Súmula Carf sobre créditos extemporâneos: formalismo que prejudica o direito

O contencioso a respeito do PIS/Cofins está longe de se resolver. Nem mesmo a implementação da reforma tributária é uma promessa de que esse problema chegará ao fim, pois milhões de processos (administrativos e judiciais) existentes continuarão sendo objeto de discussão nos tribunais, como espólio da litigiosidade que gravita em torno dessas contribuições.

E muito disso se deve ao fato de que, a cada avanço normativo, surge uma nova interpretação administrativa que reabre batalhas. O mais recente capítulo envolve o aproveitamento dos chamados créditos extemporâneos [1] e a súmula recentemente aprovada pelo Carf [2] nos seguintes termos:

“O aproveitamento de créditos extemporâneos da contribuição para o PIS/Pasep e da Cofins exige a apresentação de DCTF e Dacon retificadores, comprovando os créditos e os saldos credores dos trimestres correspondentes”.

À primeira vista, pode parecer mais uma medida para a racionalização e celeridade de julgamentos, o que estaria em sintonia com a busca pela duração razoável dos processos administrativos federais que versem acerca de exigências tributárias [3]. Mas, no fundo, trata-se de algo mais grave: uma interpretação que, com a devida vênia, subverte a lei, esvazia a lógica da não cumulatividade e coloca a existência de uma obrigação acessória acima do direito material.

Tratamento normativo dos créditos extemporâneos

Os artigos 3º, § 4º das Leis nº 10.637/2002 e 10.833/2003 [4] são de clareza vítrea: o crédito não aproveitado em determinado mês pode sê-lo nos meses subsequentes. Nenhuma condição adicional, nenhum requisito de retificação, nenhum apego ao calendário fiscal. A lei é de uma objetividade elogiosa e realista ao admitir que a vida empresarial é complexa e que nem sempre o aproveitamento do crédito será tempestivo.

Embora a corrente predominante no Carf no âmbito das turmas ordinárias tenha entendimento massivo no sentido de que o direito material ao crédito independe da retificação das obrigações acessórias [5], no âmbito da CSRF a divisão interpretativa é clara, podendo ser dividida em duas correntes: uma posição que pode ser chamada de formalista e outra que pode ser cunhada como substancialista.

A corrente formalista, representada pelos acórdãos como 9303-007.510 [6], 9303-009.653 e 9303-009.738, sustenta que sem a retificação dos documentos fiscais correlatos (DCTF e Dacon) não há crédito válido.

Por sua vez, a corrente materialista, exemplarmente destacada nos acórdãos 9303-006.248 [7], 9303-008.635 e 9303-009.893, consagra aquilo que nos parece óbvio: a lei não condiciona o aproveitamento do crédito a esse tipo de burocracia ou, em outros termos, a legislação privilegia a substância em detrimento da forma [8].

A súmula aprovada, todavia, indevidamente sacramenta a primeira visão, de caráter formalista, o que redunda em um notório paradoxo, pois estamos diante de uma súmula que esvazia justamente o direito que a lei quis garantir.

Crítica à súmula aprovada pelo Carf

A exigência de retificação dos documentos fiscais exigida na súmula aqui criticada não é apenas um capricho. É, em verdade, uma distorção. Primeiro, porque desloca o foco da discussão: em vez de se debater se o crédito existe e se é legítimo, o que acaba sendo objeto de discussão é se o contribuinte cumpriu uma formalidade que a lei jamais impôs. Segundo, porque confere às obrigações acessórias — DCTF e Dacon — uma força que jamais tiveram: transformar-se em condição para a existência de um direito material, de índole constitucional.

Mais grave ainda: o Dacon já não existe. A exigência, portanto, é anacrônica, uma relíquia burocrática que a administração pública insiste em ressuscitar para negar créditos sob uma perspectiva formalista, o que, aliás, nos remete a seguinte pergunta: o que será da súmula quando aplicada a períodos posteriores à extinção dessa obrigação acessória? Nesse caso, a súmula será afastada por meio do distinguishing ou veremos aí o início de uma nova discussão quanto à aplicação equivocada de súmulas no âmbito da realização prática do Direito Tributário [9]?

Em suma: trata-se de um formalismo sem causa [10], que gera custo, litigiosidade e insegurança, sem entregar nenhuma contrapartida de justiça fiscal.

Para os contribuintes, a mensagem é clara: quem não tiver a disciplina de retificar cada obrigação acessória, mesmo que o crédito seja legítimo, corre o risco de perder o direito ao crédito. Não por ter descumprido a lei, mas por não ter atendido a uma forma não contemplada pela ordem jurídica.

Conclusões

Para fins puramente arrecadatórios, pode parecer um triunfo para a administração pública: mais autuações, mais glosas, mais créditos exigíveis no curtíssimo prazo. Mas, a médio e longo prazo, é um verdadeiro tiro no pé: a litigiosidade aumenta, os processos abarrotam o Carf e o Judiciário, e a previsibilidade do sistema tributário se esvai.

A não cumulatividade deveria ser um princípio de racionalidade, o que se afasta com a súmula recém aprovada pela CSRF. Ao impor a retificação de declarações como condição para o crédito, a súmula não apenas cria um requisito inexistente, mas também revoga, por via interpretativa, os artigos 3º, § 4º das Leis nº 10.637/2002 e 10.833/2003.

Com a aprovação desse enunciado, não teremos um avanço em segurança jurídica. Teremos um retrocesso: a consagração de um formalismo que prejudica o Direito e que resultará, seguramente, em um volumoso contencioso judicial tributário.


[1] O que já foi objeto de tratamento nessa coluna por Thais de Laurentiis e Maysa de Sá Pittondo Deligne em preciso texto (aqui).

[2] Por maioria de votos, vencidas as conselheiras Cynthia Elena Campos, Denise Madalena Green Tatiana Josefovicz Belisário.

[3] Essa busca por um processo célere não pode ser um fim em si mesmo, sob pena de outros valores próprios de uma atividade tipicamente prudencial, como é o caso da atividade julgadora exercida pelo CARF, serem deixados de lado, tudo em favor de uma indevida jurisdição “drive-thru”. Aprofundando essas críticas, inclusive promovendo uma macro comparação com os sistemas herdeiros do “common law”, destacamos: RIBEIRO, Diego Diniz. A rescisão da coisa julgada com base em precedentes do STF e do STJ: uma análise crítica no processo judicial tributárioSão Paulo: Noeses, 2024.

[4] Art. 3º Do valor apurado na forma do art. 2o a pessoa jurídica poderá descontar créditos calculados em relação a:
(…)
§4º O crédito não aproveitado em determinado mês poderá sê-lo nos meses subseqüentes.

[5] Vide Acórdãos 3302-013.823, 3402-012.254, 3301-013.421, 3201-006.671, 3201-01.593, 9303-008.635 e 9303-012.977.

[6] CRÉDITOS EXTEMPORÂNEOS. APROVEITAMENTO.
O aproveitamento de créditos extemporâneos de PIS não cumulativo está condicionado a apresentação dos Dacon retificadores dos respectivos trimestres, demonstrando os créditos e os saldos credores trimestrais, bem como das respectivas DCTF retificadoras.

[7] CRÉDITOS DA CONTRIBUIÇÃO NÃO CUMULATIVA. RESSARCIMENTO. CRÉDITOS EXTEMPORÂNEOS. PEDIDO DE RESSARCIMENTO. Na forma do art. 3º, § 4º, da Lei nº 10.833/2003, desde que respeitado o prazo de cinco anos a contar da aquisição do insumo, o crédito apurado não-cumulatividade do PIS e Cofins.

[8] Inclusive, para dar efetividade substancial ao princípio da não-cumulatividade no âmbito do PIS e da Cofins, princípio esse que apresenta guarida constitucional e, portanto, deve se sujeitar a uma hermenêutica que dê máxima efetividade a tal norma.

[9] Exatamente como já ocorrido em relação à aplicação da súmula Carf nº 11, o que foi denunciado por Carlos Augusto Daniel Neto em textos primorosos (aquiaqui e aqui) e cuja equivocada aplicação em matéria aduaneira foi felizmente corrigida pelo Superior Tribunal de Justiça, por meio de precedentes vinculantes formados no âmbito do REsp nº 2.147.578 e 2.147.583.

[10] É no mínimo paradoxal ver que o Carf, quando se trata de analisar planejamentos tributários e decidir acerca da manutenção ou não de débitos fiscais, acertadamente prestigia o propósito negocial e, em última ratio, a substância em detrimento da forma, mas ao tratar de créditos em favor do contribuinte, muda de posição e dá prevalência a uma racionalidade estritamente formalista em desfavor de uma posição substancialista.

Fonte: Conjur

O grande litigante da Justiça brasileira

Com quase 4,5 milhões de processos em tramitação, o Instituto Nacional do Seguro Social, o mal-amado INSS, é o maior litigante da Justiça brasileira. Melhor dizendo, é o ente mais demandado na Justiça brasileira, já que em 99% das causas em que está envolvido aparece no polo passivo. Se o INSS joga na defesa perante os tribunais, quem joga no ataque é o Fisco, o maior litigante no polo ativo, com cerca de 2,3 milhões de ações propostas em 2024.

Em 86% dos casos envolvendo a Previdência, os processos correm na Justiça Federal. A 1ª Região, que atende a estados do Centro-Oeste, Norte, e Nordeste mais o Distrito Federal, respondeu por 39% da demanda, seguida pela 5ª Região, que também atende a estados do Nordeste (19%). As demandas à Justiça questionam decisões do INSS sobre aposentadorias (30% dos casos), auxílio por incapacidade laboral (25%), benefícios assistenciais (15%), salário-maternidade (10%) e pensão por morte (5%). Outros 16% dos processos tratam de questões administrativas relacionadas à prestação destes benefícios.

A escalada de novas ações na Justiça foi progressiva. Em 2020, chegaram 1,8 milhão de demandas contra o INSS. Esse número já ultrapassava a casa dos 3,4 milhões em 2024 – aumento de 88,3% em quatro anos, de acordo com dados do Conselho Nacional de Justiça.

Por sua função social e o seu tamanho, faz sentido que a autarquia responda a uma montanha de processos: são mais de 40 milhões de beneficiários ativos que receberam R$ 877 bilhões em 2024, entre benefícios previdenciários (aqueles pagos aos segurados que contribuíram para fazer jus ao benefício) e benefícios assistenciais (concedidos àqueles em situação de vulnerabilidade social que não contribuíram com o INSS). E mais cerca de 60 milhões de contribuintes da Previdência Social, que aportaram em contribuições mais de R$ 670 bilhões em 2024.

Um bom motivo para tanta litigância está na legislação, em constante processo de mutação, quase sempre para complicar. Desde 1998, já ocorreram três reformas da previdência – uma no governo Fernando Henrique Cardoso, outra no Lula-1 e a terceira com Bolsonaro. E mais duas minirreformas, com Dilma e Temer. A primeira delas rende processos na Justiça até hoje, com a chamada revisão da vida toda.

E tem outras complicações. Uma poderia ser mal resumida numa palavra: perícia. Os milhões de pedidos de auxílio, como auxílio-doença ou auxílio-acidente, dependem de provas e de comprovação pericial. E o setor de perícias do INSS, além de ser responsável pelas imensas filas de atendimento, também produz controvérsias e contestações que, em boa parte, vão parar na Justiça.

Outra complicação é a corrupção. Com imensa ramificação, tanto de atividades como de agentes e clientes, a Previdência está longe de ter um controle qualificado sobre suas contas e os benefícios que distribui. Os escândalos e os golpes contra o instituto ou contra os segurados são recorrentes.

O último deles foi o de associações de aposentados fantasmas que cobravam contribuição de segurados sem autorização. O montante capturado a conta-gotas das aposentadorias e pensões de milhões de beneficiários passou dos R$ 6 bilhões. Para evitar que mais de nove milhões de ações sobrecarregassem ainda mais o Judiciário, um acordo interinstitucional foi homologado em julho de 2025 pelo Supremo Tribunal Federal para viabilizar, de forma extrajudicial, o ressarcimento dos aposentados e pensionistas afetados. A medida foi articulada por AGU, INSS, DPU, MPF e OAB e previu devolução integral dos valores, com atualização monetária. O cronograma de pagamento foi operacionalizado fora do processo judicial, com adesão voluntária dos beneficiários.

Em 2024, o INSS recebeu mais de 15 milhões de pedidos de benefícios, entre previdenciários e assistenciais. Desse total, o instituto concedeu sete milhões e indeferiu oito milhões. O beneficiário que teve o pedido recusado pode recorrer administrativamente para que o INSS reveja a decisão. Mas, se não tiver o pedido atendido, pode ir buscar seu direito na Justiça. Em 2024, cerca de quatro milhões das concessões de benefícios ocorreram por decisão administrativa do INSS e um milhão por decisão judicial.

Anuário da Justiça ouviu os atores envolvidos nesse sistema para entender as razões da litigiosidade. Dadas as circunstâncias, o presidente do INSS, Gilberto Waller Júnior, não chega a se surpreender com a elevada judicialização. E diz que o instituto está tomando providências para enfrentar o desafio.

Segundo ele, o INSS tem dialogado com as instituições do sistema de Justiça com vistas a resolver parte dos litígios de forma administrativa. “Se uma tese já se pacificou, estamos verificando o que podemos fazer internamente para absorvê-la e evitar novas demandas judiciais”, afirmou.

A dificuldade de internalizar precedentes qualificados é apontada como um entrave. Segundo a juíza auxiliar da Presidência do Conselho Nacional de Justiça, Lívia Peres, esse é um ponto sensível: “Nem sempre há a incorporação das teses na via administrativa”, pontuou. Ela diz que, desde 2018, o CNJ vem desenvolvendo projetos para melhor gerenciar os processos do INSS. Entre as iniciativas desenvolvidas está o PrevJud.

O sistema permite o envio automatizado de ordens judiciais ao INSS e a devolução estruturada de informações da autarquia. Com a automação, a expectativa é que o prazo de cumprimento das decisões seja reduzido de 20 dias para apenas uma hora.

Outra frente é a padronização dos critérios técnicos para a concessão de benefícios assistenciais a pessoas com deficiência. A proposta de criação de um instrumento único de avaliação biopsicossocial foi elaborada por um grupo de trabalho e aguarda deliberação final pelo colegiado do CNJ.

A natureza alimentar dos benefícios e o perfil vulnerável do público atendido justificam a atenção do CNJ ao tema. “Cada processo tem uma pessoa atrás de um benefício. Por isso, temos que ter cautela, porque uma negativa pode prejudicar a subsistência dela”, destacou Lívia Peres.

O CNJ também aposta na tecnologia para dar conta da demanda judicial por benefícios previdenciários decorrentes de incapacidade. Nesse sentido, a Resolução 595/2024 tornou obrigatório o uso do Sistema de Perícias Judiciais (Sisperjud) pelos tribunais. Destinado a peritos médicos judiciais, padroniza o formato das perícias.

A Advocacia-Geral da União também está na área. Diretora da Procuradoria Seccional Federal de Contencioso Previdenciário, Kedma Iara Ferreira explica que mais de 80% das ações judiciais acompanhadas pela AGU envolvem o INSS. A procuradora relata o caso do programa Pró-estratégia, que permitiu à AGU analisar, entre 2023 e 2025, cerca de 32 mil processos no Superior Tribunal de Justiça. Com isso, desistiu de recorrer em 12 mil casos, que tinham jurisprudência pacificada. Outra iniciativa, o Desjudicializa Prev, criado em parceria com o CNJ, faz a seleção de temas previdenciários com jurisprudência consolidada para subsidiar a celebração de acordos, abstenções ou mesmo desistências recursais. Até maio de 2025, mais de dez mil processos haviam sido encerrados com base nesse modelo.

Mais recentemente, a AGU lançou a plataforma Pacifica, voltada à autocomposição extrajudicial de litígios a partir do cruzamento de dados e normativos internos, evitando que o segurado acione a Justiça. Segundo informações do Painel INSS, do CNJ, um quarto dos processos envolvendo o INSS foi solucionado por meio da conciliação em 2024.

A AGU anunciou a criação da Coordenação de Prevenção de Litígios (CPL), com a missão de alinhar as práticas administrativas da autarquia com a atuação judicial da Procuradoria-Geral Federal. A coordenação vai atuar em três eixos: tratamento de focos de judicialização; aprimoramento da comunicação interinstitucional com INSS, PGF e Judiciário; e qualificação do processo administrativo com integração à defesa judicial. “A ideia é que as pessoas não precisem ir ao Judiciário porque demos uma resposta ágil para a demanda”, resume Kedma Iara Ferreira.

Na Defensoria Pública da União, o foco também está nas soluções extrajudiciais. A alta procura pelos serviços da instituição explica essa opção. De 2018 a 2025, o órgão fez quase quatro milhões de atendimentos na área previdenciária. Desse total, cerca de 245 mil viraram ações judiciais. “Benefícios de Prestação Continuada, os BPCs, são os principais atendimentos da DPU”, contou a defensora pública Patrícia Bettin Chaves, coordenadora da Câmara Previdenciária.

A DPU também tem buscado solucionar problemas estruturais a partir do diálogo. Um exemplo é o grupo interinstitucional integrado por Ministério Público Federal, Tribunal de Contas da União, Controladoria-Geral da União, INSS e AGU, que se reúne a cada dois meses para debater o atendimento à população na área previdenciária e assistencial.

A iniciativa tem permitido soluções sem judicializar, como o acordo que permitiu o uso de registro nacional migratório por estrangeiros como alternativa à biometria obrigatória e a gratuidade nas ligações feitas para o número 135. Outro avanço foi o acordo de cooperação assinado com o INSS que permite à DPU requerer benefícios para seus assistidos diretamente nos sistemas administrativos da autarquia.

O presidente do INSS, Gilberto Waller Júnior, reconhece que a digitalização ampla não resolveu os problemas de acesso à autarquia. “O INSS foi muito para o digital, mas isso não facilitou o atendimento ao nosso segurado, que tem um perfil diferente, que precisa de contato presencial”, disse. E prometeu investimentos para a reabertura de agências.

Fonte: Conjur

O princípio tributário da defesa do meio ambiente

Uma das grandes protagonistas da reforma tributária foi a defesa do meio ambiente. Embora esse tema tenha aparecido em diversos dispositivos, o foco deste texto será o princípio da defesa do meio ambiente incluído no § 3º do artigo 145 da Constituição pela Emenda Constitucional nº 132.

Esse § 3º traz, segundo vemos, dois grandes desafios interpretativos: determinar a ordem de precedência entre os princípios ali previstos explicitamente e os outros princípios constitucionais tributários implícitos e, uma vez que simplicidade, cooperação, transparência, justiça tributária e defesa do meio ambiente já eram princípios constitucionais implícitos, estabelecer se a sua positivação expressa trouxe alguma modificação em sua eficácia. Vejamos.

Relação entre princípios explícitos e implícitos

 A questionável decisão do Poder Legislativo de incluir o § 3º no artigo 145 da CF traz a incômoda questão sobre a relação destes princípios com outros que seguem implícitos no texto constitucional.

O caso mais evidente é o do princípio da segurança jurídica, certamente um dos pilares do Sistema Tributário Nacional, que segue sendo inferido da CF pela via interpretativa, sem ter, contudo, expressão verbal explícita.

De outra parte, há que se lidar com a própria redação do § 3º do artigo 145, que estabelece que o Sistema Tributário Nacional deve observar os princípios ali apontados, numa redação mais típica das regras do que dos princípios.

A grande questão que se coloca é: este dispositivo, ao listar os princípios que devem ser observados pelo Sistema Tributário Nacional, criou uma ordem de precedência entre princípios? Por exemplo, na hipótese de colisão, é possível sustentar que a justiça tributária tem um peso maior do que a segurança jurídica?

Tendo refletido bastante sobre o tema, parece-me que sim, que este dispositivo estabelece justamente uma ordem de precedência entre princípios de modo que, diante de uma situação concreta em que seja necessária uma ponderação entre justiça tributária e segurança jurídica, por exemplo, deve ser dada prevalência à primeira.

Naturalmente, isso não significa a derrotabilidade de regras constitucionais de segurança, como a legalidade, a anterioridade e a irretroatividade, diante de argumentos de justiça fiscal. Esses direitos fundamentais do contribuinte, estando previstos na Constituição Federal, não podem ser derrogados pelo legislador infraconstitucional e o julgador com base em argumentos de justiça.

Contudo, na hipótese de uma colisão em um caso difícil no qual se faça necessária a ponderação entre valores, princípios e interesses constitucionais, cremos que o § 3º do artigo 145 deva ser interpretado como estabelecendo uma ordem de precedência.

Parece-nos que esta conclusão aplica-se com ainda mais força ao princípio da defesa do meio ambiente. Como veremos adiante, a CF já tinha um sistema de proteção do meio ambiente bastante sólido. Assim sendo, cremos que a explicação da inclusão deste princípio no § 3º do artigo 145 só se justifica pela pretensão de atribuir-lhe uma normatividade distinta da que possuía até a entrada em vigor da EC 132. É o que passamos a analisar.

Defesa do meio ambiente antes e depois da EC 132

Como apontamos, a CF já era pródiga em dispositivos sobre a proteção do meio ambiente, tendo como pilar principal o artigo 225, segundo o qual “todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações”.

A seu turno, o inciso VI do artigo 170 já previa a defesa do meio ambiente como princípio geral da ordem econômica, estabelecendo que “a ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios: […]” da “defesa do meio ambiente, inclusive mediante tratamento diferenciado conforme o impacto ambiental dos produtos e serviços e de seus processos de elaboração e prestação”.

A defesa do meio ambiente aparece em diversos outros dispositivos constitucionais, podendo-se citar, por exemplo, o artigo 5º, LXXIII (ação popular para anular ato lesivo ao meio ambiente), artigo 23, incisos VI e VII (competências comuns da União, estados e municípios para proteger o meio ambiente, combater a poluição e preservar florestas, a fauna e a flora), artigo 24, incisos VI, VII e VIII (competência concorrente para legislar sobre florestas, conservação da natureza, defesa do solo, proteção ao meio ambiente e controle da poluição), artigo 129, III (atribui ao Ministério Público a função de promover o inquérito civil e a ação civil pública para proteção do meio ambiente); artigo 174, § 3º (função do Estado no planejamento e controle ambiental das atividades garimpeiras), artigo 186, II (condiciona o cumprimento da função social da propriedade rural à utilização adequada dos recursos naturais e preservação do meio ambiente); artigo 200, VIII (atribui ao SUS a competência para colaborar na proteção do meio ambiente); artigo 216, V (inclui os conjuntos urbanos e sítios de valor paisagístico e ecológico no patrimônio cultural brasileiro).

Fica claro, portanto, que a relevância da defesa do meio ambiente como valor e princípio constitucional não decorre da EC 132, pois está expressamente prevista em diversos dispositivos constitucionais.

Essa consagração da defesa do meio ambiente no texto constitucional anterior à EC 132 a tornou um elemento de discriminação relevante para fins tributários.

Com efeito, sabe-se que a questão central do princípio da isonomia está em se estabelecer critérios para separar discriminações constitucionalmente legítimas de diferenciações inconstitucionais. Já que as pessoas são diferentes, o papel da isonomia não está em igualar formalmente os desiguais, mas em se estabelecer os critérios de discriminação que são compatíveis com a CF.

Nesse sentido, a defesa do meio ambiente sempre foi um critério de diferenciação legítimo em matéria tributária. Por exemplo, a concessão de um benefício fiscal para uma atividade que contribua para um meio ambiente equilibrado já era compatível com o princípio da isonomia antes da EC 132.

Segundo vemos, e em linha com o que afirmamos acima, não nos parece razoável defender que a determinação, no § 3º do artigo 145, de que o Sistema Tributário Nacional observe a defesa do meio ambiente teria mera função simbólica, reforçando a relevância que o tema já tinha no texto constitucional anterior.

Dessa forma, a previsão explícita da defesa do meio ambiente como princípio vetor do Sistema Tributário Nacional lhe atribuiria uma prevalência em uma hipótese de colisão, reduzindo, ainda, o ônus argumentativo para o estabelecimento de discriminações tributárias com fundamento na defesa do meio ambiente. Esta seria, então, a função do § 3º do artigo 145 da CF, transformar a defesa do meio ambiente de um critério que poderia ser levado em conta pelo legislador tributário em um critério que deve ser considerado pelo legislador tributário.

Essa conclusão, no entanto, não resolve uma das principais colisões potenciais do princípio da defesa do meio ambiente, o seu conflito com o princípio da capacidade contributiva.

Colisão entre defesa do meio ambiente e capacidade contributiva

Um dos aspectos mais complexos da extrafiscalidade tributária é a potencial colisão de valores, princípios e interesses constitucionalmente relevantes com o princípio da capacidade contributiva. Com efeito, é comum que a utilização indutora dos tributos resulte na criação de benefícios fiscais para pessoas, físicas ou jurídicas, que teriam capacidade contribuitiva para pagar seus tributos como os demais contribuintes.

Um exemplo claro desta situação temos na lei que rege o IPVA no Estado do Rio de Janeiro. Desde 1 de janeiro de 2016, a lei do IPVA fluminense estabelece alíquota de 1,5% para veículos híbridos (com ao menos um motor cuja fonte de energia seja elétrica) e de 0,5% para veículos com propulsão exclusivamente elétrica. Veja-se a redação dos incisos VI-A e VII  do artigo 10 da Lei nº 2.877/1997:

“Art. 10. A alíquota do imposto é de: […]
VI-A – 1,5% (um e meio por cento) para veículos que utilizem gás natural ou veículos híbridos que possuem mais de um motor de propulsão, usando cada um seu tipo de energia para funcionamento sendo que a fonte energética de um dos motores seja a energia elétrica;
(Inciso VI-A do art. 10 acrescentado pela Lei nº 7.068/2015 , vigente a partir de 02.10.2015, com efeitos a contar de 01.01.2016)
VII – 0,5% (meio por cento) para veículos que utilizem motor de propulsão especificado de fábrica para funcionar, exclusivamente, com energia elétrica;
(Inciso VII do art. 10 alterada pela Lei nº 7.068/2015 , vigente a partir de 02.10.2015, com efeitos a contar de 01.01.2016)”

Não pretendemos debater aqui se os veículos elétricos são realmente mais vantajosos para a defesa do meio ambiente do que os veículos a combustão, uma vez que não parece haver um plano, por exemplo, para o que será feito com todas essas baterias no longo prazo. Ou seja, veículos elétricos certamente são mais sustentáveis no seu uso, mas geram a necessidade de mineração dos insumos necessários para as baterias e impõem o debate sobre seu descarte.

Contudo, esta não é a questão que nos desafia. Imaginemos, por exemplo, um carro elétrico de uma montadora de veículos de luxo que custe em torno de R$ 1 milhão de reais. Sem dúvida estamos diante de um bem destinado ao topo da pirâmide de distribuição de renda no Brasil, que, segundo vemos, não requer gasto tributário para suportar suas decisões de consumo.

Uma isenção como a concedida pelo Estado do Rio de Janeiro, se está – e vamos assumir que esteja – fundamentada na defesa do meio ambiente, ao não estabelecer um teto para a sua aplicação, confronta diretamente com o princípio da capacidade contributiva, fazendo com que proprietários de carros de luxo paguem um IPVA mais baixo do que aqueles que têm carros substancialmente mais baratos.

Caso esse conflito fosse com outro princípio, segundo a premissa que estabelecemos acima, a questão poderia ser solucionada alegando-se uma precedência do princípio da defesa do meio ambiente. Entretanto, o grande desafio desta situação é que o artigo 145, § 3º, também destacou o princípio da justiça tributária como um princípio que deve ser observado pelo Sistema Tributário Nacional. E agora?

É possível sustentar que, em casos em que presente de forma inequívoca a defesa do meio ambiente como fundamento da regra, seria uma opção do legislador infraconstitucional eventualmente optar pela prevalência da defesa do meio ambiente sobre a capacidade contributiva, ou vice-versa. Contudo, a defesa do meio ambiente tem que efetivamente estar presente.

Pensemos por um instante sobre o caso do IPVA do Rio de Janeiro. Em termos estatísticos, carros de alto luxo compõem um percentual pequeno da frota de veículos nas ruas e estradas fluminenses. Consequentemente, mesmo que à primeira vista o argumento da defesa do meio ambiente possa ser utilizado para justificar uma redução do IPVA independentemente do valor do veículo, uma consideração da realidade que se quer afetar com a indução normativa indica que este benefício fiscal, ao beneficiar o topo da pirâmide de renda mesmo tendo um efeito ambiental insignificante, gera uma quebra do princípio da capacidade contributiva sem gerar um efeito positivo significativo para a defesa do meio ambiente.

Nessa linha de ideias, a ponderação entre capacidade contributiva e defesa do meio ambiente deve considerar se, em concreto, uma eventual desoneração está criando um privilégio ao estabelecer um tratamento fiscal mais favorável sem que exista uma contrapartida na realização da defesa do meio ambiente. Dessa forma, segundo vemos, leis como esta do estado do Rio de Janeiro seriam inconstitucionais, não sendo a alegação de defesa do meio ambiente suficiente para derrotar a justiça tributária materializada na tributação segundo a capacidade contributiva.

Eficácia da defesa do meio ambiente no tempo

 Segundo sustentamos acima, a defesa do meio ambiente, tornada princípio do Sistema Tributário Nacional pela EC 132, tem uma eficácia distinta, no campo tributário, do princípio constitucional geral de defesa do meio ambiente que já existia no texto constitucional. Esta conclusão gera um outro aspecto a considerar: a eficácia do princípio da defesa do meio ambiente no tempo.

Com efeito, parece-nos que, salvo a tributação com base na capacidade contributiva, que pode derrotar a defesa do meio ambiente – juntamente com os outros princípios previstos no § 3º –, a CF agora atribui uma precedência da defesa do meio ambiente sobre outros valores, princípios e interesses constitucionais.

Por exemplo, imaginemos um benefício fiscal concedido com a finalidade extrafiscal de gerar de empregos, mas destinado a uma atividade econômica poluidora. Cremos haver fortes argumentos para sustentar que, sendo um princípio que deve ser observado pelo Sistema Tributário Nacional, a precedência da defesa do meio ambiente prevaleceria sobre finalidades extrafiscais de ordem econômica.

Esta conclusão impõe estabelecer se a eficácia do princípio da defesa do meio ambiente irradia seus efeitos apenas após a entrada em vigor da EC 132, ou se tal princípio será aplicado de forma retroativa. Este debate se torna ainda mais complexo uma vez que, conforme destacamos, é inquestionável que já havia um princípio constitucional geral da defesa do meio ambiente antes da EC 132.

Cremos que a solução para esta questão deve preservar o princípio da defesa do meio ambiente que existia antes da EC 132, reconhecendo, por outro lado, que a sua prevalência e precedência sobre outros valores, princípios e interesses somente se instaurou após a EC 132. Dessa forma, nossa posição é no sentido de que, naquilo que o princípio tributário da defesa do meio ambiente difere do princípio constitucional geral da defesa do meio ambiente, sua eficácia deve se dar a partir de 21 de dezembro de 2023.

Conclusão

O objetivo deste texto foi mais provocar algumas reflexões sobre o princípio da defesa do meio ambiente do que oferecer conclusões definitivas sobre o tema. De modo geral, ainda temos muito o que refletir sobre esses “novos” princípios tributários, seus efeitos e a sua interação com outros princípios implícitos no texto constitucional. Por mais que todos os princípios listados no artigo 145, § 3º, da CF já estivessem previstos, implícita ou explicitamente em dispositivos constitucionais, cremos que a sua previsão expressa no capítulo do Sistema Tributário Nacional não parece ter sido meramente simbólica e nos provoca a determinar o que mudou com a entrada em vigor da EC 132.

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O que faz uma boa cláusula de renegociação?

Como escrever uma cláusula de renegociação adequada em contratos empresariais? Em texto anterior nesta coluna (aqui), vimos que cláusulas vagas ou abertas podem ser estratégicas: elas facilitam que os contratantes aloquem riscos desconhecidos entre si. No texto de hoje, dividido em duas partes, daremos alguns passos atrás.

Na prática negocial, é comum observar dois arquétipos de cláusulas de renegociação: alguns contratos usam termos vagos para definir os pressupostos revisionais; outros apostam em textos fechados, delimitando os riscos que a cláusula abrange ou excluindo tantos outros.

Esse jogo entre linguagem precisa e vaga não é fortuito: ele espelha uma lógica na redação de contratos duradouros. Vamos entender as vantagens e as desvantagens comparativas desses estilos, segundo dois enfoques.

Primeiro enfoque: equilibrar certeza e flexibilidade nos contratos

Quando surgiram nos anos 1970, cláusulas de renegociação eram bem simples. No comércio internacional, isso se traduzia nas fórmulas abertas que as cláusulas de hardship empregavam para descrever seus riscos, e que persistem até hoje: as partes se obrigam a renegociar diante de “variações muito importantes na conjuntura econômica”; “circunstâncias fora das previsões normais das partes”; “um evento econômico ou financeiro grave”. Alguns contratos são mais vagos ainda: tratam de “eventos imprevisíveis”, “fatos imprevistos” ou “causas fora do controle das partes” [1].

Com o tempo, certas cláusulas passaram a usar linguagem mais precisa, fixando desde logo no instrumento os riscos que autorizam renegociações. Exemplos: “se a produção de aço proveniente de fontes de hematita atingir 20% da produção total da siderúrgica”, “no caso da aplicação de novos direitos de importação ou exportação”, ou se surgir “uma nova fonte economicamente disponível de produtos.” [2]

Cláusulas específicas servem para dar certeza às relações negociais. Ao definir seu suporte fático de maneira precisa, elas têm a vantagem de serem mais claras. As partes acreditam que, na média, um julgador hipotético irá aplicar o texto do contrato tal como ele está escrito. Essa clareza estabiliza as expectativas dos contratantes: eles conseguem se planejar e adequar seu comportamento ao que o negócio estipula. Se um risco se materializa, a margem para dúvidas interpretativas é menor – reforçando a confiança de que o que está escrito, vale. No exemplo anterior da siderúrgica, ela sabe que a renegociação só é contratualmente exigível se a produção da fonte de hematita chegar a 20% de entrega total (não 19%, nem 21%), o que é guia mais certo para organizar o empreendimento do que discutir se a produção se tornou “muito onerosa” ou “economicamente inviável”.

O problema está nas situações limítrofes. Haverá cenários em que o objetivo subjacente à cláusula faz sentido, mas ela não incide — ao menos não textualmente. Ou, do contrário, casos em que a cláusula deve ser aplicada porque seu suporte fático se verifica, por mais que o resultado dessa aplicação divirja da justificativa por trás dela. Na teoria do Direito isso se chama de superinclusão e subinclusão das regras jurídicas [3]. Uma cláusula de hardship específica — às vezes muito específica — dirá mais e dirá menos do que as partes gostariam se tivessem antevisto algum cenário diferente.

Imagine uma cláusula definindo que o contrato de fornecimento será renegociado se, por força de qualquer causa imprevisível, os custos anuais para produzir o bem excederem em 50% a receita anual com a venda. E se custo e receita ficarem iguais? E se excederem em 45%? O prejudicado argumentaria que esse cenário não é “comercialmente razoável” — afinal, a empresa por definição visa ao lucro. Se a cláusula fosse vaga, a chance de a tese vingar seria melhor. Não é o que decorre da cláusula cujo suporte fático é uma porcentagem objetiva, ao menos não sem boa dose de esforço interpretativo para modular seu texto claro. Ela é subinclusiva nesse exemplo. É o risco que os contratantes assumem nesse tipo de suporte fático: eles se vinculam a renegociar só em hipóteses muito delimitadas — que podem nem sempre ser as melhores —, presumindo-se que para todas as outras vale a intangibilidade do contrato. A certeza do contrato vem ao preço de maior rigidez.

É aí que entram em cena os termos abertos: “desequilíbrio grave”; “razoabilidade comercial” e similares. Por um lado, essas diretrizes são pouco claras ex ante, pois em tese admitem várias leituras plausíveis — o que as torna menos úteis para orientar o comportamento das partes prospectivamente. Sua contraface positiva é que permanecem flexíveis ao longo do tempo: o instrumento será interpretado e reinterpretado para se amoldar às novas circunstâncias, muitas delas imprevisíveis no momento da assinatura.

Cláusulas vagas convidam as partes e o julgador a esse tipo de raciocínio casuístico, em que diferentes fatores devem ser sopesados para decidir cada caso concreto. Mas claro: se as partes desejam se socorrer de um intérprete neutro caso a renegociação direta fracasse — juiz, árbitro, mediador —, é necessário fixar um conteúdo mínimo para a revisão. Do contrário, corre-se o risco de a cláusula, de tão vaga, ser considerada inexequível numa disputa jurídica, como já concluiu o Tribunal de Justiça de São Paulo [4].

Segundo enfoque: alocar poder decisório sobre o conteúdo da cláusula

Avancemos ao segundo enfoque. Optar entre linguagem precisa e vaga serve também para alocar poder decisório sobre o conteúdo contratual. Vista sob esse ângulo, a questão é quem dá conteúdo concreto à cláusula de renegociação e quando essa decisão é tomada. Cláusulas precisas traduzem o esforço das partes em fixar, elas próprias, o conteúdo de suas obrigações no presente, isto é, ao celebrarem o acordo (ex ante).

Termos abertos relegam parcela menor ou maior dessa escolha ao futuro, confiando na discricionariedade do intérprete — que a exercerá só se e quando o risco se materializar. O texto da cláusula amplia ou restringe essa liberdade interpretativa dependendo daquilo que ele fixa no presente e daquilo que deixa vago para ser complementado depois.

A chance de uma decisão contrária ao que as partes gostariam existe, mas a técnica é útil quando é impossível traçar solução exata para vários estados de mundo com chances desconhecidas de ocorrer. Ao invés de antecipar e decidir um sem-número de estados de coisas futuros, pode fazer mais sentido deixar o contrato vago ou lacunoso para debater só sobre os riscos que de fato se concretizem.

A vantagem aí é que a incerteza se dissipou: as partes então se concentram em solucionar o problema com o benefício da visão retrospectiva (ex post). Por outro lado, a confiança exigida nesse contexto é alta. Uma coisa é traçar soluções para o desequilíbrio eventual no momento da assinatura, quando as partes acreditam na parceria que virá. Outra, mais difícil, é debater termos vagos depois que o conflito se instalou e os interesses de cada um são opostos. Cada parte defenderá que a interpretação que a beneficia no caso concreto é “a melhor”, “a correta” — sem que o contrato ampare explicitamente nenhuma. No limite, o julgador será provocado para solucionar impasses.

Um julgado do TJ-SP ilustra como isso funciona [5]. As partes discutiam o índice inflacionário para corrigir o valor das parcelas do preço em contrato de promessa de compra e venda de imóvel. A regra do contrato era o reajuste anual pelo IGP-M. O instrumento ressalvava que “atos governamentais”, “mudanças de padrão monetário”, “extinção ou congelamento de índice de correção monetária” ou “outro artifício não condizente com a real inflação” poderiam descolar o índice da inflação real em certo período. Nessas situações, a mesma cláusula estipulava — de modo abrangente — que “o saldo devedor do preço deste negócio jurídico será revisto de forma que se restabeleça o […] equilíbrio econômico-financeiro do contrato”.

Com a pandemia em 2020, o IGP-M aumentou mais do que a inflação real no Brasil medida por outros índices setoriais, em boa parte porque ele considera oscilações do dólar. Em princípio, o contrato não previu essa situação — ao menos não de maneira expressa. O TJ-SP, porém, se valeu do texto aberto do final da cláusula — “restabelecer o equilíbrio” — e entendeu ser “razoável, […] que se aplique também a cláusula para fins da situação inversa, qual seja, a de o indexador eleito pelas partes superar em muito a inflação do período […]”. O tribunal substituiu o IGP-M pelo INPC.

Esse caso ilustra o uso do contrato para que o julgador crie soluções que as partes não previram ao assiná-lo. O contraponto é que, no geral, sempre haverá mais de uma resposta correta dentro da moldura da cláusula. Veja-se: alguém poderia questionar por que o Tribunal aplicou o INPC em vez do IPCA ou de outra fórmula qualquer. Contratantes que optam por termos vagos devem estar cientes de que algum grau de subjetividade decisória é inafastável. Mas devem também confiar nela: frente a imprevistos, é melhor ter alguma resposta do que ficar sem nenhuma.

Conclusão

Neste breve texto, vimos que o primeiro caminho para construir uma boa cláusula de renegociação é entender a dinâmica entre usar linguagem precisa e termos vagos no instrumento. Além de ajudar redatores de contratos empresariais, o ponto tem relevância hermenêutica: em sentido amplo, essas estratégias formam o que se pode chamar de “racionalidade econômica” de contratantes empresários (artigo 113, §1º, V, Código Civil).

Na próxima etapa dessa análise, discutiremos como uma cláusula de renegociação mais sofisticada pode mesclar criativamente linguagem específica e aberta em um só texto — usando como base da reflexão duas cláusulas-modelo da Câmara de Comércio Internacional (CCI).

____________________________

[1] FONTAINE, Marcel; DE LY, Filip. Drafting International Contracts: An Analysis of Contract Clauses. Nova Iorque: Transnational Publishers, 2006. p. 463

[2] FONTAINE, Marcel; DE LY, Filip. Drafting… cit., p. 466-467.

[3] SCHAUER, Frederick F. Thinking like a lawyer: a new introduction to legal reasoning. Cambridge, Mass: Harvard University Press, 2009. p. 188-202.

[4] “Se a ideia era erigir algo semelhante a uma cláusula de hardship, que estabelecesse valores menores de multa, ou mesmo sua inexigibilidade, na hipótese de queda de arrecadação, era fundamental que as partes tivessem fixado parâmetros objetivos no próprio acordo para que isso pudesse ser efetivado. Todavia, na forma como foi redigida a cláusula, em termos absolutamente genéricos, sem a fixação de qualquer critério objetivo para a redução da multa, inviável extrair qualquer consequência jurídica de seu conteúdo, a não ser a necessidade de as partes entabularem novas negociações, o que foi cumprido” (TJ-SP, Agravo Regimental Cível n.º 2010463-11.2016.8.26.0000/50001, Órgão Especial, Rel. Des. Pereira Calças, j. 27.02.2019).

[5] TJ-SP, Agravo de Instrumento n.º 2175864-86.2021.8.26.0000, Rel. Des. Francisco Loureiro, 1ª Câmara de Direito Privado, j. 30.08.2021, DJe 09.09.2021.

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PEC aprovada privilegia estados e municípios em detrimento dos credores de precatórios

Aprovada em segundo turno pelo Senado nesta terça-feira (2/9), a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 66/2023 vem sendo amplamente criticada pela advocacia por promover um calote nos precatórios dos municípios e estados. A norma, que limita esses pagamentos e acaba com o prazo para sua quitação, tem previsão de promulgação na próxima terça (9/9).

A principal crítica está relacionada aos prejuízos para os credores de precatórios estaduais e municipais, que já sofriam com os atrasos constantes nos pagamentos e agora ficarão sem qualquer previsão de receber os valores aos quais têm direito por decisões judiciais. Especialistas no assunto avaliam que a PEC busca apenas beneficiar o Estado no curto prazo.

O texto restringe os pagamentos dos precatórios dos estados e municípios a diferentes percentuais da receita corrente líquida (RCL), que variam conforme a razão entre o estoque de precatórios atrasados e a RCL. A proposta também retira qualquer limite de tempo para a quitação desse estoque.

A PEC reduz os valores que hoje são pagos pelos estados e municípios. O percentual da RCL que, conforme a proposta, deve ser depositado para o pagamento de precatórios varia de 1% a 5%. Esta última porcentagem ficaria apenas para situações em que o estoque de dívidas judiciais ultrapassa 80% da RCL.

Críticas de advogados

O Conselho Federal da OAB já informou que contestará a medida no STF logo após a promulgação. De acordo com o presidente da entidade, Beto Simonetti, “essa PEC viola frontalmente a Constituição, compromete a autoridade do Poder Judiciário e institucionaliza o inadimplemento do Estado com seus próprios cidadãos”.

Segundo Marcus Vinícius Furtado Coêlho, ex-presidente nacional da OAB e hoje membro honorário vitalício, “o calote dos precatórios desrespeita o direito de propriedade e torna inócuas as decisões do Judiciário”.

Em nota técnica enviada ao Congresso em julho, o CFOAB apontou que a PEC tem inconstitucionalidades já reconhecidas pelo STF na análise de outras emendas constitucionais sobre precatórios.

Além da nota, a entidade também apresentou um parecer técnico elaborado pelos advogados Egon Bockmann Moreira e Rodrigo Kanayama, especialistas em Direito Administrativo. Para eles, a PEC “viola direitos fundamentais dos credores atuais e das futuras gerações, que herdarão um passivo crescente e sem horizonte de quitação”.

A OAB-SP faz coro com o Conselho Federal. O presidente da Comissão de Assuntos Relacionados aos Precatórios Judiciais da seccional paulista, Vitor Boari, diz que a proposta “é uma agressão à responsabilidade fiscal e transfere para o cidadão o ônus das ações perdidas por prefeituras e estados”.

Ele prevê “muitos efeitos danosos para a saúde fiscal do país e para a credibilidade dos entes públicos”.

“O que vemos, novamente, é o Congresso Nacional com soluções midiáticas de curto prazo, legislando com olhos sempre na próxima eleição para atender à União, aos governadores e aos prefeitos e deixando ao léu todos aqueles que os elegeram”, critica Boari.

Para o administrativista Wilson Accioli Filho, não há duvida de que a PEC é um “desastre” jurídico e financeiro, tanto para a economia quanto para a confiança da sociedade no Estado.

Na sua visão, “é evidente” que o objetivo principal da proposta é postergar ainda mais o pagamento dos precatórios e barrar a quitação do estoque, de forma a “garantir ainda mais sobrevida financeira para o Estado”.

O advogado Fernando Facury Scaff, professor de Direito Financeiro da Universidade de São Paulo (USP) e colunista da revista eletrônica Consultor Jurídico, também constata que a PEC representa um calote nos credores dos poderes públicos estaduais e municipais.

Em sua coluna, Scaff já havia classificado a norma como um “vergonhoso desrespeito” às decisões do Judiciário e aos jurisdicionados, “que litigaram anos em busca de uma decisão a seu favor, e agora veem seu direito judicialmente reconhecido ser postergado por muitos outros anos, sem qualquer previsibilidade para quitação de seus créditos”.

Regras para a União

A proposta não inclui os precatórios da União no calote, mas os retira do limite de despesas primárias do governo federal a partir de 2026.

Um trecho prevê que as despesas anuais da União com precatórios serão incorporadas de forma gradual na apuração da meta de resultado primário a partir de 2027. A ideia é que, a cada ano, 10% do pagamento previsto passe a contar para a meta.

Na visão de Scaff, esse gradualismo “adia o problema, mas não o resolve”.

Por outro lado, ele comemora um ponto da PEC relativo à União: o trecho que classifica o montante principal de precatórios como despesa e os juros e a atualização monetária como dívida.

Segundo o professor, isso é importante porque a “burocracia econômica” tem classificado os precatórios como despesa e não como dívida, o que impacta nas metas fiscais.

Ele explica que precatórios são dívidas públicas cuja quitação corresponde a uma despesa. Mas, na visão dos economistas, depois do resultado primário devem ser consideradas apenas as dívidas financeiras, ou seja, aquelas cujos credores são bancos.

Assim, para Scaff, a PEC reduz o problema, mas sem resolvê-lo. Isso porque o montante original identificado como despesa primária será reduzido ao longo do tempo, e aumentará o montante de juros e atualização monetária.

Outros pontos positivos

Embora entenda que a finalidade principal da proposta é negativa, Accioli Filho destaca alguns pontos positivos. A PEC permite, por exemplo, a apreensão judicial de recursos das contas públicas caso o estado ou município não libere os recursos destinados aos pagamentos de precatórios.

Atualmente, há uma “blindagem patrimonial” do Estado, nas palavras do advogado. Os bens da administração pública são considerados impenhoráveis, devido ao risco de que essa medida paralise a “economia do ente devedor” e cause prejuízos maiores à sociedade. “A PEC trouxe uma evolução nesse sentido”, aponta.

Pelo texto, em caso de inadimplência, o estado ou município também pode ficar impedido de receber transferências voluntárias. Accioli Filho considera isso positivo: “Antes, a administração não sofria efeitos negativos externos. O efeito negativo era só diretamente para o credor do precatório.”

Por fim, ele indica uma terceira vantagem: a proposta prevê que o governador ou prefeito inadimplente “responderá na forma da legislação de responsabilidade fiscal e de improbidade administrativa”. Isso obriga os chefes do Executivo a gerirem bem os precatórios, pois, do contrário, podem ser responsabilizados pessoalmente.

Hoje, se um prefeito, por exemplo, gere mal os precatórios e deixa o cargo, seu sucessor tem a incumbência de corrigir os erros. Assim, a PEC traz uma inovação importante — “um passo no sentido de quebrar essa armadura jurídica que havia para o gestor que geria mal as contas públicas”, segundo Accioli Filho.

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Senado aprimorará contas públicas se limitar dívida federal via PRS 8/25

Às vésperas do 37º aniversário da Constituição de 1988, o Senado tem diante de si, mais uma vez, a oportunidade e o dever histórico de aprimorar a governança fiscal do país. O Projeto de Resolução do Senado (PRS) nº 8, de 2025, de autoria do senador Renan Calheiros, resgata a Mensagem Presidencial nº 154, de 2000, pautando a necessidade incontornável de fixar limite global para o montante da dívida consolidada da União, conforme preceitua o artigo 52, inciso VI, da Carta Magna, desde sua redação originária.

Quase quatro décadas se passaram sem que o Senado tenha se desincumbido da sua competência privativa, por mais que a matéria só demandasse apreciação unicameral da Casa da Federação. Há um quarto de século, a Lei de Responsabilidade Fiscal reiterou o comando constitucional, estabelecendo, em seu artigo 30, o dever de o Executivo remeter proposta de limites para as dívidas de todos os entes da Federação. Todavia, apenas houve balizamento da dívida dos estados, Distrito Federal e municípios no âmbito da Resolução nº 40, de 2001 (disponível aqui).

A ausência de limitação apenas para a dívida pública da União configura uma lacuna normativa que, concomitantemente, enseja assimetria federativa e compromete a transparência, o equilíbrio fiscal e o controle social das finanças públicas do país.

Tamanho vazio regulamentar de dispositivo constitucional tão sensível decorre de interdição promovida por interesses, ora coordenados, ora conflitantes do mercado financeiro e do Executivo federal em torno do limite da dívida pública da União. José Roberto Afonso, em entrevista concedida por ocasião do aniversário de 25 anos da LRF, lucidamente desvendou o impasse em comento:

Embora passados 25 anos [da edição da Lei de Responsabilidade Fiscal], você tem algumas regras muito importantes da lei que nunca foram regulamentadas. É curioso que nem mesmo aproveitando essa comemoração dos 25 anos não vimos as pessoas se mobilizando, salvo a CAE [Comissão de Assuntos Econômicos] do Senado, que disse que votaria o limite da dívida da União. Mas o governo federal parece não ter maior interesse nisso, nem o atual governo nem o anterior, e muito menos o mercado financeiro, que reclama muito e quer resultado fiscal, mas não fala em limite da dívida. Essa é uma regra que existe no mundo inteiro. No fundo, as pessoas querem restrições de gasto e de renúncia fiscal para os outros, mas não para si. No caso da dívida pública, a preocupação que existe é a de que, em momentos de crise financeira aguda, o governo precisa socorrer o sistema bancário, como já aconteceu em 2008 e na pandemia de Covid, por exemplo. Embora a legislação tenha flexibilidade nesses casos, o que eu sinto é que os credores não querem correr risco. É algo paradoxal: eles reclamam que se deve muito, mas não querem limite da dívida, que é o ponto mais relevante da LRF que falta regulamentar.

[…] O arcabouço é uma lei complementar. O problema é que, no âmbito desta lei complementar, anteciparam metas específicas de sustentabilidade da dívida da União que, na minha opinião, deveriam estar em uma lei ordinária, que muda todo ano. A LRF resolveu isso remetendo à LDO, que é uma lei ordinária. As coisas mudam, você muda. Ora se faz superávit, ora se faz menos superávit ou até déficit. Acho que acabaram deixando o arcabouço muito rígido.”

Idas e vindas no percurso da matéria fizeram com que a precedente tentativa de regulamentar a dívida pública consolidada federal (PRS nº 84, de 2007) fosse arquivada em 21/12/2018. Desde então, a omissão inconstitucional [1] e suas consequências para o agravamento [2] das contas públicas brasileiras têm sido denunciadas, sem que a longa mora legislativa tenha sido, de fato, enfrentada.

Eis o contexto em que o PRS nº 8/2025 (disponível aqui) se apresenta como uma agenda inadiavelmente necessária. Afinal, não é porque um problema é antigo que ele deixa de ser um impasse que reclama solução.

Ao longo dos últimos 37 anos, as contas públicas brasileiras têm se ressentido da falta de balizas sistêmicas, capazes de equalizar a inibição da receita e a escalada das despesas financeiras, ampliando o foco usualmente incidente sobre as despesas primárias, como se sucedeu com a Emenda nº 95, de 2016.

Mesmo após transcorridos exatamente dois anos da edição da Lei Complementar nº 200, de 2023, não foi satisfatoriamente atendida a demanda da Emenda Constitucional nº 109, de 2021, que inseriu inciso VIII no artigo 163 da CF/1988 [3], para que lei complementar explicitasse o que seria a noção de sustentabilidade da dívida pública. Isso ocorre porque o artigo 2º, §§1º e 2º da LC 200/2023 [4] reduziu o foco do que seja dívida pública sustentável apenas ao alcance de metas de resultado primário.

É sintomático que o Teto de Despesas Primárias, sucedido pelo vulgarmente conhecido Novo Arcabouço Fiscal (NAF), respectivamente EC nº 95/2016 e LC nº 200/2023, sejam ambos regimes fiscais aplicáveis exclusivamente à União, enquanto a LRF (LC nº 101/2000) é a única norma, de fato, nacional, aplicável a todos os entes da federados. Apenas essa última reiterou a necessidade constitucional de fixação de limites de endividamento indistintamente para União, estados, DF e municípios.

Sendo o Senado a Casa da Federação, soa contraditório que a câmara alta do Congresso tenha cumprido seu papel ao fixar limites para a dívida consolidada os governos locais e regionais, por meio da Resolução nº 40/2001, sem que equivalente parâmetro tenha sido estabelecido para o governo central. Essa disparidade federativa amplifica a judicialização entre os entes políticos, em meio a uma guerra fiscal cada vez mais danosa para a sociedade.

O Tribunal de Contas da União já havia manifestado preocupação clara sobre essa omissão legislativa no âmbito do seu Acórdão nº 1.084/2018-Plenário. O TCU destacou que a ausência de limites formais para a dívida pública da União compromete a responsabilidade fiscal e torna inviável a transparência e o controle social esperados em um regime democrático.

No julgamento, o Tribunal salientou que a falta dos limites demandados pelo artigo 48, XIV e pelo artigo 52, VI da Constituição, respectivamente, limites de dívida mobiliária e consolidada, dificulta o exercício do controle externo sobre a dívida pública federal. Sem tal baliza normativa, o acompanhamento da sustentabilidade fiscal da União fica comprometido, abrindo espaço para riscos macroeconômicos significativos.

Em um dos seus trechos mais destacados, o Acórdão TCU 1084/2018 buscou informar ao Senado que a omissão em regulamentar os limites de dívida federal (artigos 48, XIV e 52, VI da CF/1988, bem como artigo 30 da LRF), bem como a falta de instituição do Conselho de Gestão Fiscal (artigo 67 da LRF) constituem-se como “fator[es] crítico[s] para a limitação do endividamento público e para a harmonização e a coordenação entre os entes da Federação”. Ambas são lacunas tão significativas que impedem o ordenamento jurídico brasileiro de consolidar um marco regulatório coerente e eficaz sobre o conjunto das finanças públicas do país

Sob todos os prismas temporais, o cenário que se apresenta é historicamente grave e não se revolverá com o mero decurso negligente dos anos, como se não fosse um problema. Trinta e sete anos desde a previsão originária da Constituição de que deveria haver limites de dívida pública para todos os entes da federação, 25 anos desde que a LRF demandou a imediata edição das normas reclamadas constitucionalmente, quatro anos da Emenda Emergencial que previu a necessidade de fixação do regime de sustentabilidade da dívida pública e dois anos da LC nº 200/2023, sem que haja, de fato e de direito, um arranjo jurídico sistêmico que permita monitorar mais de perto o peso das despesas financeiras e das opções de inibição da receita sobre a dívida pública federal.

Não basta monitorar os fluxos orçamentários, sem que se avalie o estoque acumulado da dívida pública, de modo a correlacionar a sua trajetória com os impactos trazidos pelo conjunto das políticas macroeconômicas ao longo do tempo. Afinal, como bem alertado por José Roberto Afonso, na mesma entrevista anteriormente citada, não cabe apenas pautar o debate pelo prisma da política fiscal a cargo do Tesouro Nacional, sem que sejam explicitadas as suas correlações com as políticas cambial, monetária e creditícia, sob responsabilidade do Banco Central:

“Outro vício antigo difícil de se resolver no Brasil é tratar a política fiscal isolada da política monetária, e a política monetária isolada da política cambial, isolada da política comercial, isolada da política social e assim por diante. Está valendo a regra de que cada um é dono do seu quadradinho e pronto. Nós não temos política macroeconômica no Brasil. Não temos equipe econômica. O Brasil deve ser o país que mais fala em política fiscal, mas trata a política fiscal como se fosse algo independente do resto. Ela é causa e consequência: afeta as demais políticas e também é afetada por elas. Temos de voltar a ter mais debates macroeconômicos, formulação de política macroeconômica, ter um plano estratégico. E, aí sim, a política fiscal se inserir nesse contexto. Isso, inclusive, não se resolve com lei. Muito disso tem a ver com prática, com cultura.”

A ausência de um parâmetro normativo claro para a dívida pública federal permite que ela cresça de forma opaca e potencialmente ilimitada por força da atuação do Banco Central, mesmo que as metas primárias venham a ser rigorosamente cumpridas, comprometendo a sustentabilidade financeira do país. Vale lembrar que, no período de agosto de 2024 a junho de 2025, a expansão da taxa básica de juros, a taxa Selic, em 4,5% equivaleu a praticamente o montante de um piso federal anual em saúde.

Dessa forma, o Novo Arcabouço Fiscal, embora tenha tentado avançar em aspectos relevantes, não supriu integralmente a lacuna normativa que o Senado Federal tem o dever constitucional de preencher, tornando urgente a aprovação do PRS nº 8/2025 para fortalecer o regime de responsabilidade fiscal brasileiro.

Para além de proporções específicas e tempo de recondução a limites que o debate político deve avaliar no curso da tramitação da proposta normativa, o que se busca aqui é defender a oportunidade, a relevância e a viabilidade do PRS nº 8/2025. Ali está previsto o dever de o Executivo federal prestar contas regularmente sobre a dívida pública, apresentando justificativas para eventuais desvios e ações corretivas para o cumprimento dos limites. Assim, o projeto fortalece o papel fiscalizador do Senado e amplia a transparência na gestão da dívida pública.

A fixação de limites para a dívida da União não é mero detalhe ou adereço residual em face do conjunto das finanças públicas brasileiras, mas uma questão central para a responsabilidade fiscal, o pacto federativo e a segurança jurídica das contas públicas.

O PRS nº 8/2025 representa, portanto, uma oportunidade singular para o Senado Federal reafirmar sua relevância institucional, regulando o endividamento da União e fechando uma lacuna normativa que compromete a sustentabilidade das finanças públicas e o federalismo brasileiro.

Ao garantir limites claros, transparência e mecanismos de controle, o projeto favorece a estabilidade econômica e social do Brasil. Assim, na iminência de celebrar 37 anos da Constituição Cidadã, o Senado pode e deve se posicionar com visão de futuro, fortalecendo o pacto federativo, a governança pública e a confiança da sociedade nas instituições, por meio da aprovação do PRS nº 8/2025.


[1] Como esta colunista, José Roberto Afonso e Lais Khaled Porto debatemos aqui

[2] No item 9.2 da parte dispositiva do Acórdão 1084/2018-Plenário (cujo inteiro teor está disponível aqui), o Tribunal de Contas da União informou “ao Presidente do Senado Federal que a não edição da Lei prevista no art. 48, inciso XIV, e da Resolução de que trata o art. 52, inciso VI, ambos da Constituição da República, para o estabelecimento de limites para os montantes das dívidas mobiliária federal e consolidada da União, assim como da lei que prevê a instituição do conselho de gestão fiscal, constitui fator crítico para a limitação do endividamento público e para a harmonização e a coordenação entre os entes da Federação, comprometendo, notadamente, a efetividade do controle realizado pelo Tribunal de Contas da União com base no art. 59, § 1º, inciso IV, da Lei Complementar 101/2000, e o exercício do controle social sobre o endividamento público e demais limites fiscais”.

[3] Que assim dispõe: “Art. 163.  Lei complementar disporá sobre:

[…] VIII – sustentabilidade da dívida, especificando:

a) indicadores de sua apuração;

b) níveis de compatibilidade dos resultados fiscais com a trajetória da dívida;

c) trajetória de convergência do montante da dívida com os limites definidos em legislação;

d) medidas de ajuste, suspensões e vedações;

e) planejamento de alienação de ativos com vistas à redução do montante da dívida.

Parágrafo único. A lei complementar de que trata o inciso VIII do caput deste artigo pode autorizar a aplicação das vedações previstas no art. 167-A desta Constituição.”

[4] Cujo inteiro teor é o seguinte: “Art. 2º […]

§1º. Considera-se compatível com a sustentabilidade da dívida pública o estabelecimento de metas de resultados primários, nos termos das leis de diretrizes orçamentárias, até a estabilização da relação entre a Dívida Bruta do Governo Geral (DBGG) e o Produto Interno Bruto (PIB), conforme o Anexo de Metas Fiscais de que trata o § 5º do art. 4º da Lei Complementar nº 101, de 4 de maio de 2000(Lei de Responsabilidade Fiscal).

§2º. A trajetória de convergência do montante da dívida, os indicadores de sua apuração e os níveis de compatibilidade dos resultados fiscais com a sustentabilidade da dívida constarão do Anexo de Metas Fiscais da lei de diretrizes orçamentárias.”

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OEA e o Trust and Check Trader na União Europeia

O comércio internacional está vivenciando um período de muitas mudanças, incertezas e grandes desafios. O período pós-Segunda Guerra Mundial, dos acordos de Bretton Woods e da assinatura do Gatt, em 1947, pelos 23 países signatários, foi marcado pela busca dos países por promoverem regras para o comércio internacional, estimulando-o. A ideia predominante era de liberalismo, neutralidade e livre concorrência, que se fizeram presentes nos princípios regentes do Gatt, como o da não discriminação, por sua vez estabelecido nas cláusulas da nação mais favorecida e do tratamento nacional [1]. Esse compromisso inicial foi reforçado ao longo das décadas que se seguiram, com maior ou menor intensidade, culminando com a criação da Organização Mundial do Comércio (OMC), em 1995.

Nesse período e nos anos que se seguiram, o mundo assistiu ao crescimento do fluxo global de comércio, do liberalismo, do multilateralismo e do deslocamento das unidades de produção para locais onde os custos fossem menores, com alocação de unidades de grandes corporações internacionais em países asiáticos e do leste europeu, permitindo o desmembramento da fabricação dos produtos e a formação das cadeias globais de valor. Cada etapa de um produto final passou a ser produzida em uma jurisdição distinta, sendo reunidas para montagem e exportação. Esse fenômeno ficou conhecido como offshoring, seguindo a lógica de produção e distribuição do just in time. Os anos que se seguiram à criação da OMC foram marcados pela globalização e o crescimento vertiginoso do comércio global, promovendo, entre outros efeitos, a retirada de milhares de pessoas da linha da pobreza [2].

Não obstante, uma série de acontecimentos tem impactado esse modelo e o cenário global de comércio, promovendo significativas alterações. A Covid-19 e a suspensão do fluxo global de pessoas e mercadorias  foram exemplos disso. Esse evento provocou a reflexão das empresas multinacionais e dos governos quanto à necessidade de terem suas fontes de produção mais próximas. Destacou também que, em situações de ameaça e necessidade, cada país defende o seu interesse, e que a dependência de produção de um só país eleva o nível de risco e subordinação, o que ameaça a soberania e autonomia das nações. Surgem os conceitos do nearshoringreshoring e do just in case, como reação à realidade vivenciada na pandemia. A guerra da Rússia com a Ucrânia e os conflitos no Oriente Médio são outros eventos que provocam grandes inseguranças e incertezas, instabilidade e divisão, pressionando a redefinição do comércio internacional.

Nos EUA, desde o período do primeiro governo de Trump, o discurso protecionista defendido sob o slogan “American First” levou à adoção de medidas contrárias aos princípios da OMC, outrora defendidos por esse mesmo país. Nessa linha, os EUA, desde 2017, vêm bloqueando a nomeação de juízes para o Órgão de Apelação da OMC, o que culminou com a paralisação do órgão em dezembro de 2019. A situação retirou da OMC a capacidade de analisar e julgar, em grau de recurso, conflitos comerciais entre os países membros, consequentemente, de aplicar sanções, reduzindo seu poder e representatividade no comércio global. O retorno de Trump à Casa Branca culminou em medidas contrárias e de ruptura com as regras da OMC, deflagrando verdadeira guerra tarifária em todo o mundo. As medidas de 2 de abril e de 1º de agosto marcaram flagrante desrespeito dos EUA com o sistema multilateral de comércio e o confronto com os princípios e regras de comércio estabelecidas no âmbito da OMC. Por mais que se tente, de certa forma, envernizar tais medidas de alguma sustentação de legitimidade, na exceção ao princípio de não discriminação por segurança nacional, elas carecem de base legal para se sustentarem.

Tudo isso impacta os custos de produção pelo mundo, especialmente em países como o Brasil, que tiveram definidas contra si pelos EUA, tarifas de 50% para 35,9% dos produtos de suas exportações para importadores americanos [3]. O Brasil adotou medidas para mitigar os enormes impactos [4]. O Plano Brasil Soberano [5] prevê, entre outras medidas:

  • prorrogação de prazos do drawback suspensão, inclusive do drawback intermediário (por mais um ano), medida essa aplicada também ao Recof, através da IN RFB n2276/2025;
  • diferimento do vencimento dos tributos federais (por dois meses);
  • prioridade na restituição e ressarcimento de tributos (PER/DCOMP);
  • novo Reintegra: 3,1% (grandes e médias empresas); 6% (micro e pequenas empresas).

Em meio a tudo isso, as empresas e os países que se veem prejudicados pelos efeitos da guerra tarifária foram compelidos a buscar soluções e alternativas, como identificar novos mercados, avaliar a possibilidade de mudarem a sede de sua planta produtiva para países não atingidos pelo tarifaço, utilizarem regimes aduaneiros especiais, como o depósito alfandegado certificado (DAC), que lhes dê prazo para a remessa física das mercadorias para os EUA, permitindo negociações e redirecionamentos para outros mercados.

Aduana e seus desafios

Nesse cenário, e a Aduana, como fica? Cada vez com mais funções e responsabilidades, e maior pressão para cumprir as normas internas nas fronteiras, como tem acontecido ao longo das décadas que se seguiram à criação da Conselho de Cooperação Aduaneira (CCA), em 1953. De um órgão responsável por cuidar principalmente da arrecadação de tributos, passou à função de grande guardião e protetor da sociedade, com um leque de temas expressivamente ampliado.

Nesse sentido, a Organização Mundial das Aduanas (OMA) e de resto as aduanas globais têm dois objetivos principais: (1) assegurar um ambiente favorável ao comércio legítimo, facilitando o fluxo de mercadorias, e (2) exercer o controle das operações, com foco no cumprimento das normas aduaneiras e na segurança da sociedade. À arrecadação dos tributos, somaram-se diversos outros temas para a fiscalização aduaneira se ocupar. Para citar alguns: a segurança contra o terrorismo, em face do tráfico, de drogas, de armas, de pessoas, as ameaças químicas, à saúde, ao meio ambiente, as novas demandas de controle de operações de empresas que poluem mais, ou menos, o controle de entradas de mercadorias cuja origem seja fruto de trabalho em condições escravas, controle de mercadorias que descumprem regras sanitárias e ameaçam a saúde da sociedade, que não seguem os padrões de qualidade, produtos falsificados, grandes ameaças no e-commerce cross-border, dado seu volume e riscos de fraude nas declarações de valores e pagamento de tributos. Diante de tudo isso, continuamente, as aduanas se veem desafiadas, a ampliar sua capacidade, reinventar-se e desenvolver mecanismos que lhe permitam cumprir sua missão.

Reforma aduaneira europeia

Para enfrentar esses desafios e se preparar para o futuro, a União Europeia publicou, em maio de 2023, normas para realizar uma reforma aduaneira, com visão de futuro, promovendo a sua preparação para atuar em 2040. Nesse pacote, os pilares são o estabelecimento de uma Autoridade Aduaneira da União Europeia para centralizar informações e dar suporte às autoridades aduaneiras de cada país membro; a criação de uma plataforma de dados aduaneiros da UE – Customs Data Hub – que permitirá, de um lado, a melhoria nos controles e, de outro, a simplificação dos procedimentos; um novo regime normativo para o e-commerce indicando as plataformas como importadores e devedores – deemed importers (importadores considerados), ampliando a capacidade de análise e gestão de risco dessas transações; criação da figura do Trust and Check Trader (TCT)que deverá conceder a aduana um amplo acesso aos seus sistemas e dados, em tempo real, tendo em contrapartida benefícios, como liberar suas importações no seu próprio estabelecimento, apurando si mesmo, os valores a recolher [6].

Em relação ao TCT, o reconhecimento será possível somente para importadores e exportadores, diversamente do que hoje permite o Operador Econômico Autorizado (OEA) vigente na União Europeia [7], na medida que são elegíveis também agentes de carga, despachantes aduaneiros, transportadores, depositários, terminais portuários e aeroportuários. Para ser reconhecido TCT, não basta ser AEO, há requisitos adicionais que deverão ser atendidos. Lado outro, os benefícios serão mais atrativos e palpáveis do que aqueles atualmente assegurados aos OEA, permitindo entrever um modelo mais avançado e atrativo. O OEA se manterá, para novos pedidos até 1/3/2032, valendo a certificação até 31/12/2037, quando passa a valer o TCT.

Nesse quadro de conformidades e segurança, de facilitação e controle, a figura de um operador que se aproxima da aduana e se posiciona como seu parceiro, que declara e promove ações para comprovar seu desejo de conformidade, de cumprimento espontâneo das normas e adoção de critérios de procedimentos que contribuem com a segurança nas cadeias globais de valor, tem se comprovado, desde a sua idealização, como essencial e indispensável. É preciso ter elementos objetivos para separar “o joio do trigo”. Nesse sentido, os programas operadores confiáveis têm que ser difundidos e propagados visando amplo reconhecimento de sua importância. Outrossim, é imprescindível que as administrações aduaneiras concedam os benefícios mais amplos e tangíveis possíveis a fim de se manter o estímulo e o resultado positivo na equação de investimentos/custos versus benefícios.

OEA, Brasil

No Brasil, segundo dados atualizados até 30/5/2025, publicados em 1/9/2025 [8], 683 CNPJs são certificados, sendo que cerca de 30% dos valores importados, seja em número de declarações registradas, ou valor CIF, estão sendo realizados por empresas OEA. Certamente o estoque de pedidos de certificação, sendo analisado, permitirá que esses volumes se ampliem. No entanto, para que se atinja o objetivo original do programa, de se ter 50% das declarações registradas por OEA, algumas medidas precisam avançar:

a) diferimento dos tributos na importação: está prevista no artigo 76, 3º, da LC 214/2025, a possibilidade de ocorrer, nos termos de regulamento, em relação ao IBS e à CBS. Também está previsto nos artigos 19 e 20 do PL 15/2024, para todos os tributos federais, podendo ser estendido ao AFRMM, à Taxa da Marinha Mercante e aos direitos antidumping. Essa medida deve ser implementada o quanto antes para todas as empresas OEA em relação a todos os tributos incidentes na importação, sejam federais ou estaduais;

b) ampliação do programa às tradings: notadamente com a migração das operações para o Portal Único e para a DUIMP, a ampliação da capacidade de gerenciar os riscos é notória e permitirá que essas empresas que desejem ser parceiras da RFB também estejam no rol daquelas elegíveis;

c) imediata inclusão do despachante aduaneiro: como elo presente em quase todas as declarações registradas no país, o despachante aduaneiro precisa ser inserido e poder demonstrar seu compromisso com a conformidade e a segurança, auxiliando a aduana no seu dever de gerenciar riscos de maneira inteligente e eficaz;

d) desembaraço no domicílio do importador: permitir que os operadores OEA nas modalidades segurança e conformidade possam receber suas cargas e transportá-las de imediato para seus estabelecimentos, e lá promoverem a sua liberação;

e) dispensa de garantia para entrega de mercadorias em caso de exigências no curso de um despacho de importação, separando o fluxo físico da carga, das questões discutidas em termos de aplicação de normas, exceto se o caso for de proibição daquela importação. Nesse sentido, destacam-se a norma 5.4 da CQR/OMA e o artigo 3.1 do AFC/OMC;

f) Priorização na compensação de créditos decorrentes de retificação e cancelamento de declarações, quando aplicável: priorização ou a definição de um prazo para a compensação de créditos decorrentes da retificação ou cancelamento de declarações;

g) autorregularização: possibilidade prevista no artigo 21 do PL 15/2024, de forma que o interveniente OEA seja comunicado quanto à identificação de alguma infração, permitindo-lhe realizar sua autodenúncia. Essa realidade afastaria a aplicação das penalidades de ofício impróprias a um interveniente que preza por boas práticas já avaliadas e convalidadas pela administração aduaneira. Se incorre em eventuais erros, são escusáveis. Seria o caso de lhe assegurar a regularização sem aplicação de nenhuma penalidade, ou multa de mora, tão somente exigindo-lhe a atualização do crédito, se devido.

Tais medidas, inclusive, ampliariam a capacidade competitiva das empresas brasileiras, notadamente daquelas OEA e exportadoras para os EUA, que precisam de todos os reforços possíveis nesse momento de grandes desafios. Essas alterações poderiam ser incluídas, ainda que de modo excepcional, para auxiliá-las nesse momento, em conjunto com as demais medidas já adotadas pelo Governo Federal.

Congresso

Sobre o tema Trust and Check Trader, na sexta-feira, dia 05/09,  participaremos da XVII Reunião Mundial de Direito Aduaneiro, promovido pela ICLA – International Customs Law Academy [9], na cidade do Porto, em Portugal, em painel sob o título Padrões para cadeias logísticas seguras e a redefinição do OEA para o T&C Trader”. Antecedendo esse painel, Rosaldo Trevisan, colega dessa coluna, moderará o painel em que o Subsecretário de Administração Aduaneira, dr. Fabiano Coelho, fará conferência sobre “Riscos para segurança, proteção do cidadão e comércio internacional legítimo. O Congresso iniciará amanhã com a participação de congressistas de mais de 30 países, prosseguindo com dois dias de intensas atividades.

Em um cenário tão incerto e desafiador no comércio internacional, a reunião de tantos estudiosos e especialistas, certamente, propiciará, pela permuta de experiências, novas ideias, reflexões, e oxalá, alternativas e soluções para uma atividade aduaneira eficiente que possa auxiliar na promoção do comércio global legítimo e seguro.


[1] TREVISAN, Rosaldo. O imposto de importação e o direito aduaneiro internacional. São Paulo: Aduaneiras, 2017, p. 86-89.

[2] Há estudos do Banco Mundial e da OMC sobre os efeitos positivos da globalização para redução da pobreza. Disponível em linklink . Acesso: 29/8/2025.

[3] Disponível em: link . Acesso em 29/08/2025.

[4] Segundo estudos realizados pela CNI, a queda no PIB brasileiro será de R$ 19,2 bilhões (0,16%), a redução nas exportações de R$ 52 bilhões e a deve ocorrer a perda de 110 mil postos de trabalho. Disponível em: link . Acesso em 29/08/2025.

[5] Disponível em: link . Acesso em 29/08/2025.

[6] PICKETT, Eric and WOLFFANG, Hans-Michael. The European Commission’s Proposal for a Modernised Union Customs Code: A Brief IntroductionWorld Customs Journal, vol. 17, Issue 02, 2023, September 30, 2023. Disponível em: link. Acesso em 29/8/2025.

[7] LEONARDO, Fernando Pieri. O AEO no direito aduaneiro europeu. In: PEREIRA, Tania Carvalhais (ed.). Direito Aduaneiro: coletânea de textos. Lisboa: Universidade Católica, 2022.

[8] Disponível em: link. Acesso em 29/8/2025.

[9] https://www.iclaweb.org/porto-portugal2025

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‘Gentileza e compaixão’: Frank Caprio viralizou com julgamentos humanos e bem-humorados

“Onde pessoas e casos são atendidos com gentileza e compaixão”. A sinopse do reality show norte-americano Caught in Providence descreve dessa forma a sala do Tribunal Municipal de Providence (Rhode Island) devido aos quase 40 anos de atuação de Francesco Caprio (1936 – 2025) no juízo.

Filho de imigrantes italianos, o juiz Frank Caprio, como ficou conhecido, conquistou o público com sua forma humanizada e bem-humorada de conduzir julgamentos e apreciar infrações de trânsito na capital do estado de Rhode Island, nos EUA.

As sessões eram gravadas e exibidas no programa que, segundo informação da ABC News, foi ao ar por mais de duas décadas na televisão local, até ser transmitido nacionalmente a partir de 2018. Por ocasião da aposentadoria do magistrado em 2023, a última temporada do show foi lançada no ano seguinte.

canal oficial do Caught in Providence no YouTube conta com 2,9 milhões de inscritos e reúne mais de 1.900 vídeos. E foi a publicação de trechos do programa na internet que contribuiu para a disseminação global da fama de Frank Caprio como “o juiz mais gentil dos Estados Unidos” e, depois, do mundo.

Justiça de verdade

É difícil considerar a alcunha indevida após assistir ao julgamento de Victor Coella, cuja gravação viralizou em 2019. O vídeo mostra a ida do homem, à época com 96 anos, ao tribunal. Ele havia sido multado por ultrapassar o limite de velocidade em uma área escolar.

Caprio permite ao réu apresentar sua versão do fato. Então o réu conta que estava levando seu filho ao hospital. Explica que o filho era pessoa com deficiência, tinha 63 anos e lutava contra um câncer.

“Você é um bom homem, representa tudo aquilo que são os Estados Unidos: aqui está, aos noventa, e continuar tomando conta da sua família… É algo maravilhoso. Senhor, eu te desejo tudo de bom, desejo o melhor para o seu filho. O seu caso está encerrado. Boa sorte, que Deus te abençoe”, diz o julgador depois de ouvir a história.

Frank Caprio morreu na quarta-feira (20/8), aos 88 anos, ao tratar um câncer no pâncreas. Deixou a esposa, Joyce E. Caprio, com quem foi casado por mais de 50 anos e teve cinco filhos, sete netos e dois bisnetos.

Assista ao julgamento de Victor Coella:

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Justiça Penal precisa focar na macrocriminalidade

As estatísticas referentes à Justiça Criminal reforçam a ideia de que o melhor caminho a ser tomado é o da despenalização (substituição, legislativa ou judicial, da pena de prisão por sanções de outra natureza), sobretudo dos delitos de menor potencial ofensivo, para que o Poder Judiciário possa cuidar daquilo que realmente interessa, que é o combate aos crimes de grande repercussão social.

Essa foi a análise feita pelo ministro Reynaldo Soares da Fonseca, do Superior Tribunal de Justiça, em entrevista à série Grandes Temas, Grandes Nomes do Direito, na qual a revista eletrônica Consultor Jurídico ouve alguns dos nomes mais importantes do Direito sobre as questões mais relevantes da atualidade.

Na visão do ministro, o Poder Judiciário tem processado um volume impressionante de casos criminais, dos quais uma parte significativa corresponde a processos de menor importância, o que acaba tornando o trabalho dos magistrados inviável.

“Nós chegamos a ter 109 milhões de processos no território brasileiro, numa população de 210, 215 milhões. Desse percentual, uma parte assustadora corre na esfera penal, o que, evidentemente, nos leva a ‘enxugar gelo’ ou trabalhar com aquilo que não é tão importante. Daí porque essas estatísticas reforçam que o caminho é a Justiça Penal negociada”, diz Fonseca.

Segundo o ministro, a aplicação dos institutos despenalizadores — como a transação penal, a suspensão condicional do processo e a composição civil — aos casos de menor gravidade ajuda a reduzir a superlotação dos presídios, ao evitar condenações ao regime fechado.

Além disso, diz o ministro, permite que casos de grande impacto na sociedade possam ser solucionados com mais rapidez.

“Nós temos o fenômeno da macrocriminalidade, que não pode ser esquecido, pois se não tratarmos disso, vai campear a impunidade”, disse Fonseca. “Temos que estimular a Justiça Penal negociada para evitar, inclusive, a prescrição dos processos na fase da investigação”, disse ele em conversa sobre o painel “Desafios atuais da Justiça Criminal”, durante o XIII Fórum de Lisboa, promovido em julho na Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa.

Clique aqui ou assista abaixo a entrevista:

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STF suspende análise de dupla responsabilização por crime eleitoral e improbidade

O ministro Gilmar Mendes, do Supremo Tribunal Federal, pediu vista, nesta segunda-feira (25/8), dos autos do julgamento no qual o Plenário discute a possibilidade de dupla responsabilização em caso de crime eleitoral e ato de improbidade administrativa.

Com o pedido de vista, a análise foi suspensa. O fim da sessão virtual estava previsto para a próxima sexta-feira (29/8).

O caso tem repercussão geral, ou seja, a tese estabelecida servirá para casos semelhantes nas demais instâncias do Judiciário. A Corte vai definir, no mesmo julgamento, qual é o ramo da Justiça competente para analisar ações de improbidade por condutas que também configurem crime eleitoral.

Antes da interrupção, três ministros haviam votado no sentido de reconhecer a possibilidade de dupla responsabilização e deixar os julgamentos de ações de improbidade a cargo da Justiça comum quando a conduta também for considerada crime eleitoral.

O caso de origem diz respeito a Arselino Tatto (PT), ex-vereador de São Paulo. Quando o político ainda estava no cargo, a Justiça estadual determinou a quebra de seu sigilo bancário e fiscal para investigar um suposto ato de improbidade administrativa.

A defesa de Tatto solicitou que o caso fosse enviado à Justiça Eleitoral. O Tribunal de Justiça de São Paulo rejeitou o pedido. Por isso, o então vereador recorreu ao STF.

No último mês de abril, o ministro Alexandre de Moraes, relator do recuso no STF, suspendeu a tramitação e o prazo de prescrição de todas as ações do país que tratam da possibilidade de dupla punição por crime eleitoral e improbidade administrativa.

Voto do relator

Alexandre considerou possível a dupla responsabilização pelo crime eleitoral de caixa dois e por ato de improbidade administrativa. Ainda segundo ele, se a Justiça eleitoral reconhecer que o delito não ocorreu ou que o réu não foi o autor, a decisão “repercute na seara administrativa”.

Por fim, o magistrado votou pela competência da Justiça comum para processar e julgar ações de improbidade por atos que também configurem crime eleitoral.

Antes do pedido de vista, Alexandre foi acompanhado por Cármen Lúcia e Cristiano Zanin.

O relator lembrou que, conforme a jurisprudência do STF, se a conduta de um agente público pode ser considerada, ao mesmo tempo, crime eleitoral e ato de improbidade, ele pode responder por ambos de forma simultânea.

O ministro citou o § 4º do artigo 37 da Constituição, segundo o qual a ação de improbidade deve tramitar “sem prejuízo da ação penal cabível”. Pela mesma lógica, nada impede que o mesmo fato seja analisado pela Justiça Eleitoral.

“A independência de instâncias exige tratamentos sancionatórios diferenciados entre os atos ilícitos em geral (civis, penais e político-administrativos) e os atos de improbidade administrativa”, explicou. O mesmo vale para quando a conduta for enquadrada ao mesmo tempo como crime eleitoral e ato de improbidade.

Segundo ele, essa independência é relativa: “Quando decidido na instância eleitoral sobre a inexistência do fato, ou pela negativa de autoria, essas causas hão de se comunicar na esfera da responsabilidade civil pela prática de ato ilícito.”

Por outro lado, o próprio Tribunal Superior Eleitoral considera que a Justiça Eleitoral não deve constatar dano aos cofres públicos e enriquecimento ilícito quando a conduta for analisada em uma ação de improbidade.

De acordo com Alexandre, a ação de improbidade protege o patrimônio público e a “moralidade administrativa”. Já o Direito Eleitoral protege a legitimidade e a normalidade das eleições.

Assim, se a mesma conduta gerar os dois tipos de ação, “tanto a lisura do processo eleitoral quanto a probidade administrativa” serão protegidos. “Trata-se de ações autônomas que vão ser processadas e julgadas em instâncias diversas, sob enfoques também distintos”, indicou o ministro.

Competência

O relator destacou que a jurisprudência do Supremo é favorável à competência da Justiça Eleitoral para julgar tanto crimes eleitorais quanto comuns quando forem conexos.

Mas, segundo ele, para que uma ação seja processada e julgada pela Justiça Eleitoral, é preciso demonstrar que as condutas “decorrem das diversas fases do processo eleitoral” ou podem interferir no exercício do mandato.

Ou seja, fatos não relacionados “à legitimidade e à normalidade das eleições, higidez da campanha, igualdade na disputa e liberdade do eleitor” estão fora da jurisdição eleitoral. É o caso das questões relativas à “probidade e moralidade administrativa”.

O TSE entende que a Justiça Eleitoral não deve julgar atos de improbidade, mas apenas investigar se houve interferência ilícita na eleição — seja política ou econômica, com o intuito de beneficiar ou fortalecer candidaturas.

Alexandre ainda recordou que existem situações nas quais a inelegibilidade depende da comprovação de ato doloso de improbidade administrativa, o que é definido na Justiça comum.

No caso de Arselino Tatto, o ministro não viu impedimento para que a ação prossiga na Justiça comum para verificar se houve ato de improbidade.

Clique aqui para ler o voto de Alexandre
ARE 1.428.742

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