Transação tributária já equivale a quase metade do valor recuperado pela PGFN

AGU recuperou R$ 62,7 bilhões em 2023, 6,3% a mais do que no ano anterior

As transações tributárias foram responsáveis por quase metade dos valores recuperados pela Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional (PGFN) no ano passado, segundo dados da Advocacia-Geral da União.

Foram obtidos dessa maneira R$ 20,7 bilhões dos R$ 48,3 bilhões recuperados pela PGFN em 2023 (42,8% do total). Esse valor é 46,8% maior do que o do ano anterior, quando foram recuperados R$ 14,1 bilhões via transações tributárias.

O maior acordo foi firmado em agosto, com um grupo empresarial produtor de cimento. Só nessa transação, foram regularizados R$ 11 bilhões, sendo R$ 270 milhões referentes a créditos do Fundo de Garantia por Tempo de Serviço (FGTS).

Segundo a PGFN, além das transações, o aumento do montante recuperado se deu por meio do aprimoramento da análise financeira do perfil do contribuinte. Com isso, foi possível priorizar as execuções dos devedores com maior capacidade de pagamento.

Ao todo, a AGU recuperou R$ 62,7 bilhões em 2023, 6,8% a mais do que no ano anterior, quando foram recuperados R$ 58,7 bilhões.

“Veio pra ficar”

A transação tributária permite que devedores façam acordos para quitar seus débitos. Essa possibilidade passou a valer com a Medida Provisória 889/2019, que posteriormente foi convertida na Lei 13.988/2020.

Em entrevista publicada pela revista eletrônica Consultor Jurídico em novembro do ano passado, o procurador da Fazenda Nacional João Henrique Chauffaille Grognet disse que a transação se tornou a política pública mais eficaz para recuperar valores sem litígios.

Para Pedro Corino, CEO da Sociedade São Paulo de Investimentos, as transações vieram para ficar, e em pouco tempo já se mostraram um mecanismo eficiente para garantir o pagamento de dívidas e a continuidade de empresas.

“A transação tributária tem se consolidado como um método bem eficiente para resolver disputas fiscais sem recorrer a um processo judicial prolongado. É uma ferramenta que envolve negociação direta entre o contribuinte e autoridades fiscais e busca solucionar débitos tributários por meio de concessões bilaterais.”

Segundo Corino, a tendência é que a transação tributária cresça nos próximos anos, uma vez que se mostrou um método bastante razoável para, por um lado, desafogar o Judiciário e, por outro, permitir que empresas com multas elevadas paguem suas dívidas.

“É claro que o governo nunca vai poder abrir mão de aplicar certas multas, porque caso contrário ele desincentiva o pagamento regular. Mas esses grandes programas de transação tributária que estão sendo feitos são extremamente importantes para possibilitar a volta dos desenvolvimentos no Brasil”, concluiu o advogado.

PGF

Fora do âmbito da PGFN, outro órgão da AGU que arrecadou mais em 2023 do que em 2022 foi a Procuradoria-Geral Federal (PGF). Responsável pela cobrança de valores devidos a autarquias e fundações públicas federais, a PGF recuperou R$ 7,5 bilhões no ano passado, ante R$ 7,2 bilhões em 2022.

Esse valor inclui desde multas aplicadas por entidades como agências reguladoras e o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) até ações regressivas trabalhistas.

Um dos casos mais importantes envolveu a Unimed Rio. Foram R$ 211 milhões pagos em multas aplicadas pela Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS).

Já a arrecadação na Justiça do Trabalho decorrente de contribuições devidas ao INSS e não recolhidas dentro do prazo por empregadores foi de R$ 515 milhões.

Em dívida ativa e demais fontes, o que compreende a arrecadação decorrente de multas aplicadas pelas autarquias, foram recuperados R$ 110,4 milhões em 2023.

Em ações regressivas, a PGF arrecadou R$ 65 milhões no ano passado. Essas ações pedem que responsáveis por acidentes que resultam em pagamento de pensões aos acidentados ressarçam o INSS pelos gastos. A medida é prevista na Lei 8.123/1991.

Ações civis públicas e renegociações

No âmbito da Procuradoria-Geral da União (PGU), foi recuperado R$ 1,9 bilhão. O órgão é responsável pela cobrança de créditos não tributários da União e causas relacionadas a probidade administrativa, ações civis públicas e renegociações com empresas que provocam prejuízo ao erário.

A PGU concluiu em 2023 um conjunto de alienações judiciais de dezenas de ativos que pertenciam a João Arcanjo Ribeiro, apontado como líder do crime organizado em Mato Grosso. Ele foi condenado por formação de quadrilha, operação ilegal de instituição financeira, lavagem de dinheiro e evasão de divisas.

Os ativos totalizam mais de R$ 260 milhões e foram declarados perdidos em favor da União. O último leilão, de um condomínio de apartamentos no valor de R$ 15,6 milhões, ocorreu em junho de 2023.

Também em matéria de combate à corrupção, a PGU obteve no Tribunal Regional Federal da 1ª Região um acórdão que permitiu a retomada da execução da dívida do Grupo OK. O valor ultrapassa R$ 800 milhões.

Contencioso

Já a Secretaria-Geral de Contencioso (SGCT) atuou na homologação de um acordo que evitou gastos de R$ 18 bilhões por causa da perda arrecadatória dos estados com o ICMS.

A atuação se deu na ADI 7.191 e na ADPF 983, que questionavam no Supremo Tribunal Federal a Lei Complementar 194/2022, responsável por limitar a alíquota do ICMS de combustíveis.

O órgão também obteve decisão favorável na STP 976, que impediu o pagamento de R$ 5 bilhões na expedição de precatórios antes do trânsito em julgado.

A SGCT também informou à ConJur que foram economizados cerca de R$ 845 milhões em acordos com Rio Grande do Norte, Ceará e Maranhão envolvendo o recálculo de valores devidos.

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Liberdade religiosa x proteção dos animais não humanos: debate na Corte Europeia de Direitos Humanos

A liberdade religiosa, como direito humano e fundamental altamente sensível e fundado na dignidade da pessoa humana, tem sido, de há muito, o centro e mesmo o pivô de importantes debates nos mais diversos foros, ocupando lugar permanente na agenda política, social, cultural, jurídica e mesmo econômica em escala global.

Dadas as constantes tensões envolvidas no embate entre culturas e diferentes práticas religiosas, mas também entre o exercício da liberdade religiosa e outros direitos humanos e fundamentais, ademais de outros bens jurídicos com estatura constitucional, como é o caso da proteção dos animais não humanos, trata-se de tema recorrentemente submetido ao crivo do Poder Judiciário, seja em nível nacional, seja no plano do direito internacional.

Como sabido, os casos que têm sido levados à apreciação pelo Poder Judiciário são da mais diversa natureza, envolvendo o uso de símbolos religiosos, discursos do ódio e os limites do proselitismo religioso, discriminação por orientação religiosa, feriados religiosos, sacrifício de animais para fins religiosos, objeção de consciência, dentre tantos outros.

Na coluna de hoje, o foco serão decisões que envolvem a discussão em torno do sacrifício de animais para fins de rituais de matriz religiosa, a começar por recente julgado da Corte Europeia de Direitos Humanos, de 13/2/2024, em ação proposta por treze cidadãos e sete organizações não-governamentais islâmicas e judaicas belgas impugnando decretos aprovados pelas regiões da Bélgica em 2017 e que proibiram o abatimento de animais para consumo da carne sem prévio atordoamento, alegando que tal medida estaria violando suas liberdades de pensamento, consciência e religião, ademais de invocarem estarem sendo injustificadamente discriminados em virtude de sua orientação religiosa.

Rituais

Apenas para recordar, no caso das religiões islâmica e judaica, o sacrifício dos animais para consumo da carne obedece determinados rituais, respectivamente conhecidos como métodos halal kosher, de acordo com os quais o abate é feito sem prévia sedação, mediante um corte no pescoço e deixando os animais sangrarem até a morte.

Para a Corte Europeia de Direitos Humanos, nesta recente decisão que parece significar clara inflexão no tratamento geral que vinha sendo dispensado ao tema, a restrição das liberdades [invocada e impugnada pelos autores da demanda] é legítima de acordo com os parâmetros da Convenção Europeia de Direitos Humanos, pelo fato de que se trata de intervenção proporcional, dado que o objetivo da medida é o de proteger os animais e assegurar o seu bem-estar, o qual, por sua vez, constitui exigência da moralidade pública e da própria dignidade humana, porquanto tais concepções têm caráter evolutivo e dizem respeito não apenas às relações interpessoais, mas também guardam ligação com o modo pelo qual os seres humanos convivem com os animais.

Corte Europeia de Direitos Humanos

Outro argumento esgrimido pela Corte, foi o de que as exigências da proporcionalidade foram observadas pelo fato de que os decretos belgas, embora tenham proibido o abate sem prévio atordoamento, deixaram em aberto alternativa viável, designadamente, ao permitirem o atordoamento reversível para o abate ritualístico, movendo-se, de tal sorte, no âmbito da margem de apreciação nacional que lhes era assegurada.

Além disso, ainda de acordo com a Corte, em que pese seja mais difícil ter acesso à carne halal ou kosher com a proibição estabelecida, não se trata de algo impossível, ainda mais que foi autorizada a importação de carne abatida de acordo com os rituais referidos de Estados ou regiões onde a prática é permitida.

Alemanha

Tal julgamento, por sua vez, destoa de decisão mais antiga e igualmente polêmica do Tribunal Constitucional Federal da Alemanha, quando este, em 15/1/2002, examinou situação envolvendo o abate de animais para consumo mediante observância de rituais religiosos.

Na hipótese, tratava-se de açougueiro turco, adepto do ramo sunita do islamismo, que teve o seu estabelecimento interditado pela autoridade administrativa por estar abatendo animais para consumo sem a prévia sedação (aturdimento), tal como exigido pela legislação de proteção da natureza.

A lei alemã exige a prévia sedação do animal, mas abre exceções, designadamente no caso de garantia da saúde pública e quando exigido por razões ligadas a rituais religiosos.

No caso concreto apreciado, em sede de relação constitucional, o açougueiro alegou, além da quebra do princípio da igualdade (já que a prática seria tolerada quando levada a efeito em estabelecimentos judaicos), a violação de sua liberdade religiosa e de sua liberdade de profissão, porquanto o abate seria exercido obedecendo estritamente ritual consagrado no âmbito do islamismo, mas também pelo fato de que a proibição do abate de acordo com tal ritual afetaria de modo desproporcional o negócio do reclamante, pois sua clientela era formada justamente por integrantes de comunidade religiosa que somente pode ingerir carne quando obtida de acordo com os ditames da religião.

O Tribunal Constitucional Federal alemão acabou reconhecendo a tese do reclamante, de modo a incluir o sacrifício dos animais na esfera da exceção prevista na legislação infraconstitucional, dando prevalência à liberdade religiosa, muito embora por ocasião da decisão (e é relevante que se o refira!) a proteção da fauna ainda não tivesse sido formalmente incorporada ao texto da Lei Fundamental alemã.

De todo modo, o Tribunal alemão não afastou a possibilidade de medidas de fiscalização do abate, da perícia na degola e mesmo da clientela, de modo a preservar ao máximo o dever de proteção dos animais.

Tribunal da UE

Por outro lado, no âmbito do Tribunal de Justiça da União Europeia, decisões relativamente recentes, levando em conta a discriminação (ao menos indireta) que acaba afetando negativamente as minorias religiosas referidas, indicavam aos Estados a necessidade de admitir a exceção do abate religiosamente motivado e parecem acenar para uma diretriz de acomodação mais razoável, como explica o eminente catedrático de Direito Constitucional da Universidade de Granada e catedrático Jean Monnet de Direito Constitucional Europeu José María Porras Ramírez:

“Así, en relación al sacrificio de animales realizado por algunas comunidades religiosas, conforme a prácticas rituales establecidas, el Derecho de la Unión, en su Reglamento 1099/2009, que trata de garantizar, con carácter general, que la muerte de los animales se produzca sin dolor, sufrimiento o angustia, contempla una excepción a la obligación impuesta de aturdimiento previo a la muerte del animal, basada en motivos religiosos, si bien exigiendo que el sacrificio se realice, cuando menos, en un matadero autorizado” (STJUE de 6 de julio de 2018, C-426/16, Asunto Liga van Moskeeën en Islamitische Organisaties Provincie Antwerpen VZW y otros contra Vlaamst Gewest).
Posteriormente, el TJUE ha insistido en que los Estados no pueden rechazar la excepción contenida en el Reglamento, que permite el sacrificio ritual sin aturdimiento previo, pues ello supondría actuar en contra del Derecho de la Unión, sensible, en este caso, con los derechos de las minorias (STJUE de 17 de diciembre de 2020, C-336/19, Asunto Central Israëlitisch Consistorie van België y otros). No obstante, también se determinó, polémicamente, que la carne procedente de animales que hayan sido objeto de un sacrificio ritual, realizado sin aturdimiento previo, tal y como exige, con carácter general, la legislación de la Unión, no podrá llevar la etiqueta ecológica, a pesar de ser aquélla una práctica excepcionalmente permitida al amparo de la libertad religiosa (STJUE de 26 de febrero de 2019, C-497/17, Asunto OABA v. Ministerio de Agricultura y Alimentación de Francia)” [1]

CEDH acabou, sem contudo mencionar diretamente, reconhecendo aquilo que se tem designado como uma dimensão ecológica da dignidade humana, tal como, aliás, já foi objeto de referência em decisões do STJ e do STF brasileiros.

STF

E por falar em STF, não é demais lembrar a decisão paradigmática no que tange ao sacrifício ritual de animais tomada em 2019, oportunidade em que a Corte Suprema, por maioria, negou provimento ao Recurso Extraordinário nº 494.601/RS (28/3/2019), nos termos do voto do ministro Edson Fachin, Redator para o acórdão, vencidos, em parte, os Ministros Marco Aurélio (relator), Alexandre de Moraes e Gilmar Mendes, que também admitiam a constitucionalidade da lei, dando-lhe interpretação conforme. Na ocasião, por maioria, fixou-se a seguinte tese:

É constitucional a lei de proteção animal que, a fim de resguardar a liberdade religiosa, permite o sacrifício ritual de animais em cultos de religiões de matriz africana”, vencido o ministro Marco Aurélio, que assentava a constitucionalidade do sacrifício de animais em ritos religiosos de qualquer natureza, vedada a prática de maus-tratos no ritual e condicionado o abate ao consumo da carne.

Sendo certo que há regra constitucional explícita que proíbe a crueldade (e tipificada a conduta de maus-tratos no artigo 32 da Lei nº 9.605/98, inclusive atualizado pela Lei nº 14.064/2020), de fato a vedação não deixa de ser redundante — é dizer, para ficar muito claro, o sacrifício ritual assegurado não pode configurar maus-tratos/crueldade contra os animais; ainda, a destinação em si da carne obtida é fato posterior que depende de outras variáveis (até mesmo qual o animal sacrificado, que eventualmente poderia não ser próprio para consumo, sendo evidente, também, que há uma reserva implícita de que não poderia recair sobre espécie em risco de extinção, como parece comezinho que eventuais considerações sanitárias quanto aos despojos podem ser legítimas) e não faz parte essencial da liberdade de culto que prevaleceu.

O desafio, que permanece — até recrudesce em nível europeu, como visto —, é harmonizar a dimensão ecológica da dignidade humana, numa perspectiva intercultural inclusiva e progressiva, com a promoção da liberdade religiosa e o combate à intolerância (como orienta, no âmbito do Poder Judiciário brasileiro, Resolução CNJ Nº 440, de 7/1/2022), um cenário no qual a tutela das minorias sempre é uma questão frontal e um campo no qual os fundamentalismos estão sempre à espreita.

________________________

[1] – PORRAS RAMÍREZ, José María. Las minorías en la Unión Europea: la tensión entre la demanda de reconocimiento y la preservación de la identidad nacional. Revista Brasileira de Direito Constitucional – RBDC Vol. 24, n. 1 (jan./jun. 2024), pp. 1-27. São Paulo: ESDC, 2024. ISSN: 1983-2303 (eletrônica). Disponível em: http://esdc.com.br/seer/index.php/rbdc/article/view/357.

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Lista de bens sem direito a crédito dá segurança à reforma tributária, dizem tributaristas

projeto de regulamentação da reforma tributária, apresentado pelo governo federal ao Congresso no último dia 25, prevê uma lista de bens e serviços considerados de uso e consumo pessoais, e que, por isso, não darão direito a créditos dos impostos a serem implementados — Contribuição sobre Bens e Serviços (CBS) e Imposto sobre Bens e Serviços (IBS).

Em projeto de regulamentação da reforma, governo propôs listar bens e serviços de uso e consumo pessoal – Freepik

 

 

 

Para a maioria dos tributaristas ouvidos pela revista eletrônica Consultor Jurídico sobre o assunto, a opção de propor tal lista é positiva, pois garante segurança jurídica e previsibilidade quanto às hipóteses nas quais não haverá crédito — ao contrário do que ocorre hoje e do que havia sido previsto na emenda constitucional anterior à regulamentação da reforma.

No sistema tributário atual, chegam ao Judiciário muitas discussões sobre o direito a créditos em diversas situações, já que os critérios variam conforme os diferentes impostos e suas previsões legais abrem margem para diversas interpretações.

 

O que diz a proposta

A primeira — e, até o momento, única — versão do Projeto de Lei Complementar (PLP) 68/2024 proíbe a “apropriação de créditos do IBS e da CBS sobre a aquisição” de uma lista de bens e serviços considerados de uso e consumo pessoais.

São eles: joias, pedras e metais preciosos; obras de arte e antiguidades “de valor histórico ou arqueológico”; bebidas alcoólicas; derivados do tabaco; armas e munições; e “bens e serviços recreativos, esportivos e estéticos”.

O artigo 29 prevê de forma expressa uma exceção à regra proposta: haverá direito a crédito quando os bens e serviços citados “forem necessários à realização de operações pelo contribuinte”.

O dispositivo também explica que os bens da lista são considerados necessários para as operações do contribuinte “quando forem comercializados ou utilizados para a fabricação de bens comercializados”.

As armas e munições precisam ser utilizadas por empresas de segurança para dar direito a crédito. Já os “bens e serviços recreativos, esportivos e estéticos” entram na exceção quando “forem utilizados, preponderantemente, pelos adquirentes dos seus bens e serviços em estabelecimento físico”.

 

Problema da emenda

A primeira etapa da reforma tributária, incluída na Constituição, previu a possibilidade de não haver direito a crédito para bens de uso ou consumo, mas não definiu esse conceito. Em vez disso, delegou essa tarefa a uma futura lei complementar regulamentadora.

Isso foi visto como um problema. A advogada Ana Cláudia Utumi explica que a preocupação é “a amplitude que pode ter essa definição”. Tal amplitude dá à fiscalização a possibilidade de identificar e questionar o que seriam uso e consumo pessoais.

“O conceito de excluir o creditamento dos bens de uso e consumo pessoais é uma medida ruim”, pontua ela. De qualquer forma, isso já passou pelo Congresso no fim do último ano e está previsto na Emenda Constitucional 132/2023.

Maurício Barros, sócio do escritório Cescon Barrieu, sinaliza que a falta de definição do conceito de bens de uso e consumo na EC 132/2023 abriu brecha para que muitas polêmicas sobre o tema fossem levadas ao Judiciário.

Muitos casos tributários que hoje chegam ao Supremo Tribunal Federal e ao Superior Tribunal de Justiça discutem, por exemplo, se determinado bem é considerado essencial ou relevante para a atividade da empresa. Ou seja, a definição sobre o direito ou não ao crédito muitas vezes só é feita no Judiciário.

Isso ocorre porque, na legislação, existem critérios diferentes sobre esse direito para cada tributo não cumulativo (PIS, Cofins, ICMS e IPI).

“No sistema atual, a restrição ao direito de crédito é objeto de enorme contencioso, dado que sempre se optou por utilizar expressões genéricas para definir o que daria, ou não, direito a crédito”, aponta Luiz Gustavo Bichara.

Com isso, surgiram “discussões enormes sobre o conceito de insumos, o que seria essencial para uma indústria ou um prestador de serviços, ou o que se incorpora ao produto final”. Para Bichara, esses debates são muito subjetivos e trazem insegurança.

O intuito da reforma tributária é simplificar o sistema atual e corrigir seus erros e brechas. Mas, segundo Barros, a emenda constitucional reproduziu um “vício” do sistema atual ao não definir o conceito de bens de uso e consumo.

 

A chance de consertar

Por isso, a criação de uma lista para definir os bens de uso e consumo pessoais é vista como uma forma de contornar a brecha aberta pela EC 132/2023. Isso porque a proposta gera, segundo Barros, “precisão sobre o que não vai dar direito a crédito”.

De acordo com o advogado, “trazer uma lista fechada daquilo que não dá direito ao crédito é bom, porque objetiva” as situações — algo diferente do que ocorre no sistema atual.

Assim, sair do cenário atual para um sistema com uma lista é, para ele, “um avanço enorme”. Barros considera que a lista é, “no geral, uma boa opção legislativa”.

Bichara também acredita que a opção é positiva: “A lista restritiva é mais clara e confere certeza”.

Ana Cláudia tem a mesma opinião. Ela entende que a listagem das situações é boa, “na medida em que não deixa espaço para a interpretação caso a caso pela fiscalização”.

Para Fábio Pallaretti Calcini, professor da FGV Direito SP, a lista é um “direcionamento bem-vindo”, que “daria uma ótima previsibilidade e segurança jurídica neste início de caminhada”.

Ele também destaca a boa opção do governo em não sugerir uma “vedação absoluta” — já que há a exceção para bens e serviços necessários às operações do contribuinte. “Negar crédito de antemão, na minha visão, seria inconstitucional.”

Calcini, porém, faz uma crítica à proposta. Na sua interpretação, a lista é exemplificativa. E o tributarista considera que “deveria ser um rol taxativo” — ou seja, com a regra limitada aos itens listados.

 

Itens podem ser debatidos

De acordo com Ana Cláudia, “a lista contida no artigo 29 do PLP é bastante razoável”. Ela não vê itens que deveriam ser retirados.

“Ainda que possa haver alguma divergência quanto a um ou outro item, pelo menos temos uma definição clara do que não dará direito a crédito”, afirma Bichara.

Já Calcini ressalta que, caso haja questionamentos, a lista ainda pode ser alterada durante a tramitação no Congresso.

Barros, por sua vez, preocupa-se apenas com o “subjetivismo” da regra sugerida para os “bens e serviços recreativos, esportivos e estéticos”, já que há a exceção “quando forem utilizados, preponderantemente, pelos adquirentes dos seus bens e serviços em estabelecimento físico”.

O problema, para ele, é saber o que seria “preponderantemente” e quem precisaria provar isso — se o próprio contribuinte ou o fiscal. Na visão dele, isso pode gerar alguma confusão.

 

Discordâncias

Apesar dos fartos elogios, há quem não concorde com a criação de uma lista para o tema. É o caso do advogado Fabio Florentino, sócio do Demarest. “A escolha adotada pelo governo federal para o PLP não me parece ser a mais adequada.”

Embora ele veja sentido em “restringir o aproveitamento de créditos às atividades do contribuinte” e excluir “os gastos não relacionados com o negócio da empresa”, Florentino diz que a ideia de criar uma lista de bens “não soa salutar”.

Isso porque um mesmo bem “pode ser de uso pessoal para o contribuinte de um determinado setor da economia”, mas ao mesmo tempo “pode ser ligado à operação de outro”.

Como exemplo, ele cita as pedras preciosas. Elas podem ser usadas “como joias para ornamento das pessoas físicas”, mas diamantes também podem ser utilizados “em equipamento de cortes no processo industrial da indústria de vidros”.

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Importância dos aspectos subjetivo, temporal e causal no seguro D&O

O seguro de responsabilidade civil para diretores e conselheiros (seguro RC D&O, no jargão empregado pela Susep) é, sem dúvida, um importante instrumento ao exercício dos atos de gestão das sociedades, que enfrentam uma crescente necessidade de proteção financeira contra eventuais reclamações decorrentes de suas ações e/ou omissões.

A complexidade do ambiente empresarial, aliada à variedade de situações que podem dar origem a essas reclamações, demandam uma análise meticulosa do escopo da cobertura comumente oferecida pelas apólices D&O.

A fim de, didaticamente, estruturar o que deve ser examinado pelo intérprete a fim de conhecer o alcance da cobertura contratada, três aspectos se afiguram de fundamental importância, quais sejam: o subjetivo, o temporal e o causal.

Os dois primeiros usualmente serão de solução mais fácil, por assim dizer, considerando que a análise será mais pragmática. Pelo primeiro — o vetor subjetivo —, deseja-se saber se a pessoa em xeque é ou não uma administradora (diretora, conselheira, CEO, CFO, COO, entre outras nomenclaturas possíveis).

O que se deseja conhecer quando se investiga esse primeiro vetor é se a pessoa implicada está em posição de exercer um ato de gestão em nome da sociedade, se a representa, para os fins de direito. Veja-se que o administrador poderá ser regulamente eleito (um diretor estatutário, por exemplo), ou, até mesmo, um diretor de fato, tudo a depender, nesse particular, dos termos da apólice convencionada.

Ainda com relação ao primeiro vetor, é importante ter em mente que o seguro D&O é, usualmente, contratado por uma empresa (tomador) por conta de seus administradores (os segurados). Não se trata, como o próprio nome do seguro explicita, de um seguro concebido para a tutela do patrimônio da pessoa jurídica (tomador), mas da pessoa física dos administradores — em inglês, directors and officers liability insurance. Há possibilidade jurídica de contratação diretamente pela física do administrador, nos termos da regulação em vigor (Circular Susep nº 637/2021), mas, na prática, essa modalidade quase não ocorre.

Sob uma perspectiva cronológica, o exame assertivo quanto à existência de cobertura passará, em primeiro lugar, pela análise de quem está a requerer a cobertura respectiva. Se for um administrador, de direito ou de fato (aqui, a depender do conteúdo do contrato), deverá haver cobertura, o que autoriza o intérprete a passar para o segundo vetor, qual seja, o temporal.

Vetor temporal

Também dispondo de uma considerável dose de pragmatismo, o vetor temporal decorre da modalidade de contratação comumente adotada pelo mercado segurador, tanto no Brasil quanto no exterior, para comercializar essas apólices.

Fazendo aqui um breve percurso histórico, os seguros, em geral, sempre foram contratados à base de ocorrência. Nesta forma de contratação, se o sinistro (um incêndio, por exemplo) ocorresse durante o período de vigência da apólice, sob a perspectiva temporal, haveria cobertura. Esse mesmo raciocínio se afigurava perfeito para sinistros em ramos como automóvel, vida, entre outras espécies dos chamados ramos elementares, e isto por uma razão singela: a identificação do fato gerador de cobertura, no tempo, afigurava-se objetiva.

Nos anos 50/60 do século passado, especialmente nos Estados Unidos, o escândalo a propósito do uso da talidomida (medicamento que, tempos mais tarde, gerou o nascimento de fetos com má formação congênita), e também o uso do amianto na construção civil, forçaram uma mudança radical em termos de exposição do mercado segurador, uma vez que os sinistros se materializavam muito tempo depois de esgotada a vigência dos seguros respectivos.

Diante de uma exposição enorme e descontrolada, as seguradoras, então, introduziram, em adição à contratação à base de ocorrência, a contratação à base de reclamação. Ao invés de examinar o fato gerador (o incêndio, anteriormente mencionado), agora a análise passaria a concentrar-se na data em que o terceiro formulasse a reclamação contra o segurado. Se ela ocorresse durante o período de vigência, ou, também, no período adicional (complementar ou suplementar), o sinistro estaria coberto.

A finalidade da introdução da contratação à base de reclamação foi mesmo delimitar no tempo a exposição das seguradoras, considerando que, principalmente nos seguros de responsabilidades (D&O, E&O, cyber, RC geral, entre outros), reconheceu-se a dificuldade de identificar quando e se os terceiros apresentariam as suas reclamações. Além dos períodos adicionais, voltados ao futuro, isto é, depois de esgotada a vigência da apólice, há também de considerar o período de retroatividade da apólice e a data de conhecimento dos fatos geradores pelo segurado, dirigidos ao passado, isto é, antes de concluída a contratação.

Após a introdução da contratação à base de reclamação, surgiu uma modalidade ainda mais refinada, qual seja, a contratação à base de reclamação com notificação. A finalidade da notificação foi, diante de expectativas de sinistro (e não sinistros propriamente ditos), possibilitar que os segurados as avisassem às seguradoras, vinculando as apólices em questão mesmo se os sinistros respectivos fossem reclamados em apólices posteriores. Trata-se de um ferramental criado a fim de gerar ainda mais informações pelas seguradoras a respeito da sinistralidade que se avizinha e gerar proteção aos segurados conscientes de seus possíveis fatos geradores.

A identificação das expectativas de sinistros e dos sinistros, no tempo, nem sempre é fácil, considerando que, em não raras vezes, os fatos são complexos, afigurando-se difícil precisar, com exatidão, quando ocorreram e se tornaram de conhecimento dos segurados. Seja como for, ainda se nota uma carga considerável de pragmatismo nesta análise.

Vetor mais complexo

O terceiro vetor, depois de cumprido o exame dos dois primeiros — subjetivo e temporal — é o causal, possivelmente o mais complexo de todos. A doutrina societária, de maneira uníssona, reputa difícil a definição do que seja um ato de gestão. Veja-se, a propósito, a lição de Marcelo Vieira von Adamek[1]:

“Logo, a irresponsabilidade do administrador tem como pressuposto a prática de ‘ato regular de gestão’, impondo a necessidade de definir essa expressão, cujo alcance não foi expressamente posto na atual lei acionária nem na anterior (DL n. 2.627 I 40, artigo 121).

A noção antagônica da expressão ‘ato regular de gestão’ deve compreender-se logicamente na expressão antitética ‘ato irregular de gestão’, como verso e reverso da mesma moeda. E, como necessariamente os únicos parâmetros válidos para a aferição da regularidade do ato do administrador devem ser encontrados na lei ou no estatuto (ato-norma), segue-se que irregular será o ato de gestão praticado com violação da lei ou do estatuto; também o será o ato praticado fora dos limites das atribuições de seu cargo, já que semelhante atuação, por evidente, contrastará igualmente com a lei e com o estatuto.”

Ora, se os seguros D&O são voltados à cobertura dos atos de gestão, a dificuldade para defini-los acaba, consequentemente, também gerando dificuldade para entender o que esse seguro verdadeiramente cobre. E, nessa toada, cabe ao estudioso aprofundar o seu exame não em questões próprias do direito dos seguros, mas do direito societário, mais especificamente numa disciplina que, pelos comercialistas, é reputada uma das mais instigantes nesse ramo do direito, qual seja, a responsabilidade dos administradores.

A Susep, por intermédio da Circular 637/2021, em seu artigo 12[2], ilumina a questão em torno da cobertura para o ato de gestão, mas padece da dificuldade referida ao não o conceituar. Gerir uma empresa pode compreender uma miríade de afazeres os mais diversos e, às vezes, até mesmo certas obrigações de não fazer, como, e.g., abster-se da prática de uma conduta anticoncorrencial.

Nessa altura, todo o capítulo dedicado à responsabilidade dos administradores, previsto nos artigos 153 a 159 da Lei nº 6.404/1976 (lei das S.A.) deve ser trazido à baila. Para facilidade de análise, e respeitando os estreitos limites dessa coluna, dois são os principais deveres a serem observados pelos administradores, quais sejam, diligência (LSA, artigo 153) e lealdade (artigo 155).

Contratos de seguro D&O, sob a perspectiva causal (o terceiro vetor), estarão voltados a violações ao dever de diligência porque a sua antítese é a negligência que, no direito civil, remete à conduta culposa. E é justamente porque nós, seres humanos, cometemos erros (culpa), que contratamos os seguros de responsabilidades (entre eles, os seguros D&O).

Já se vê mecânica completamente diferente quando se tem em mente o dever de lealdade (LSA, artigo 155), cuja antítese é a deslealdade e, no direito civil, o dolo, este, reconhecidamente, o inimigo número um dos seguros — leia-se, a propósito, o artigo 762 do CC[3].

Exemplificando, violações ao dever de lealdade são materializadas pelo insider trading, um dos pecados capitais no âmbito do mercado de bolsa de valores, por representar uma traição à confiança depositada pela sociedade no administrador que, a um só tempo, também viola a fidúcia de investidores e de acionistas como um todo.

Os três vetores referidos — subjetivo, temporal e causal — são fundamentais à análise de cobertura nos seguros D&O.


[1] ADAMEK, Marcelo Vieira von. Responsabilidade civil dos administradores de S/A (e as ações correlatas). São Paulo: Saraiva, 2009, p. 212.

[2] Art. 12 da Circular Susep 637/2021. “Além de outras exclusões previstas em lei, o seguro de RC D&O não cobre os riscos de responsabilização civil dos segurados em decorrência de danos causados a terceiros, quando fora do exercício de seus cargos no tomador, em suas subsidiárias ou em suas coligadas. Parágrafo único. Devem ser enquadrados no ramo de seguro de Responsabilidade Civil Geral, os seguros destinados a garantir apenas o interesse específico das pessoas jurídicas responsabilizadas pelos danos causados a terceiros, em consequência de atos ilícitos culposos praticados por pessoa física, que exerça ou tenha exercido cargos executivos de administração ou de gestão”.

[3] Art. 762 do CC. “Nulo será o contrato para garantia de risco proveniente de ato doloso do segurado, do beneficiário, ou de representante de um ou de outro.”

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Ministra propõe que STJ presuma dano coletivo por desequilíbrio ambiental

Voto da ministra Regina Helena Costa propôs superação da Súmula 7 – Lucas Pricken/STJ

Se o meio ambiente ecologicamente equilibrado é um direito garantido pela Constituição Federal à sociedade brasileira, ilícitos ambientais que causem desequilíbrio devem gerar danos morais coletivos de maneira presumida, sem necessidade de comprovação.

Essa proposta é da ministra Regina Helena Costa, do Superior Tribunal de Justiça, e foi feita em um julgamento de recurso especial pela 1ª Turma da corte sobre extração irregular de areia do leito de um córrego localizado em uma propriedade particular em Goiás.

A ideia foi apresentada em voto divergente e acabou rejeitada por 3 votos a 2 pelo colegiado. No entanto, mesmo os ministros que formaram a maioria prometeram fazer uma reflexão sobre o tema, para processos futuros.

No caso, o Tribunal de Justiça de Goiás afastou a condenação ao pagamento de danos morais coletivos porque o prejuízo ambiental era reparável e porque não havia requisitos necessários à sua caracterização.

Para reavaliar a ocorrência desses danos, a 1ª Turma teria de se debruçar sobre fatos e provas, medida vedada pela Súmula 7. Essa foi a conclusão da maioria, de acordo com o voto do relator, ministro Gurgel de Faria.

Que prova é essa?

Ao divergir, a ministra Regina Helena Costa propôs uma nova interpretação. Em sua visão, não é preciso comprovar que toda a sociedade sofreu danos morais se uma situação comprovadamente gerou desequilíbrio ao meio ambiente.

E isso sequer seria possível, já que, em caso de responsabilidade civil por danos ambientais, as consequências são imensuráveis, o que torna possível presumir o dever de reparação. Essa posição vem sendo adotada em precedentes da 2ª Turma do STJ.

Na prática, ela levaria a 1ª Turma a superar a Súmula 7 para analisar, no caso concreto em julgamento, se é possível admitir que o dano causado enseja a indenização por danos morais coletivos.

“Como seria possível provar o sofrimento da sociedade como um todo porque se extraiu areia irregular de leito de córrego? Como a gente mede isso? Então vamos ter de medir? Então, Súmula 7. Não vamos poder mexer. Penso que essa questão não se põe numa situação como essa, com esse perfil de dano”, afirmou a ministra.

“Penso que cabe o distinguishing, cabe um olhar diferenciado, porque ficaria muito difícil. Vamos exigir a prova do sofrimento, do pesar que a sociedade sentiu na extração de areia irregular no leito do Córrego das Almas, em Goias?”, continuou ela.

Votou com a magistrada o ministro Paulo Sérgio Domingues, que também afastou a incidência da Súmula 7. “Se eu parto de um fato incontroverso (o dano ao meio ambiente equilibrado), dali vamos extrair se a incidência do dano moral coletivo deve ocorrer ou não.”

Súmula 7

Prevaleceu a posição do ministro Gurgel de Faria, que aplicou a jurisprudência sobre o tema. Em sua análise, não é possível revisitar a conclusão do acórdão do TJ-GO porque isso demandaria reexame de fatos e provas.

Ao formar a maioria, os ministros Bendito Gonçalves e Sergio Kukina prometeram que se dedicarão à ideia apresentada na divergência, reflexão que caberá melhor em casos futuros.

Clique aqui para ler o acórdão
AREsp 2.281.760

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O reequilíbrio dos contratos de longo prazo e a reforma tributária

Foi apresentado na semana passada o projeto de lei complementar que regulará a incidência da CBS e do IBS (que, para facilitar, pode se chamar de CIBS, já que a distinção entre o tipo tributário das contribuições e dos impostos se tornou irrelevante). 

São 310 páginas de texto, sendo 50 delas apenas de exposição de motivos e índice, o que nos coloca com 260 páginas de texto normativo para análise. A despeito de se tratar de um tema extremamente complexo, está exposto de forma bastante didática, o que é muito positivo, independente de seu conteúdo.

Em face da vastidão de normas a serem analisadas, pode-se destacar alguns temas para serem abordados de forma tópica, ainda que as normas venham a ser alteradas durante a tramitação legislativa.

Esta coluna tratará do impacto tributário e do reequilíbrio dos contratos de longo prazo, que está previsto no artigo 362 e seguintes do texto apresentado. O foco são os contratos firmados com o poder público, em qualquer nível federativo, inclusive concessões de serviço ou obras públicas, não se aplicando aos contratos privados, que ficarão sujeitos às disposições da legislação específica (artigo 362, §2º)  

Elege-se este assunto em razão do vasto impacto que gerará para as empresas de infraestrutura, abrindo espaço para um enorme contencioso administrativo e tributário.

Iniciemos a análise pela descrição das normas que, após, serão comentadas.

Carga contratada 

O artigo 363 determina que esse reequilíbrio deverá ocorrer por meio da determinação da carga tributária efetiva suportada pela contratada, devendo ser considerado, inclusive, quatro aspectos, sendo dois permanentes:

  1. os efeitos da não cumulatividade nas aquisições e custos incorridos pela contratada;
  2. a possibilidade de repasse a terceiros do encargo financeiro-tributário.

E prevendo dois transitórios:

  1. a proporcionalidade das regras de transição dos atuais tributos para os novos;
  2. e benefícios ou incentivos fiscais-financeiros concedidos à contratada, que serão extintos ao longo do tempo. Tais normas deverão ser aplicadas inclusive aos contratos que já possuam matriz de risco a respeito dos impactos tributários supervenientes. 

A administração pública deverá proceder à revisão de ofício (artigo 364), caso haja redução da carga tributária efetiva (o que parece ser uma hipótese descabida, ou, ao menos, bastante rara). 

A empresa deverá requerer o restabelecimento do equilíbrio econômico-financeiro do contrato (artigo 365, V), sendo que este poderá ocorrer por meio de:

  • revisão dos valores contratados;
  • compensações financeiras, ajustes tarifários ou aportes de recursos;
  • renegociação de prazos ou condições de entrega de bens ou serviços;
  • ajustes nos valores devidos à administração pública, inclusive nos direitos de outorga;
  • transferência de encargos de uma das partes à outra;
  • ou outros métodos considerados aceitáveis pelas partes. 

O pedido deverá ser decidido em até 120 dias, prorrogável uma única vez por igual período, apenas no caso de ser necessária instrução probatória suplementar, quando tal prazo será suspenso (artigo 365, §1º). 

Como se verifica, a possibilidade de conflitos se avizinha, pois as empresas terão que analisar os impactos tributários em suas operações contratuais e dimensionar financeiramente estes custos, a fim de que haja o reequilíbrio econômico do ajuste. O pedido deverá ser formulado com a comprovação desse impacto, podendo haver uma fase probatória para sua mensuração.

Nada garante que haverá decisão ágil, pois inegavelmente a administração pública tenderá a contestar as planilhas de custos que deverão ser apresentadas com o pedido (artigo 365, IV), fazendo com que o prazo de 120 dias seja prorrogado indefinidamente até que a prova seja aceita e os contratos aditivados.

Exemplo

Imagine-se uma empresa de construção civil que compre uma enormidade de insumos para a construção de uma obra (por exemplo, a do metrô). A compra desses insumos terá CIBS, que gerará créditos para a empresa construtora adquirente. Considerando ser usual que a empresa construtora (consórcio construtor) não seja a mesma que venha a operar a concessão (consórcio de operação), como ela fará o repasse desses créditos que se acumularão? Uma possível alternativa ocorrerá se a empresa construtora tenha outra obra na qual possa repassar esse custo ao contratante. Mas e se não houver?  

Existem múltiplas possibilidades previstas no artigo 365, V, mas o contencioso com a administração pública é certo, com a possibilidade de paralisação de obras e serviços em face do retardo da decisão, considerando tão-somente esse pequeno exemplo, que pode ser multiplicado. 

Havendo a necessidade de se prosseguir a obra ou o serviço em face das pesadas multas contratuais estabelecidas, mesmo sem ajuste nos valores, haverá um montante a ser pleiteado ao término do prazo contratual (ou mesmo durante seu curso), com a busca de decisões judiciais ou arbitrais que venham a dirimir o litígio. Isso aponta para o problema da execução dos contratos administrativos, que analiso em outro texto sobre o uso de precatórios para essa finalidade.  

Por outro lado, supondo-se que a administração pública não solucione o problema, ainda existe a hipótese de a empresa prejudicada litigar contra o Fisco da União (em face da CBS) e do Comitê Gestor (que congrega estados e municípios, em face do IBS), argumentando a obediência ao princípio da neutralidade desses novos tributos, que consta do artigo 156-A, CF, e está também previsto no artigo 2º do projeto de lei complementar. Essa parte processual que disciplinará o litígio acerca dessa matéria ainda não está regulamentada. 

Para abreviar etapas, sugere-se que as empresas que possuem contratos relacionados ao poder público, direta ou indiretamente, iniciem desde já a análise de custos e preparem suas planilhas, a fim de antecipadamente negociarem o reequilíbrio econômico, mesmo durante o prazo de carência e o de implantação do novo regime tributário.

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STJ unifica tese que afasta nulidade de multas do Ibama por restrição à defesa

A anulação da multa aplicada pelo Ibama pelo fato de o infrator ter sido intimado por edital para apresentar alegações finais no processo administrativo depende da demonstração de que houve prejuízo à defesa.

Multa foi aplicada após processo em que o infrator foi notificado por edital – Freepik

Com esse entendimento, a 1ª Turma do Superior Tribunal de Justiça deu provimento ao recurso especial do Ibama para validar a multa de R$ 40 mil aplicada a uma empresa que descumpriu normas administrativas ambientais.

O resultado unifica a posição do STJ sobre o tema da intimação do infrator por edital para apresentação de alegações finais no processo administrativo. A 2ª Turma tem precedente que classifica o procedimento como válido e sem prejuízo à defesa.

Essa posição é importante para o Ibama porque o procedimento de notificação por edital foi adotado em 183 mil processos administrativos, que correspondem a 84% das autuações por infrações ao meio ambiente. Isso representa R$ 29 bilhões em multas que poderiam ser afetados.

No caso concreto julgado pela 1ª Turma, a infração que levou à aplicação da multa foi o desligamento proposital do rastreador por satélite de uma embarcação pertencente à empresa.

O Ibama sabia o endereço do infrator, mas preferiu fazer a intimação para apresentação de alegações finais no processo administrativo por edital. O resultado foi a condenação ao pagamento da multa sem a devida defesa, de acordo com o réu.

Voto do ministro Paulo Sérgio Domingues levou a mudança de posição do colegiado – Lucas Pricken/STJ

Mudança de posição

O resultado na 1ª Turma foi unânime, conforme a posição do relator, ministro Paulo Sérgio Domingues. O julgamento foi encerrado no último dia 16, após voto-vista do ministro Gurgel de Faria.

Isso representa uma mudança de jurisprudência. O colegiado tem dois precedentes anteriores em que reconheceu a nulidade pela não intimação pessoal do infrator ambiental.

Para o relator, uma nova reflexão é necessária porque o tema é regulado pela Lei 9.605/1998, que no artigo 70, parágrafo 4º, estabelece um processo administrativo próprio para os casos de atividades lesivas ao meio ambiente.

Esse processo próprio é determinado pelo Decreto 6.514/2008, cuja redação, que vigeu até 2019, fixava que a intimação por edital só poderia ocorrer quando a autoridade julgadora não agravasse a penalidade ao interessado. Esse era o texto original do artigo 122.

Se houvesse a possibilidade de agravamento da penalidade, o artigo 123, parágrafo único, obrigava a intimação pessoal. Foi nesse contexto que as 183 mil multas foram aplicadas pelo Ibama.

Já no processo administrativo geral, regido pela Lei 9.784/1999, a intimação realmente deve ser feita por meio que assegure certeza da ciência do interessado. O artigo 26, parágrafo 3º, cita ciência no processo por via postal com aviso de recebimento ou por telegrama.

Para o ministro Paulo Sérgio Domingues, esse cenário impede que todas essas multas sejam anuladas com base na defesa em abstrato do devido processo legal e da ampla defesa.

REsp 1.933.440

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Por que não é vedado ao defensor ler alegações do MP no júri

1. Plenário do Júri — colocação do problema: a inovação legislativa no CPP

Há alguns anos foi feita uma alteração no CPP, visando a impedir que as partes usassem, como argumentos de autoridade, trechos de acórdãos ou decisões ocorridas no âmbito do mesmo processo sob julgamento em plenário.

Ficou assim:

“Art. 478. Durante os debates as partes não poderão, sob pena de nulidade, fazer referências:

I – à decisão de pronúncia, às decisões posteriores que julgaram admissível a acusação ou à determinação do uso de algemas como argumento de autoridade que beneficiem ou prejudiquem o acusado.”

Vejamos: não podem ser utilizadas a decisão de pronúncia e decisões outras (posteriores à pronúncia). Também não se pode falar sobre uso de algemas.

Ocorreu um caso em Minas Gerais que mostra o exagero da leitura do artigo 478 e que vale aqui ser referido, até para iluminar outras situações correlatas. O STJ está por julgar o agravo interposto no REsp porque o TJ-SE não admitiu o recurso.

2. O caso concreto em que o MP e o juiz censuraram o advogado

Nas alegações finais (atenção: alegações não é decisão), o Ministério Público admitiu que o caso teria duas possíveis versões e estaria em dúvida sobre o caso: homicídio simples e homicídio qualificado e que, diante de tal dúvida, deveria ser o acusado submetido a julgamento pelo mais grave. O MP invocou o famoso in dubio pro societate — ilegal e inconstitucional, registre-se.

No dia do julgamento pelo tribunal popular, a defesa tentou reler esse trechoAfinal, o MP dizia que tinha dúvidas! Contudo, foi impedido pelo MP em plenário, que disse que não seria possível ler as alegações finais do Parquet. Tal pedido foi acatado pelo magistrado e a defesa restou prejudicada. Isso restou registrado em detalhes na ata do julgamento.

Tudo muito claro, pois. A defesa alegou cerceamento e apelou da condenação. O TJ de Sergipe respondeu negativamente, dizendo que não foi provado o prejuízo e muito menos tinha razão a defesa na sua reclamação quanto ao artigo 478. Assentou o TJ que a interpretação do MP e do juiz estava correto: de fato, a defesa não poderia usar parte das alegações finais do MP.

3. A adequada hermenêutica do caso

Parece evidente que juiz e MP extrapolaram na interpretação do artigo 478 do CPP. O que não pode ser utilizado em plenário é decisão (ou decisões). No texto do dispositivo nada consta em relação às alegações finais do MP. A interpretação, porque trata de restrição a direitos, deve ser feita nos estritos limites fixados pelo legislador. Qualquer interpretação alargando o “tamanho semântico” do texto do inciso I do artigo 478 é analogia em malam partem. E isso é vedado.

Tratou-se de um desvio de finalidade hermenêutico da lei. O telos do dispositivo foi conspurcado. O legislador estabeleceu proibições taxativas. Caso contrário, se a defesa não pode ler o conteúdo de alegações, também não poderá ser lida sequer a denúncia. Afinal, escancarada a interpretação extensiva, limites já não existirão. Tudo será proibido. Simples assim.

Parece ser um easy case. No máximo poderia ser um hard case. Mas o TJ-SE o transformou em um tragic case. Para o réu.

Aqui fizeram o contrário do exemplo de Recaséns Siches: se é proibido carregar cães na plataforma, é razoável entender que ursos ou quaisquer animais que possam representar perigo para os transeuntes estejam igualmente proibidos. No caso de Minas Gerais, na ânsia de proibir cães, o juiz proibiu, além do cão guia do cego, o pequeno Yorkshire de uma criança.

Desde Schleiermacher que se pretende estabelecer critérios para evitar mal-entendidos na interpretação. Pelo visto, ainda não conseguimos.

Quanto à alegação do TJ-SE de que a defesa precisaria provar o prejuízo, trata-se de exigir a prova do demônio. Como provar o prejuízo? Parece evidente que, se o réu foi condenado (e por um voto), o prejuízo é decorrência lógica. Trata-se de uma exigência inconstitucional, que viola o devido processo legal. As ordálias já foram superadas.

Na hermenêutica brasileira, até a literalidade [1] dá azo a voluntarismos.


[1] Para evitar mal-entendidos, sugiro a leitura do verbete Literalidade no meu Dicionário de Hermenêutica, 2ª ed. Ed. Casadodireito.

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FGV Justiça divulga pesquisa inédita sobre ações anulatórias de sentenças arbitrais

Ao longo dos anos, houve um crescimento do número de casos resolvidos pelo método da arbitragem no Brasil, o que gerou um aumento das câmaras e dos profissionais (árbitros e advogados) que atuam na área. De fato, hoje, a arbitragem é um mercado relevante para as relações jurídicas e movimenta recursos financeiros bastante expressivos.

 

O bom funcionamento da arbitragem é um fator importante para (1) atrair investidores estrangeiros e (2) resolver conflitos empresariais de uma forma mais eficiente (em uma única instância) e rápida (“time is money”). Todavia, isso exige uma baixa taxa de procedência das ações anulatórias que, por sua vez, depende da alta qualidade do procedimento arbitral.

Obviamente, o Judiciário não pode tolerar sentenças arbitrais que afrontam a ordem pública processual ou material. Para o aperfeiçoamento do instituto, é fundamental conhecer os dados relacionados às ações anulatórias de uma forma mais precisa.

Dois pontos são fundamentais na comparação entre a arbitragem no Brasil e em países com longa tradição em métodos adequados de resolução de disputas. Na Europa, a arbitragem comercial é utilizada, principalmente, para a resolução de disputas transfronteiriças e pouco usada para disputas entre partes do mesmo país.

Já nas arbitragens com sede no Brasil, dominam os litígios entre partes nacionais, ainda que haja um número considerável de arbitragens em que uma das partes ou um dos elementos seja internacional. Essa diferença explica o motivo da existência de uma enorme quantidade de câmaras de arbitragem no país, enquanto mercados tradicionais da Europa se consolidaram com poucas instituições desse tipo.

Outra diferença marcante entre o mercado brasileiro e o da arbitragem comercial internacional é o fato de que o crescimento nacional começou a ocorrer de forma mais expressiva há duas décadas, enquanto os centros da arbitragem internacionais (por exemplo, de Paris, Londres e Geneva) se consolidaram a partir dos anos 1960.

No Brasil, a maioria dos profissionais da arbitragem começaram a carreira no contencioso judicial e, especialmente os advogados, continuaram com a atuação nas duas jurisdições. Por isso, fica nítida a influência da abordagem tradicional no procedimento arbitral. Na Europa, esse movimento aconteceu ao longo dos últimos 75 anos, consequentemente, é possível perceber uma divisão de trabalho muito mais acentuada entre trial lawyers e arbitration counsel.

O procedimento arbitral resolve as demandas de forma mais célere, por meio da atuação de profissionais (árbitro ou tribunal arbitral) especializados na matéria que embasa a relação jurídica entre as partes. Contudo, com a evolução do instituto da arbitragem no país, algumas questões começaram a exigir uma maior reflexão da academia, como as ações anulatórias de sentença arbitral, a impugnação de árbitros, o dever de revelação, entre outras.

 

Pesquisa

A FGV Justiça, coordenada pelo ministro Luis Felipe Salomão, do STJ (Superior Tribunal de Justiça), fez uma pesquisa sobre as ações anulatórias de sentenças arbitrais no Brasil, que foi apresentada no último dia 19, no seminário “Arbitragem e Judiciário: diálogos entre a justiça estatal e a justiça privada”.

Durante sua palestra no evento, o Ministro Luis Felipe Salomão destacou a importância da Lei nº 9.307, de 1996, que contou com a sua liderança na Comissão de Juristas.

A investigação consolidou informações para melhor compreender a anulação de sentença arbitral pelos tribunais do país e fazer uma análise das decisões, em sede de apelação e REsp, no período de 2018 a 2023, com os seguintes objetivos: avaliar o percentual de manutenção e a anulação das sentenças arbitrais por Tribunal de Justiça e no STJ; verificar a matéria discutida na arbitragem e a taxa de procedência na instância inferior; identificar as partes, o ano da decisão, o órgão prolator e a UF de origem do processo; averiguar a participação do poder público nessas arbitragens; categorizar os fundamentos legais que embasaram a decisão judicial que culminou na anulação da sentença arbitral, com base no rol do artigo 32 da Lei nº 9.307, de 1996; e detectar a Câmara responsável pela gestão do procedimento arbitral.

A relevância desta pesquisa está no seu escopo inédito de compilação e análise de dados sobre anulação de sentença arbitral, nos Tribunais de Justiça e no STJ, de modo a possibilitar um melhor entendimento sobre o assunto, com a categorização de dados científicos, tendo vista possibilitar o diagnóstico do funcionamento da ação anulatória, com o objetivo de aprimorar a arbitragem no Brasil com maior segurança jurídica.

Jusbrasil, parceiro neste trabalho, fez um levantamento de decisões judiciais a partir das seguintes palavras-chave: “lei”, “arbitral” e “anulatória”. A base de dados foi composta por decisões que continham esses três termos de forma concomitante. Foram analisadas 358 apelações e 32 REsp.

Em 2ª instância, no período de 2018 a 2023, a taxa de procedência das ações anulatórias foi de 22,6%. Os fundamentos mais comuns que embasaram a anulação da sentença arbitral, em sede de apelação, são: nulidade da convenção arbitral (artigo 32, I da Lei 9.307, de 1996); extrapolação dos limites da convenção de arbitragem (artigo 32, IV da Lei 9.307, de 1996) e violação aos princípios do contraditório, da igualdade das partes, da imparcialidade do árbitro e seu livre convencimento (artigo 32, VIII da Lei 9.307, de 1996).

O TJ-GO foi o tribunal com mais apelações em ação anulatória de sentença arbitral e a taxa de procedência foi de 15,6%. Foi identificado que, em Goiás, há uma multiplicidade de Câmaras que geriram esses procedimentos.

O segundo maior volume de apelações em ação anulatória de sentença arbitral foi o do TJ-SP, em que a taxa de procedência foi de 34,5% no período. Contudo, o principal impacto se deu pelos contratos do sistema cooperativo da Unimed.

Sem esses contratos, a taxa de procedência no TJ-SP passa para 17,5%. A anulação da sentença arbitral nesses casos se deve ao fato de que ela determinara a compensação de créditos posteriormente ao deferimento da liquidação extrajudicial, o que viola o concurso de credores da massa liquidanda, nos termos dos artigos 33, §§1º, 2º e 3º e artigo 36, parágrafo único da Resolução Normativa 316/12 da ANS c/c artigos 24, caput, 24-C e 24-D da Lei 9.656/98. O TJ-RJ, por sua vez, não anulou sentença arbitral em sede de apelação no período.

Em resumo, constatou-se que nos grandes centros de arbitragem, como São Paulo (com exclusão dos casos do sistema cooperativo Unimed), as taxas de procedência das ações anulatórias em 2ª instância são relativamente baixas. Vale destacar que, nesse contexto, o Rio de Janeiro ganhou proeminência frente ao TJ-SP. Em ambos os estados, a segurança jurídica da sentença arbitral é alta.

O relatório da pesquisa e o painel interativo com os resultados serão apresentados no Fórum de Lisboa, que acontecerá nos dias 26 a 28 de junho de 2024, para discutir as transformações jurídicas, políticas, econômicas, socioambientais e digitais no Brasil e na Europa.

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Concessão do Habeas Corpus de ofício e a inserção do artigo 647-a do CPP

Para compreender a inclusão ao Código de Processo Penal do artigo 647-A e seu parágrafo único, promovida pela recém-publicada Lei Federal nº 14.836/2024, é imprescindível um breve retrospecto jurisprudencial que culminou com essa disposição legislativa.

De fato, ao longo de dois séculos o Supremo Tribunal Federal consolidou uma história em torno do Habeas Corpus que o privilegia, dentre as garantias constitucionais, como um robusto e amplo instrumento no exercício da liberdade de locomoção e salvaguarda a direitos fundamentais – especialmente, contra decisões judiciais flagrantemente ilegais ou teratológicas.

Em primeiro lugar, houve o voto vencido (e único, em oposição a outros nove votos que acompanharam o voto do ministro Costa Barrada, relator) proferido pelo ministro Pisa e Almeida no julgamento da primeira impetração com cunho político (HC 300) [1], no qual divergia para conceder a ordem por, sob a sua perspectiva, tratar-se de julgamento afeto à Suprema Corte.

Segundo o que apontou o ministro Aliomar Baleeiro [2], no início do século 20 houve dicotomia bem consolidada entre as doutrinas do Habeas Corpus postuladas por Rui Barbosa e o ministro Pedro Lessa: enquanto o primeiro traçou os contornos da hipertrofia do instituto, com a ampliação de casos que comportavam a sua concessão, o segundo vinculou sempre o Habeas Corpus à liberdade de locomoção, ao enunciar que “além da liberdade de locomoção, nenhuma outra há defensável pelo habeas corpus”, compreendendo como “exclusiva missão do habeas corpus garantir a liberdade individual na acepção restrita, a liberdade física, a liberdade de locomoção” [3].

É digna de nota, ainda, a posição adotada pelo ministro Nelson Hungria, penalista e ávido defensor do resguardo aos direitos fundamentais que orbitam a liberdade de locomoção.

Em célebre pronunciamento, enunciou que “um dia de privação de liberdade jamais poderá ser restituído”, ao proferir a célebre expressão de que “para os casos anômalos, o remédio deve ser heroico” (HC 36.801) [4], adotando o entendimento pelo cabimento do Habeas Corpus para concessão de efeito suspensivo a recurso.

De acordo com o ministro Evandro Lins, a posição de Nelson Hungria assegurava ao Habeas Corpus “um sentido democrático e dinâmico”.

O incomparável papel do HC

Sobreveio, portanto, a posição capitaneada pelo ministro Evandro Lins durante a Corte Nunes Leal, penalista responsável por moderar o cabimento do Habeas Corpus, enquadrando-o para comportar o reconhecimento da irretroatividade de norma penal mais gravosa (HC 43.055 e HC 43.062) e o rechaçando, denegando a ordem postulada em favor de paciente que já cumprira integralmente a pena fixada por sentença transitada em julgado (HC 42.030).

Com a sua aposentadoria compulsória decorrente do Ato Institucional nº 5 de 1968, entretanto, tornou-se ferrenho defensor do restabelecimento do Habeas Corpus para prisões por motivo político (instituto que, além de outros direitos individuais, havia sido suprimido). É notável esclarecer, diante da oportunidade, que a ruptura democrática que se sucedeu revelou aos cidadãos o incomparável e excepcional papel exercido pelo instrumento do Habeas Corpus na salvaguarda de direitos individuais.

Na atual composição da Suprema Corte, porventura em virtude de sua matriz germânica partilhada com o ministro Moreira Alves, ao conceder a ordem no HC 157.627 o ministro Gilmar Mendes assinala que “toda vez que houver a possibilidade de uma condenação, portanto, que envolva a liberdade de ir e vir, cabe, sim, o habeas corpus[5].

Discorrendo acerca do controle difuso de constitucionalidade, o Decano defende que a liberdade de locomoção deve ser “entendida de forma ampla, afetando toda e qualquer medida de autoridade que possa em tese acarretar constrangimento para a liberdade de ir e vir” [6].

Diante deste turbulento e controverso cenário quanto ao cabimento do Habeas Corpus, consolidou-se a posição que compreende o writ como sendo uma via estreita que comporta a alegação direta de violência ou coação em sua liberdade de locomoção, por ilegalidade ou abuso de poder, segundo previsão do artigo 5º, inciso LXVIII, da Constituição da República.

HC de ofício e a inclusão do artigo 647-A no CPP

Entretanto, para solucionar um conflito aparente entre a estreita via do writ e o direito de proteção judiciária, ainda nos casos em que o Habeas Corpus não mereça conhecimento, convencionaram os tribunais e julgadores em conceder a ordem de ofício, diante de flagrante ilegalidade ou teratologia.

Não se trata de desfigurar a finalidade do Habeas Corpus, mas sim de consagrar a sua índole mandamental e estatura constitucional, interpretando-o sistematicamente em relação ao teor do artigo 5º, inciso XXXV, da Constituição, segundo o qual “a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito”.

Por fidelidade incondicional à Lei não pode o Poder Judiciário, ao deixar de conhecer o Habeas Corpus, deixar de suprimir os efeitos de ato ilegal ou teratológico: esta é a finalidade da concessão da ordem de HC de ofício.

Inclusive, rememora-se a possibilidade da expedição de Habeas Corpus de ofício não só no âmbito dos autos de ação mandamental, mas também em recursos criminais e excepcionais, como nos recursos especial e extraordinário, os agravos (artigo 1.042 do CPC) e agravos regimentais neles interpostos (artigo 1.030, §2º, do CPC) e dirigidos aos Tribunais de Justiça e Tribunais Regionais Federais.

Com a inclusão do artigo 647-A ao Código de Processo Penal pela Lei Federal nº 14.836/2024, legalizou-se o procedimento já adotado pelo Poder Judiciário, contemplando a noção de que será expedida a ordem de ofício no âmbito de ações autônomas de impugnação ou recursos, acrescentando-se a ressalva de que a autoridade interessada na expedição da ordem de ofício deve atentar-se aos limites de sua competência jurisdicional — porque o artigo 654, §2º, do CPP já disciplinava acerca da expedição do Habeas Corpus de ofício.

Preliminarmente, considerando que “não se presumem na lei palavras inúteis” [7], constata-se que a frase “no âmbito de sua competência jurisdicional” constante no “caput” do artigo 647-A do CPP pode resultar ao intérprete dois significados distintos: o primeiro, de que a autoridade não pode se julgar incompetente para conhecer do writ ou recurso e, posteriormente, conceder a ordem de Habeas Corpus de ofício; o segundo, de que é apenas defeso à autoridade judicial a expedição de ordem de ofício em processo que não tenha sido distribuído sob a sua competência jurisdicional (ainda que deixe de conhecer, por incompetência jurisdicional para tanto, a ação autônoma ou recurso em que esteja veiculado o pedido).

Em breve exemplo dos efeitos da primeira interpretação, excetuando-se os casos em que cabível a reclamação constitucional, não pode o jurisdicionado impetrar Habeas Corpus ou recurso ordinário em HC no Superior Tribunal de Justiça e almejar a expedição da ordem de ofício contra ato praticado por autoridade que não esteja prevista no rol do artigo 105, inciso I, alínea “c” e inciso II, alínea “a”, da Constituição.

Por outro lado, exemplifica-se o efeito da segunda interpretação, sob a luz da atual redação do artigo 647-A, “caput”, do CPP: uma vez admitido no Tribunal de origem e recebido no STF, não seja conhecido recurso extraordinário interposto com fulcro no artigo 102, inciso III, alínea “a”, da Constituição da República sob o argumento de que é reflexa a ofensa à Constituição alegada pelo recorrente não vedaria a expedição da ordem de HC de ofício pela Suprema Corte, simplesmente por ser incompetente para conhecer do recurso que aportou em seu âmbito.

HC concedido de ofício por autoridade incompetente

Em verdade, isso consubstancia um debate a respeito da legalidade da concessão do Habeas Corpus de ofício por autoridade incompetente para conhecer da impetração. Recentemente, debruçou-se a Suprema Corte sobre a controvérsia no julgamento do HC 134.240/MT [8], embora tenha a solucionado muito antes: no julgamento do HC 85.185/SP [9], o acórdão relatado pelo ministro Cezar Peluso subscrito pela unanimidade do Tribunal Pleno, determina-se que a aplicação da Súmula nº 691 do STF [10] não afasta do Supremo Tribunal Federal o poder de expedir de ofício a ordem de Habeas Corpus, caso atendidos os requisitos legais.

Com efeito, a amplitude do Habeas Corpus para cessar coação ou constrangimento ilegais, enquanto provimento concedido de ofício pelo Poder Judiciário e antes de eventualmente importar em menosprezo à finalidade da ação mandamental, representa a verdadeira literalidade do artigo 5º, inciso LXVIII, da Constituição da República.

Dentre as duas interpretações aventadas, a segunda se revela mais correta não somente por este ângulo, mas também por uma perspectiva teleológica: ao justificar o Projeto de Lei 3.453/2021 que resultou na Lei Federal nº 14.836/2024, o deputado federal Rubens Pereira Júnior nada menciona acerca de qualquer intenção direcionada ao controle do Habeas Corpus ou, ainda, o posicionamento da competência jurisdicional como pressuposto para a expedição da ordem de ofício.

No plano semântico, ainda, a expressão “no âmbito de sua competência jurisdicional” recebe os contornos democráticos quando contraposta com o parágrafo único instituído pelo artigo em comento, segundo o qual conceder-se-á o HC de ofício “ainda que não conhecidos a ação ou o recurso em que veiculado o pedido de cessação de coação ilegal”.

Em outras palavras, caso o writ (ou o recurso) não seja conhecido em razão da incompetência do julgador ou do colegiado e nele o paciente (ou recorrente) alegue contrariedade ao ordenamento jurídico da qual decorra violência ou coação ilegal em sua liberdade de locomoção, ainda se aventa a hipótese de se expedir a ordem de ofício.

Conclusão

Por fim, é notável que o Habeas Corpus sofreu interpretações diversas pela jurisprudência do Supremo Tribunal Federal desde o século 19, sendo a contemporaneidade reveladora de um amadurecimento na compreensão dos Ministros acerca da amplitude do instrumento.

Dito isso, a interpretação teleológica do artigo 647-A, “caput” e parágrafo único, do Código de Processo Penal não deve enveredar para a atribuição de efeitos restritivos à envergadura do Habeas Corpus, que deve ser ampla e mais favorável ao paciente ou recorrente, admitindo-se a expedição da ordem de ofício por qualquer autoridade judicial que se debruce em  exercício de sua competência sobre processo judicial e no qual se retrate decisão ilegal ou teratológica da qual resulte coação ou constrangimento ilegal.


[1] Impetrado em abril de 1892 por Rui Barbosa em que contestava atos do marechal Floriano Peixoto. STF – HC 300. Relator Ministro Costa Barrada. Voto Vencido do Ministro Pisa e Almeida. TP – Tribunal Pleno. Julgado em 23/04/1892. COSTA, Edgard. Os Grandes Julgamentos. RJ. v. 1, Ed. Civilização Brasileira, 1964, p. 26-33.

[2] BALEEIRO, Aliomar. O Supremo Tribunal Federal, esse outro desconhecido. Rio de Janeiro, Forense, 1968. p. 63.

[3] LESSA, Pedro. Do Poder Judiciário / Pedro Lessa; apresentação: Lenio Luiz Streck. Rio de Janeiro, Forense, 2022. p. 288.

[4] STF – HC 36.801/DF. Relator Ministro Convocado Candido Lôbo. Voto do Ministro Nelson Hungria. TP – Tribunal Pleno. Julgado em 12/05/1959.

[5] STF – HC 157.627 AgR/PR. Relator Min. Edson Fachin. Redator do acórdão Min. Ricardo Lewandowski. T2 – Segunda Turma. Julgado em 27/08/2019. Publicado em 17/03/2020.

[6] MENDES, Gilmar Ferreira. O Controle da Constitucionalidade no Brasil.

[7] MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e aplicação do direito / Carlos Maximiliano. Rio de Janeiro, Forense, 2005. p. 204.

[8] STF – HC 134.240/MT. Relator Min. Edson Fachin. T1 – Primeira Turma. Julgado em 28/06/2016. Publicado no DJe-197 de 15/09/2016.

[9] STF – HC 85.185/SP. Relator Ministro Cezar Peluso. TP – Tribunal Pleno. Julgado em 10/08/2005. Publicado no DJ em 01º/09/2005.

[10] Súmula nº 691 do STF: Não compete ao Supremo Tribunal Federal conhecer de habeas corpus impetrado contra decisão do Relator que, em habeas corpus requerido a tribunal superior, indefere a liminar.

O post Concessão do Habeas Corpus de ofício e a inserção do artigo 647-a do CPP apareceu primeiro em Consultor Jurídico.