Supremo já invalidou regimes de precatórios semelhantes ao atual

Na última segunda-feira (25/9), a Advocacia-Geral da União enviou manifestação ao Supremo Tribunal Federal para defender a inconstitucionalidade do teto de pagamento de precatórios. O órgão argumenta que o regime atual recria a moratória na quitação de débitos judiciais, já invalidada pela corte. E, segundo especialistas no assunto consultados pela revista eletrônica Consultor Jurídico, a comparação é válida.

AGU apontou ao Supremo precedentes
aplicáveis às regras vigentes de precatóriosReprodução

As Emendas Constitucionais (ECs) 113/2021 e 114/2021 alteraram as regras dos precatórios federais. Até 2026, só poderá ser pago no ano corrente o que tiver sido pago no ano anterior, acrescido da inflação. Ou seja, os valores que ultrapassarem o limite de pagamento anual serão transferidos para o ano seguinte.

Na última década, o STF declarou a inconstitucionalidade de outras ECs semelhantes, que estabeleciam o pagamento parcelado de precatórios ou prorrogavam o prazo para quitação.

Segundo Luciana de Campos Maciel da Cunha, sócia conselheira do escritório Bichara Advogados, o Supremo já invalidou o “elastecimento temporal da dívida estatal, em razão da violação às cláusulas constitucionais da separação dos poderes, da isonomia, do acesso à Justiça, da efetividade da tutela jurisdicional, do direito adquirido e da coisa julgada”.

Para ela, o objetivo final do regime atual “é bastante semelhante — para não dizer idêntico — ao que já foi avaliado anteriormente pelo STF”. Assim, “em observância à uniformidade das decisões”, a corte “deveria manter a coerência de entendimento”.

O tributarista Hugo de Brito Machado Segundo também entende que “os motivos invocados para declarar inconstitucionais as ECs anteriores se aplicam por igual agora”.

Conforme foi estabelecido pelo STF, não se pode limitar ou dificultar o pagamento de precatórios — pois, quando fez isso, o poder público violou o direito adquirido do beneficiário e a independência do Judiciário. “A situação, agora, é rigorosamente a mesma”, afirmou Machado Segundo.

Marcio Brotto de Barros, presidente da Comissão Especial de Precatórios do Conselho Federal da OAB, vai além e afirma que as ECs 113 e 114/2021 “trouxeram consequências muito mais nefastas ao sistema jurídico do que emendas constitucionais anteriores” relativas ao pagamento de precatórios.

No regime da EC 30/2000, por exemplo, “os jurisdicionados pelo menos tinham uma certa previsibilidade de pagamento do seu crédito”, ainda que fosse em dez parcelas anuais. Pelas regras atuais, segundo o advogado, “essa previsibilidade sequer existe” e o pagamento é adiado para um futuro distante.

Regras atuais foram aprovadas pelo Congresso Nacional em 2021Antônio Augusto/Câmara dos Deputados

A emenda de 2000 foi declarada inconstitucional em 2010. Para Barros, se o Supremo tomou tal decisão mesmo com a previsibilidade mencionada, hoje tem “muito mais razão” para invalidar as ECs de 2021.

A constitucionalista Vera Chemim, mestre em Direito Público Administrativo, também vê similaridades entre as atuais regras e as ECs declaradas inconstitucionais pelo STF anteriormente. Em ambos os casos houve parcelamento dos valores dos precatórios para estados e municípios.

Assim como a EC 62/2009 (invalidada em 2013), o regime atual também dá ao credor a opção de entregar os créditos em precatórios para compra de imóveis públicos. No entanto, em 2021, as alternativas foram ampliadas — permitiu-se, entre outras coisas, o uso desses valores para a quitação de débitos inscritos em dívida ativa.

Calote
Machado Segundo lembra que o poder público não pode “definir se, como, quando e em que termos cumprirá uma decisão judicial”, pois deve se submeter a elas.

“Em um Estado de Direito, que preza pela separação de poderes e pela reserva de jurisdição, pagamentos de condenações judiciais não podem ser vistos como despesas discricionárias, que o governante escolhe pagar ou não, a depender de suas conveniências e das necessidades de se realizarem outros gastos.”

De acordo com o tributarista, a dívida represada dos precatórios pode se tornar incontrolável. “A cada ano de aplicação do regime, além dos precatórios que normalmente seriam pagos naquele exercício, herdam-se os que não foram pagos nos anos anteriores por força do teto. E assim sucessivamente”, explica. “A sistemática funciona como uma bomba-relógio”.

O advogado, que também é professor da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Ceará (UFCE), é contrário à modulação de uma futura decisão do STF. “Um dos pressupostos para que se possam limitar temporalmente os efeitos de uma declaração de inconstitucionalidade é a boa-fé do órgão emissor do ato inconstitucional, que não tinha, à época da edição do ato, como saber que ele seria declarado inválido”, explicou ele. No caso em debate, as propostas no Congresso já eram apelidadas de “PECs do Calote”.

Ministro Luiz Fux é o relator das ADIs que questionam o regime atual de precatóriosCarlos Moura/SCO/STF

Luciana Cunha também considera que o adiamento do pagamento dos precatórios e a flexibilização da ordem de quitação prejudicam os credores. Segundo ela, as ECs de 2021 “caracterizam-se como um verdadeiro calote das obrigações da União” e geram “enorme desconfiança da capacidade da União em honrar suas obrigações”.

Já Vera Chemim parte do pressuposto de que o represamento imposto pelas novas regras causará um aumento significativo das despesas primárias e financeiras. “É forçoso admitir que a União corre o risco de chegar a uma situação de insolvência e da consequente incapacidade de arcar com o pagamento de precatórios existentes e os que ainda estão por vir.”

Em sua coluna na ConJur, o advogado Fernando Facury Scaff, professor de Direito Financeiro da Universidade de São Paulo (USP), já ressaltou o “efeito bola de neve” do regime atual, que não respeita as ordens judiciais, nem a responsabilidade fiscal. “O montante que ultrapassar o subteto vai se acumulando até estourar no último ano do atual governo.”

A solução proposta por Scaff é alterar a Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF) para que todos os precatórios — e não só os inadimplidos — sejam expressamente considerados como dívidas. Segundo ele, qualquer pagamento de precatórios deveria ser contabilizado inteiramente na dívida pública.

“Essa proposta atende à responsabilidade fiscal, mas só atenderá aos credores se, ao mesmo tempo, passarem a ser pagos todos os precatórios, não apenas os do subteto.”

Já Élida Graziane Pinto, professora de Finanças Públicas da Fundação Getúlio Vargas (FGV) e procuradora do Ministério Público de Contas do Estado de São Paulo, alinha-se à posição do economista José Roberto Afonso, um dos responsáveis pela redação da LRF. Para eles, precatórios devem ser contabilizados como dívidas, e não despesas. Por isso, não faz sentido mantê-los dentro de uma regra fiscal.

Fonte: Conjur

A (i)legalidade da jornada de trabalho em regime SDF

É certo que uma das principais conquistas da classe trabalhadora, no Brasil e no mundo, foi a limitação da duração da jornada de trabalho [1]. Nesse sentido, dentre as mais diversas discussões existentes acerca do tema, têm-se hoje os recentes casos envolvendo a possibilidade ou não de contratação para o labor em regime de trabalho SDF.

Mas, afinal, o que seria SDF?
Entende-se como contratação para o trabalho no regime SDF a prestação de serviços apenas aos sábados, domingos, feriados e dias de ponto facultativo, por regra em jornadas de 12 horas [2].

Geralmente esse tipo de jornada é ajustado para os trabalhadores que desempenham a atividade de vigilância e portaria/controladores de acesso, mas não exclusivamente.

Do ponto de vista normativo no Brasil, de um lado, o inciso XIII do artigo 7º da Constituição preceitua que “a duração do trabalho normal não superior a oito horas diárias e quarenta e quatro semanais, facultada a compensação de horários e a redução da jornada, mediante acordo ou convenção coletiva de trabalho”. Lado outro, a Consolidação das Leis do Trabalho aborda a temática da jornada de trabalho em seus artigos 58 a 65 [4].

Destarte, com o advento da Lei 13.467/2017 [5], e desde que sejam respeitados os limites constitucionalmente assegurados pela Lei Maior, os instrumentos coletivos de trabalho (fontes legislativas autônomas) terão prevalência, doravante, sobre a lei estatal (fonte legislativa heterônoma), no que tange à pactuação da jornada de trabalho e ao banco de horas.

A propósito, sobre a limitação da jornada de trabalho, oportunos são os ensinamentos do professor doutor Adalberto Martins, da PUC-SP [6]:

“As normas legais que limitam a jornada de trabalho são de ordem pública, por uma questão de higidez física e mental do empregado, e que interessa ao Estado. Contudo, não se ignora que, pelas próprias partes, ou por meio das normas coletivas, podem ser fixados limites inferiores, até mesmo em obediência.
(…). No Brasil, os primeiros destinatários de normas que limitavam a jornada de trabalho foram as crianças e os adolescentes, nos termos do Decreto 1.313, de 17.1.1891. A limitação de oito horas diárias beneficiou os trabalhadores no comércio com o Decreto 21.186, de 22.3.1932, e os trabalhadores da indústria com o Decreto 21.364, de 4.5.1932, tendo vários outros decretos surgidos para beneficiar outras categorias, até que a Constituição de 1934 limitou a jornada em oito horas para todos os trabalhadores.”

Dito isso, os questionamentos sobre a validade da contratação para o labor no regime SDF já estão sendo levados aos tribunais trabalhistas.

Com efeito, para a 6ª Turma do Tribunal Regional do Trabalho da 9ª Região, por exemplo, é possível a validação deste regime próprio de labor implementado pelas partes, na qual o empregado pode trabalhar 12 horas em dois dias consecutivos (exceto se houver feriado na semana), tendo como contrapartida o direito de folgar os cinco dias durante a semana [7].

Em seu voto, a desembargadora relatora ponderou:

“No caso, o autor fora admitido ciente de que trabalharia em jornada reduzida e da remuneração que receberia por isso. O autor auferia uma remuneração superior ao salário mínimo  que em 2015 era de R$ 788  para laborar, em regra, 24 horas na semana, com folga em 5 dias consecutivos. Trata-se, claramente, de condição muito mais favorável do que as 7h20 diárias de segunda à sábado  totalizando 44 h semanais  do que a legislação autoriza em contrapartida do salário mínimo. Nessa toada, não remanescem dúvidas sobre a favorabilidade do pacto contra o qual se insurge o autor, de modo que a ausência de autorização coletiva específica não prejudica a sua validade.”

De igual modo, a 18ª Turma o Tribunal Regional do Trabalho da 2ª Região também validou o chamado regime SDF por entender que haveria a compensação da jornada em razão da ausência de labor nos demais dias da semana [8]. Contudo, em sentido contrário, a 16ª Turma do referido tribunal paulista declarou a invalidade do regime SDF por ausência de previsão normativa específica, tampouco em instrumento coletivo de trabalho [9].

No caso concreto, a convenção coletiva de trabalho previa apenas o labor em regime de tempo parcial, porém, a desembargadora relatora destacou: “no entanto, conforme alertado pelo recorrente em sua exordial, analisando o caso sob o prisma do regime de tempo parcial previsto na CCT da categoria e dos cartões de ponto válidos acostados aos autos, denota-se que ao menos uma vez por mês, existia labor semanal de 36 ou 48 horas, o que é expressamente proibido pela legislação celetista”.

Entrementes, é importante destacar que não se confunde o regime de trabalho SDF, que é aquele no qual o labor acontece aos sábados, domingos e feriados, com o regime de tempo parcial previsto no artigo 58-A da CLT [10]. Nesse diapasão, o Tribunal Superior do Trabalho já foi provocado a emitir juízo de valor quanto à licitude do regime de trabalho SDF firmado por norma coletiva, ocasião em que houve a sua validação [11].

Em seu voto, a ministra relatora observou:

“O Regime de Trabalho SDF, dado suas particularidades, não pode ser considerado como de tempo parcial, previsto no artigo 58-A da CLT, acrescentado pela Medida Provisória nº 2164-40, de 24/07/2001, e que tem como traços distintivos dos demais contratos, por exemplo, o fato de não permitir a prestação de horas extras (artigo 59, §4º, da CLT) e de prever férias proporcionais no máximo de 18 dias, de acordo com a jornada semanal cumprida (artigo 130-A da CLT). A reclamada, de acordo com o Tribunal Regional, cumpriu com suas obrigações trabalhistas decorrentes do que foi pactuado em norma coletiva para o ‘Regime de Trabalho SDF’, consignando que foram carreados aos autos demonstrativos de pagamento, nos quais consta o adimplemento de horas extras, de forma que cabia ao reclamante demonstrar eventual diferença no pagamento destas horas, mas que desse ônus não se desincumbiu. Ilesos, portanto, os artigos 58-A e 59, §4º, da CLT.”

Impende salientar, porém, que a cumulação da jornada 12×36 com o regime de trabalho SDF revela-se ilegal, afinal, se é verdade que na escala 12×36 ocorrerá o descanso de 36 horas consecutivas, sem interrupção, idêntica lógica, porém, não acontecerá no regime SDF. Sob esta perspectiva, caso seja levada ao Poder Judiciário, a escala de 12×36 poderá ser anulada e, por conseguinte, serem deferidas as horas extras daí correspondentes.

Portanto, ao analisar a temática envolvendo a adoção do regime de trabalho SDF, é preciso verificar o caso concreto, assim como respeitar a negociação entre as partes. Aliás, vale lembrar que o artigo 59-A da CLT [12], incluído pela Lei 13.467/2017, possibilita às partes transacionarem de forma individual ou por meio da negociação coletiva a escala 12×36, de modo que, em regra, a adoção do regime SDF se traduziria numa carga horária menor.

Em arremate, é importante ressaltar que, caso seja constatado que o objetivo da implantação deste regime foi desvirtuado, de forma a impedir ou fraudar a legislação trabalhista, não há dúvidas que poderá ser decretada a sua nulidade [13], por afronta aos direitos e garantias fundamentais, aos direitos sociais e aos direitos humanos dos trabalhadores.

[1] Disponível em: https://www.tst.jus.br/jornada-de-trabalho. Acesso em 26.9.2023.

[2] Disponível em: https://www.tst.jus.br/-/vigilante-contratado-para-trabalhar-aos-sabados-domingos-e-feriados-nao-recebera-horas-extras. Acesso em 26.9.2023.

[3] Se você deseja que algum tema em especial seja objeto de análise pela coluna Prática Trabalhista, entre em contato diretamente com os colunistas e traga sua sugestão para a próxima semana.

[4] Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del5452.htm. Acesso em 26.09.2023.

[5] Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del5452.htm. Acesso em 26.09.2023.

[6] Manual Didático de direito do trabalho – 7ª ed. – Leme-SP: Mizuno, 2022. Página 208 e 209.

[7] Disponível em: https://www.trt9.jus.br/pesquisaprocessual/processo/exibirProcesso.xhtml. Acesso em 26.9.23.

[8] Disponível em: https://pje.trt2.jus.br/consultaprocessual/detalhe-processo/1000247-29.2018.5.02.0332/2#b82f152 . Acesso em 26.9.2023.

[9] Disponível em: https://pje.trt2.jus.br/consultaprocessual/detalhe-processo/1000929-87.2022.5.02.0026/2#d759991. Acesso em 26.9.2023.

[10] Artigo 58-A. Considera-se trabalho em regime de tempo parcial aquele cuja duração não exceda a trinta horas semanais, sem a possibilidade de horas suplementares semanais, ou, ainda, aquele cuja duração não exceda a vinte e seis horas semanais, com a possibilidade de acréscimo de até seis horas suplementares semanais.

[11] Disponível em: https://consultaprocessual.tst.jus.br/consultaProcessual/consultaTstNumUnica.do?consulta=Consultar&conscsjt=&numeroTst=1352&digitoTst=53&anoTst=2013&orgaoTst=5&tribunalTst=09&varaTst=0004&submit=Consultar. Acesso em 26.9.2023.

Artigo 59-A.  Em exceção ao disposto no art. 59 desta Consolidação, é facultado às partes, mediante acordo individual escrito, convenção coletiva ou acordo coletivo de trabalho, estabelecer horário de trabalho de doze horas seguidas por trinta e seis horas ininterruptas de descanso, observados ou indenizados os intervalos para repouso e alimentação.

[13] Artigo 9º. Serão nulos de pleno direito os atos praticados com o objetivo de desvirtuar, impedir ou fraudar a aplicação dos preceitos contidos na presente Consolidação.

Fonte: Conjur

Due diligence nas contratações: incremento da gestão de riscos

Investigação, sindicância, inquérito, averiguação, devassa, verificação, checagem… são muitas as expressões que, no jargão jurídico ou no convívio social, refletem a conduta de buscar informações para conhecer previamente uma pessoa com a qual se busca firmar uma relação qualquer.

A referência à due diligence não pretende ser somente o acréscimo de mais uma expressão ao referido rol; cabe-nos não somente encontrar um sentido que permita associá-la aos contratos públicos como também uma finalidade que justifique esse esforço.

Due diligence pode ser considerada como um “procedimento de investigação, estudo, análise e avaliação de riscos de uma operação, de uma entidade ou de um indivíduo, abrangendo os aspectos econômicos, jurídicos, tributários, ambientais, entre outros” [1]. Nas palavras de Marcílio Toscano França Filho, Matheus Costa do Vale e Nathála Lins da Silva, o procedimento se conecta aos conceitos de precauções, cuidados, investigações, cautelas ou auditorias prévias à realização de um dado negócio jurídico, opondo-se assim às noções mais amplas de negligência, descuido e desinformação [2]. Trata-se de prática amplamente adotada no universo corporativo, já habituado ao monitoramento realizado a partir de ferramentas de governança.

No setor público, a governança tem sido considerada como o “conjunto de mecanismos de liderança, estratégia e controle postos em prática para avaliar, direcionar e monitorar a gestão, com vistas à condução de políticas públicas e à prestação de serviços de interesse da sociedade” (artigo 2º, I do Decreto nº 9.203/17).  A governança das contratações foi expressamente referida na Lei nº 14.133/21, cabendo à alta administração do órgão ou entidade a implementação de processos e estruturas, inclusive de gestão de riscos e controles internos, para avaliar, direcionar e monitorar os processos licitatórios e os respectivos contratos, com o intuito de alcançar os objetivos legais, promover um ambiente íntegro e confiável, assegurar o alinhamento das contratações ao planejamento estratégico e às leis orçamentárias e promover eficiência, efetividade e eficácia em suas contratações (artigo 11, parágrafo único).

Desta forma, a due diligence é ferramenta de governança utilizada para a coleta de informações acerca do fornecedor com quem a Administração Pública se relaciona ou pretende se relacionar, com o intuito de gerir adequadamente riscos e buscar a efetividade do interesse público tutelado por meio do contrato administrativo. O mecanismo deve ser célere, não representando entrave ou morosidade para as contratações, sejam elas precedidas ou não de licitação, com aptidão para complementar as determinações legais pertinentes e capaz de vislumbrar riscos não previstos pelo legislador.

A gestão de riscos é direcionada à “identificação, avaliação e priorização de riscos, seguida de uma aplicação coordenada e econômica de recursos para minimizar, monitorar e controlar a probabilidade e o impacto de eventos negativos ou maximizar o aproveitamento de oportunidades” [3]Due diligence e gestão de riscos são ferramentas complementares, uma vez que a primeira é substrato para a segunda. Em que pese os dois institutos atuarem para identificar, prevenir e mitigar riscos, a investigação se encarrega de estudar o perfil de fornecedores e indicar os sinais de alerta decorrentes de tal perfil, ao passo que a gestão de riscos considera as informações ofertadas pela diligência prévia para, então, identificar e tratar os riscos do negócio relacionado ao alvo investigado.

Para além de lastrear a identificação dos riscos contratuais, a due diligence também se mostra útil no momento destinado ao tratamento de tais riscos, afinal as recomendações resultantes da investigação prévia poderão nortear o administrador responsável pela gestão de tais riscos. Os contornos do procedimento, a delimitação das informações que serão buscadas, os critérios para identificação de fatores de risco, as diretrizes para classificação do perfil de risco de fornecedores, bem como as recomendações correspondentes, são adaptáveis e devem estar alinhados aos objetivos do órgão ou entidade pública contratante.

A análise de riscos, considerados aqueles “que possam comprometer o sucesso da licitação e a boa execução contratual” [4], está na fase preparatória do processo licitatório, especificamente na etapa de planejamento. Assim, no intuito de promover a institucionalização da atividade voltada ao gerenciamento de riscos, a nova Lei de Licitações e Contratos Administrativos prevê, no caput do seu artigo 22, a possibilidade de, na fase preparatória, o edital contemplar matriz de riscos que deverá alocar de modo eficiente os riscos de cada contrato, estabelecendo a responsabilidade de cada parte contratante, bem como as ações para tratamento dos riscos identificados, inteligência do §1º do mesmo dispositivo.

Na etapa de execução contratual, a ferramenta robustece a gestão dos riscos já identificados ou que venham a ser constatados durante o cumprimento do contrato, permitindo aprimorar a fiscalização do desempenho dos contratados, o atendimento das obrigações legais e contratuais, além de viabilizar o acompanhamento dos indicadores de qualidade e eficiência, verificando tempestivamente possíveis irregularidades ou inadimplementos. Percebe-se que a investigação direciona a fiscalização da execução contratual por diferentes intensidades de acompanhamento e controle, a depender das informações verificadas e de seu reflexo no panorama de riscos [5].

Novos exemplos têm aparecido recentemente: o estado do Paraná aprovou o Decreto nº 11.420/2022 [6], que instituiu a due diligence para todas as contratações públicas no âmbito da Administração Pública direta e indireta do Poder Executivo, devendo o procedimento ser orientado e acompanhado pelo órgão central de controle interno do estado. De modo similar, o município de Belo Horizonte editou a Lei nº 11.557, de 26 de julho de 2023 [7] que torna obrigatória a intitulada “Avaliação de Integridade” nas contratações públicas para execução de obra ou serviço de engenharia com valor superior a R$ 3 milhões e de serviços ou compras com valor superior a R$ 1 milhão, considerando-se, para tanto, o custo do contrato no período de 12 meses.

De acordo com tais atos normativos, após a análise de informações e documentos, será atribuído ao fornecedor/contratado grau de risco escalonado em baixo, moderado ou alto. Escorado no relatório produzido o final do procedimento, o órgão ou entidade adotará medidas de tratamento dos riscos identificados que promovam melhorias na gestão e fiscalização dos contratos.

Ainda que seja controversa a possibilidade de utilização da prática relatada no momento de seleção de fornecedores, o uso na etapa de execução contratual não demanda previsão expressa em lei, podendo ser disciplinada em ato normativo regulamentar e com previsão no instrumento de contrato. Espera-se que a Administração Pública possa ter a cada dia mais ferramentas para antever e reduzir os riscos contratuais, com vistas a melhor assegurar a entrega dos bens ou serviços contratados com efetividade e economicidade.

[1] Do original: “Due diligence is ‘a procedure of investigation, study, analysis and risk assessment of an operation, an entity or an individual, covering the economic, legal, tax, environmental, among other aspects'”. (HOWSON, Peter. Due Diligence: The Critical Stage in Mergers and Acquisitions. 1. ed. London: Routledge, 2003, p. 1).

[2] FRANÇA FILHO, Marcílio Toscano; VALE, Matheus Costa do; SILVA, Nathálya Lins da. Mercado de Arte, Integridade e Due Diligence no Brasil e no Mercosul Cultural. Revista da Secretaria do Tribunal Permanente de Revisão, v. 7, nº 14, p. 260-282, 2019, p. 262.

[3] MIRANDA, Rodrigo Fontenelle de A. Implementando a gestão de riscos no setor público. 2. ed. Belo Horizonte: Fórum, 2021, p. 42.

[4] Lei nº 14.133/21, artigo 18. A fase preparatória do processo licitatório é caracterizada pelo planejamento e deve compatibilizar-se com o plano de contratações anual de que trata o inciso VII do caput do artigo 12 desta Lei, sempre que elaborado, e com as leis orçamentárias, bem como abordar todas as considerações técnicas, mercadológicas e de gestão que podem interferir na contratação, compreendidos: (…) X – a análise dos riscos que possam comprometer o sucesso da licitação e a boa execução contratual.

[5] Em dissertação de mestrado defendida  pela coautora deste artigo no Programa de Pós-Graduação em Direito e Políticas Públicas da UFG, foram identificados como fatores de risco para efeito de verificar a efetividade da realização de due diligence nas contratações diretas emergenciais celebradas pelo Estado de Goiás para atendimento das demandas decorrentes da pandemia Covid-19: a) sanções administrativas eventualmente aplicadas e ainda em cumprimento pela empresa investigada; b) eventual participação, no mesmo processo de contratação, de outra empresa que apresentasse em seu quadro sócio em comum com a empresa investigada; c) eventual existência de apostilamentos e aditivos contratuais celebrados entre a empresa investigada e o órgão contratante que superasse 50% do contratado inicialmente; d) quantidade de atividades econômicas da empresa investigada (Classificação Nacional de Atividades Econômicas – Cnae) registradas junto à Receita Federal; e) tempo de constituição da empresa investigada, considerando-se a data de seu registro até a data da adjudicação; f) capital social da empresa investigada em relação ao valor adjudicado naquele processo de contratação.

[6] PARANÁ. Decreto 11.420, de 20 de junho de 2022. Institui o procedimento de Due Diligence nas contratações públicas no âmbito da Administração Pública Direta e Indireta do Poder Executivo do Estado do Paraná. Disponível em: https://leisestaduais.com.br/pr/decreto-n-11420-2022-parana-institui-o-procedimento-de-due-diligence-nas-contratacoes-publicas-no-ambito-da-administracao-publica-direta-e-indireta-do-poder-executivo-do-estado-do-parana Acesso em: 27 jun. 2023.

[7] BELO HORIZONTE. Lei nº 11.557, de 26 de julho de 2023. Torna obrigatória a avaliação de integridade nas contratações públicas que menciona. Disponível em: https://dom-web.pbh.gov.br/visualizacao/ato/422353 Acesso em: 25 de jul. 2023.

Fonte: Conjur

Juiz das garantias na competência criminal das varas de falências

O objetivo deste artigo é tratar do juiz de garantias e dos eventuais reflexos de sua implementação na competência criminal das varas de falências e recuperação de empresas, modelo adotado, por exemplo, nos estados de São Paulo, Ceará e Distrito Federal, segundo as normas de organização judiciária.

A ministra Rosa Weber, presidente do STF (Supremo Tribunal Federal), no dia 24 de agosto de 2023, proclamou o resultado do julgamento das quatro ações diretas de inconstitucionalidade (ADIs 6.298, 6.299, 6.300 e 6.305) [1], que questionavam alterações no CPP, pelo “pacote anticrime” (Lei nº 13.964/19), entre elas a criação do juiz de garantias, instituído com a finalidade de aprimorar o sistema acusatório, ao separar a figura do juiz que controla a legalidade da investigação criminal e das medidas sujeitas à reserva de jurisdição, do juiz da instrução, que decidirá sobre o recebimento da denúncia e presidirá o processo até o julgamento da ação penal.

O objetivo do juiz de garantias é preservar o juiz da instrução do contato, desde o início, com a investigação criminal, diligências e provas nela reunidas. Visa, em suma, assegurar um julgamento justo e imparcial, de maneira a preservar o juiz da instrução de eventual pré-julgamento que o contato com elementos informativos da investigação poderia causar no convencimento do magistrado, segundo a ideia que inspirou a criação do novo instituto em nosso processo penal.

A Suprema Corte considerou a norma de aplicação obrigatória e estabeleceu prazo de 12 meses, prorrogável por igual período, a partir da publicação da ata de julgamento, para que sejam adotadas medidas legislativas e administrativas necessárias à adequação das normas de organização judiciária, efetiva implantação e funcionamento do juiz de garantias em todo o país, conforme as diretrizes do CNJ (Conselho Nacional de Justiça).

Decidiu que a competência do juiz de garantias termina com o oferecimento de denúncia, cuja apreciação passa a ser de competência do juiz da instrução criminal, que decidirá, também, eventuais questões pendentes.

Estabeleceu o STF que, em até dez dias após o oferecimento da denúncia ou queixa, o juiz da instrução deverá reexaminar a necessidade de medidas cautelares em curso.

Foi afastada regra que previa o relaxamento automático da prisão, caso as investigações não se concluíssem no prazo legal.

De acordo com a decisão do STF, o juiz poderá reavaliar os motivos que justificaram a decretação da prisão ou de outras medidas cautelares em curso, como por exemplo as interceptações telefônicas.

Sobre o alcance do juiz de garantias, o Supremo decidiu que não se aplicam as normas relativas ao juiz das garantias: a) aos processos de competência originária do STF e do STJ, regidos pela Lei nº 8.038/90; b) aos processos de competência do Tribunal do Júri; c) aos casos de violência doméstica e familiar; d) às infrações penais de menor potencial ofensivo.

Decidiu ainda o STF que o juiz das garantias atuará nos processos criminais da Justiça Eleitoral.

Sobre a investidura, o STF afastou regra que previa designação do juiz das garantias. Decidiu que o juiz deverá ser investido conforme as normas de organização judiciária de cada esfera da justiça, observados critérios objetivos que deverão ser divulgados periodicamente pelos tribunais. A princípio, isso implica a necessidade de se criar varas ou departamentos regionais, conforme tem sido considerado.

Sobre a remessa dos autos ao juiz da instrução, a Suprema Corte decidiu que passa a ser obrigatória, declarando inconstitucional a norma que previa a permanência dos autos com o juiz das garantias.

Importante essa obrigatoriedade de remessa dos autos pelo juiz de garantias ao juiz da instrução, porque este magistrado, que irá decidir sobre o recebimento da denúncia ou queixa e depois julgar a lide penal, precisará conhecer todos os elementos de prova reunidos, para que possa proferir o julgamento justo e imparcial que dele se espera.

E esse conhecimento das provas da investigação criminal o magistrado da instrução terá em momento posterior, não logo no início da investigação criminal, como acontece atualmente.

No que se refere ao controle de investigações, o STF fixou prazo de até 90 dias, contados da publicação da ata de julgamento, para que os representantes do Ministério Público encaminhem, sob pena de nulidade, todos os procedimentos de investigação (PICs) e outros procedimentos análogos, ainda que tenham denominação diversa, ao juiz natural, independentemente de já ter sido ou não implementado o juiz de garantias na jurisdição respectiva.

Observe-se que a decisão do STF não falou em mera comunicação ou remessa de cópias do procedimento ao juiz natural. É exigido o encaminhamento do procedimento de investigação, independentemente da denominação que lhe tenha sido atribuída. A omissão nesse encaminhamento é sancionada pela nulidade do procedimento.

Como regra de transição, o STF estabeleceu que a eficácia da lei não acarretará nenhuma modificação do juízo competente nas ações penais já instauradas no momento em que houver a efetiva implementação do juiz de garantias pelos tribunais. Ou seja, as ações penais já instauradas prosseguirão em seu juiz natural, perante o qual foram propostas, quer já tenha ocorrido ou não a implementação do juiz de garantias naquela jurisdição.

Em vista do objetivo proposto no início do texto, formulamos algumas indagações:

1ª) A implementação do juiz de garantias terá repercussão em relação à competência para julgamento dos crimes falimentares?  
Nos estados da Federação, em que os crimes falimentares competem aos juízes criminais (e que são maioria em nosso país), o juiz das garantias poderá ser investido para atuar ao lado das varas criminais respectivas, sejam elas comuns ou especializadas em determinados delitos. Ou ainda em varas de abrangência regional.

O STF não excepcionou a incidência do juiz de garantias aos crimes falimentares. Logo, será obrigatória a figura do juiz de garantias no controle da legalidade da investigação criminal que preceda a propositura de ação penal, nos crimes previstos nos artigos 168 a 178, da Lei nº 11.101/2005, e nos delitos conexos.

Interessante registrar ainda que o juízo falimentar, no estado de São Paulo, por força da Lei Estadual nº 3.947/83 [2], tem competência para julgar os crimes falimentares, inclusive o delito do artigo 178, da LFRJ, de menor potencial ofensivo [3].

Igual modelo de competência criminal do juiz da falência é adotado pelo Distrito Federal [4] e pelo estado do Ceará [5].

Embora haja questionamentos na doutrina, quanto à constitucionalidade de referidas leis estaduais, são normas de organização judiciária, que os Estados estabelecem nos termos do artigo 125, caput, da CF, e o STF já afirmou a sua constitucionalidade [6], especialmente em relação à lei de São Paulo.

Provavelmente, à vista da pesquisa não exauriente que fizemos, só exercem competência criminal para processar e julgar os delitos falimentares e conexos as varas de falências de São Paulo, Distrito Federal e do Ceará.

Por outro lado, vale observar que, em outros estados, como Minas Gerais [7], Espírito Santo [8] e Rio Grande do Sul [9], os crimes falimentares e conexos são de competência do juízo criminal da jurisdição em que houver sido decretada a falência, concedida a recuperação judicial ou homologado o plano de recuperação extrajudicial, nos termos da norma geral do artigo 183 [10], da Lei nº 11.101/2005.

Em Minas, o promotor que oficia na falência oferece a denúncia e esta é encaminhada ao juízo criminal.

No Rio Grande do Sul, os crimes falimentares são julgados por uma vara criminal, especializada em crimes ambientais e outros delitos.

Em Mato Grosso [11], não há previsão de competência criminal das varas que processam e julgam falências e “concordatas” (hoje recuperação de empresas). Em Mato Grosso do Sul [12], idem.

Em Goiás [13], os crimes falimentares são de competência do juízo criminal.

No Maranhão [14] e na Paraíba [15], os crimes falimentares são de competência das varas criminais.

No Amapá [16],  não há previsão sobre competência criminal de vara falimentar.

No Estado do Sergipe [17], não há também previsão de competência criminal das varas falimentares.

A mesma solução se adota nos estados do Amazonas [18], Rio de Janeiro [19], Paraná [20], Santa Catarina [21], Bahia [22] e Pará [23].

Em Alagoas não há norma judiciária específica para demandas relativas às falências e recuperações de empresas.

Ou seja, da pesquisa não exauriente do tema que fizemos, muito provavelmente só exercem competência criminal, nos delitos falimentares, as varas de falências e recuperação de empresas do estado de São Paulo, do Distrito Federal e do Ceará.

Nos demais estados, a competência criminal para esses delitos é exercida pelos juízos criminais.

2ª) A especialização do juízo da vara de falências, para julgar os crimes falimentares, é sempre positiva?
À primeira vista, é plausível considerar que a especialização pode ser positiva para o julgamento dos crimes falimentares, justificando a competência do juízo universal, porque o juiz da falência ou recuperação conhece o processo principal e seus incidentes, seus meandros e circunstâncias fáticas subjacentes.

E como os crimes falimentares são trazidos à tona no processo de falência, recuperação e em seus incidentes, a conclusão primeira a que se chega é a de que é mais adequado que o juiz que conheça esse material tenha também competência para julgar os crimes falimentares.

Há uma presunção de que o juiz da falência terá melhores condições para julgar tais crimes.

Vale registrar que, com exceção do crime de omissão de livros obrigatórios e de escrituração contábil (artigo 178), que é bastante comum, de menor potencial ofensivo, e de fácil compreensão, há crimes falimentares praticados mediante arrojadas fraudes, seguidos de lavagem e ocultação de capitais (Lei nº 9.613/98), com remessa de recursos para empresas abertas em outros países, delitos que demandam estudo detido das circunstâncias da liquidação extrajudicial (de instituições financeiras, empresas de assistência à saúde, seguradoras etc) e da falência subsequente, para que daí sejam extraídas a compreensão dos fatos, a identificação dos autores e a subsunção das condutas às normas penais incriminadoras.

Por outro lado, apreciando essa competência criminal do juízo falimentar pelo viés da familiaridade com as lides penais, sem deixar de lado ainda a especialização (agora em investigações criminais e ações penais), é inegável que a jurisdição criminal está mais afeita à rotina das investigações criminais e das ações penais, se comparada à jurisdição exercida pelo juízo falimentar, cotidianamente às voltas com intrincadas questões que transitam pelos mais diversos ramos do direito, do civil, processual civil, empresarial, constitucional, tributário e administrativo ao direito ambiental, digital etc. E ainda pelo direito penal e processual penal, considerando as normas de organização judiciária de São Paulo, Ceará e do Distrito Federal.

Ou seja, no fim das contas, talvez seja mais adequada, produtiva e célere a apreciação das lides penais pelo juízo criminal, que poderá eventualmente atuar em cooperação [24] com o juízo da falência, para melhor intelecção dos fatos e de seus contornos de tipicidade no direito penal.

Isto é posto aqui, registre-se, com a limitação própria do terreno das hipóteses.

O CNJ e os TJs é que dirão, nos termos da decisão do STF, como será implementado o juiz de garantias, no prazo de 12 meses.

No Direito da Insolvência há, enfim, um dilema aparentemente insuperável: o especialista em falências e recuperação de empresas normalmente não é especialista na área criminal. E o especialista em direito penal não é de modo geral conhecedor do direito falimentar [25].

Com a implementação do juiz de garantias, o advento dessa nova realidade em nosso processo penal talvez permita que, em estados que adotem o modelo de competência criminal das varas de falência e recuperação de empresas (como SP, CE e DF), seja estudada a viabilidade do deslocamento da competência criminal dos juízes das falências e recuperações para o juízo criminal comum ou especializado em determinados crimes, da jurisdição de decretação da quebra ou da concessão da recuperação, segundo as normas de organização judiciária, que obedecerão aos termos da decisão do STF e às diretrizes do CNJ.

Outra indagação que surge e que talvez justifique acenada possibilidade de mudança diz respeito ao volume de investigações e ações penais nas varas de falências e recuperação de empresas:

3ª) O volume de investigações criminais e ações penais, nas varas de falências e recuperação de empresas, justifica a investidura de um juiz de garantias ao lado de cada uma dessas varas?
Há investigações criminais e ações penais em curso nas varas especializadas em falências e recuperação de empresas.  Disso não há dúvida. Mas a praxe demonstra que tais varas, por suas peculiaridades, não estão evidentemente abarrotadas de inquéritos policiais e processos criminais. Daí a indagação.

Importante observar que, em São Paulo, o TJ-SP instituiu o Departamento de Inquéritos Policiais (Dipo) há vários anos, com uma estrutura em que magistrados presidem a tramitação dos inquéritos policiais que tramitam no foro central criminal da capital do estado.

No estado de São Paulo, que tem o maior movimento de processos de todo país [26], uma estrutura como esta, em pleno funcionamento há tantos anos, poderá servir, senão de modelo, de norte para a implementação do novo instituto do juiz das garantias.

Uma das alternativas cogitadas para implantação do juiz de garantias tem sido a criação de departamentos ou varas regionais [27], por razões de ordem orçamentária.

Enfim, a decisão do STF está posta e os crimes falimentares não estão afastados da incidência do juiz de garantias.

A indagação que fica em aberto, ao que nos parece, é se o juiz de garantias, nos estados da Federação que preveem a competência criminal das varas de falências e recuperação de empresas (SP, DF e CE), terá sua implementação e investidura ao lado de cada uma das varas especializadas em falência e recuperação de empresas ou ao lado das varas criminais comuns ou especializadas em determinados crimes, do foro de decretação da falência, nos termos da regra geral do artigo 183, da Lei n. 11.101/2005.

Aguardemos, enfim, as diretrizes do CNJ, Conselho Nacional de Justiça, assim como as Resoluções dos Tribunais de Justiça dos Estados e a eventual revisão (ou não) das respectivas normas de organização judiciária, com base nas quais os Estados podem organizar seu Poder Judiciário, observados os princípios estabelecidos na lei maior, nos termos do artigo 125, caput, da CF [28].

[1] Informações disponíveis em: https://portal.stf.jus.br/noticias/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=512814&ori=1 – acesso em 2 de setembro de 2023.

[2] Artigo 15, da Lei Estadual nº 3.947/83 – As ações por crime falimentar e as que lhes sejam conexas passam para a competência do respectivo juízo universal da falência.

[3] Nos termos do artigo 98, I, da Constituição Federal, a competência para julgar as infrações penais de menor potencial ofensivo é do Juizado Especial Criminal. Em SP, porém, por força da lei estadual, essa regra é excepcionada.

[4] Artigo 33, IV, da Lei nº 11.697/08, que dispõe sobre a organização judiciária do Distrito Federal e dos Territórios.

[5] Artigo 113, VI, do Código de Organização Judiciária do Estado do Ceará — Lei nº 12.342/94.

[6] EMENTA: “HABEAS CORPUS” — DELITOS FALIMENTARES E CRIMES A ELES CONEXOS – SENTENÇA PENAL CONDENATÓRIA PROFERIDA PELO JUÍZO DA FALÊNCIA — SUPOSTA VIOLAÇÃO AO POSTULADO CONSTITUCIONAL DO JUIZ NATURAL — INOCORRÊNCIA — AUTORIDADE JUDICIÁRIA INVESTIDA DE JURISDIÇÃO PENAL POR FORÇA DE NORMA ESTADUAL DOTADA DE ABSTRAÇÃO, GENERALIDADE E IMPESSOALIDADE — COMPETÊNCIA DOS ESTADOS-MEMBROS PARA ORGANIZAREM SUA JUSTIÇA (CF, ART. 125, “CAPUT”) — SITUAÇÃO DE INJUSTO CONSTRANGIMENTO NÃO CONFIGURADA — PRECEDENTES — DOUTRINA — PEDIDO INDEFERIDO. (HC 93730, relator(a): Celso de Mello, Segunda Turma, julgado em 28/05/2013, ACÓRDÃO ELETRÔNICO DJe-213  DIVULG 29-10-2014  PUBLIC 30-10-2014).

[7] Artigo 58, da Lei Complementar nº  59/2001, que dispõe sobre a organização judiciária do Estado de Minas Gerais, não prevê competência criminal da vara falimentar.

[8]  A Lei Complementar nº 234/02, que dispõe sobre as normas de organização judiciária do Estado do Espírito Santo, não prevê competência criminal da vara falimentar.

[9]  O artigo 73, XI, a, da Lei nº 7.356/80, que dispõe sobre o código de organização judiciária do Estado do Rio Grande do Sul, não prevê competência criminal da vara de falências.

[10]  Artigo 183. Compete ao juiz criminal da jurisdição onde tenha sido decretada a falência, concedida a recuperação judicial ou homologado o plano de recuperação extrajudicial, conhecer da ação penal pelos crimes previstos nesta Lei.

[11] A Lei nº 4.964/85 não contém previsão de competência criminal das varas que processam e julgam falências e “concordatas” (artigo 51, X, a).

[12] Artigo 81, III, “s”, da Lei nº 1.511/94, que institui o Código de Organização e Divisão Judiciária do Estado do Mato Grosso do Sul.

[13] A Lei nº  21.268/22, que dispõe sobre o código de organização judiciária do Estado de Goiás, não prevê competência criminal em varas de falências.

[14] A Lei Complementar nº 014/91, que dispõe sobre o Código de Divisão e Organização Judiciárias do Estado do Maranhão, embora preveja varas cíveis e comerciais, não prevê competência delas para os crimes falimentares.

[15] A Lei Complementar nº 25/96, que dispõe sobre o código de organização judiciária do Estado da Paraíba, prevê a competência do Juiz de Direito da 7ª Vara Cível da Capital para julgar falências, concordatas, dissolução e liquidações de sociedades comerciais, civis e as de fins não lucrativos (artigo 41, IX), mas não prevê competência criminal cumulativa para delitos falimentares.

[16] O Decreto nº 0069/91, que prevê normas de divisão e organização judiciária do Estado do Amapá. nada dispõe a respeito.

[17] Cf. Código de Organização Judiciária do E. TJSE, Anexo III, item 5.

[18] A Lei Complementara nº 17/97, que dispõe sobre o código de organização judiciária do Estado do Amazonas, não prevê competência criminal de vara falimentar.

[19] O Código de Organização e Divisão Judiciária do Rio de Janeiro, instituído pela Lei nº 6.956/15, não prevê competência criminal de varas de direito empresarial, conforme artigo 50, I, a.

[20] O Código de Organização e Divisão Judiciárias do Estado do Paraná, instituído pela Lei Estadual nº 14.277/03, não prevê competência criminal de vara falimentar. A Resolução nº 93/2013 do OE do E. TJPR prevê que os crimes falimentares são de competência das varas judiciais criminais.

[21] A Lei Complementar nº 339/06, que dispõe sobre divisão e organização judiciárias de Santa Catarina nada prevê em termos de competência criminal de vara falimentar.

[22] A Resolução nº 22/18, do TJBA, que autorizou a instalação de varas empresariais em Salvador, não previu competência criminal em tais unidades.

[23] A Lei nº 5.008/81, que institui o Código Judiciário do Estado do Pará, nada prevê em termos de competência criminal de vara falimentar.

[24] Os artigos 67 a 69 do CPC de 2015 tratam da cooperação nacional entre órgãos jurisdicionais. Essa cooperação é um dever imposto pelo CPC a todos os órgãos jurisdicionais, de todas as instâncias.

[25] A doutrina de Manoel Justino Bezerra Filho aborda essa questão: “Quanto a este estudo, é curioso lembrar a observação de Alamiro Velludo Salvador Netto (p. 381) que, ao reconhecer a complexidade da matéria criminal neste campo, lembra que Requião fala da dificuldade emergente, pois nem o estudioso da falência é especialista no campo criminal, nem o criminalista entende profundamente do campo falimentar” (Lei de Recuperação de Empresas e Falência. 15ª ed. São Paulo, Revista dos Tribunais, 2021, p. 585).

[26] De acordo com a Datajud, Base Nacional de Dados do Poder Judiciário, instituída pela Resolução CNJ nº 331/2020, o movimento de processos no TJSP é de 68 milhões; no TJMG, 34 milhões; no TJRS, 24 milhões; no TJRJ, 23 milhões, no TJSC, 14 milhões, no TJBA, 11 milhões e no TJPR, dez milhões. Disponível em https://www.cnj.jus.br/sistemas/datajud/ — acesso em 5 de setembro de 2023.

[27] https://noticias.uol.com.br/ultimas-noticias/agencia-estado/2023/08/24/custo-de-implementacao-do-juiz-de-garantias-e-incerto-e-preocupa-tribunais.htm – acesso em 12 de setembro de 2023.

[28] Art. 125. Os Estados organizarão sua Justiça, observados os princípios estabelecidos nesta Constituição.

Fonte: Conjur – Por Fernando Célio de Brito Nogueira

Mudanças no IRPJ/CSLL das subvenções precisam melhorar

Eis onde estávamos antes da edição da Medida Provisória 1.185/2023:

1) não incidência de IRPJ, CSLL, PIS e Cofins sobre as subvenções para investimento: ajudas estatais, inclusive mitigações tributárias, à implantação ou expansão de empresas, impassíveis de apropriação direta pelos sócios eis que utilizáveis apenas para a absorção de prejuízos ou aumentos de capital (Decreto-lei 1.598/77, artigo 38, parágrafo 2º; Lei nº 12.973/2014, artigos 30 e 50; Lei 10.637/2002, artigo 1º, parágrafo 3º, inciso VIII; Lei 10.833/2003, artigo 1º, parágrafo 3º, inciso IX);

2) equiparação a subvenções para investimento de todos os créditos presumidos de ICMS, por força da norma interpretativa do artigo 10 da Lei Complementar 160/2017 e, ao ver da 1ª Seção do STJ, também do princípio federativo (EREsp. 1.517.492/SP, relatora para o acórdão ministra Regina Helena Costa, DJe 1/2/2018) [1]; e

3) subsistência da distinção entre subvenções de custeio e para investimento quanto aos benefícios negativos de ICMS: isenções, reduções de alíquota ou de base de cálculo, etc. (STJ, 1ª Seção, Tema 1.182 dos recursos repetitivos, relator ministro Benedito Gonçalves, DJe 12/6/2023).

Quando o tema parecia pronto para decantar sob as diretrizes fixadas pelo STJ, a sistemática foi radicalmente alterada pela Medida Provisória 1.185/2023, que revoga os quatro dispositivos em que assentava (listados no item “i”), levando de roldão a regra destinada à interpretação do segundo deles, referida no item “ii” (accessorium sequitur principale).

Em suma, sai de cena a desoneração direta (a priori), por meio da exclusão da base de cálculo do IRPJ, da CSLL, do PIS e da Cofins de benefício unilateralmente qualificado pelo contribuinte, e entra a desoneração indireta (a posteriori), por meio da concessão de créditos fiscais equivalentes ao produto das alíquotas do IRPJ e adicional (mas não da CSLL) por receitas de benefício qualificado pela Receita Federal como subvenção para investimento.

Essa análise ocorre na habilitação do contribuinte, que será deferida sempre que o ato concessivo da subvenção (1) seja anterior ao início da implantação ou expansão do empreendimento e (2) fixe de maneira precisa as contrapartidas a serem observadas por aquele. Requerida a habilitação  o que a nosso ver pode ser feito inclusive quanto aos benefícios anteriores à MP que cumpram os seus requisitos [2]  e ultimada a instalação ou expansão do empreendimento, passará a empresa a gerar, até 31/12/2028, créditos fiscais para compensação tributária ou ressarcimento em dinheiro.

Em resumo: primeiro se oneram o acréscimo patrimonial decorrente das subvenções governamentais, (IRPJ + adicional e CSLL) e as receitas de subvenção (PIS e Cofins), e depois se concede ao contribuinte um crédito fiscal correspondente ao produto das alíquotas do IRPJ e seu adicional pelas receitas de subvenção, desde que posteriores aos marcos temporais mencionados na última sentença do parágrafo precedente. Tal crédito, por sua vez, não integra a base de cálculo de nenhum daqueles tributos, por força de isenção expressa no artigo 11 da MP.

Antes de mais nada, cumpre verificar se, de forma geral (sem prejuízo de críticas pontuais), a nova sistemática é constitucional à luz do conceito de renda e do pacto federativo.

Quanto ao primeiro parâmetro, temos que, embora impassíveis de apropriação direta pelos sócios, via distribuição de dividendos ou redução de capital, as receitas de subvenção os beneficiam indiretamente, na medida em que aumentam a capacidade econômica da empresa. Isso sem falar que não se está a tratar da tributação daqueles, mas desta, que sem dúvida se valoriza em virtude de tais receitas.

Com efeito, o CTN foi expresso na definição da renda tributável, abraçando tanto da teoria da fonte (Quellentheorie) quanto a do acréscimo patrimonial líquido (Reinvermögenszugangtheorie[3]. A segunda, nominalmente contemplada no seu artigo 43, inciso II, tem origem no artigo seminal de Georg Schanz [4], que defende ser a renda caracterizada pelo acréscimo da capacidade econômica do agente, independentemente da origem ou da periodicidade dos recursos que a ensejam. Após os contributos de Robert Haig e Henry Simmons, consolidou-se o conceito de renda SHS (Schanz-Haig-Simmons), que define essa materialidade econômica como o somatório do (1) valor de mercado dos direitos exercidos no consumo e (2) da mudança de valor no estoque de direitos dentro de um período em questão [5], tornando-se o proxy para o desenvolvimento de legislações tributárias em todo o mundo.

A amplitude desse conceito econômico, refletida na opção feita pelo CTN, é compatível com as diretrizes constitucionais da tributação da renda, mormente o princípio da universalidade (CF, artigo 153, parágrafo 2º, inciso I), que exige seja considerada “a globalidade da renda, isto é, o conjunto de elementos, positivos e negativos, que se integram ao patrimônio do contribuinte” [6]. O confronto da teoria com o Direito positivo brasileiro suscita debates como, entre outros, o da necessidade de realização da renda para fim de tributação e o da tributabilidade das doações pelo IR  temas que desbordam o objeto deste artigo e ficam para futuras oportunidades.

Sendo as subvenções em princípio tributáveis, como se vem de demonstrar, a sua exoneração constitui verdadeiro benefício fiscal, para cuja disciplina o legislador tem ampla (embora não irrestrita) liberdade.

Já quanto ao pacto federativo, quer parecer-nos que o EREsp 1.517.492/SP  cuja subsistência vedaria a tributação dos créditos presumidos de ICMS  suscita dois questionamentos que bem podem ser levados ao STF. Formalmente, tem-se que o debate é constitucional, atraindo a reserva de plenário (CF, artigo 97; Súmula Vinculante 10 do STF). Materialmente, pensamos que o desdobramento tributário do princípio federativo já foi positivado pelo constituinte na imunidade recíproca, que veda exigências de um ente contra outro, mas não a impede a tributação da renda de pessoas privadas, no que decorrente de State aids  as quais, de resto, salvo se consistirem em repasses de dinheiro, sequer serão amesquinhadas por essa incidência, visto que os tributos a elas vinculados serão necessariamente pagos com outros recursos [7]. Ao empreender essa extensão subjetiva, ampliando ainda a proteção à CSLL, quando a imunidade se limita a impostos (extensão objetiva), o STJ fez interpretação corretiva da Constituição, o que demandaria enorme ônus argumentativo e  mais uma vez  sequer seria atribuição sua.

Nem se invoque, por fim, uma suposta contrariedade da MP à Lei Complementar 160/2017, já porque esta tratou de matéria passível de lei ordinária, não havendo falar em hierarquia (STF, Pleno, ADC 1, relator ministro Moreira Alves, DJ 16/6/1995), já porque tem caráter interpretativo de dispositivo revogado pela medida provisória, perecendo junto com este por carecer de sentido isoladamente (STF, Pleno, ADI 605 MC, relator ministro Celso de Mello, DJ 5/3/1993).

Embora válido, o novo regime padece de defeitos que merecem correção ao longo do processo de conversão da MP em lei, a saber:

  • a limitação dos créditos à parcela correspondente à alíquota do IRPJ, excluída a CSLL, que acarreta aumento de carga tributária face ao cenário anterior;
  • a restrição das receitas de subvenção geradoras de créditos às posteriores ao fim da implantação ou expansão do empreendimento, que chega a ser paradoxal por deixar de fora precisamente aquelas auferidas durante as etapas que visam a custear (afinal, trata-se de subvençãopara e não pelo  investimento);
  • a delimitação temporal do benefício, previsto para encerrar-se em 31/12/2028, quando melhor seria mantê-lo aberto a novos contribuintes e ajudas estatais, e restringir as receitas geradoras de créditos fiscais ao valor despendido em cada caso na implantação ou expansão do empreendimento. Se mantido, o prazo terá ao menos a vantagem de atrair a incidência do artigo 178 do CTN, cuja aplicação a outros benefícios fiscais, além da isenção, é pacífica no STJ (1ª Turma, REsp 1.941.121/PE. Relatora ministra Regina Helena Costa, DJe 9/8/2021);
  • a excessiva estreiteza do conceito de “expansão” comoampliação da capacidade, modernização ou diversificação da produção de bens ou serviços do empreendimento econômico”, que se aferra a uma ultrapassada “fisicalidade” na geração de valor das cadeias produtivas e deixa de fora os investimentos na promoção de marcas ou campanhas publicitárias, por exemplo, que decerto impactam positivamente na geração de receitas, empregos e tributos;
  • a exclusão, na apuração da base de cálculo dos créditos fiscais, das parcelas da receita de subvenção que superem as despesas de depreciação, amortização ou exaustão de bens sujeitos a tais encargos. Como não existe tal teto quanto aos bens cuja despesa é integralmente reconhecida no exercício, essa irrazoável distinção acabará por incentivar arranjos como a substituição da compra pela locação de ativos;
  • por fim, a revogação dos dispositivos que isentavam do PIS/Cofins as receitas de subvenção (sem a correspondente instituição de créditos fiscais proporcionais às respectivas alíquotas). Além de visar a aumento de carga tributária, a medida tenderá a esbarrarpelo menos quanto às subvenções para investimento não consistentes na entrega de dinheiro  no entendimento do STF de que, embora constituem receita para fins contábeis, os créditos presumidos e assemelhados não se sujeitam às contribuições, por não representarem ingresso financeiro que se integra no patrimônio na condição de elemento novo e positivo, sem reservas ou condições” (Pleno, RE 606.107/RS, relatora ministra Rosa Weber, DJe 25/11/2013). Ingresso financeiro haverá, sim, no eventual ressarcimento dos créditos fiscais, mas aqui a isenção está prevista no artigo 11 da MP, conforme já observado acima.

Com os aprimoramentos que sugerimos neste artigo, e outros a serem propostos por observadores mais atentos, ter-se-á um regime tributário das subvenções para investimento superior ao antigo, por equilibrar melhor o necessário incentivo público ao investimento privado com os ditames da capacidade contributiva e da responsabilidade fiscal.

[1] Malgrado a Solução de Consulta Cosit 145/2020, cujo desacerto foi demonstrado aqui por um dos autores.

[2] Nesse caso, o contribuinte deixará de proceder às exclusões de base de cálculo e apurará créditos fiscais quanto às futuras parcelas do incentivo, sujeito às condições listadas no texto.

[3] Alcides Jorge Costa. “Conceito de Renda Tributável“. in Estudos sobre o Imposto de Renda (em memória de Henry Tilbery). São Paulo: Resenha Tributária, 1994, p. 27.

[4] “Der Einkommensbegriff und die Einkommensteuergesetze“. In FinanzArchiv, vol. 13, nº 1, 1896, p. 1–87. JSTOR, http://www.jstor.org/stable/40904651, acesso em 17.09.2023.

[5] Henry C. Simmon. Personal income taxation: the definition of income as a problem of fiscal policy. Chicago: The University of Chicago Press, 1955, p. 50.

[6] Roque Carrazza. Imposto sobre a Renda (Perfil Constitucional e Temas Específicos). São Paulo: Malheiros, 2005, p. 33.

[7] Nem calha a tese do STJ de que a incidência do IRPJ e da CSLL sobre os créditos presumidos de ICMS reduziria a “capacidade de dirigismo econômico dos Estados”. Como observa um dos autores, “sob essa mesma lógica, porque não seria igualmente ofensivo a União deixar de cobrar IRPJ/CSLL sobre um valor que se torna receita tributária dos Estados, como o pagamento do ICMS?” (Carlos Augusto Daniel Neto. A Tributação das Subvenções de Investimento: um mosaico de questões e soluções interconectadas. In Subvenções Fiscais – Caderno de Pesquisas Tributárias 46. São Paulo: MP Editora, 2023, p. 152).

Essa visão outrancière do federalismo fiscal obstaria o abatimento de todos os tributos estaduais e municipais da base de cálculo do IRPJ e da CSLL, por reduzir “a capacidade arrecadatória da União”, conclusão cujo absurdo evidencia o desacerto da premissa.

Novo processo de perdimento e a cortina de fumaça jurídica

A expressão “cortina de fumaça” faz alusão a técnicas utilizadas por estrategistas militares para esconder tropas e recursos por trás de uma nuvem de fumaça, seja ela natural ou produzida artificialmente, como forma de ludibriar e confundir a contraparte, dando a oportunidade para empregar manobras de contra ataque ou retirada. Esse recurso também é comumente utilizado por ilusionistas para desorientar a plateia, desviando sua atenção do momento da execução do truque e dando credibilidade ao resultado da ilusão criada. No entanto, engana-se quem acredita que o recurso é usado somente por militares e mágicos. No mundo político e do direito, esse tipo de subterfúgio também é corriqueiramente empregado.

A discussão em torno do novo processo de perdimento não é inédita. Em verdade, a maior parte dos estudiosos já se posicionou  inclusive, a grande maioria em sentido contrário à legalidade do referido processo [1] Contudo, os artigos e pareceres veiculados até agora tratam basicamente da questão da (1)legalidade da solução aplicada. Por tal motivo, o presente artigo visa contribuir ao debate já lançado de forma inovadora, buscando tratar sobre o futuro e contestar se as medidas são ou não uma mera cortina de fumaça jurídica.

A justificativa da reforma trazida pela Lei 14.651/2023 está relacionada com a possibilidade de o sujeito passivo ter direito ao duplo grau recursal diante da decretação de perdimento pela Aduana, substituindo o rito sumário vigente até então por força do Decreto-Lei 1.455/76, motivada principalmente pelos compromissos internacionais que o país assumiu ao ratificar a Convenção de Quioto Revisada (CQR). Todavia, a nova Lei não possui normas materiais ou processuais, restringindo-se a delegar poderes ao Ministro da Fazenda para regulamentar o processo administrativo de aplicação e julgamento da pena de perdimento, o que de fato ocorreu por meio das Portarias MF 1.005/2023 e RFB 348/2023.

Ainda que não haja qualquer óbice legal para este tipo de delegação de poder, parece-nos curiosa a posição do Poder Legislativo de se eximir da função de legislar e deixar a cargo da Fazenda e da própria RFB, a autoridade aduaneira, regulamentar o novo processo, uma vez que a motivação da reforma era de, justamente, buscar garantir um maior grau de independência do processo recursal em relação às atividades de fiscalização e autuação.

Além disso, as mudanças trazidas ampliaram o já existente “mosaico normativo” do Direito Aduaneiro brasileiro, na medida que permitem que diferentes ritos processuais administrativos possam ser adotados, a depender das circunstâncias, a exemplo da distinção feita para autuações por fraude ao controle aduaneiro com e sem apreensão de mercadorias. Embora ambas as situações sejam passíveis de perdimento, quando houver apreensão de mercadorias, o recurso interposto se sujeitará ao prazo de recurso de 20 dias e será submetido à apreciação do Cejul, ao passo que nos casos em que a mercadoria não for localizada, a pena será substituída por multa e o recurso interposto passa a ter prazo de 30 dias e será submetido à apreciação da DRJ e do Carf.

A expressão “legislação mosaico” é utilizada por Basaldúa para descrever a situação da Argentina antes da promulgação de seu Código Aduaneiro e, assim, criticar as normas dispersas, confusas e, por vezes, contraditórias que coexistiam pela ausência de um quadro normativo consolidado [2]. Apesar de o país vizinho ter, aparentemente, superado a questão, a realidade brasileira de utilização de mini reformas em matéria aduaneira e de delegação do papel de legislador à administração por atos infralegais ainda é bastante presente e preocupante.

A mini reforma tem alguns outros pontos negativos que chamam a atenção, como a imposição/manutenção de prazo de 20 dias para apresentação de impugnação e recurso e a ausência de independência/autonomia da autoridade julgadora nos moldes exigidos pela CQR.

Embora o prazo reduzido para recurso venha sob a (louvável) busca por celeridade processual, da forma como a norma foi estabelecida, essa redução não parece influir de modo decisivo na duração total do processo de perdimento, não se justificando a distinção de prazo em relação ao rito do Decreto 70.235/72.

Cabe lembrar que a exposição de motivos do DL 1.455/76 também indicava preocupação com prazos e custos de armazenagem das mercadorias, mas a solução dada foi a aniquilação do direito de recurso, transformando o rito do perdimento em instância única para acabar com litígios intermináveis [3].

A mesma preocupação com os custos de armazenagem permanece na exposição de motivos da Lei 14.651/2023, com a previsão de prazos recursais reduzidos, ainda que, convenientemente, não tenha sido estabelecida nenhuma imposição de prazos para a duração do processo administrativo e, tampouco, de retenção para fins de lavratura do auto de infração.

A este respeito, a presente mudança parece seguir a mesma linha daquela realizada em 1976, em que se exigiram sacrifícios dos sujeitos passivos sem a devida contraprestação da administração no sentido de buscar celeridade nas análises recursais, prever expressamente na legislação prazos para julgamento e, consequentemente, regulamentar o tratamento a ser dispensado para os casos em que seus agentes descumprirem esses prazos.

É possível que isso decorra de outra característica em comum entre as duas reformas, que é a definição do rito pelo próprio aplicador, o que, como indicado anteriormente, é reflexo da omissão do Congresso Nacional. Com isso, o Executivo federal não apenas delimitou as hipóteses infracionais puníveis com perdimento (Decreto-Lei 37/66), como também regulamentou o rito por meio do qual as autuações serão julgadas.

O resultado desse cheque em branco? As autuações realizadas pela RFB em matéria aduaneira serão julgadas em tribunal administrativo inteiramente formado por seus servidores e sob regras emanadas dentro da própria instituição.

Interessante destacar que as preocupações de juristas e advogados militantes na área encontram guarida na visão emanada pela PGFN por ocasião da publicação de parecer para tratar da autonomia dos julgadores indicados pela RFB ao Carf. Naquela ocasião, ainda que sob situação fática diversa, a Procuradoria categoricamente indicou que a legitimidade do Carf estaria resguardada justamente pelo fato de que o órgão “não integra a estrutura da Secretaria da RFB, de modo que sua autonomia seria ferida se os AFRFBs conselheiros fossem a ela subordinados tecnicamente ao exercerem função pública” e que “como os representante da Fazenda no CARF não estão jungidos às diretrizes emanadas pela RFB, mas sim à legalidade, atuam com independência técnica” [4].

Em resumo, todos os argumentos da PGFN para demonstrar que os julgadores do Carf seriam independentes e imparciais, de forma a dar legitimidade ao processo administrativo sob o rito do Decreto nº 70.235/72 podem ser, ipis litteris, utilizados para contestar a validade da reforma atual e a imparcialidade e adequação do Cejul.

Isso porque, além da especialização para julgar a matéria, é necessária a independência funcional e hierárquica, de modo que os julgadores decidam sem pressão de qualquer tipo pelos envolvidos no conflito e que o tribunal emita decisões de maneira objetiva, fundamentada e imparcial. Sem isso, a efetividade do recurso resta prejudicada e faz-se dele uma etapa meramente ilusória. A expressão “recurso ilusório” se refere a situações em que o processo, pela forma como é conduzido, perde sua utilidade prática, tornando-se um mero rito burocrático de confirmação da decisão inicialmente adotada [5].

Não podemos afirmar, no presente momento, se os recursos apresentados ao Cejul sob o novo rito serão ilusórios, mas as preocupações existem e se fundamentam por diversas formas. Fato é que, diante das desconfianças, o grau de litigiosidade e judicialização devem aumentar, o que não é boa notícia para nenhuma das partes envolvidas.

Diante disso, acreditamos que existem três possíveis cenários em relação ao futuro da discussão sobre a aplicação da pena de perdimento e a efetividade das novas normas correlatas.

O primeiro é a provável discussão judicial da matéria, em que muitos sujeitos passivos devem provocar o Poder Judiciário para realizar o controle de legalidade do novo rito. Ainda que haja real chance de vitória, preocupa-nos os desdobramentos de uma eventual declaração de ilegalidade, visto que os processos seriam provavelmente encaminhados ao Carf, sem qualquer planejamento ou estrutura para tanto.

O segundo é que os tutelados se submetam à jurisdição do Cejul e passem a acompanhar de forma atenta o seu desempenho, de forma a verificar se as suspeitas de “recurso ilusório” ou cortina de fumaça concretizem-se ou não. A esse respeito, existe a aparente vantagem do novo rito em relação à DRJ de que haverá obrigação de publicação de ementas e decisões, o que deve trazer maior transparência ao processo e permitirá que a sociedade possa acompanhar o desempenho e a esperada isenção e tecnicidade prometidas pela RFB quando da criação do centro de julgamentos.

Por fim, o terceiro cenário  e, quiçá, o mais promissor, ainda que independa dos demais  é que a comunidade do comércio exterior não desista de debater a temática e que continue a negociar e discutir possíveis caminhos para efetivamente compatibilizar os procedimentos internos com as obrigações assumidas pelo Brasil em compromissos internacionais, em especial, a CQR.

Neste ponto, parece-nos que a única maneira de endereçar de forma efetiva o problema, contemplando todas as variáveis e preocupações existentes tanto da aduana quanto dos operadores do comércio exterior é por meio de uma ampla reforma não apenas no rito de julgamento do perdimento, mas no próprio sistema punitivo.

O que vemos hoje é um sistema antigo, apartado da realidade fática do comércio exterior e que impõe a pena de perdimento para uma enorme quantidade de infrações. O curioso é que, na maior parte delas, apesar da apreensão, os bens são posteriormente leiloados  ou doados  sendo oportunizado ao infrator adquiri-los novamente para revenda ou utilização. Com isso, o que se verifica é que o sistema atual sobrecarrega injustificadamente a administração, que precisa manter a correta guarda das mercadorias, visto que, ao final, os bens poderão ter a mesma destinação inicialmente pretendida.

Dito isso, a redução das hipóteses de perdimento aos casos estritamente necessários  ou seja, àqueles em que a mercadoria não pode ser destinada ao mercado interno em razão de proibição, contrabando, ausência de homologações e controles técnicos e sanitários  e a definitiva mudança de punição dos demais casos para multa ou outra penalidade que não comprometa o fluxo comercial e não implique dever de guarda e destinação pela aduana, soa como a única solução viável e que permite a efetiva conformação de todos os direitos e preocupações existentes.

Dado o exposto, esperamos que o debate continue vivo e que haja espaço para que uma verdadeira reforma no direito aduaneiro possa ser perseguida e promovida. E, por ora, resta a torcida para que as alterações recentes não tenham sido realizadas apenas para dar uma aparência de conformidade com os compromissos internacionais assumidos pelo governo brasileiro, ou seja, que não se confirmem como uma mera “cortina de fumaça” jurídica.

[1] A este respeito, vale conferir o artigo publicado nesta coluna em 29/08/2023.

[2] BASALDÚA, Ricardo Xavier. La sancion del Código Aduanero: su importância a nivel nacional e internacional. Revista El Derecho n. 92, 1981.

[3] BRASIL. DIÁRIO DO CONGRESSO NACIONAL. Mensagem n. 35. Diário Oficial de 24 de abril de 1976.

[4] Parecer PGFN/CJU/COJPN nº 787/2014.

[5] LASCANO, Julio Carlos. Procedimientos aduaneros. Buenos Aires: Omar Buyatti, 2015, p. 32.

Fonte: Conjur

Perdas causadas aos pisos pela LC 194 estão mal compensadas

Na semana passada, a Câmara dos Deputados aprovou o Projeto de Lei Complementar nº 136/2023, que “dispõe sobre a compensação devida pela União, nos termos do disposto nos art. 3º e art. 14 da Lei Complementar nº 194, de 23 de junho de 2022; a dedução das parcelas dos contratos de dívida; a transferência direta de recursos da União aos estados e ao Distrito Federal; a incorporação do excesso compensado judicialmente em saldo devedor de contratos de dívida administrados pela Secretaria do Tesouro Nacional do Ministério da Fazenda; e o tratamento jurídico e contábil aplicável aos pagamentos, às compensações e às vinculações”.

Vale lembrar que as Leis Complementares nº 192 e 194, respectivamente, de 11 de março e de 23 de junho, ambas de 2022, promoveram uma inconstitucional inibição da arrecadação do imposto sobre operações relativas à circulação de mercadorias e sobre prestações de serviços de transporte interestadual e intermunicipal e de comunicação — ICMS, às vésperas do processo eleitoral do ano passado.

Aludida fixação de alíquotas limítrofes para o ICMS empreendida pela União afrontou o pacto federativo e implicou redução da base arrecadatória sobre a qual incidem os porcentuais constitucionalmente estabelecidos como deveres de aplicação mínima em saúde e educação e como sistemática de equalização federativa que perfaz o Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação. Para fazer face à perda proporcional para os pisos e para o Fundeb, houve a inserção no âmbito da LC 194/2022 do dever de compensação federativa, na forma do seguinte artigo 14, que chegou a ser vetado pelo Executivo e teve seu veto derrubado pelo Congresso Nacional:

Art. 14. Em caso de perda de recursos ocasionada por esta Lei Complementar, observado o disposto nos arts. 3º e 4º, a União compensará os demais entes da Federação para que os mínimos constitucionais da saúde e da educação e o Fundeb tenham as mesmas disponibilidades financeiras na comparação com a situação em vigor antes desta Lei Complementar.
Parágrafo único. Os Estados, o Distrito Federal e os Municípios beneficiários do disposto nos arts. 3º e 4º desta Lei Complementar deverão manter a execução proporcional de gastos mínimos constitucionais em saúde e em educação, inclusive quanto à destinação de recursos ao Fundeb, na comparação com a situação em vigor antes desta Lei Complementar.

Eis o contexto primordial que justificou o PLC 136/2023, todavia o limite máximo ali previsto de R$ 27.014.900.000,00 (vinte e sete bilhões quatorze milhões e novecentos mil reais) para compreender as compensações previstas tanto no artigo 3º, quanto no artigo 14 da LC 194/2022 é francamente insuficiente para equalizar as perdas decorrentes da inibição do ICMS para as políticas públicas amparadas pelas garantias de custeio inscritas nos arts. 198, 212 e 212-A da Constituição.

Se se considerar apenas o exercício de 2022, para cada R$100 de queda na arrecadação de ICMS, haveria uma perda proporcional para as vinculações constitucionais de R$ 40,75. Caso a inibição do ICMS empreendida pela LC 194 não tivesse sido declarada inconstitucional pelo Supremo Tribunal Federal no âmbito da ADPF 984 e da ADI 7.121, haveria uma tendência de perda proporcional ainda maior, por força da Emenda Constitucional nº 108, de 26 de agosto de 2020, que previu crescimento escalonado da complementação da União ao Fundeb até 2026, na forma do artigo 60 do ADCT.

Todavia, importa lembrar que as LC’s 192 e 194/2022 não são expressão isolada de constrangimento fiscal imposto pela União aos demais entes federados ao longo do ano passado. A elas se somaram tanto fixação nacional de despesas obrigatórias, como se sucedeu com o piso remuneratório dos profissionais da enfermagem no âmbito da Emenda 124/2022; quanto a inibição da arrecadação tributária repartida federativamente, tal como ocorreu com a redução de alíquotas do imposto sobre produtos industrializados (IPI), empreendida pelos decretos federais nº 11.158 e 11.182, respectivamente de 29 de julho e de 24 de agosto, ambos de 2022.

Aliás, o desequilíbrio federativo em que o país se encontra resta bem evidenciado na tardia promulgação da Emenda 128, de 22 de dezembro de 2022, após a PEC 122/2015 haver sido aprovada em caráter definitivo em 14 de julho daquele ano, mesma ocasião em que havia sido promulgada a Emenda 124/2022, que trouxe o piso remuneratório nacional dos profissionais da enfermagem. A Emenda 128/2022 inseriu o seguinte §7º no artigo 167 da Constituição de 1988:

Art. 167. […]
§ 7º A lei não imporá nem transferirá qualquer encargo financeiro decorrente da prestação de serviço público, inclusive despesas de pessoal e seus encargos, para a União, os Estados, o Distrito Federal ou os Municípios, sem a previsão de fonte orçamentária e financeira necessária à realização da despesa ou sem a previsão da correspondente transferência de recursos financeiros necessários ao seu custeio, ressalvadas as obrigações assumidas espontaneamente pelos entes federados e aquelas decorrentes da fixação do salário mínimo, na forma do inciso IV do caput do art. 7º desta Constituição.

Omissões análogas se sucedem também com a restrição do alcance da sistemática de complementação federal ao piso do magistério constante da Lei 11.738, de 16 de julho de 2008, tal como foi prevista em seu artigo 4º, a apenas aos entes que recebem a complementação ao Fundeb.

A edição de norma nacional em desfavor dos estados, DF e municípios, frustrando sua arrecadação anteriormente estimada ou gerando despesa obrigatória de caráter continuado, deveria ser formalmente reconhecida como risco fiscal, na forma do artigo 4º, § 3º da Lei Complementar 101, de 4 de maio de 2000. Isso porque a recorrente e abusiva extrapolação de efeitos fiscais das competências legislativas da União para os demais entes federados se revela como medida capaz de comprometer o regime de responsabilidade intertemporal das contas públicas em todo o federalismo fiscal brasileiro. Os passivos contingentes decorrentes das cada vez mais volumosas demandas judiciais interfederativas atestam exatamente essa dimensão de risco.

Inibir receitas repartidas e impor despesas obrigatórias a outros entes políticos são condutas da União que impactam fortemente a capacidade de gerenciamento compartilhado de serviços públicos essenciais no território nacional, até porque operam em sentido francamente contraditório, agravando a saúde das contas públicas estaduais, distritais e municipais.

Como visto, a cada R$ 100 de perda da arrecadação de ICMS causada pela LC 194, os pisos em saúde e educação e o Fundeb sofreram com a perda proporcional de R$ 40,75 durante o exercício financeiro de 2022. Todavia, reduzir a carga tributária não é uma escolha discricionária isenta de repercussão fiscal, na medida em que há um tamanho indisponível do Estado brasileiro do ponto de vista do arcabouço normativo que rege as finanças públicas do país.

Engana-se quem acha que a carga tributária pode ser reduzida de forma aparentemente ilimitada e quase completamente dissociada dos compromissos incomprimíveis de gasto atribuídos ao Estado pela Constituição de 1988.

Caso não haja aprimoramento da qualidade da execução orçamentária para torná-la mais aderente ao planejamento setorial das políticas públicas, inibir as receitas tributárias necessariamente implicará escolher entre reduzir quantitativamente o raio da ação estatal, ou majorar o endividamento público. Em qualquer dessas hipóteses, haverá uma frustração do regime constitucional das finanças públicas brasileiras.

Eis o contexto em que é preciso pautar a estreita conexão instrumental entre as receitas estatais e o rol de despesas não suscetíveis de limitação de empenho ou pagamento, na forma do artigo 9º, §2º da LRF. Tais despesas devem ser mantidas, ainda que a estimativa de arrecadação se revele frustrada ao longo do exercício financeiro e ainda que haja risco de afetação das metas fiscais. O tamanho do Estado no Brasil não pode ser reduzido em patamar aquém desse elenco que agrega as despesas que correspondem às suas inadiáveis e incomprimíveis obrigações constitucionais e legais.

Inibir a arrecadação da primordial fonte republicana de custeio do Estado é escolha que, no mínimo, deveria demandar maiores ônus argumentativos, para que estivesse sujeita dialeticamente a limites que atestassem seus impactos quantitativos e qualitativos no dever de consecução das competências a cargo de cada ente da federação, bem como a cargo de todos eles conjuntamente.

Para impor suficiente dever de motivação ao governo federal é preciso obrigá-lo a reconhecer como riscos fiscais tanto a frustração da arrecadação repartida federativamente, quanto a imposição nacional de despesa obrigatória de caráter continuado sem suficiente fonte de custeio.

Os passivos judicializados são uma comprovação ex post desse impasse federativo. Não obstante isso, é necessário impor à União — preventiva e automaticamente — dever de compensação capaz de suportar, no mínimo, o custeio do rol de despesas não suscetíveis de contingenciamento, para resguardar a continuidade dos serviços públicos, que, embora sejam prestados de forma descentralizada por determinados entes, impliquem responsabilidade solidária de toda a federação.

Um interessante e recente exemplo a esse respeito reside no modo como a Emenda nº 120, de 5 de maio de 2022, previu ser responsabilidade da União o custeio dos vencimentos dos agentes comunitários de saúde e dos agentes de combate às endemias. Tal responsabilidade federal será atendida mediante repasses de recursos financeiros aos governos regionais e locais, de forma suficiente e vinculada ao cumprimento do piso salarial profissional nacional previsto no artigo 198, §5º da CF/1988. É notável e digno de ser reproduzido, pois, o caminho de equalização do federalismo fiscal brasileiro aberto pelos §§7º a 11 acrescidos ao artigo 198 da Constituição pela EC 120/2022.

Para mitigar o desequilíbrio na gestão das receitas e na distribuição das responsabilidades de despesas que permeia as relações entre os entes federados, é preciso inverter a equação fiscal de modo a controlar a proposição normativa federal, antes mesmo de a União conseguir alterar o ordenamento para impactar as contas dos demais entes políticos, como, a propósito, consta do §7º acrescido ao artigo 167 da Constituição, pela EC 128/2022.

Manter a sistemática atual, além de fiscalmente irresponsável, significaria admitir que a União obrigue, por via transversa, os estados, DF e municípios a assumirem dívida, por força da atuação fiscalmente incongruente de reduzir receitas tributárias repartidas, enquanto são descentralizadas obrigações de despesas (a exemplo do piso da enfermagem e inibição do IPI e do ICMS).

É possível estimar o risco fiscal de majoração do endividamento público dos governos municipais, distrital e estaduais, quando se verificar que a frustração de arrecadação que lhes foi imposta exogenamente pelo governo federal pode vir a comprometer a capacidade de custeio do rol de despesas não suscetíveis de contingenciamento (artigo 9⁰, §2º da LRF).

Não há voluntarismo analítico em tal hipótese, porque a identificação de tais despesas constitucional e legalmente obrigatórias deve ser feita anualmente em anexo próprio das leis de diretrizes orçamentárias — LDO’s de cada ente da federação, sendo possível quantificar sua repercussão fiscal a cada exercício.

Trata-se, em última instância, da positivação aplicável ao Direito Financeiro da noção de “mínimo existencial” acerca dos serviços públicos e ações governamentais que não podem sofrer solução de continuidade.

Considerando que esse elenco de despesas não suscetíveis de qualquer limitação durante a execução orçamentária corresponde a uma espécie de “mínimo existencial fiscal” e que, por isso, seu custeio se impõe até mesmo mediante endividamento público, é preciso ampliar o conceito de responsabilidade fiscal, na medida em que abdicar receitas tributárias não é escolha discricionária que estaria limitada tão somente pelo horizonte formal da sustentabilidade da dívida pública dado pela meta de resultado primário.

Há correlatamente o limite substantivo do dever de custeio suficiente das despesas não suscetíveis de contingenciamento. Tais despesas são incomprimíveis, porque expressam o tamanho necessário do Estado para cumprir, cabe reiterar, suas obrigações constitucionais e legais qualitativamente destinadas à garantia dos direitos fundamentais.

Independentemente de se for tomada a projeção de risco para cobrir a despesa insuscetível de contingenciamento (montante fixo de compromissos de gasto já assumidos) ou de se for tomada a proporcionalidade sobre a receita que contrafactualmente deixou de ser arrecadada, para fins de posterior incidência dos pisos em saúde e educação e do Fundeb, cabe impor ao governo federal o ônus agravado de motivação diante da insuficiente compensação empreendida pelo PLC 136/2023 em face do artigo 14 da LC 194.

Considerando que a União, ao inibir a arrecadação do ICMS, impôs — direta ou indiretamente — o risco fiscal de financiamento mediante endividamento das despesas obrigatórias dos governos locais e regionais; é preciso indagar acerca da razoabilidade e da proporcionalidade dessa equação, na medida em que estados, DF e municípios têm limite de dívida consolidada e mobiliária regulamentado na forma do artigo 52, VI e IX da CF/1988 (Resolução do Senado nº 40, de 20 de dezembro de 2001), enquanto a União não o possui.

Obviamente, é incoerente editar regimes fiscais aplicáveis seletivamente apenas ao nível federal (como se sucedeu com a EC 95/2016 e também agora se repete com a LC 200/2023), enquanto são impostos desequilíbrios orçamentários e financeiros desarrazoados para os demais entes da federação. Criar despesas obrigatórias de âmbito nacional e frustrar a arrecadação de tributos repartidos são rotas contraditórias, que, em última instância, afrontam a própria garantia de que as transferências constitucionais obrigatórias são exceção ao teto, precisamente porque visam resguardar o equilíbrio federativo.

Basta a União reduzir artificialmente a receita dos impostos repartidos na federação e impor nacionalmente obrigações de despesa aos governos estaduais e municipais para fazer letra morta das suas falseadas rotas de ajuste fiscal.

Não há ação planejada e transparente, nos moldes do artigo 1º, §1º da LRF, mas risco fiscal imposto e assumido pela União, inclusive mediante passivos judicializados, quando o ente central compromete a sustentabilidade das finanças públicas locais e regionais, de um lado, e esvazia a eficácia dos direitos sociais, cujo arranjo orgânico distribui responsabilidades na federação, como se sucede com o SUS e o Fundeb, de outro.

Esse quadro é agravado pela retração da participação da União no custeio dos direitos fundamentais (guerra fiscal de despesas), decorrente, entre outras circunstâncias, da regressividade proporcional e, por conseguinte, esvaziamento dos pisos federais em saúde e educação.

Mais do que um mero limite quantitativo arbitrário, deve se buscar identificar e enfrentar materialmente os riscos fiscais do desequilíbrio federativo, os quais impedem a consecução intertemporalmente aprimorada dos programas de duração continuada do plano plurianual — PPA e das despesas não suscetíveis de contingenciamento da LDO. Afinal, são tais despesas que revelam as políticas públicas nucleares ao cumprimento da Constituição e à efetividade planejada e federativamente sustentável dos direitos fundamentais.

Em face de todo o exposto, reputa-se aqui o PLC 136/2023 insuficiente para cumprir sua alegada finalidade de regulamentação do artigo 14 da LC 194/2022, na medida em que ignorou o dever de a União compensar federativamente: tanto a (1) assunção de riscos fiscais decorrentes da frustração de arrecadação e de passivos judicializados; quanto o (2) financiamento de despesas não suscetíveis de contingenciamento, direta ou indiretamente, mediante endividamento dos governos municipais, distrital e estaduais, a exemplo do que se sucede com as demandas judiciais e, por conseguinte, com os precatórios daí acumulados.

Ora, não pode ser reputado intertemporalmente sustentável um arranjo normativo que insule a União, apartando-lhe da sua responsabilidade solidária seja para com os demais entes federados, seja para com o custeio dos direitos fundamentais. A cooperação entre a União, os estados, o Distrito Federal e o municípios, sobretudo no desempenho das suas competências comuns, é obrigação inalienável, na forma do artigo 23, parágrafo único da CF/1988, até para que se possa alcançar o “equilíbrio do desenvolvimento e do bem-estar em âmbito nacional”.

Federativamente as políticas públicas de saúde e educação reclamam previsibilidade na sua consecução orçamentário-financeira por envolverem elevado índice de despesas obrigatórias[‘], não suscetíveis de contingenciamento. Além disso, tais áreas são materialmente responsáveis por serviços públicos essenciais, que não podem sofrer solução de continuidade.

Infelizmente, porém, o governo federal tem se notabilizado por fugir às suas responsabilidades federativas e por constranger o custeio dos direitos à saúde e à educação, quebrando a efetividade dos respectivos pisos, para reduzir sua participação proporcional, enquanto sobrecarrega estados e municípios.

[1] Dois exemplos da política pública de educação residem nos incisos XI e XII do art. 212-A da CF/1988, respectivamente relacionados à subvinculação de 70% do FUNDEB para o pagamento dos profissionais da educação básica em efetivo exercício e à garantia de piso salarial profissional nacional para os profissionais do magistério da educação básica pública. Na seara da saúde, são emblemáticos, embora distintos, os regimes jurídicos do piso salarial profissional nacional para os agentes comunitários de saúde e agentes de combate às endemias (Emenda Constitucional nº 120, de 5 de maio de 2022) e do piso salarial nacional dos profissionais de enfermagem (Emenda nº 124, de 14 de julho de 2022).

Fonte: Conjur

Repetição de indébito não deve seguir o rito dos precatórios

O STF (Supremo Tribunal Federal) jugou em agosto o RE 1.420.691, que se transformou no Tema 1.262, tendo sido fixada por unanimidade a seguinte tese: “Não se mostra admissível a restituição administrativa do indébito reconhecido na via judicial, sendo indispensável a observância do regime constitucional de precatórios, nos termos do artigo 100 da Constituição Federal”. O trâmite foi peculiar, pois na mesma sessão de julgamento foi reconhecida a repercussão geral e julgado o mérito, o que não é usual.

O caso foi relatado pela ministra Rosa Weber, revertendo o julgamento do TRF-3, que possui jurisprudência consolidada em sentido oposto, permitindo que se realize a repetição administrativa de indébito, reconhecido pela via judicial, sem a sistemática de precatórios. Na decisão foi mencionada a jurisprudência do STF a respeito e distinguido o Tema 1.262 do Tema 831, este relatado pelo ministro Fux prescrevendo que “o pagamento dos valores devidos pela Fazenda Pública entre a data da impetração do mandado de segurança e a efetiva implementação da ordem concessiva deve observar o regime de precatórios previsto no artigo 100 da Constituição Federal”.

A distinção se cinge ao fato de que no Tema 831/Fux se discutiu a possibilidade de restituição administrativa dos valores cobrados a maior nos cinco anos que antecederam a impetração de mandado de segurança, ao passo que no Tema 1.262/Weber, o debate se referiu ao necessário rito dos precatórios independentemente do tipo de ação interposto, impedindo a restituição administrativa dos valores reconhecidos como indevidos.

Não me parece que a solução encontrada pelo Tema 1.262/Weber tenha sido a melhor, em face de uma distinção básica: o sistema de precatórios foi criado para a realização de despesas públicas fruto de decisões judiciais, o que acarretou a criação de um procedimento para inserir previsão orçamentária específica para seu pagamento, isto é, o precatório.

No caso das repetições de indébito tributário a situação é diametralmente oposta, pois o dinheiro já havia ingressado nos cofres públicos, e a devolução não se caracteriza como uma despesa decorrente de ordem judicial, mas como o que realmente é: uma devolução de recursos que já haviam ingressado nos cofres públicos. Logo, não se trata de uma despesa, mas da devolução de recursos que não deviam ter sido recolhidos — daí a lógica da repetição de indébito, isto é, devolução de valores indevidamente carreados aos cofres públicos.

O limite de qualquer receita tributária é o Princípio da Estrita Legalidade, o que implica em dizer que deve ser devolvido tudo que tiver sido recolhido acima do limite legal estabelecido, pois inconstitucional. Logo, identificada cobrança a maior do que a legalmente devida, o Estado deve devolver aos contribuintes, sem maiores delongas, da forma menos onerosa possível, pois estes já foram apenados com o indevido recolhimento à margem da lei.

Se a decisão judicial for para ampliar o montante pago por uma desapropriação, ou pagar uma gratificação a servidor que a devesse ter recebido a seu tempo e modo, estaremos defronte a uma despesa, decorrente de ordem judicial, na qual cabe o sistema de precatórios. Sendo a decisão judicial para devolver tributo pago a maior, não cabe precatório, pois não se trata de despesa, mas de devolução, uma vez que o dinheiro ingressou irregularmente no Tesouro. Neste caso deveria até mesmo haver a imposição de multa pela conduta irregular do Fisco quando exigisse tributo indevido — claro que a multa se sujeitaria ao regime de precatórios, não o montante principal a ser devolvido.

É contra a lógica jurídica estabelecer o regime de precatórios para devolver o que foi recolhido a maior. Se fosse o caso de obrigar o Estado a pagar o que não pagou, a lógica precatorial seria plenamente adequada — mas não é o que ocorre nas repetições de indébito, que se referem à devolução do que foi pago à maior. Enfim, não se trata de despesa, mas de devolução.

É inadequada a lógica presente no Tema 831/Fux, pois coloca o rito processual do mandado de segurança acima do direito material.

Porém a situação se torna ainda pior no caso do Tema 1.262/Weber, pois aplica a dinâmica dos precatórios para toda e qualquer repetição de indébito tributário, seja qual for a via processual eleita. O prejuízo para a ordem jurídica é enorme.

Para tornar curta uma longa história, pode-se resumir a posição aqui exposta à seguinte afirmativa, quase que como uma Tese a ser discutida pelo STF: A sistemática de precatórios é indevida para a devolução de tributos que ingressaram nos cofres públicos à margem do Princípio da Estrita Legalidade, independentemente do meio processual utilizado para tanto.

Fonte: Conjur

PIS/Cofins e o crédito do frete na aquisição para o agronegócio

Na cadeia do agronegócio, muitos insumos utilizados no processo produtivo estão exonerados do PIS/Cofins, havendo casos de alíquota zero ou mesmo suspensão.

A discussão, ainda não pacificada, tendo idas e vindas, diz respeito à possibilidade ou não do crédito no regime não cumulativo do PIS e Cofins quanto ao serviço de transporte  frete  nas aquisições de insumos não tributados.

À luz da não cumulatividade prevista no texto constitucional (artigo 195, § 12) e concretizada em lei, a partir da previsão de direito ao crédito do insumo e também do frete (artigo 3º, II e IX, das Leis nº 10.637/2002 e 10.833/2003), é possível em nossa visão a tomada do crédito.

Uma inicial interpretação do artigo 3º, IX, da Lei nº 10.833/2003 poderá levar à equivocada afirmação de que inexiste crédito de frete na entrada de produtos (aquisição), mesmo que o ônus seja do adquirente, uma vez que o texto legal faz menção à venda.

Não há dúvida de que este posicionamento interpreta de forma isolada e literal o inciso IX, deixando de revelar a adequada amplitude do texto normativo.

A legislação deve ser interpretada de maneira sistemática, levando em consideração, portanto, todo o ordenamento jurídico, razão pela qual o inciso IX, forçosamente, há de ser analisado à luz da não-cumulatividade, bem como dos demais dispositivos da Lei nº 10.833/2003, sobretudo, incisos I e II do artigo 3º, expressamente mencionados pelo inciso IX.

Mais do que isso, a interpretação deve se atentar à finalidade do texto normativo, permitindo que este cumpra seu desiderato, sem contradição e incoerência.

Tais ponderações iniciais são relevantes para se afirmar que há plena viabilidade do crédito quanto ao pagamento do frete na aquisição, quando o adquirente assume o ônus, o que é incontroverso no caso concreto, inexistindo questionamento.

Isto porque: (1)  a interpretação há de ser feita à luz da não-cumulatividade; (2)  a legislação permite o crédito quando o frete estiver relacionado à venda de mercadorias ou aquisição de insumos; (3)  não existe previsão legal vedando o crédito de maneira que as restrições devem ser interpretadas de modo literal e estrito; (4)  existe explícita pretensão no texto normativo para se reconhecer, no regime não-cumulativo, o crédito para venda de mercadorias e insumos, seja na entrada ou saída; (5)  excluir o crédito de frete pelo simples fato de se alterar quem assume o ônus do serviço (vendedor ou adquirente) é uma interpretação incoerente, diante da finalidade da legislação; (6)  cabe analisar o contexto jurídico e fático, levando em consideração a complexidade da operação, eis que, a partir do transporte, indispensável à obtenção da mercadoria para venda ou insumo (bem ou serviço), permite-se a continuidade do processo produtivo por meio da revenda ou utilização para realizar um serviço ou elaborar um produto a ser comercializado.

O frete pago pelo adquirente na compra de mercadoria ou de insumos não deixa de ser um custo, de maneira que a avaliação de toda a operação e sua complexidade impõe o crédito em tais hipóteses, até mesmo como forma de concretizar verdadeiramente a não-cumulatividade.

Bem por isso, já decidiu o Superior Tribunal de Justiça que [1] “na apuração do valor do PIS/Cofins, permite-se o desconto de créditos calculados em relação ao frete também quando o veículo é adquirido da fábrica e transportado para a concessionária  adquirente  com o propósito de ser posteriormente revendido”.

Neste sentido, ainda, de longa data, temos julgamentos firmados pelo Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf):

CRÉDITO DA COFINS NÃO-CUMULATIVA. SERVIÇO DE FRETE NA AQUISIÇÃO DE INSUMO. POSSIBILIDADE. Como o custo com frete compõe o valor da despesa na aquisição de insumo, ele deve fazer parte do cálculo do crédito da Cofins não-cumulativa, nos termos do art. 3o, inciso II, da Lei nº 10.833/2003″ [2].

Para que seja possível o crédito do frete nas operações de aquisição (entrada), cumpre observar as seguintes condições: (1)  ser uma operação para aquisição de bens para (re)venda ou insumos (bens ou serviços) utilizados na prestação de serviços e na produção ou fabricação de bens ou produtos destinados à venda (no caso concreto a grãos, fertilizantes, entre outros  insumos da requerente); (2)  o pagamento deve ser assumido pelo adquirente; (3)  o serviço deve ser tributado; (4)  prestado por pessoa jurídica domiciliada no Brasil.

Deste modo, ficaria somente a discussão a respeito do crédito ser possível ou não pelo fato de que os insumos transportados não gerariam este direito de modo que o “acessório segue o principal”.

Em síntese: o frete acompanha a sorte do bem ou insumo para se constatar a viabilidade do crédito?

Acreditamos que não. A partir do momento que se nota a relevância e essencialidade do frete no processo produtivo do adquirente, por transportar bens para revenda ou insumos (hipótese em discussão no caso), tem-se a confirmação de que este serviço se caracteriza também como insumo, independentemente da forma de tributação do que se transporta.

Daí porque, cabe ao contribuinte, a partir desta constatação, verificar somente se o serviço realizado de transporte está sujeito ao pagamento de tais contribuições e, por conseguinte, apurar o montante do crédito nos moldes da legislação.

Bem por isso, o fato de a mercadoria ou insumo não ser tributada, ter alíquota reduzida ou majorada, ou suspensão, ou mesmo estar regido por situações de crédito presumido [3], não implica na impossibilidade do crédito ou mesmo alteração da apuração do montante [4].

Perante o Carf, o tema não é novo, sendo possível citar de forma exemplificativa recente decisão reconhecendo o direito ao crédito do frete, dada a sua natureza autônoma:

“FRETES COMPRAS PRODUTOS NÃO TRIBUTADOS. POSSIBILIDADE. Os fretes pagos na aquisição de produtos integram o custo dos referidos insumos e são apropriáveis no regime da não cumulatividade do PIS e da Cofins, ainda que o produto adquirido não tenha sido onerado pelas contribuições. Trata-se de operação autônoma, paga à transportadora, na sistemática de incidência da não-cumulatividade. Sendo os regimes de incidência distintos, do produto (combustível) e do frete (transporte), permanece o direito ao crédito referente ao frete pago” [5].

Por sua vez, também houve reconhecimento neste sentido pela Câmara Superior do Carf:

“CRÉDITOS. DESPESAS COM FRETE (AUTÔNOMO). NÃO CUMULATIVIDADE AQUISIÇÃO DE INSUMOS. ALÍQUOTA ZERO. SUSPENSÃO. POSSIBILIDADE, DESDE QUE NÃO HAJA VEDAÇÃO LEGAL. O inciso II do artigo 3o das Leis 10.637/2002 e 10.833/2003, que regem as contribuições não cumulativas, garante o direito ao crédito correspondente aos insumos, mas excetua expressamente a aquisição de bens ou serviços não sujeitos ao pagamento da contribuição (inciso II do § 2o do art. 3o). Tal exceção, contudo, não invalida o direito ao crédito referente ao frete pago pelo adquirente dos produtos sujeitos à alíquota zero ou com suspensão, desde que o frete tenha sido efetivamente onerado pelas contribuições, e que não haja vedação leal a tal tomada de crédito. Sendo os regimes de incidência distintos, do insumo adquirido e do frete a ele relacionado, permanece o direito ao crédito referente ao frete pago a pessoa jurídica, na situação aqui descrita” [6].

Portanto, há precedentes relevantes que reconhecem o direito ao crédito do frete em tais hipóteses.

Por fim, para não restar dúvida do direito ao crédito o próprio fisco chegou a explicitar este direito pela Instrução Normativa nº 2.121/2022, em seu artigo 176:

Art. 176. Para efeito do disposto nesta Subseção, consideram-se insumos, os bens ou serviços considerados essenciais ou relevantes para o processo de produção ou fabricação de bens destinados à venda ou de prestação de serviços (Lei nº 10.637, de 2002, art. 3º, caput, inciso II, com redação dada pela Lei nº 10.865, de 2004, art. 37; e Lei nº 10.833, de 2003, art. 3º, caput, inciso II, com redação dada pela Lei nº 10.865, de 2004, art. 21).

§ 1º. Consideram-se insumos, inclusive:

(…)

XVIII – frete e seguro relacionado à aquisição de bens considerados insumos que foram vendidos ao seu adquirente com suspensão, alíquota 0% (zero por cento) ou não incidência;  

XIX – frete e seguro relacionado à aquisição de máquinas, equipamentos e outros bens incorporados ao ativo imobilizado de que trata o inciso I do caput do art. 179 quando a receita de venda de tais bens forem beneficiadas com suspensão, alíquota 0% (zero por cento) ou não incidência;” 

Ora, esta prescrição do artigo 176, § 1º, XVII e XIX, da Instrução Normativa nº 2.121/2022, somente explícita um direito que já estava vigorando desde o advento do regime não cumulativo de PIS/Cofins.

Não se nega que houve a revogação (julho/2023) de referidos incisos, no entanto, como é cediço, a Instrução Normativa não cria, muito menos restringe, direitos, dada a necessidade de respeitar ao princípio/regra da legalidade. Bem por isso, somente explicita (declara) direitos existentes, de tal modo que a revogação em nada altera o direito ao crédito do frete na entrada, que já existia antes de referidas alterações, sendo somente uma confirmação.

Vejamos também precedente favorável citando a instrução normativa pelo Carf, por sua Câmara Superior:

“FRETES NA AQUISIÇÃO DE INSUMOS TRIBUTADOS COM ALÍQUOTA ZERO OU ADQUIRIDOS COM SUSPENSÃO DO PIS E DA COFINS. CREDITAMENTO. POSSIBILIDADE. IN RFB Nº. 2.121/2022. É possível o aproveitamento de créditos sobre os serviços de fretes utilizados na aquisição de insumos não onerados pelas contribuições ao PIS/COFINS. Inteligência do art. 176, XVIII, IN RFB nº. 2.121/2022” [7].

Em suma: há possibilidade do crédito de frete  serviço de transporte  nas aquisições de insumos sem tributação (alíquota zero, isenção, suspensão, não incidência).

[1] – STJ, REsp 1215773/RS, Rel. Ministro BENEDITO GONÇALVES, Rel. p/ Acórdão Ministro CESAR ASFOR ROCHA, PRIMEIRA SEÇÃO, julgado em 22/08/2012, DJe 18/09/2012.; Vale lembrar que antes deste precedente havia decidido o Superior Tribunal de Justiça que: O art. 3º, IX, da Lei 10.833/2003 restringe o creditamento ao frete na operação de venda de mercadoria, não contemplando o transporte da entrada dos produtos no estabelecimento industrial” (STJ, REsp 1237707/PR, Rel. Ministro HERMAN BENJAMIN, SEGUNDA TURMA, julgado em 22/03/2011, DJe 01/04/2011).

[2] – CARF, 3ª Seção, AC. 3401-001.896, 4ª Câmara, 1ª Turma, j. 18/07/2012. Cf. CARF, 3ª Seção, AC. 3301-00.980, 3ª Câmara, 1ª Turma, j. 07/07/2011; CARF, Ac. 3402-002.881, j. 28/01/2016.

[3] Por exemplo: arts. 8º e 9º da Lei n. 10.925/2004.

[4] Naturalmente, se advier alguma lei expressa em sentido contrário, daí em tese é possível a restrição ou modificação na apuração do crédito.

[5] – CARF, 3ª Seção, Ac. 3401-011.736, j. 27/06/2023. Cf. CARF, 3ª Seção, Ac. 3401-010.662, j. 27/09/2022.

[6] – CARF, CSRF, 3ª Seção, Ac. 9303-013.973, j. 12/04/2023. No mesmo sentido: “NÃO CUMULATIVIDADE. CRÉDITOS. FRETE NA AQUISIÇÃO DE INSUMOS TRIBUTADOS À ALÍQUOTA ZERO. POSSIBILIDADE. CONDIÇÕES. Os fretes de aquisição de insumos que tenham sido registrados de forma autônoma em relação ao bem adquirido, e submetidos a tributação (portanto, fretes que não tenham sido tributados à alíquota zero, suspensão, isenção ou submetidos a outra forma de não-oneração pelas contribuições) podem gerar créditos básicos da não cumulatividade, na mesma proporção do patamar tributado. No caso de crédito presumido, sendo o frete de aquisição registrado em conjunto com os insumos adquiridos, receberá o mesmo tratamento destes. No entanto, havendo registro autônomo e diferenciado, e tendo a operação de frete sido submetida à tributação, caberá o crédito presumido em relação ao bem adquirido, e o crédito básico em relação ao frete de aquisição, que também constitui “insumo”, e, portanto, permite a tomada de crédito (salvo nas hipóteses de vedação legal, como a referida no inciso II do § 2o do art. 3o da Lei 10.833/2003).”(CARF, CSRF, Ac. 9303-013.859, j. 16/03/2023); Cf. ainda: CARF, CSRF, Ac. 9303-013.669, j. 14/12/2022; CARF, CSRF, Ac. 9303-013.578, j. 18/11/2022.

[7] – CARF, CSRF, Ac. 9303-013.950, j. 12/04/2023.

Fonte: Conjur

Embargos de declaração — o patinho feio dos recursos

Volto ao apelo dos Três Amores. Para ganhar a atenção necessária para uma discussão aprofundada, talvez tenhamos que usar um truque, como na anedota sobre as reuniões do antigo partido comunista da URSS:

O clube de uma cidade do interior anunciou uma palestra de um alto dirigente do partido sobre o tema “O Povo e o Partido estão unidos”. Não apareceu ninguém. Uma semana mais tarde foi anunciada a conferência “3 tipos de Amor”. O salão superlotou. “— Existem três tipos de amor”, começou o camarada secretário-geral. “— O primeiro tipo é o amor patológico. Isto é ruim, e sobre este tema nem vale a pena falar. O segundo tipo é o amor normal. Este, todos conhecem e, portanto, também não vamos nos alongar neste assunto. Resta ainda o terceiro — o mais elevado tipo de amor — o amor do povo pelo partido. E é sobre isto que vamos discorrer mais detalhadamente”.

Como na anedota, poderia dizer que temos três tipos de amor (dos dois primeiros não vou falar, como disse o sujeito do partido) e o mais elevado tipo é o do papel da jurisdição em um país com pretensões democráticas. E como isso afeta o cotidiano dos cidadãos e dos advogados. “E é sobre isso que vou falar com mais detalhes”… como diria o secretário-geral do partido da pequena cidade soviética (atenção: isto é uma alegoria).

Já escrevi várias vezes sobre o patinho feio dos recursos, os embargos de declaração (homenageio aqui o advogado e professor Rodrigo Mazzei, que possui o melhor livro sobre embargos). Recebo queixas de advogados de todo o Brasil. Já disse aqui que estava procurando uma decisão de embargos em que o advogado teve o deferimento e o fundamento foi “livre convencimento”. Até agora não encontraram. Em compensação, o contrário é farto em evidências empíricas.

Lê-se na jurisprudência — e com apoio de setores da doutrina — que, no julgamento dos embargos de declaração, “o magistrado não é obrigado a se manifestar sobre todos os dispositivos invocados pelas partes quando resolve fundamentadamente a lide, expondo de maneira clara e precisa as razões que lhe formaram o convencimento“. Em muitas versões, em vez de convencimento lê-se “livre convencimento”. Quer dizer: não é obrigado a responder porque possui duas vezes o livre convencimento: para decidir e depois para dizer que não vai aceitar os embargos. Vou repetir: se não sou obrigado a responder, por qual motivo seria obrigado, depois, a dizer as razões pelas quais não respondi — e para tanto tenho jurisprudência dizendo que “o magistrado não é obrigado…”?

Outro tipo de decisão em embargos é: no nosso sistema processual, o juiz não está adstrito aos fundamentos legais apontados pelas partes. Exige-se, apenas, que a decisão seja fundamentada, aplicando o juiz, ao caso concreto, a solução por ele considerada pertinente, segundo o princípio do livre convencimento fundamentado do magistrado.

Esse tipo de “jurisprudência” viola os artigos 489 (CPC) e 315 (CPP), nos seis incisos. Isto é, não mais se pode dizer que se exige “apenas” que a decisão seja fundamentada. O CPC e o CPP exigem um tipo delineado de fundamentação. Começa o dispositivo dizendo: não será considerada fundamentada a decisão que… e vêm os seis incisos. Vou elencá-los:

§ 1º. Não se considera fundamentada qualquer decisão judicial, seja ela interlocutória, sentença ou acórdão, que:

I – Se limitar à indicação, à reprodução ou à paráfrase de ato normativo, sem explicar sua relação com a causa ou a questão decidida;

II – Empregar conceitos jurídicos indeterminados, sem explicar o motivo concreto de sua incidência no caso;

III – invocar motivos que se prestariam a justificar qualquer outra decisão;

IV – Não enfrentar todos os argumentos deduzidos no processo capazes de, em tese, infirmar a conclusão adotada pelo julgador;

V – Se limitar a invocar precedente ou enunciado de súmula, sem identificar seus fundamentos determinantes nem demonstrar que o caso sob julgamento se ajusta àqueles fundamentos;

VI – Deixar de seguir enunciado de súmula, jurisprudência ou precedente invocado pela parte, sem demonstrar a existência de distinção no caso em julgamento ou a superação do entendimento.

A boa doutrina deveria refletir: em face do artigo 93, IX, da Constituição, uma decisão omissa, por exemplo, deveria ser nula. Portanto, o artigo 1.022 deve ser lido em conjunto e em dependência dos artigos 489, parágrafo 1º e seus incisos. Os embargos seriam o primeiro modo de corrigir a violação dos fundamentos do dever de fundamentação que constam nos seis incisos. Por exemplo, se a decisão viola o inciso IV (falo apenas desse), é evidente que, de pronto, pode ser sanado o vicio via embargos, que terão, por consequência, efeitos infringentes. Ora, não enfrentar argumentos quer dizer omissão.

Outro: se o juiz invoca um precedente sem identificar a ratio (holding) e/ou demonstrar que o precedente tem relação com o caso em discussão, essa anomalia da decisão seria o quê? Segundo o inciso V, a decisão não está fundamentada. Mas ao mesmo tempo isso não corresponde a uma omissão, sanável via embargos? E assim por diante. Façam um exercício de aplicação.

Isso para começar a discussão.

Isto é: paradoxalmente o sistema “permite” decisões omissas (para falar só dessa questão) e, ao mesmo tempo, proíbe-as, ao sancionar com nulidade a omissão, bastando para ler o artigo 489 (qualquer inciso, mas especialmente os incisos I e IV): não se considerada fundamentada a decisão que…. Ora, não fundamentada quer dizer “nula”. Aliás, o artigo 93, IX, da CF, trata disso: fundamentação é um direito fundamental. Em tese, a negativa de embargos atinge o artigo 489 e, assim, se este for negado, ferido está o artigo 93, IX, da Constituição. Se andarmos por esse caminho talvez consigamos alterar esse quadro de desprezo aos embargos, o que quer dizer desprezo pelo dever de fundamentação — a contrario sensu, o direito fundamental à fundamentação que a parte possui.

Meu ponto: quando a fundamentação é exigência do direito positivo (está na lei e na CF), não deveríamos precisar do instituto “embargos”. Mas já que o temos, e é um bom “second best”, que ao menos fosse respeitado.

De sorte que os embargos viraram a “geni” do processo. Uma sentença por mais que seja omissa, dificilmente é consertada via embargos. Na maioria das decisões lê-se o que acima está transcrito. Ou coisas como “nada há a esclarecer” e/ou “a parte está pretendendo rediscutir a prova”. Ou estou exagerando?

Há uma posição (repetida em vários outros) em acordão assim: “Inexistente qualquer das hipóteses de embargos, não merecem acolhida embargos de declaração com nítido caráter infringente”. Mas sequer o que foi alegado nos embargos é discutido. Lendo o acórdão, não se sabe. E se o causídico fizer embargos sobre esses embargos, será multado.

Isso tem de ser enfrentado. Isso tem de ter fim.

Veja-se: se uma decisão é omissa ou contraditória, automaticamente ao ser consertada via embargos trará efeitos modificativos. É só lermos o artigo 489 do CPC e seu gêmeo 315 do CPP.

Veja-se a contradição interna do próprio acordão que critica “embargos com nítido caráter infringente”. Ora, embargos com efeitos infringentes são permitidos pela lei — e o acórdão esquece disso. No caso, se o acordão diz isso sem fundamentar nitidamente está incorrendo em uma contradição. Uma contradição lógica. Passível, paradoxalmente, de embargos.

Vou me repetir: a) o artigo 489 do CPC, espelhado no artigo 315 do CPP, diz que não estará fundamentada a decisão que… e seguem seis incisos; b) ora, se a fundamentação é deficitária, isso significa no mínimo uma omissão. No mínimo. Sanada, os efeitos infringentes são de consequência natural.

Outra vez: há uma ligação lógico-estrutural entre o artigo 1.022 e os artigos 489 (CPC) e 315 (CPP).

Outra coisa: de que modo o artigo 1.022 pode ser ignorado solenemente nos tribunais, a partir de precedente que proíbe o manejo contra decisão que inadmite REsp e RE nos tribunais?

Ademais, para além dessa ligação estrutural entre os artigos 1.022 e 489, temos o 926 do CPP, que exige que a jurisprudência seja íntegra e coerente (além de estável). Cumpridos tais dispositivos, nem precisaríamos de embargos. Mas quando temos dificuldade em fazer cumprir os próprios artigos 926 e 489, a coisa fica ainda mais difícil.

Há casos em que o apelante opôs embargos de declaração alegando ausência de manifestação expressa sobre os dispositivos legais que nortearam o acórdão proferido pelo Órgão Fracionário. O pior de tudo é que nem sequer o tal acórdão — nem no relatório nem no corpo — menciona quais foram os dispositivos alegados pelo embargante. E sabem por quê? Para que o acórdão possa ser repetido em recorta e cola, no melhor método “Ctrl+C e Ctrl+V”. Uma violação constante erga ommnes — um recorta e cola pronto para ser usado tabula rasa em outros casos.

Esse é um dos périplos enfrentados pela pobre e sofrida classe dos advogados de Pindorama. “Ganhar” embargos passou a ser uma bênção. Um favor real, tipo “Lord Chanceler”. Assim como é o caso dos Habeas Corpus nas instâncias superiores, que para ser concedidos (de ofício — sic) não devem ser conhecidos.

De fato, advocacia é para stoic mujic.

Mais: na medida em que, na maior parte das vezes, os embargos estão intimamente relacionados ao pré-questionamento, lá se foram as possibilidades recursais. Senhoras e senhores: estamos tratando de liberdades… e propriedades. Mais uma vez, isso mostra que “somos um milhão de advogados e dezenas de carreiras jurídicas… e fracassamos”. Porque nos omitimos.

E, atenção: muitas vezes, por se tratar, em segundo grau, de matéria exclusivamente de fato, as portas do REsp e RE estão fechadas (rediscussão de prova). O único caminho é dos embargos. Explico: o que fazer se a decisão estiver eivada de omissões e contradições? Nesses casos, os embargos são a última chance de consertar o erro judiciário. Claro que, no limite, se o órgão fracionário do tribunal proferir decisão deixando de apreciar o que foi alegado nos embargos, há precedente (não se sabe a dimensão de sua vinculatividade) que admite REsp sobre negativa de vigência-validade do artigo 1022 que dá direito aos embargos (v.g., 4ª. Turma do STJ, REsp 1.911.324, rel. min. Antônio Ferreira). Muito difícil, de todo modo. Nesse caso o recurso terá que ser uma obra de arte. O primeiro obstáculo será a decisão da vice-presidência do tribunal que inadmitirá o REsp. E poderá ser por meio de uma decisão eivada de omissões e contradições. Paradoxalmente, segundo os tribunais superiores, não cabem embargos (ver aqui) contra essa decisão — em clara violação do artigo 1.022. E o causídico poderá cair em um lopping hermenêutico.

Precisamos, portanto, falar sobre a jurisprudência defensiva predatória. Do contrário, o direito brasileiro não terá bom futuro. Cada dia reforça o realismo jurídico.

Os que militam no foro sabem do que falo.

Paradoxalmente, alguns acórdãos dizem: “o apelante deveria ter oposto embargos com efeito expressamente prequestionador” (só que, no caso referido acima, foi exatamente isso que fez o causídico!) ou “deveria ter interposto um recurso especial alegando violação do artigo 1022 do CPC”. Sem comentários.

O problema é que, ao contrário do que se usa dizer, o juiz e o tribunal têm, sim, o dever de responder a todas as alegações juridicamente relevantes articuladas pelas partes. Nem que seja para dizer que elas não são… juridicamente relevantes! E isso por uma questão de democracia.

O que é isto — a fundamentação? Como é possível que se considere normal que o Judiciário não precise enfrentar os argumentos das partes? Que seja para dizer que os argumentos são irrelevantes, ruins ou não prestam. O cidadão tem, no mínimo, um direito de saber por que seus argumentos não servem.

Os embargos de declaração não podem ser, sistemicamente, uma válvula de escape com feição tautológica: não fundamento porque não preciso e não explico a razão de não fundamentar.

Embargos são recursos muito importantes. Deveriam ser. E vai aqui minha sugestão: fazer uma interpretação sistêmico-estrutural entre os diversos dispositivos. Para que o sistema não fique contraditório ou paradoxal. Mais do que já está.

Post scriptum: quando a doutrina não se ajuda!

Leio nas redes um debate (ou reflexão ou discussão) sobre embargos. Fui verificar. E o expositor pergunta: “Quando analisadas todas as questões de fato pelo magistrado, e não obstante o livre convencimento motivado e a desnecessidade de fundamentação excessiva, ainda assim são cabíveis embargos de declaração pela ausência de debate acerca de algum fundamento jurídico trazido pela parte?”

Gostei demais do “não obstante” e da “desnecessidade de fundação excessiva“. O que seria isso tudo?

Como dizia Heidegger, o mensageiro já vem com a mensagem!

Cartas para a redação. Sou do tempo das missivas.

Fonte: Conjur