 1980.

A Lei de Organizações Criminosas — Lei 12.850 de 2013 — estabeleceu o conceito de organização criminosa de forma muito ampla. Essa amplitude em matéria penal levou à banalização do conceito. Basta que se reúnam mais de quatro pessoas para o cometimento de crimes graves para que sejam considerados uma organização criminosa.

E a banalização acaba por tornar ineficaz um sistema jurídico criado para tratar de um gravíssimo problema. Não é segredo que PCC e CV dominam as principais penitenciárias estaduais no Brasil. Trabalhei diretamente com processos envolvendo líderes do PCC e recebi, como juiz federal, a segurança e carro blindado solicitados junto ao TRF-4.

Eficiência

Considero que as policias estaduais não estão preparadas para investigar essas facções criminosas. Apesar das boas intenções dos estados, todos sabemos que somente uma agência federal poderia atuar, com eficiência, na investigação das duas maiores organizações criminosas do país. Tais investigações demandam um contato frequente com o Coaf, Banco Central e a Receita Federal, além de juízes e procuradores treinados para estas funções e com as garantias de segurança indispensáveis à função.

A Polícia Federal precisa receber os recursos necessários para ampliar as investigações e eficiência dos serviços de inteligência, centralizando se em Brasília, junto ao Ministério da Justiça, o combate ao PCC e ao Comando Vermelho.

Ainda que a experiência com a criação de varas federais especializadas em lavagem de dinheiro tenha se mostrado mal sucedida — especialmente em Curitiba e no Rio de Janeiro, por conta de ilegal politização dos juízes —, a ideia de uma ou mais varas federais centralizadas em Brasília seria uma alternativa importante para os casos envolvendo as investigações dessas duas grandes organizações.

Não se pode confundir, todavia, organizações criminosas com organizações terroristas. Temos, hoje, problemas de terrorismo doméstico e político que podem ser investigados e prevenidos pela Abin (Agência Brasileira de Inteligência).

A Polícia Federal, por outro lado, atua na investigação e combate do PCC e Comando Vermelho, buscando sinergia com a administração das penitenciárias estaduais.

Somente através de um grande pacto nacional contra o crime organizado, o qual demanda cooperação entre os secretários estaduais de justiça e o Ministério da Justiça em Brasília, será possível resistir ou mesmo retardar o avanço do PCC e Comando Vermelho nas próximas eleições.

A política partidária deve ser deixada de lado em nome de uma política mais eficiente e centralizada em Brasília.

O post O necessário combate às organizações criminosas apareceu primeiro em Consultor Jurídico.

Síndrome de burnout: obrigatoriedade de emissão da CAT e as repercussões no contrato de trabalho

A síndrome de burnout, também conhecida como síndrome do esgotamento profissional, consta na lista de doenças ocupacionais de acordo com a Classificação Internacional de Doenças (CID), da Organização Mundial da Saúde (OMS) [1], de sorte que os trabalhadores que forem diagnosticados com essa doença terão os mesmos direitos trabalhistas e previdenciários, em comparação com as demais doenças que possuam relação com o trabalho.

Dados estatísticos

De acordo com uma pesquisa realizada em 2024, o Brasil constatou mais de 470 mil afastamentos do trabalho por transtornos mentais, quantitativo esse que confirma que, atualmente, o país tem o maior número de afastamento por ansiedade e depressão dos últimos 10 anos [2].

Já outro estudo feito pela Associação Nacional de Medicina do Trabalho (Anamy) indicou que cerca de 30% das pessoas ocupadas em território nacional sofrem com a doença, ocupando, portanto, a segunda posição no ranking mundial de casos [3]. Aliás, durante a pandemia do coronavírus houve um aumento de 136% dos afastamentos pela síndrome de burnout [4].

Em outra pesquisa da International Stress Management Association no Brasil revelou que este problema já afeta 32% dos trabalhadores brasileiros [5].

Nesse sentido, muitas são as dúvidas diárias que surgem com relação à emissão do comunicado de acidente de trabalho (CAT) para esses casos e, se realmente, trata-se de uma obrigação para os empregadores. Por isso, dada a importância e relevância do assunto, a temática foi indicada por você, leitor(a), para o artigo da semana, na coluna Prática Trabalhista da revista eletrônica Consultor Jurídico [6], razão pela qual agradecemos o contato.

Lição de especialista

A síndrome de burnout está relacionada com o trabalho e, por isso, passou a ser classificada como uma doença ocupacional.

Nesse sentido, oportunos são os ensinamentos de Maria José Gianella Cataldi[7] sobre doenças consideradas acidentes de trabalho:

“São consideradas como acidente de trabalho as seguintes entidades mórbidas: I- doença profissional, assim entendida a produzida ou desencadeada pelo exercício do trabalho peculiar a determinada atividade e constante da respectiva relação elaborada pelo Ministério do Trabalho e Previdência Social; II-doença do trabalho, assim entendida a adquirida ou desencadeada em função de condições especiais em que o trabalho é realizado e com ele se relacione diretamente, constante da relação mencionada no inciso I.(…).

A doença profissional ou do trabalho caracteriza-se quando, formal o diagnóstico de afecção, ou de intoxicação, se verificar que o empregado exercia a atividade que o expunha ao agente patogênico. O legislador suprimiu, em termos, a incidência dos benefícios acidentários nos casos de doenças profissionais atípicas, de sorte que, quando da equiparação ao acidente típico, deu sentido idêntico para doença profissional e doença do trabalho”.

Emissão da CAT

Sabe-se que a CAT é um documento onde são registrados as doenças e os acidentes que acontecem no ambiente de trabalho. A partir dele é que o trabalhador poderá receber pelo INSS benefícios previdenciários, bem como ter assegurado os seus direitos trabalhistas.

Do ponto de vista legislativo no Brasil, a Lei nº 8.213/91 dispõe em seu artigo 22 [8] que a empresa e/ou empregador doméstico tem o dever de comunicar junto a Previdência Social o acidente de trabalho, sob pena de multa. Vale dizer, a emissão da CAT é obrigatória por força legal, ainda que não haja a exigência de afastamento do empregado.

À vista disso, impende destaca que tal comunicação poderá ser feita: 1) pelo próprio trabalhador e seus dependentes; 2) pelo empregador; 3) pelo sindicato da categoria; 4) pelo médico que registrou o atendimento após o acidente/doença ocupacional; e 5) por uma autoridade pública.

Para tanto, deverão ser apresentados os seguintes documentos: 1) Informações do empregador (Razão social ou nome, tipo e número do documento, CNAE, Endereço, CEP e telefone); 2) Informações da pessoa empregada acidentada (dados pessoais, salário, número da carteira de trabalho, identidade, CPF, NIT/PIS/Pasep, endereço, CEP, telefone, CBO e área); 3) dados sobre o acidente; 4) dados sobre ocorrência policial, se houver; 5) dados sobre o atendimento emergencial e médico recebido; e 6) dados médicos referente ao acidente [9].

Portanto, com abertura da CAT, o trabalhador terá resguardado os seus direitos, facilitando, inclusive, a comprovação junto a perícia médica do INSS.

Jurisprudência trabalhista

Em se tratando de doença ocupacional e estabilidade provisória no emprego, segundo uma pesquisa feita pelo TST, no biênio entre 25/3/2023 até 25/3/2025, constatou-se a existência de 33 acórdãos e 2.084 decisões monocráticas envolvendo esta temática [10].

 

Por estas razões, recentemente, a Corte Superior Trabalhista reafirmou a sua jurisprudência fixando a seguinte tese ao julgar o RR-0020465-17.2022.5.04.0521: “Para fins de garantia provisória de emprego prevista no artigo 118 da Lei nº 8.213/1991, não é necessário o afastamento por período superior a 15 (quinze) dias ou a percepção de auxílio-doença acidentário, desde que reconhecido, após a cessação do contrato de trabalho, o nexo causal ou concausal entre a doença ocupacional e as atividades desempenhadas no curso da relação de emprego”.

Nesse sentido, considerando a nova tese vinculante (Tema 125) que passa a ser obrigatória para os demais órgãos da Justiça do Trabalho, uma vez constatada, em tese, a relação de concausalidade entre a enfermidade que acometeu o trabalhador e as atividades desenvolvidas na empresa, após a despedida, ainda que não tenha havido o afastamento do emprego por mais de 15 dias, nem o consequente recebimento do auxílio-doença acidentário, surgirá o direito à estabilidade legal de no mínimo 12 meses.

Ao definir a tese, o ministro relator ponderou:

“Neste ponto, faz-se necessário registrar que as doenças ocupacionais geralmente não se manifestam de forma imediata, possuindo características diferenciadas e graus de evolução distintos, razão pela qual, em muitos dos casos, não há o efetivo recebimento de auxílio-doença acidentário antes da extinção do contrato de trabalho ou o afastamento superior a quinze dias.

Desta feita, comprovado que o ambiente laboral ou o exercício das atividades contribuíram, ao menos, de forma concorrente e relevante para o desenvolvimento da doença ocupacional, atuando como causa ou concausa, tornam-se despiciendos o afastamento do empregado por mais de quinze dias e a percepção do auxílio-doença acidentário para auferir o direito à estabilidade provisória prevista no art. 118 da Lei nº 8.213/91”.

Conclusão

Portanto, para além do cumprimento dos deveres de manter um meio ambiente laboral saudável, em casos que o trabalhador seja acometido pela síndrome de burnout, a empresa deverá adotar as medidas cabíveis para assegurar os seus direitos, comunicando o fato junto ao INSS. Lembrando ainda que durante o período de afastamento o contrato de trabalho ficará suspenso e o trabalhador não poderá ser dispensado, sob pena de tal procedimento ser declarado nulo pelo Poder Judiciário Trabalhista.


[1] Disponível em https://www.cnnbrasil.com.br/politica/sindrome-do-burnout-ganha-nova-classificacao-na-oms/. Acesso em 05/08/2025.

[2] Disponível em https://g1.globo.com/trabalho-e-carreira/noticia/2025/03/10/crise-de-saude-mental-brasil-tem-maior-numero-de-afastamentos-por-ansiedade-e-depressao-em-10-anos.ghtml. Acesso em 05/08/2025.

[3] Disponível em https://www.ip.usp.br/site/noticia/brasil-e-o-segundo-pais-com-mais-casos-de-burnout-e-so-perde-para-o-japao/. Acesso em 05/08/2025.

[4] Disponível em https://www.bbc.com/portuguese/articles/cnk4p78q03vo. Acesso em 05/08/2025.

[5] Disponível em https://g1.globo.com/saude/bem-estar/noticia/2025/06/21/burnout-nao-e-frescura-entenda-a-exaustao-cronica-ligada-ao-trabalho-quais-os-sintomas-e-como-agir.ghtml. Acesso em 05/08/2025.

[6] Se você deseja que algum tema em especial seja objeto de análise pela coluna Prática Trabalhista da ConJur, entre em contato diretamente com os colunistas e traga sua sugestão para a próxima semana.

[7] O stress no meio ambiente do trabalho.  – Maria José Gianella Cataldi. 4. Ed. ver. Atual. e ampl. – São Paulo: Tompson Reuters Brasil. Página 104/105.

[8] Lei nº 8.213/91, Art. 22. A empresa ou o empregador doméstico deverão comunicar o acidente do trabalho à Previdência Social até o primeiro dia útil seguinte ao da ocorrência e, em caso de morte, de imediato, à autoridade competente, sob pena de multa variável entre o limite mínimo e o limite máximo do salário de contribuição, sucessivamente aumentada nas reincidências, aplicada e cobrada pela Previdência Social.

[9] Disponível em https://www.gov.br/pt-br/servicos/registrar-comunicacao-de-acidente-de-trabalho-cat . Acesso em 05/08/2025.

[10] Disponível em https://jurisprudencia-backend2.tst.jus.br/rest/documentos/17f7d15317ef2d2f434bb0f1b1b7e762. Acesso em 05/08/2025.

O post Síndrome de <i>burnout</i>: obrigatoriedade de emissão da CAT e as repercussões no contrato de trabalho apareceu primeiro em Consultor Jurídico.

IA explica o que o juridiquês esconde, diz cofundador do Jusbrasil

A inteligência artificial confere precisão aos resultados das buscas nas bases de dados processuais e profundidade às discussões sobre o Direito. Mas o grande serviço prestado pela ferramenta é permitir que a sociedade compreenda a linguagem jurídica de forma rápida, diz o cofundador da plataforma JusbrasilLuiz Paulo Pinho.

Especialista em administração e gestão de empresas, ele falou sobre o uso da IA feito pelo site no campo da pesquisa jurídica em entrevista à série Grandes Temas, Grandes Nomes do Direito, em que a revista eletrônica Consultor Jurídico ouve alguns dos nomes mais importantes do Direito, da política e do empresariado sobre as questões mais relevantes da atualidade.

“A principal contribuição (da plataforma) é tirar uma discussão que está somente na comunidade jurídica e trazer essa conversa para toda a sociedade. Nós pegamos essa informação jurídica e a tornamos tangível e útil para todo mundo, agora por meio da inteligência artificial, que consegue explicar para as pessoas aquilo que o juridiquês esconde”, disse Pinho em conversa durante o XIII Fórum de Lisboa, promovido em julho na Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa (FDUL).

Pinho observa que as buscas processuais feitas com auxílio de IA tornam o conhecimento jurídico mais acessível não só para o público leigo, mas também para profissionais do Direito que buscam informações sobre temas que estão fora de suas áreas de especialidade.

“Hoje, quando fazemos uma pergunta a um buscador que trabalhe de forma semântica com inteligência artificial sobre qualquer tema, já é possível obter a posição dos tribunais brasileiros com relação à pauta pesquisada. Isso faz com que a compreensão jurídica se eleve e as discussões se aprofundem”, disse ele.

Lançado em 2008, o Jusbrasil disponibiliza documentos como autos processuais e precedentes judiciais e administrativos. Mensalmente, a plataforma recebe em torno de 30 milhões de visitantes. Além disso, conta com 80% dos advogados do Brasil cadastrados em seu sistema, que é mantido por meio da venda de assinaturas.

Resposta para quase tudo

Pinho afirma que a ferramenta é capaz de identificar quase todo tipo de padrão e extrair dados muito específicos dos sistemas processuais. Por ora, contudo, essas aplicações estão no campo das possibilidades, já que os custos agregados à inteligência artificial ainda são altos, o que dificulta certas buscas.

“Mas eu diria que poucas perguntas não podem ser respondidas, desde que a IA tenha acesso a uma base processual completa.”

Recentemente, prossegue Pinho, o Jusbrasil obteve dados sobre a prática de injúria racial nas redes, em pesquisa feita a pedido de uma faculdade de Direito, cujo resultado foi apresentado no Ministério da Igualdade Racial.

Outros exemplos de dados específicos foram os levantados pelos projetos JusAmazônia e JusAmbiente, que analisaram a judicialização do desmatamento na Amazônia e no estado de São Paulo, respectivamente.

“A maior dificuldade talvez seja o acesso às bases de dados, que nem sempre são tão palpáveis, inclusive para engenhos como esse, o que exige um trabalho gigantesco. Hoje monitoramos 94 tribunais e um número maior do que esse de sistemas funcionando nesses tribunais. E também as agências reguladoras, Carf (Conselho Administrativo de Recursos Fiscais) e todos os órgãos. Então, se eu quero entender a visão de qualquer um deles, eu tenho que olhar para esses sistemas e puxar as decisões, inclusive as administrativas. E isso dá um trabalho danado, mas aos poucos vamos expandido a base dos dados”, disse Pinho.

Clique aqui para ver a entrevista ou assista abaixo:

O post IA explica o que o juridiquês esconde, diz cofundador do <i>Jusbrasil</i> apareceu primeiro em Consultor Jurídico.

Juiz constata fraude e revoga liminar contra órgão de proteção de crédito

O juiz Antônio José dos Santos, da Vara Única de São Geraldo do Araguaia (PA), constatou indícios de fraude em uma ação proposta por uma associação que prometia limpar o nome de consumidores. Por causa disso, ele revogou uma liminar que favorecia a entidade e extinguiu o processo sem resolução do mérito.

Juiz argumentou que associação cometeu fraude e revogou liminar contra órgão de proteção de crédito

Segundo os autos, a associação pró-consumidor ajuizou a ação em nome de vários devedores, pedindo uma liminar para retirar os nomes dessas pessoas de um órgão de proteção ao crédito. A entidade alegou que essas pessoas foram cadastradas sem qualquer aviso.

Em um primeiro momento, o juízo concedeu liminar para que a instituição de proteção retirasse os nomes dos consumidores da lista de negativados.

O órgão, então, contestou a decisão, anexando aos autos diversas reportagens que indicavam fraudes praticadas pela entidade e por outras semelhantes.

A instituição de proteção ao crédito afirmou que havia uma “indústria limpa nome” na cidade, pois as entidades procuravam pessoas endividadas e ofereciam serviços para retirar seus nomes da lista de negativados em até 20 dias. Em contrapartida, os consumidores tinham de se associar e pagar mensalidades.

Para o juiz, a despeito de a instituição ter a prerrogativa de ajuizar a ação, a intenção do processo não foi proteger os direitos dos consumidores, mas angariar pessoas para se filiar à associação.

“Assim, verificado que os fundamentos da presente ação não se enquadram no resguardo dos direitos dos consumidores, pois busca fim simulado ou fraudulento, o processo coletivo perdeu a sua validade, devendo ser extinto sem análise do mérito”, escreveu o julgador.

A advogada Kelly Pinheiro, sócia-diretora da banca Eckermann & Santos Sociedade de Advogados, defendeu o órgão de proteção ao crédito.

Clique aqui para ler a decisão
Processo 0800341-68.2025.8.14.0125

O post Juiz constata fraude e revoga liminar contra órgão de proteção de crédito apareceu primeiro em Consultor Jurídico.

O foro privilegiado e a volatilidade da jurisprudência do STF

Em 16/7/2025, foi publicado o acórdão do julgamento em que o Plenário do Supremo Tribunal Federal alterou o posicionamento acerca da extensão do foro por prerrogativa de função. Em decisão sob a relatoria do ministro Gilmar Mendes, nos autos do Habeas Corpus 232.627/DF, restou fixada a tese de julgamento por maioria:

“A prerrogativa de foro para julgamento de crimes praticados no cargo e em razão das funções subsiste mesmo após o afastamento do cargo, ainda que o inquérito ou a ação penal sejam iniciados depois de cessado seu exercício.”

Em complemento, constou o comando de “aplicação imediata da nova interpretação aos processos em curso, ressalvados todos os atos praticados pelo STF e pelos demais Juízos com base na jurisprudência anterior”.

A tese modificou o entendimento até então vigente, ao ampliar a incidência do foro especial para além da desinvestidura do cargo, expandindo significativamente a aplicação da regra e provocando efeitos práticos imediatos e diretos em processos em trâmite em todos os graus de jurisdição.

A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, ao longo de sua história, é vacilante, ora ampliando a prerrogativa de foro, ora restringindo-a, levando em conta dois critérios: a regra da atualidade e a regra da contemporaneidade.

A regra da atualidade vincula o foro por prerrogativa de função ao atual exercício do cargo público. Dessa forma, a competência originária dos tribunais tem início com a diplomação (ou posse) e abrange todas as ações penais movidas contra o agente, independentemente do tipo de crime imputado.

Já a regra da contemporaneidade concentra-se na natureza do delito imputado ao agente. Segundo essa orientação, os tribunais têm competência para julgar os crimes cometidos durante o exercício do cargo e que guardem relação com as funções por ele desempenhadas.

Inicialmente, o Supremo Tribunal Federal adotou a regra da contemporaneidade, reconhecendo a prerrogativa de foro para todos os crimes praticados no período em que o agente ocupava o cargo, ainda que o inquérito ou a ação penal fossem propostos após o término do mandato ou da função.

Assim, a partir de precedentes da corte à época — fruto da interpretação da Constituição Federal de 1946, e, ainda, das Leis 1.079/50 e 3.258/59 —, a orientação se firmou no sentido do enunciado da Súmula 394, editada em 1964: “Cometido o crime durante o exercício funcional, prevalece a competência especial por prerrogativa de função, ainda que o inquérito ou a ação penal sejam iniciados após a cessação daquele exercício” [1]. Esse foi o posicionamento da corte ao longo de décadas [2].

A Súmula 394 foi cancelada com o julgamento de questão de ordem no Inquérito nº 687, em 1999 [3]. Na ocasião, o ministro relator Sydney Sanches propôs a revisão do entendimento, argumentando que a edição da súmula ocorreu sob a égide da Constituição de 1946, que não atribuía competência originária à Corte Suprema para processar e julgar deputados federais e senadores por crimes comuns. Sustentou, ainda, que essa tese não se manteve na Constituição de 1988, ao menos de forma expressa, uma vez que o artigo 102, inciso I, alínea “b”, passou a estabelecer competência originária para processar e julgar “os membros do Congresso Nacional”.

Argumentou que a prerrogativa de foro, por representar um privilégio, não deve ser interpretada de forma extensiva, sobretudo em face de uma Constituição que consagra a igualdade entre todos os cidadãos, inclusive aqueles que já não exercem cargos ou mandatos públicos.

O ministro relator também destacou a ampliação excessiva da competência do foro especial, observando que, à época da edição da Súmula 394, eram raros os casos de exercício da prerrogativa de foro perante a corte. Realidade essa que, em 1999, já era distinta, com inquéritos, queixas e denúncias multiplicando-se contra ex-parlamentares, ex-ministros de Estado e até ex-presidente da República.

Em seu voto, questionou: “É de se perguntar, então: deve o Supremo Tribunal Federal continuar dando interpretação ampliativa a suas competências, quando nem pela interpretação estrita, tem conseguido exercitá-las a tempo e a hora?”

A partir desse precedente, a Suprema Corte consagrou a regra da atualidade em sua forma mais estrita, sem admitir exceções.  A prerrogativa de foro surgia com a assunção ao cargo e se extinguia automaticamente com o fim do exercício da função, independentemente da natureza do crime imputado.

Por um longo período, de 1999 a 2018, o tema ficou pacificado e prevaleceu a regra da atualidade. A competência por prerrogativa começava com a posse no cargo e envolvia todas as investigações e ações penais contra o agente público, até mesmo aquelas relacionadas a fatos anteriores à nomeação ou sem vínculo com as funções desempenhadas. No entanto, ao deixar o cargo — seja por término do mandato ou renúncia —, o agente perdia automaticamente o foro, em qualquer fase em que o processo se encontrasse.

Percebendo uma necessidade de brecar eventuais desvios de competência por iniciativa do agente, a Primeira Turma aprofundou o tema em busca de um critério geral para a manutenção: “a renúncia de parlamentar, após o final da instrução, não acarreta a perda da competência do Supremo Tribunal Federal”. Serviria, portanto, para inibir a manipulação da regra da atualidade (AP 606-QO, rel. min. Roberto Barroso, DJ 18/6/2014).

Em 2018, a corte novamente revisou o posicionamento, tornando a adotar a regra da contemporaneidade. Na AP 937-QO, sob a relatoria do ministro Roberto Barroso [4], a prerrogativa de foro passou a ser restrita aos crimes cometidos durante o exercício do cargo e em função das atribuições a ele inerentes:

“(i) O foro por prerrogativa de função aplica-se apenas aos crimes cometidos durante o exercício do cargo e relacionados às funções desempenhadas; e (ii) após o final da instrução processual, com a publicação do despacho de intimação para apresentação de alegações finais, a competência para processar e julgar ações penais não será mais afetada em razão de o agente público vir a ocupar cargo ou deixar o cargo que ocupava, qualquer que seja o motivo”.

A partir de então, o Supremo Tribunal Federal estabeleceu um importante marco restritivo: o crime deve ter sido praticado no exercício do cargo e em razão das funções desempenhadas, não bastando a mera diplomação do parlamentar (regra da contemporaneidade). Na prática, contudo, a regra da atualidade, estabelecida no Inquérito 687-QO, ainda era aplicada, pois o afastamento das funções acarretava o deslocamento de todos os inquéritos e ações penais originárias para a primeira instância.

Foi precisamente esse entendimento que o ministro Gilmar recentemente propôs alterar: “se a diplomação do parlamentar, sozinha, não justifica a remessa dos autos para os Tribunais, o encerramento do mandato também não constitui razão para o movimento contrário – retorno dos autos para a primeira instância”.

Sustentou a necessidade de avançar no debate para fixar um critério geral mais coerente e estável, baseado na natureza do fato criminoso, e não em fatores sujeitos ao controle do próprio acusado, como a permanência no cargo. Afirmou que a proposta cumpriria esse objetivo, sem afastar os fundamentos centrais definidos na AP 937-QO — estabilização do foro para julgamento de crimes praticados no exercício do cargo e em razão dele —, ao mesmo tempo em que corrigiria a instabilidade do sistema, evitando manobras que gerem atrasos processuais, comprometem a eficiência da Justiça e, em última instância, favorecem a prescrição.

Foi acompanhado pela maioria dos ministros integrantes da corte – vencidos os ministros André Mendonça, Edson Fachin, Cármen Lúcia e Luiz Fux, para os quais o alargamento do foro por prerrogativa de função para período posterior ao fim do exercício do cargo ou função contraria a jurisprudência construída de forma gradativa e constante pela Corte Suprema nas últimas duas décadas e esvazia a lógica justificadora da excepcional competência.

Embora a tese fixada não tenha a intenção declarada de suplantar a jurisprudência vigente — conforme ressalvou o próprio relator —, seus efeitos práticos são inegáveis: inúmeros inquéritos e ações penais, que tramitam há anos nas instâncias inferiores, serão remetidos às cortes superiores. E com isso corre-se o risco de se chegar ao resultado que se pretendia evitar: deslocamentos sucessivos de competência, atrasos processuais, diligências intermináveis e, ao fim, a prescrição. Sem falar-se no desvirtuamento da convalidação de vícios processuais, sempre que o ato processual seja praticado por autoridade posteriormente reconhecida incompetente.

Se, mais adiante, o Supremo, diante da sobrecarga de processos de competência originária, vier a reconhecer o equívoco ou a inadequação da nova orientação e decidir revisá-la, o argumento que hoje a sustenta terá se mostrado, no mínimo, frágil e inconsistente frente os danos provocados.


[1] Súmula 394, DJ de 08/05/1964, p. 1239; DJ de 11/05/1964, p. 1255; DJ de 12/05/1964, p. 1279.

[2] RE 162966, Relator(a): NÉRI DA SILVEIRA, Tribunal Pleno, julgado em 27-05-1993, DJ 08-04-1994 PP-07250  EMENT  VOL-01739-09 PP-01767. Rcl 583, Relator(a): MAURÍCIO CORRÊA, Tribunal Pleno, julgado em 28-04-1997, DJ 22-06-2001 PP-00024  EMENT VOL-02036-01 PP-00058)

[3] Inq 687 QO, Relator(a): SYDNEY SANCHES, Tribunal Pleno, julgado em 25-08-1999, DJ 09-11-2001 PP-00044  EMENT VOL-02051-02 PP-00217 RTJ   VOL-00179-03 PP-00912.

[4] DJe 11.12.2018.

O post O foro privilegiado e a volatilidade da jurisprudência do STF apareceu primeiro em Consultor Jurídico.

Responsabilidade penal da pessoa jurídica e seu eterno atrito com institutos penais

A responsabilidade penal da pessoa jurídica foi introduzida no direito penal brasileiro recente pela Lei dos Crimes Ambientais (Lei nº 9.605/98), com fundamento constitucional na previsão do artigo 225, § 3º, da Constituição [1], e, desde então, tem gerado uma série de problemas de aplicação.

Logo após a previsão constitucional, e antes mesmo do estabelecimento de dispositivo legal, a doutrina brasileira já criticara de forma bastante contundente o instituto [2], apontando que a pessoa jurídica não teria capacidade de praticar conduta no sentido penal; não seria possível aplicar a ideia de culpabilidade às pessoas jurídicas; e, no que se refere às penas, haveria dificuldades para a individualização da pena e superação do princípio da pessoalidade das penas.

Com o advento da lei, passou-se a discutir também o modelo de responsabilidade adotado, bem como as dificuldades concretas de aplicação dos institutos penais e processuais penais às pessoas jurídicas.

O cenário, hoje, passados mais de 27 anos da previsão legal, ainda é de incontáveis atritos com institutos penais fundamentais.

O primeiro ponto que, surpreendentemente, precisa ser ressaltado é que a responsabilidade penal da pessoa jurídica apenas pode ser aplicada aos crimes previstos na Lei nº 9.605/98, cujo artigo 3º deixa claro que o sistema de responsabilidade estabelecido vale para os crimes ali previstos.

Crimes ambientais previstos em outros dispositivos, tais como a Lei nº 6.453/77 (Lei de Atividades Nucleares), a Lei nº 11.105/2006 (Lei de Biossegurança) e a Lei 14.785/23 (Lei de Agrotóxicos) não admitem a aplicação da responsabilidade penal da pessoa jurídica por completa ausência de previsão legal. A exceção seria a Lei nº 12.305/2010 (Lei dos Resíduos Sólidos), que fez expressas remissões à Lei nº 9.605/98.

Aqui, é preciso rememorar a importância do princípio da legalidade no direito penal e o fato de que as previsões constitucionais incriminadoras não têm aplicabilidade direta, demandando previsão legal expressa [3].

Apesar disso, denúncias têm sido oferecidas contra pessoas jurídicas com imputação de crimes previstos em legislações outras que a Lei dos Crimes Ambientais, sem o amparo legal devido [4].

Um segundo ponto relevante é a necessidade de observância do modelo legal de responsabilidade estabelecido. Nossa lei adotou o modelo de heterorresponsabilidade [5], segundo o qual a responsabilidade da pessoa jurídica é construída por atribuição ou transferência de pessoas físicas que atuaram em seu nome.

O artigo 3º, caput, da Lei n. 9.605/98, não deixa dúvidas ao prever que a aplicação da responsabilidade penal da pessoa jurídica ocorre nos casos “em que a infração seja cometida por decisão de seu representante legal ou contratual, ou de seu órgão colegiado, no interesse ou benefício da sua entidade”.

Assim, nosso direito não acolheu a responsabilização por fato “próprio” da pessoa jurídica (conhecido como modelo da autorresponsabilidade), exigindo que os requisitos constantes no artigo 3º da lei sejam estritamente cumpridos quando se pretende realizar a imputação do fato à pessoa jurídica.

A jurisprudência, após intensa discussão a respeito da necessidade de imputação concomitante da pessoa jurídica e da pessoa física que praticou o comportamento em questão, entendeu que o processamento da pessoa jurídica não precisa ser realizado em conjunto com o da pessoa física, conforme a decisão paradigmática proferida pelo Supremo Tribunal Federal no RE nº 548.181/PR, de relatoria da ministra Rosa Weber.

Porém, a decisão manteve expressamente a exigência — que decorre de lei, frise-se novamente — de descrição de ato concreto do representante legal, praticado no interesse ou em benefício da pessoa jurídica, para que se possa iniciar o processo penal em face de uma empresa, mesmo nos casos em que ela seja processada isoladamente:

“A identificação o mais aproximada possível dos setores e agentes internos da empresa determinantes na produção do fato ilícito, porque envolvidos no processo de deliberação ou execução do ato que veio a se revelar lesivo de bens jurídicos tutelados pela legislação penal ambiental, tem relevância e deve ser buscada no caso concreto como forma de esclarecer se esses indivíduos ou órgãos atuaram ou deliberaram no exercício regular de suas atribuições internas à sociedade, e ainda para verificar se a atuação se deu no interesse ou em benefício da entidade coletiva. Mas esse esclarecimento, relevante para fins de imputar determinado delito à pessoa jurídica, não se confunde com subordinar a responsabilização da pessoa jurídica à responsabilização conjunta e cumulativa das pessoas físicas envolvidas.” [6]

Diante disso, a imputação à pessoa jurídica deve obedecer às exigências mencionadas, devendo a denúncia descrever, de forma pormenorizada, o seu preenchimento no caso concreto. Caso não seja demonstrada a conduta, descrito quem a realizou ou determinou a sua realização (devendo-se tratar de representante legal), assim como que esta foi praticada em benefício ou interesse da empresa, a denúncia deverá ser considerada inepta, por não permitir o exercício do contraditório e ampla defesa.

Entretanto, diversos têm sido os casos de atribuição automática de prática de crime a pessoas jurídicas, sem o atendimento dos requisitos legais [7].

Por fim, deve-se trazer um terceiro ponto que se tem apresentado concretamente e foi, inclusive, objeto de análise pelo Superior Tribunal de Justiça: o que fazer diante do encerramento de uma pessoa jurídica? Ou de sua incorporação por outra empresa? É possível equiparar esses atos à morte da pessoa física, que levaria ao reconhecimento da extinção da punibilidade? A resposta do STJ, ao julgar o REsp 1.977.172, foi que sim, já que a incorporação não transferiria a responsabilidade penal, sob pena de violação do princípio da intranscendência da pena. [8]

Contudo, outros atos societários continuam gerando grandes dúvidas, como alterações relevantes do controle societário e alterações em seu corpo diretivo — para além de situações como a recuperação judicial e a falência.

Muitos outros problemas que a prática tem trazido poderiam ser descritos aqui: a contagem dos prazos prescricionais, a falta de regra de conversão das penas privativas de liberdade para as penas aplicáveis à pessoa jurídica, a impossibilidade de a pessoa jurídica celebrar colaboração premiada, a forma de citação da pessoa jurídica, sua representação no processo penal, a impossibilidade de se valer de habeas corpus em sua defesa, dentre tantos outros.

Todavia, os três exemplos acima já são suficientes para demonstrar que a responsabilidade penal da pessoa jurídica tem gerado um elevado custo às categorias mais essenciais do direito penal e do processo penal. Adequá-la à lógica e à racionalidade penal não tem sido simples, conforme demonstram esses 27 anos de prática.

Se considerarmos que, em nosso sistema, as sanções penalmente aplicáveis às pessoas jurídicas são substancialmente as mesmas que podem ser aplicadas pelo direito administrativo sancionador — que conta com um arcabouço muito mais adequado à aplicação de responsabilidade às pessoas jurídicas —, devemos refletir seriamente se insistir na responsabilidade penal da pessoa jurídica faz sentido ou se estamos diante de um instituto que traz, estruturalmente, mais problemas do que soluções efetivas.

_________________________________________

[1] § 3º As condutas e atividades consideradas lesivas ao meio ambiente sujeitarão os infratores, pessoas físicas ou jurídicas, a sanções penais e administrativas, independentemente da obrigação de reparar os danos causados.

[2] Um panorama das críticas pode ser conferido em: COSTA, Helena Regina Lobo da. Responsabilidade penal da pessoa jurídica: um panorama sobre sua aplicação no direito brasileiro. In: IBCCRIM. (Org.). IBCCRIM 25 anos. 1ed. Belo Horizonte: D’Plácido, 2017. p. 91-108.

[3] Cf., por exemplo, a decisão proferida pelo STF: RHC 130738. AgR, Segunda Turma, Rel. Min. Celso de Mello, DJe-232 divulg. 09-10-2017, publ. 10-10-2017.

[4] Vide artigo sobre o tema publicado neste Conjur: RIBEIRO, Marcelo; BENTO, Bruna Passarelli. Impossibilidade de responsabilização penal da PJ fora da Lei 9.605/98. In: Conjur. Disponível aqui.

[5] Sobre os modelos de responsabilidade da pessoa jurídica, vide: SALVADOR NETO, Alamiro Velludo. Responsabilidade penal da pessoa jurídica. São Paulo, Revista dos Tribunais, 2023. Cap. 2.

[6] STF. RE n. 548.181/PR, Relatora Ministra Rosa Weber, Primeira Turma, julgado em 06/08/2013, DJe 30/10/2024, grifei. Essa nova orientação, que embora tenha afastado a necessidade de imputação concomitante, manteve a exigência de preenchimento dos critérios do art. 3º, da Lei n. 9.605/98. Nesse sentido, a título de exemplo, cf. TRF3. Processo n. 5008866-57.2018.4.03.0000, relator Desembargador Federal Maurício Kato, 5ª Turma, julgado em 14/12/2021. Também a doutrina tem ressaltado essa posição. Cf. NOVAES, Maria Tereza Grassi. A responsabilidade penal da pessoa jurídica…cit., p. 34.

[7] Vide, por exemplo, matéria sobre o tema veiculada neste Conjur: aqui

[8] REsp 1.977.172, Terceira Seção, Rel. Min. Ribeiro Dantas, julgado em 24/8/2022, DJe de 20/9/2022.

O post Responsabilidade penal da pessoa jurídica e seu eterno atrito com institutos penais apareceu primeiro em Consultor Jurídico.

Tecnologia não é inimiga dos cursos de Direito

Plataformas de inteligência artificial generativa, como o ChatGPT, são ferramentas de acesso ao conhecimento cujo uso deve ser incorporado pelas instituições de ensino superior. De acordo com o diretor da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa (FDUL), Eduardo Vera-Cruz Pinto, os docentes precisam ter isso em mente para não encarar essas tecnologias como inimigas.

Ele falou sobre o assunto em entrevista à série Grandes Temas, Grandes Nomes do Direito, em que a revista eletrônica Consultor Jurídico ouve alguns dos nomes mais importantes do Direito e do empresariado sobre as questões mais relevantes da atualidade.

Para Vera-Cruz Pinto, professores devem ter em mente que IAs são ferramentas de acesso ao conhecimento

“É uma responsabilidade dos professores, também, fazer com que os cursos de Direito recebam a tecnologia não como um perigo ou uma coisa inimiga, mas, ao contrário, como um complemento na possibilidade de ensinar melhor o Direito”, disse em conversa durante o XIII Fórum de Lisboa, promovido neste mês na FDUL.

“Cabe aos professores universitários estarem atentos para prevenir, quer na forma como ensinam, quer na forma como avaliam, e sobretudo como recebem os jovens que nos procuram para se graduar em Direito.”

Para Vera-Cruz Pinto, isso faz parte das adaptações que precisarão ser feitas na maneira como as Ciências Jurídicas são ensinadas, que incluem reformas nos planos curriculares e novas formas de complementar o ensino fundamental.

“Nós temos um conjunto de adolescentes que chegam à faculdade que não tem os conhecimentos básicos para entender uma aula da Direito e, portanto, há que reformular (os planos curriculares) e introduzir na didática do ensino as ferramentas digitais e aquilo que a tecnologia tem trazido”, observou.

Apesar dos problemas que surgem nesse cenário global de crescente uso de ferramentas generativas por integrantes do Judiciário e advogados, o diretor da FDUL acredita que não há risco de os operadores do Direito serem substituídos. “Enquanto houver duas pessoas que brigam, tem que haver alguém que saiba resolver aquilo.”

Clique aqui para ver a entrevista ou assista abaixo:

O post Tecnologia não é inimiga dos cursos de Direito, diz Vera-Cruz Pinto apareceu primeiro em Consultor Jurídico.