Conselho Superior do CG-IBS sem municípios e erosão federativa

Desde 2019 [1], temos sustentado que a criação de um Imposto sobre Bens e Serviços (IBS) compartilhado entre os entes subnacionais, nos moldes aventados pela PEC 45, continha vício federativo de origem. Demonstramos que o modelo retirava competências tributárias próprias e exclusivas dos estados e municípios e violava o núcleo intangível do pacto federativo.

Prova disso, por exemplo, é o disposto no artigo 104, IV, do ADCT, que permite, em caso de não pagamento de precatórios, sejam retidos os valores de IBS pertencentes aos municípios (§§ 1º e 2º do artigo 158 da CF), conforme alertou Caio Costa e Paula [2]. Se o tributo fosse, verdadeiramente, de competência municipal, ainda que compartilhada com o Estados, conforme prevê o artigo 156-A da Constituição, esse tipo de “retenção” não poderia ocorrer, dado que o conceito de “repasse” supõe transferências financeiras oriundas de participação em tributos que pertencem a outros entes federativos (como a União), não a tributos próprios.

Após a promulgação da EC 132/2023 e edição da LC 214/2025, evidenciamos que os entes periféricos perdiam também capacidade tributária ativa, pois tudo o que antes cada ente federativo fazia isoladamente — arrecadar, fiscalizar, julgar, e interpretar — agora teria de fazer em grupo [3]. Isso, em razão da exigência de regulamento único e deliberação colegiada acerca de todos esses aspectos em Comitê Gestor cujo desenho institucional favorece o poder da União e fragmenta o poder dos demais. Advertimos que a exigência de unanimidade, aliada à distribuição desigual de votos e à representação indireta dos entes subnacionais, tornaria o órgão inoperante ou suscetível à captura pelo poder central [4].

Para tornar tudo ainda mais complexo, recentemente, houve a instalação do Conselho Superior do Comitê Gestor do IBS sem a presença dos representantes municipais, o que também comprova, no plano fático, algumas das advertências a respeito da funcionalidade e constitucionalidade do novo sistema. A reunião de instalação, conduzida virtualmente e composta apenas por representantes estaduais e do Distrito Federal, consagra um arranjo decisório no qual mais de 5.500 municípios ficaram à margem. Ou seja, nem mesmo o que era previsto para ser realizado em grupo pôde ser feito do ponto de vista da representação dos municípios.

A ausência dos Municípios decorre de litígio entre a Frente Nacional de Prefeitos (FNP) e a Confederação Nacional de Municípios (CNM), que discutem, no âmbito do TJ-DFT [5], quem pode credenciar candidatos, quais os requisitos de elegibilidade e se a eleição virtual atende ao princípio da representação paritária. Enquanto isso, o conselho inicia atividades com um vácuo deliberativo que deslegitima qualquer ato subsequente.

Se a instalação dos representantes dos municípios é condição para o funcionamento do Comitê Gestor, formá-lo sem a participação daqueles entes implica inconstitucionalidade. Qualquer ato normativo ou interpretativo emanado do conselho, enquanto estiver sem a representação adequada dos municípios, será inválido.

Mesmo em um cenário de colegialidade plena advertíamos que os entes subnacionais não teriam maioria, nem possibilidade de representação adequada de seus interesses. Afinal, enquanto a União forma um bloco monolítico, com interesses claramente alinhados e representação de 50% nos comitês de harmonização (4 representantes, todos indicados pelo ministro da Fazenda — artigo 320, III da LC 214/25), os 27 estados e DF (dois representantes — 25%) e os mais de 5.570 municípios (dois representantes – 25%), que possuem uma pluralidade de interesses regionais/locais, inclusive antagônicos entre si (conforme, aliás, demonstra a disputa entre CNM e FNP), respondem, juntos, pelos demais 50%. Portanto, os entes subnacionais nem sequer possuem maioria na representação de seus interesses nos comitês.

Agora constata-se situação ainda mais grave: os municípios nem sequer estão no grupo, já que o comitê foi criado sem eles. Mas, mesmo se os municípios vierem a participar do Comitê por meio de representação da CNM, possivelmente não haverá representação dos pequenos municípios, conforme alerta a FNP. O Comitê Gestor tornou-se, de saída, um condomínio inconstitucional em que apenas os Estados ocupam o salão de assembleias, enquanto os municípios aguardam na antessala, disputando direito de ingresso.

Reforma ameaça converter estados e municípios em autarquias da União

Por outro lado, a União, que já detém metade dos assentos nos fóruns e comitês de harmonização e exerce papel central na definição das normas e procedimentos do IBS e da CBS, vê seu poder amplificado. Sem a participação efetiva dos municípios, a representatividade da União, que já era dominante, torna-se mais preponderante, reduzindo substancialmente o poder de influência dos entes subnacionais e tornando o sistema decisório ainda mais centralizado, o que compromete o equilíbrio federativo que deveria nortear a gestão do novo tributo.

Esse déficit de representatividade viola frontalmente o artigo 156-B da Constituição, que exige atuação integrada e paritária de estados, Distrito Federal e municípios na administração do IBS. Viola também a ratio decidendi dos precedentes do Supremo Tribunal Federal que qualificam a repartição de competências e de receitas como pilar da autonomia dos entes e não permitem a criação de estruturas administrativas que esvaziem o poder decisório dos entes federados (ADIs 2.024, 4.228 e RE 591.033). Se, por emenda constitucional, já era duvidoso reduzir a capacidade de autodefinição dos entes, mais temerário é prosseguir na implementação prática quando um dos pilares da tríplice engrenagem federativa está ausente.

A comparação internacional confirma a inconstitucionalidade do modelo [6]. No Canadá, a harmonização do GST/HST foi voluntária e gradativa: províncias aderiram por negociação bilateral, mantendo competência plena sobre alíquotas e fiscalização local. Na Índia, o conselho atribui 2/3 dos votos aos Estados, exigindo maioria qualificada de 75 %. No Brasil, a União não apenas participa de fóruns de harmonização com metade dos assentos, como estes já funcionam mesmo quando a cadeira municipal permanece vazia.

Tudo, em síntese, vem a confirmar nossa hipótese: o desenho adotado para o novo sistema tributário reduziu competência tributária, capacidade ativa e, agora, possibilidade de efetiva representação dos interesses subnacionais, mesmo em grupo. Se já era difícil conceber um órgão que exigisse unanimidade entre quase 6 mil entes, mais impraticável é fazê-lo funcionar sem a representação dos municípios. O resultado previsível é a prevalência dos interesses da União — bloco monolítico dotado de iniciativa legislativa e poder de fato – sobre uma federação enfraquecida e desarticulada. A reforma tributária ameaça converter estados e municípios em meras autarquias administrativas da União, conforme bem observado por Fernando Facury Scaff [7], fato que desfigura a forma de Estado federal, cláusula pétrea na Constituição.


[1] SOUZA, Hamilton Dias; CARRAZZA, Roque Antonio & ÁVILA, Humberto. A reforma tributária de que o Brasil precisa. In: Polifonia – Revista Internacional da Academia Paulista de Direito, n. 3., p. 284-305. Disponível aqui.

MARTINS, Ives Gandra da Silva; SOUZA, Hamilton Dias de; ÁVILA, Humberto & CARRAZZA, Roque Antônio. Relatório sobre as propostas da Câmara para a reforma tributária – Partes I e II. Portal Consultor Jurídico. Disponível aqui e aqui

SOUZA, Hamilton Dias de. A falsa dualidade da PEC 45/2019. Portal Consultor Jurídico. Disponível aqui

[2] PAULA, Caio Costa e. Encruzilhada federativa: municípios superendividados e a ameaça da reforma tributária. Revisa Consultor Jurídico. Disponível aqui

[3] SOUZA, Hamilton Dias de; SZELBRACIKOWSKI, Daniel Corrêa. Comitê gestor do IBS, harmonização e Federação – parte 1. JOTA. 14 de março de 2024. Aqui

[4] SOUZA, Hamilton Dias de; SZELBRACIKOWSKI. Reforma Tributária e federação, um diálogo com Fernando Scaff. Portal Consultor Jurídico. Disponível aqui

[5] Processo n.º 0714569-22.2025.8.07.0000.

[6] SOUZA, Hamilton Dias de; SZELBRACIKOWSKI, Daniel Corrêa. Reforma, harmonização e federação: o não adotado modelo indiano. São Paulo: JOTA, 2 de fevereiro de 2025. Disponível aqui​.

SOUZA, Hamilton Dias de; SZELBRACIKOWSKI, Daniel Corrêa. Reforma, harmonização e federação: o não adotado modelo canadense. JOTA. 12 de março de 2025. Aqui

[7] SCAFF, Fernando Facury. A Federação da União e suas autarquias: diálogo com Hamilton Dias de Souza. Aqui

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Boa-fé e nulidade no projeto de reforma do Código Civil

A utilização codificada das técnicas de cláusulas gerais é constante desde o século passado, mas exige um extremo cuidado e pode ser objeto de críticas.

Uma das críticas decorre da própria indeterminação e vagueza que potencializa conflitos, uma busca por sentido que esbarra em um Judiciário que enfrenta dificuldades pelo poder-dever de atender e responder a todo e qualquer conflito que lhe é apresentado.

Ademais, essas cláusulas exercem uma tripla função: interpretativa, corretiva e supletiva, que exigem do intérprete e do aplicador um esforço interpretativo e argumentativo exacerbado.

Assim, a responsabilidade por redigir o título preliminar de um código que siga essa premissa requer do legislador técnica e parcimônia, pois será a porção em que serão encontrados os alicerces do sistema jurídico e conceitos genéricos de sobredireito aplicáveis ao ordenamento jurídico como um todo.

Boa-fé objetiva

A boa-fé objetiva, por exemplo, consagrada em pelo menos três dispositivos no Código Civil de 2002 (artigos 113, 187 e 422), careceu de definição dogmática, sem que isso possa ser encarado como uma omissão legislativa. Em verdade, representou um comportamento proposital do legislador que permite ao magistrado avaliar a conduta das partes de acordo com os padrões de lealdade e cooperação exigidos pelas especificidades do caso concreto [1].

Essa flexibilidade é essencial para garantir a atualidade das decisões diante da dinamicidade social. Afinal, é a estrutura da Parte Geral que atuará como sustentáculo dos demais livros, sempre num feixe irradiante. Caso ela fosse repleta de conceitos detalhistas e específicos, a reestruturação frequente do código se tornaria inevitável diante do “efeito cascata” que o título preliminar exerce sobre a parte especial, gerando constante insegurança jurídica.

Da mesma forma, também não é interessante que essas cláusulas gerais de sobredireito sejam utilizadas para disciplinar questões demasiadamente objetivas e que requeiram um preciosismo técnico não apenas do legislador, mas dos aplicadores do direito.

Aquele que se propõe a legislar diante dessa técnica tem que ter a habilidade de identificar o que pode e deve ser tratado de maneira genérica e o que exigirá maior concretude.

Em algumas passagens do projeto de Código Civil, infelizmente, o ponto ótimo entre a concretude e a disciplina geral não foi alcançado.

Fraude à norma de ordem pública

Percebe-se, por exemplo, a utilização indiscriminada das expressões “norma de ordem pública” e “boa-fé” ao decorrer do texto reformista. Em particular, destacou-se dentre as mudanças da Parte Geral a nova redação do artigo 166, inciso VI, para incluir a “fraude à norma de ordem pública” como hipótese de nulidade dos negócios jurídicos, bem como a inclusão de um artigo 422-A que expressamente classifica a boa-fé como norma de ordem pública. Em outras palavras, a violação à boa-fé passaria, então, a ter o status de hipótese de nulidade negocial.

A questão que se põe não é se a utilização de um conceito demasiadamente abstrato deveria constar em um rol tão específico como é o das nulidades, mas sim se a reforma do Código Civil teria verdadeiramente inovado ao estabelecer, em interpretação conjunta, a fraude à boa-fé como hipótese de nulidade, ao invés de aproveitar a oportunidade para corrigir tal descompasso.

Não custa lembrar que a nulidade, diferentemente da anulabilidade, é matéria cognoscível de ofício pelo juiz, pronunciável a qualquer tempo, não se sujeitando à convalidação pela vontade dos agentes ou pelo decurso do tempo. Somente essas diferenças seriam suficientes para se restringir a declaração de nulidade a situações pontuais e já consolidadas dentro do ordenamento jurídico.

Mas ao contrário do que foi propagado, a violação à boa-fé já constava como causa de nulidade dos negócios jurídicos no “velho” Código Civil, ainda que pouco — ou nada — utilizada na prática forense, quer por descuido, quer por estratégia. Como já advertia Clóvis do Couto e Silva, a boa-fé possui natureza multifacetada e, tal qual a norma de ordem pública, resiste a uma definição estática:

A boa-fé possui múltiplas significações dentro do direito. Refere-se, por vezes, a um estado subjetivo decorrente do conhecimento de certas circunstâncias, em outras, diz respeito à aquisição de determinados direitos, como o de perceber frutos. Seria fastidioso enumerar as diferentes formas de operar desse princípio nos diversos setores do direito. O princípio da boa-fé contribui para determinar o que e o como da prestação, e ao relacionar ambos os figurantes do vínculo, fixa também, os limites da prestação. [2]

Mudança que não inova

A novidade legislativa, nesse ponto, mais repete do que inova. De fato, a análise sistemática dos artigos 166, inciso VII, e 187 do próprio Código de 2002 já permitia, antes mesmo da reforma, situar a boa-fé objetiva no plano das nulidades.

O artigo 187 qualifica como ato ilícito o exercício de um direito que exceda manifestamente os limites impostos pela boa-fé, pelos bons costumes ou pela função social. Há, portanto, um claro juízo de reprovabilidade jurídica em relação a condutas que, embora formalmente fundadas em prerrogativas legais, degeneram em abuso pela forma como são exercidas. Se a ilicitude está reconhecida no exercício abusivo, e se o negócio jurídico correspondente for estruturado sobre esse abuso, ele incorre em violação de uma norma proibitiva. Seria o caso, por exemplo, de um contrato de prestação de serviços advocatícios para ingressar com demandas judiciais visivelmente classificáveis como “litigância abusiva”, um manifesto excesso do direito legítimo de acesso à justiça.

É aqui que entra a utilidade do artigo 167, inciso VII, que considera nulo o negócio jurídico que a lei proíba a prática sem cominar sanção. Em outras palavras, ainda que a boa-fé não tenha sido qualificada expressamente como norma de ordem pública — como se pretende com a inclusão do artigo 422-A do projeto —, o regime de nulidade já se impunha por meio dessa construção sistemática. A ausência de uma sanção expressa no texto do artigo 187 não esvazia a sua natureza proibitiva. E onde há proibição sem sanção tipificada, incide a sanção da nulidade.

Reforma não ‘inventou a roda’

Portanto, a tentativa de afirmar que a reforma inovou ao prever a violação à boa-fé como hipótese de nulidade ignora que tal possibilidade já era juridicamente fundada. A mudança, ao invés de representar um avanço substancial, evidencia a hesitação do jurista reformador em assumir que os instrumentos já estavam postos e operacionais, ainda que em estado latente. Fato é que o projeto do Código Civil não “inventou a roda” ao trazer a boa-fé para o campo das nulidades, mas “perdeu o timing” por não aproveitar o espírito reformista para apaziguar tal insegurança — seja consolidando o entendimento doutrinário e jurisprudencial, seja oferecendo critérios mais objetivos para a sua aplicação.

Ao invés disso, a reforma se limitou a reafirmar, com roupagem diferente, aquilo que já se encontrava normativamente acessível, sobretudo a manter ipsis litteris o inciso VII do artigo 166. E ao fazer essa “muda de roupa” de maneira genérica, sem oferecer parâmetros interpretativos minimamente objetivos, contribuiu para o incremento da insegurança jurídica que deveria combater. A inserção de dispositivos como o novo artigo 422-A revela uma técnica legislativa vacilante: ao invés de clarificar a aplicação da boa-fé no plano das nulidades, acabaram por reiterar comandos já implicitamente extraíveis do sistema. Se a redundância já denota um descuido em situações ordinárias, quanto mais em um diploma do calibre do Código Civil.

Em termos práticos, a positivação explícita da boa-fé como norma de ordem pública — e, por extensão, como causa de nulidade — não resolve a dificuldade hermenêutica de sua aplicação. Ao contrário, pode até acentuá-la, uma vez que desloca para o julgador a responsabilidade de delimitar, caso a caso, o conteúdo jurídico da boa-fé em situações que demandariam maior densidade normativa. Como distinguir, no plano prático, a violação à boa-fé que enseja mera ineficácia relativa daquela que contamina o negócio com nulidade absoluta? A reforma, ao invés de responder a essa indagação, desloca o problema sem solucioná-lo.

Boa-fé de maneira superficial

Assim, a crítica que se impõe não é à consagração da boa-fé como vetor interpretativo e estruturante do sistema, mas à forma superficial e desarticulada como essa consagração foi operada na proposta de reforma. Afinal, transformar um princípio em fundamento de nulidade exige mais do que proclamá-lo “norma de ordem pública”: exige delinear com clareza os limites entre o razoável e o abusivo, entre o cumprimento imperfeito e o inadimplemento doloso, entre a irregularidade formal e a corrupção do negócio em sua essência.

Da mesma forma que um colega de classe que empresta a lição para o outro adverte “copia, só não faz igual”, parece que tal ressalva foi feita aos autores do projeto ao reformarem a Parte Geral. A dúvida que permanece é se tal redundância permanecerá na (provável) espinha dorsal do direito privado.


[1] “O resultado da compreensão superadora da posição positivista foi a preferência dada às normas ou cláusulas abertas, ou seja, não subordinadas ao renitente propósito de um rigorismo jurídico cerrado, sem nada se deixar para a imaginação criadora dos advogados e juristas e a prudente, mas não menos instituidora, sentença dos juízes. […] Como se vê, a boa-fé não constitui um imperativo ético abstrato, mas sim uma norma que condiciona e legitima toda a experiência jurídica, desde a interpretação dos mandamentos legais e das cláusulas contratuais até as suas últimas consequências.” (REALE, Miguel. A boa-fé no Código Civil. Disponível em: miguelreale.com.br/artigos/boafe.htm. Acesso em: 26 dez. 2024).

[2] COUTO E SILVA, Clóvis V. do. A obrigação como processo. 2ª ed. Rio de Janeiro: FGV Editora, 2006.

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Câmara aprova projeto que permite cancelamento online de contribuição sindical

Câmara dos Deputados aprovou nesta terça-feira (10/6) um projeto que revoga trechos desatualizados da Consolidação das Leis do Trabalho (Decreto-Lei 5.452/1943) e prevê mecanismos digitais de pedido de cancelamento de contribuição sindical. A proposta será enviada ao Senado.

De autoria do deputado Fausto Santos Jr. (União Brasil-AM), o Projeto de Lei 1.663/2023 foi aprovado com um substitutivo do relator, deputado Ossesio Silva (Republicanos-PE). De acordo com o texto, será revogado, por exemplo, o artigo sobre os direitos do trabalhador a invenções suas feitas enquanto está empregado, tema regulado atualmente pelo Código de Propriedade Industrial (Lei 9.279/1996).

Revisando a CLT

Outros pontos da CLT revogados pelo projeto são relativos à organização sindical, como a criação de sindicatos em distritos e a definição da base territorial da entidade por parte do ministro do Trabalho.

Nesse assunto, é excluída da CLT a necessidade de regulamentação ministerial de requisitos (como duração do mandato da diretoria e reunião de, pelo menos, um terço da categoria para o registro sindical, itens atualmente previstos em outra lei).

Também acaba a necessidade de o ministro do Trabalho autorizar a criação de sindicato nacional.

Na organização da Justiça do Trabalho, o projeto transfere e atualiza atribuições das extintas juntas de conciliação e julgamento, remetendo-as às varas trabalhistas.

Contribuição sindical

O ponto que provocou mais polêmica em plenário foi a aprovação de uma emenda do deputado Rodrigo Valadares (União Brasil-SE), por 318 votos a 116, que prevê os mecanismos digitais de pedido de cancelamento de contribuição sindical.

O texto da emenda permite o comunicado por e-mail ou por aplicativos de empresas privadas autorizadas para serviço de autenticação digital. “Chega de filas quilométricas, e sim à renúncia online. É dignidade para o trabalhador brasileiro”, disse Valadares.

A emenda prevê o uso de aplicativos oficiais, como o Gov.br, que mantêm conexão apenas com serviços públicos, e também determina aos sindicatos que disponibilizem aos trabalhadores o cancelamento digital do imposto sindical em suas plataformas, com prazo máximo de dez dias úteis para confirmar o pedido a partir do recebimento, sob pena de cancelamento automático. Com informações da Agência Câmara.

PL 1.663/2023

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De grandes fortunas a racismo, STF acumula ações que discutem omissão do Congresso

Tramitam no Supremo Tribunal Federal 12 ações diretas de inconstitucionalidade por omissão (ADOs) pendentes de julgamento, nas quais se alega omissão do Congresso na criação de leis para fazer valer normas constitucionais. Esse cenário em que os comandos não são detalhados na legislação traz prejuízos para a efetivação de políticas públicas e contribui para a instabilidade política e jurídica do país, dizem especialistas entrevistados pela revista eletrônica Consultor Jurídico.

As ações discutem temas que são frequentes na Justiça e nos debates entre o governo federal e parlamento, como o imposto sobre grandes fortunas (artigo 153, inciso VII, da Constituição) e o crime de negar ou impedir emprego em empresa privada em razão da raça ou cor (artigo 5º, inciso XLII).

Fachada do Congresso

Em toda a sua história, o STF recebeu um total de 93 ADOs. Entre aquelas ainda não julgadas no mérito, há também algumas com alegações de omissão dos Legislativos estaduais, do Executivo nacional e até da Agência Nacional de Aviação Civil (Anac).

Mas o maior volume histórico sempre foi direcionado ao Congresso, responsável direto pelo texto da Constituição e cuja atuação impacta o país inteiro.

Omissões enfraquecem regras

“A Constituição de 1988 foi construída com uma série de mandamentos que deveriam ser posteriormente regulamentados por meio de leis complementares e ordinárias. Isso já estava previsto desde o início e essa, de fato, foi a intenção do constituinte, para diversos temas”, explica o procurador federal André Rufino do Vale, professor de Direito Constitucional do Instituto Brasileiro de Ensino, Desenvolvimento e Pesquisa (IDP).

Mas, segundo ele, a “inação legislativa”, quase 37 anos depois, “deve ser encarada como omissão institucional, para a maioria dos temas carentes de regulamentação”.

Na visão de Vale, “uma Constituição que carece de regulamentação forma um ordenamento jurídico lacunoso e que dificulta a concretização de direitos e de políticas públicas importantes”.

Para o advogado Georges Abboud, também professor de Direito Constitucional do IDP, as omissões do Congresso mostram “indubitavelmente déficits de normatividade da Constituição e da execução de seu programa político”. Ou seja, “se os projetos da Constituição não são implementados por lei, há, em algum grau, defasagem na vinculação do próprio texto constitucional”.

Ele afirma que os parlamentares não podem adotar a ideia de que alguns dispositivos constitucionais são “mais obrigatórios do que outros”, pois essa mentalidade “favorece o clientelismo e a permanência de formas oligárquicas de pensar o país”.

Desde o momento em que entram em vigor, todos os trechos constitucionais têm “alguma eficácia imediata” — ainda que seja apenas “destinada a mandar que algo seja feito”. Assim, os congressistas não podem “decidir quais pontos da Constituição devem ou não ser realizados”, porque tais escolhas já foram feitas quando esses pontos foram aprovados.

Enquanto não há “sanção efetiva” das promessas constitucionais, de acordo com Abboud, “as questões omissas acabam ficando ao sabor dos ventos políticos ou até mesmo regulamentadas pelo STF, que posteriormente recebe, inevitavelmente, críticas muitas vezes injustas”.

A advogada constitucionalista Vera Chemim concorda que as lacunas mantidas “são responsáveis pela não efetivação dos direitos constitucionais, principalmente os direitos fundamentais individuais e coletivos”. A falta da legislação exigida pela Constituição também “prejudica a sua efetividade e enfraquece a sua força normativa”.

A situação ainda “embaraça a gestão pública, provocando a sua ineficácia, ineficiência e inefetividade no alcance dos seus objetivos e resultados”. Outro efeito, segundo a  advogada, é “o agravamento da instabilidade política e jurídica já reinante na conjuntura brasileira”

Confira a lista das 12 ADOs sobre possível omissão do Congresso ainda pendentes de julgamento:

Número da ação Dispositivo constitucional não regulamentado Tema
ADO 40 Artigo 98, inciso II Criação da Justiça de paz*
ADO 47 Artigo 32, § 4º Regras sobre uso das polícias e do Corpo de Bombeiros Militar pelo governo do DF
ADO 55 Artigo 153, inciso VII Instituição do Imposto sobre Grandes Fortunas
ADO 62 Artigo 245 Assistência do poder público a herdeiros e dependentes carentes de vítimas de crimes dolosos
ADO 69 Artigo 5º, inciso XLII Falta de previsão de pena de prisão para o crime de negar ou impedir emprego em empresa privada em razão da raça ou cor
ADO 70 Artigo 18, § 4º Período em que os estados podem criar, incorporar, fundir e desmembrar municípios
ADO 73 Artigo 7°, inciso XXVII Direito dos trabalhadores à proteção em face da automação
ADO 77 Artigo 243 Expropriação de propriedades com exploração de trabalho escravo para destinação à reforma agrária e a programas de habitação popular, além de confisco de bens apreendidos
ADO 81 Artigo 7º, inciso I Direito dos trabalhadores à proteção do emprego contra despedida arbitrária ou sem justa causa
ADO 83 Artigo 7º, inciso XX Direito à proteção do mercado de trabalho da mulher
ADO 84 Artigo 5º, incisos X e XII Uso de ferramentas e programas de monitoramento secreto de aparelhos de comunicação pessoal por órgãos e agentes públicos
ADO 86 Artigo 231, § 6º Falta de definição sobre o que configura “relevante interesse público da União” nos processos de reconhecimento, demarcação, uso e gestão de terras indígenas
*A alegação é de omissão tanto do Congresso quanto das Assembleias Legislativas estaduais e dos Tribunais de Justiça

À mercê do Congresso

A falta de regulamentação de trechos da Constituição passa pelo jogo de interesses da política. Chemim aponta que o Legislativo vive diversos conflitos internos e externos com o Executivo.

O grande número de partidos políticos contribui para a falta de consenso e dificulta a formação de maioria para aprovação de leis, diz. Cada partido pressiona para que temas de seu interesse particular ou demandas populares de determinadas regiões sejam pautadas. Muitas vezes, isso atropela “outras necessidades nacionais que demandam uma legislação não priorizada por falta de interesse político”.

Outro fator, na visão da advogada, é a falta de conhecimento dos próprios parlamentares sobre a importância da regulamentação de “dispositivos constitucionais que são determinantes para o desenvolvimento social, político, cultural e econômico do país”.

Ela cita ainda a falta de recursos e de tempo, que afeta o funcionamento ideal da Câmara e do Senado. Atualmente, as omissões também são perpetuadas devido ao “cenário de instabilidade política e econômica decorrente da polarização político-ideológica e do recrudescimento do conflito entre o Poder Legislativo e o STF”.

Os motivos para a falta de regulamentação podem variar conforme o tema. No caso da ADO 73, que questiona a omissão do Legislativo com relação à proteção dos trabalhadores diante da automação (direito previsto no inciso XXVII do artigo 7º da Constituição), Georges Abboud entende que a resistência remete “a posturas que nossas classes altas guardam como heranças de comportamentos senhoris de épocas em que o trabalho pouco qualificado era abundante e largamente utilizado”.

Algumas lacunas se relacionam, segundo ele, com “posturas corporativistas”. É o caso da ADO 40, que trata da criação da Justiça de paz — voltada a promover conciliações e, por exemplo, celebrar casamentos. Embora ela esteja prevista no inciso II do artigo 98, nunca foi implementada.

Outras omissões “carregam as marcas do nosso passado (e presente) oligárquico”. O constitucionalista cita como exemplo a ADO 86, na qual se discute o que seria interesse público para fins de demarcação e uso de terras indígenas; e a ADO 55, que contesta a falta de criação do Imposto sobre Grandes Fortunas (IGF).

“Em muitos momentos da nossa história, como é de sabença, projetos nacionais foram preteridos em favor de projetos de elites regionais”, completa.

ADO 70 discute o período em que os estados podem criar, incorporar, fundir e desmembrar municípios. Abboud indica que ela “tem contornos eleitorais, tributários e orçamentários”, além de gerar disputas entre entes federativos — afinal, “um município é sempre uma peça nova no tabuleiro político”.

Problema histórico

Há ainda questões com “antecedentes históricos nas desigualdades sociais que atravessam o Brasil desde sempre”, que “prestam homenagem ao nosso passado escravista, excludente, patrimonialista e sempre autoritário em potência”.

É o caso da ação sobre o IGF; da ADO 69, que contesta a falta de pena de prisão para quem nega emprego em razão da raça ou cor; e da ADO 83, que busca incentivos específicos direcionados à proteção do mercado de trabalho da mulher, prevista no inciso XX do artigo 7º da Constituição.

“Apesar de todas as omissões serem lamentáveis, aquelas referentes a questões de gênero e cor, bem como as questões indígenas, são particularmente problemáticas porque se referem a mazelas sociais antigas do nosso país e impedem que, por aqui, as promessas da modernidade se cumpram efetivamente”, diz o advogado.

Chemim entende que o Congresso deixou alguns temas “para serem regulamentados em momentos oportunos do ponto de vista político e social”.

Para a constitucionalista, a depender do assunto, o Legislativo “deverá sentir a temperatura junto à sociedade, verificando se aquela legislação encontrará eco suficiente, no que se refere ao grau de maturidade do ponto de vista social e a consequente acolhida favorável àquela regulamentação”. Isso é o que acontece, segundo ela, com o IGF.

Por outro lado, na sua visão, a proteção do trabalhador em face da automação é “um tema atual e de grande repercussão social, por se destinar a uma minoria que precisa desse tipo de proteção que deveria ser urgentemente disciplinada em lei, por razões óbvias”.

André do Vale acredita que o artigo 5º da Constituição já deveria ter sido regulamentado por inteiro (todos os seus incisos). “Da mesma forma, os direitos sociais dos trabalhadores (dos setores público e privado), assim como dos indígenas, há muito deveriam ter regulamentação completa”, conclui.

Correndo atrás

O saldo de 12 ADOs sobre omissão do Congresso pendentes de julgamento só não é maior porque o Supremo intensificou a análise de ações do tipo nos últimos anos. Só neste ano, duas foram julgadas. Desde 2023, foram sete no total.

Na decisão mais recente, do último mês de maio, o Plenário do STF reconheceu a omissão do Congresso por não classificar como crime em lei a conduta de retenção dolosa de salário do trabalhador. Os ministros também estipularam um prazo de 180 dias para que os parlamentares preencham a lacuna.

Já em fevereiro, a corte mandou os congressistas regulamentarem em até dois anos o direito dos trabalhadores à participação, de forma excepcional, na gestão das suas respectivas empresas.

No último ano, os magistrados estipularam um prazo de 18 meses para o Legislativo federal aprovar uma lei que garanta a proteção do meio ambiente na exploração de recursos do Pantanal mato-grossense. Também em 2024, foi determinado o mesmo prazo para a regulamentação do adicional de penosidade (benefício para quem atua com trabalhos extremamente árduos e desgastantes, seja física ou psicologicamente) para os trabalhadores.

Em 2023, o Supremo ordenou aos parlamentares a regulamentação da licença-paternidade em até 18 meses; a criação do Fundo de Garantia das Execuções Trabalhistas (Funget), formado por multas decorrentes de condenações trabalhistas e da fiscalização do trabalho, no prazo de dois anos; e o reajuste da proporção do número de vagas na Câmara em relação à população de cada estado, até o final deste mês de junho de 2025.

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Direito Penal Tributário: entre infrações fiscais e delitos

Ocorreu nos dias 21 e 22 de maio de 2025 o 3º Congresso Iberoamericano de Direito Penal Tributário, em Bogotá, Colômbia, coordenado por Juan Manuel Álvares Echague, professor de Direito Tributário da Universidade de Buenos Aires, e por José Manuel Almudi Cid, professor de Direito Tributário e atual Diretor da Universidade Complutense de Madrid. A anfitriã foi a Universidade Javeriana da Colômbia, representada pelo professor de Direito Penal José Carlos Prias, que nos recepcionou em conjunto com outros professores, dos quais destaco o tributarista Maurício Plazas.

Estiveram presentes profissionais de direito penal e de direito tributário de 11 países, sendo, do Brasil, eu e Marcelo Campos. Foi um exercício de interdisciplinariedade e reconhecimento dos diferentes estágios das duas disciplinas acerca desse objeto conjunto, no amplo panorama das Américas. Um livro com cerca de 1.400 páginas foi lançado, incluindo textos de autores brasileiros, sendo Marcelo Campos um dos cocoordenadores da obra. [1]

A parte que me coube naquele latifúndio de conhecimentos foi analisar a diferença entre infrações fiscais delitos com referência ao direito brasileiro. Adaptei o texto que lá expus para ser divulgado nesta ConJur em três textos quinzenais nesta coluna Justiça Tributária.

Sendo publicada em partes, fica parecendo uma série de streaming, com três episódios. Aqui vai o primeiro.

As decisões de política governamental

Machado de Assis, um dos maiores escritores brasileiros, publicou em 1882 um conto denominado O Alienista no qual relata o regresso do médico Simão Bacamarte à pequena cidade de Itaguaí, “filho da nobreza da terra e o maior dos médicos do Brasil, de Portugal e das Espanhas”, tendo estudado em Coimbra e em Pádua. Sua especialidade era a psiquiatria e logo passou a observar o comportamento dos habitantes da cidade. Pouco a pouco, foi identificando sinais de loucura em cada um deles, recolhendo-os ao hospício que havia criado, denominado Casa Verde.

“De todas as vilas e arraiais vizinhos afluíam loucos à Casa Verde. Eram furiosos, eram mansos, eram monomaníacos, era toda a família dos deserdados do espírito. Ao cabo de quatro meses, a Casa Verde era uma povoação. Não bastaram os primeiros cubículos; mandou-se anexar uma galeria de mais trinta e sete.”

O número de pessoas consideradas loucas crescia a cada dia, o que ocasionou diversas rebeliões na cidade, todas em vão. Bacamarte recolheu ao hospício até mesmo sua esposa, por ele considerada louca, além de vários políticos. Em determinado momento 80% dos habitantes da cidade estavam recolhidos à Casa Verde.

Após algum tempo de exame dos pacientes, o psiquiatra declarou que diante dessa quantidade de pessoas recolhidas ao hospício, ele assumira a convicção de que a verdadeira doutrina não era aquela que estava professando, mas a oposta, e, portanto, se devia admitir como normal e exemplar o desequilíbrio das faculdades mentais e como loucos todos os casos em que houvesse um equilíbrio dessas faculdades.

Com isso, Bacamarte libertou todos os que estavam recolhidos ao manicômio e, observando-se, “achou em si as características do perfeito equilíbrio mental e moral; pareceu-lhe que possuía a sagacidade, a paciência, a perseverança, a tolerância, a veracidade, o vigor moral, a lealdade, todas as qualidades, enfim, que podem formar um acabado mentecapto”.

Considerou-se, portanto, como sendo o único habitante da cidade com essas características, e decidiu se encarcerar no hospício para estudar a si mesmo e se curar. Faleceu ao final de dezessete meses de autoisolamento.

Este conto de Machado de Assis nos diz muito sobre a diferença entre infrações e crimes. Se toda infração for considerada um crime, as prisões passarão a estar repletas e as ruas vazias. Deve ser adotada com muita cautela a decisão de política governamental que estabeleça a distinção entre o que a sociedade deve considerar como uma infração e como um crime que acarrete o cerceamento da liberdade do indivíduo, e, em alguns casos, até sua vida.

Aqui se identifica um primeiro ponto do problema, que se refere à política governamental: deve-se criminalizar amplamente todas as condutas que violam as normas jurídicas?

Estacionar em local proibido ou não pagar uma conta de energia elétrica são infracções, apenadas com multas ou algum cerceamento de direitos, como se vê na possibilidade de suspensão da carteira de habilitação de motorista ou no cancelamento do fornecimento de energia elétrica. Todavia, se até mesmo essas infrações forem capituladas como delitos e os infratores considerados criminosos e encarcerados, estaremos defronte ao mesmo problema enfrentado pelo psiquiatra do conto O Alienista.

Filosoficamente pode-se afirmar que, se tudo é, nada é. Por outras palavras, se tudo for considerado como crime, sem distinção entre as condutas que atingem de forma mais ou menos intensa alguns direitos, ao final de certo tempo haverá a banalização da prisão, e a ameaça de encarceramento por condutas menos danosas acarretará a necessidade da escalada de maiores penalidades para as condutas mais complexas, fazendo com que o direito penal perca sua função primordial de proteção dos bens jurídicos verdadeiramente essenciais a uma sociedade. [2]

Nesse sentido, um Estado que alarga demais o punitivismo para infrações menores, se constituirá em um Estado policialesco, vigilante ao extremo acerca da conduta de seus cidadãos, sob pena de encarceramento. Em sentido oposto, caso as infrações maiores não sejam devidamente apenadas, haverá um Estado leniente, pois nem mesmo as infrações mais sérias a bens jurídicos sensíveis será considerada como crime.

É necessário fazer distinções de grau infracional, separando as lesões menores das maiores, acarretando que algumas venham a ser punidas com penas mais leves, tão somente pecuniárias (como nas infrações de trânsito), e outras com penas mais severas, como ocorre nos crimes contra a vida, cujo encarceramento é a regra geral em muitos sistemas jurídicos, havendo alguns que atribuem a pena de morte.

Para tanto, existe um limite aplicável aos países que se constituem em verdadeiros Estados Democráticos de Direito, que é o Princípio da Intervenção Penal Mínima, de modo que a atuação do Estado por meio do Direito Penal seja restrita ao mínimo necessário, sendo utilizada apenas quando os demais ramos do Direito se mostrarem insuficientes para proteger os bens jurídicos relevantes. Esse princípio é também conhecido como última ratio e se fundamenta na ideia de que o Direito Penal é a forma mais gravosa de intervenção estatal, evitando o excesso punitivo.

O direito tributário, que regula as relações entre o Fisco e os contribuintes, serve para arrecadar recursos das pessoas privadas, físicas e jurídicas, para os cofres públicos. Sua delimitação encontra-se nos direitos fundamentais dos contribuintes, que podem ser classificados como relativos: (1) à proteção dos contribuintes; (2) ao tratamento isonômico na tributação; (3) à boa administração fiscal, e (4) às garantias para o exercício dos direitos fundamentais.

O principal desses direitos fundamentais de proteção dos contribuintes é a Legalidade, pois a análise de todos os demais parte dele. Fiscalmente é importante o Princípio da Reserva Legal Tributária, que determina que só é possível instituir ou aumentar tributo se lei específica assim o estabelecer. E criminalmente é importante considerar o secular Princípio da Reserva Legal Penal, de que não há crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem prévia cominação legal. Este conjunto de princípios, que se configuram em direitos fundamentais, é imprescindível para a delimitação do que seja uma infração fiscal e do que seja um delito.

Logo, uma primeira distinção entre infrações e crimes deve ser visualizada na política governamental acerca do direito sancionatório em geral, distinguindo o que deve ser protegido sob o manto do direito penal, o mais rigoroso em uma sociedade, pois, no limite, acarreta a perda da liberdade dos indivíduos. E isso deve ocorrer por meio de lei em sentido estrito, a Reserva Legal Penal, observado o Princípio da Intervenção Penal Mínima, cerne do Estado Democrático de Direito.

Normas brasileiras sobre direito penal tributário

Estabelecida a delimitação político-normativa, deve-se analisar as normas introduzidas no direito positivo de cada país.

A Constituição brasileira de 1988 estabelece no artigo 5º, inciso LXVII, que “não haverá prisão civil por dívida, salvo a do responsável pelo inadimplemento voluntário e inescusável de obrigação alimentícia e a do depositário infiel”. Isso aponta para o fato de que são necessárias normas que tipifiquem condutas como crimes, mesmo nos casos de não pagamento de tributos, que se constituem tão somente como dívidas civis, embora tendo como credor o Estado.

No Brasil foram criadas normas específicas para o direito penal tributário, instituídas pela Lei 8.137/1990, que estabelece como delitos as seguintes condutas, obedecendo a Reserva Legal Penal.

O artigo 1º estabelece que “Constitui crime contra a ordem tributária suprimir ou reduzir tributo, ou contribuição social e qualquer acessório, mediante as seguintes condutas …”. Desse comando normativo são tipificadas diversas condutas que exigem dolo específico de reduzir ou suprimir tributo, em cinco incisos:

(I) “Omitir informação, ou prestar declaração falsa às autoridades fazendárias”; que se constitui em um crime formal, pois independe da obtenção do resultado pretendido.
(II) “Fraudar a fiscalização tributária, inserindo elementos inexatos, ou omitindo operação de qualquer natureza, em documento ou livro exigido pela lei fiscal”. Trata-se de crime material, pois depende do resultado, isto é, precisa ter ocorrido a efetiva redução ou supressão de tributo.
(III) “Falsificar ou alterar nota fiscal, fatura, duplicata, nota de venda, ou qualquer outro documento relativo à operação tributável”; que pode ser crime formal ou material, a depender do caso concreto.

(IV) “Elaborar, distribuir, fornecer, emitir ou utilizar documento que saiba ou deva saber falso ou inexato”, que se constitui em um crime material.
(V) “Negar ou deixar de fornecer, quando obrigatório, nota fiscal ou documento equivalente, relativa à venda de mercadoria ou prestação de serviço, efetivamente realizada, ou fornecê-la em desacordo com a legislação”, que se constitui em um crime formal.

Todos esses tipos criminais previstos do artigo 1º da Lei 8.137/90 são apenados com reclusão de dois a cinco anos, e multa.

Existe ainda o artigo 2º da mesma Lei, prevendo crimes tributários culposos ou omissivos impróprios, embora ainda se exija dolo específico para alguns. O artigo 2º é centrado nas obstruções à fiscalização e descumprimento de obrigações acessórias que viabilizam a correta arrecadação tributária. Os diversos incisos dessa norma tipificam condutas específicas que frustram a ação fiscalizatória da Fazenda Pública, com ou sem a intenção de suprimir tributos, sendo considerados crimes formais ou omissivos próprios, com penas mais leves, entre 06 meses e dois anos de detenção.

É previsto no artigo 2°: “Constitui crime da mesma natureza”, daí surgindo os seguintes incisos:

(I) “Fazer declaração falsa ou omitir declaração sobre rendas, bens ou fatos, ou empregar outra fraude, para eximir-se, total ou parcialmente, de pagamento de tributo”.
(II) Deixar de recolher, no prazo legal, valor de tributo ou de contribuição social, descontado ou cobrado, na qualidade de sujeito passivo de obrigação e que deveria recolher aos cofres públicos”. Adiante se analisará a decisão do STF — Supremo Tribunal Federal no RHC 163.334-SC, que estabeleceu o que se deve entender por “tributo descontado ou cobrado” referente ao crime de apropriação indébita fiscal.
(III) “Exigir, pagar ou receber, para si ou para o contribuinte beneficiário, qualquer percentagem sobre a parcela dedutível ou deduzida de imposto ou de contribuição como incentivo fiscal.”
(IV) “Deixar de aplicar, ou aplicar em desacordo com o estatuído, incentivo fiscal ou parcelas de imposto liberadas por órgão ou entidade de desenvolvimento”.
(V) Utilizar ou divulgar programa de processamento de dados que permita ao sujeito passivo da obrigação tributária possuir informação contábil diversa daquela que é, por lei, fornecida à Fazenda Pública.”

Como se verifica, os tipos penais estabelecidos pela legislação brasileira são próprios para condutas fiscais, regulando propriamente o direito penal tributário, sem a utilização direta do Código Penal, o que é diverso do que se verifica em outras jurisdições latino-americanas.

*Tal como uma série de streaming, aguardem a 2ª parte (ou episódio), que circulará em 15 dias neste mesmo espaço da coluna Justiça Tributária.

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[1] ÁLVAREZ ECHAGÜE, Juan Manuel et al. (dir.). Derecho Penal Tributario Latinoamericano: Estudio y análisis comparado de los principales regímenes penales que regulan el delito fiscal. Buenos Aires: Editorial Ad-Hoc, 2025.

[2] Nesse sentido, ver: OLIVEIRA, Regis Fernandes de. Infrações e sanções administrativas. 2ª ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2005.

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O backlash da grande feitiçaria que é a inteligência artificial

Quase todos “os desafios do século 21”, diz Ronai, implicam alguma reflexão sobre as ciências e as tecnologias. A Filosofia tem feito isso, mas, ao menos um dos temas indicados acima, os desafios da IA, é novo para nós.

Ronai faz parte, como eu, de uma geração que pensou sobre a tecnologia usando metáforas, alegorias, metonímias, perguntas e premissas simples… mas complexas.  A principal metáfora foi a do aprendiz de feiticeiro.

A principal pergunta era sobre a natureza das tecnologias, se eram neutras ou não. A principal premissa era a do perigo eminente que elas traziam. Para quem ainda não sabe, Ronai explica a metáfora do aprendiz de feiticeiro, que se refere a situações nas quais, movidos por algum desejo pouco refletido, começamos a fazer algo que, logo a seguir, não conseguimos mais controlar; surgem consequências que não previmos, que podem ser desastrosas.

A história original chama-se exatamente O Aprendiz de Feiticeiro e foi escrita por Goethe, faz mais de 200 anos. Nela, um aprendiz de feiticeiro, na ausência de seu mestre, usa uma fórmula mágica para fazer com que uma vassoura faça o trabalho de limpeza que cabia a ele.

No entanto, o aprendiz não conhece o feitiço para parar a vassoura. Ela segue trazendo água até que a casa fica inundada.

Aprendeu-se essa história sem saber que era de Goethe. Nem Disney contou pra gente. Veja-se o filme Fantasia, em que Mickey era o aprendiz, que tinha que esperar a volta do mestre para resolver o problema. A metáfora firmou-se, pois era boa para falar dos riscos inerentes a novos conhecimentos e tecnologias.

Não quero a volta do lápis. Nem do ábaco. Ou da Olivetti. Lembro de quando escrevi minha dissertação de mestrado. Com uma máquina de escrever. O xerox desbotava, lembram?  Mas daí a que um robô escreva em meu lugar… a distância vai até a vassoura do aprendiz de feiticeiro.

A metáfora do aprendiz de feiticeiro pode ser vista como uma variação sobre um tema filosófico venerável, a questão dos efeitos colaterais da ação humana. As nossas ações não se resumem às intenções declaradas. E acrescenta Ronai: quando compro pão e queijo na padaria da esquina, para ter algo de comer, eu movo a corrente do mundo das vacas, das farinhas, do dinheiro, dos impostos, da minha saúde. O mundo não é movido apenas pelas nossas intenções. A metáfora do aprendiz vale não apenas para os efeitos colaterais das coisas e tecnologias que criamos (a energia nuclear) mas para ações humanas triviais, como dar (ou não) “bom dia” a alguém.

E o tema do perigo? Para Ronai, a metáfora do aprendiz de feiticeiro sugere que podemos desencadear forças que escaparão de nosso controle. É isso mesmo. Cada um de nós já experimentou isso, de alguma forma, de algum jeito. Em certo sentido somos todos aprendizes de feiticeiros.

Exercemos a arte da feitiçaria quando falamos: fazemos coisas com palavras, como no livro de John Austin: promessas, votos, juramentos, declarações, desculpas, apostas, mentiras, perdões, pedidos e dezenas de outras formas de fazer coisas com palavras que sempre tem consequências. E que nem sempre avaliamos bem.

O Direito parece ser o locus privilegiado em que habitam os aprendizes de feiticeiro. E já sentimos o perigo. Picaretagens a mil. Advogados fraudadores querendo enganar os tribunais. Juízes utilizando robôs para limpar a pauta e poder jogar golfe. Estagiários terceirizando trabalho ao ChatGPT. E gente que nunca escreveu um fonograma na vida agora escreve livros… com ChatGPT. Outro dia um italiano enganou o mundo, lançando um novo conceito (hipnocracia). E a malta acreditou. Bem-feito (leiam aqui). Torço para a briga.

Os robôs já podem fazer desenhos tão ou mais bem elaborados que os humanos. Agora surgiu um novo robô da Google. Os chineses também inventaram um novo. Os robôs já fazem dublagem. Imitam vozes. E falam.

No Direito, fazem petições melhores que os advogados, que nem se dão conta de que isso mostra o fracasso da humanidade. Se uma máquina faz coisas melhores que o homem, então teríamos que, até por vaidade, parar para pensar. Eis o paradoxo: se a IA der certo, dará errado. Porque nos ultrapassa(rá).

Lembremos do cão que atirava crianças na água para ganhar suculentos bifes, caso contado por dois cientistas de Oxford no Parlamento britânico e que contei aqui no ConJur. O cachorro também aprendeu de forma generativa.

Por enquanto o robô alucina quando alguém lhe pede pesquisas – afinal, ele precisa dar uma resposta, mesmo que alucinadamente.

Daí a pergunta: e quando o robô conseguir encontrar, por exemplo, no Direito, a resposta certa para os casos mais complexos, buscando os corretos precedentes, com inclusão das técnicas de overruling e distinguishing em dimensão superior a qualquer humano com razoável formação? O que será do Direito? E o que sobrará para os estudiosos, se o robô faz tudo melhor?

Outro dia um querido amigo disse, corretamente, que a doutrina jurídica ainda tinha muito valor; só que ele mesmo dias antes fazia uma ode ao ChatGPT. E aos precedentes (que não são precedentes).

Eis a questão. O perigo está na máxima representada pela alegoria do trapezista que, de tão competente e treinado, achou que poderia voar. E se estatelou no chão. Porque trapezista, por melhor que seja, não sabe voar.

O consolo? Talvez esteja no fato de que robô não desce escada. Por enquanto.

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STJ pode criar regras para o tráfico privilegiado? A resposta está na Constituição

A iminente apreciação dos Temas Repetitivos 1.154 (REsp 1.963.433/SP, REsp 1.963.489/MS e REsp 1.964.296/MG) e 1.241 (REsp 2.059.576/MG e REsp 2.059.577/MG) pelo Superior Tribunal de Justiça desperta grave preocupação no campo da Teoria Geral da Constituição e da legalidade penal. O ponto central em debate — a possibilidade de o Judiciário modular a aplicação da causa de diminuição do §4º do artigo 33 da Lei de Drogas com base em critérios objetivos como quantidade ou variedade da substância apreendida — ultrapassa os limites interpretativos admissíveis no regime constitucional vigente.

A Lei nº 11.343/2006 nasceu de um processo legislativo minucioso, iniciado com o PLS 115/2002, apresentado pelo então senador Ramez Tebet. Durante a tramitação, foram incorporadas diversas propostas legislativas (PLs 6.108/2002 e 7.134/2002), consolidando um texto que buscou equilibrar repressão ao narcotráfico com um olhar diferenciado sobre o réu primário, de bons antecedentes e não vinculado a organizações criminosas.

O próprio texto da exposição de motivos do projeto de lei foi categórico:

“Não olvidando a importância do tema, e a necessidade de tratar de modo diferenciado os traficantes profissionais e ocasionais, prestigia estes o projeto com a possibilidade […] de redução das penas […]”.

É nesse ponto que se evidencia a essência normativa da causa de diminuição prevista no §4º do artigo 33: um dispositivo de clemência penal calibrado por critérios subjetivos — primariedade, bons antecedentes, não envolvimento com organização criminosa e não dedicação a atividades criminosas. Nada além disso foi exigido pelo legislador. Portanto, a tentativa de criar um “padrão de modulação” com base quantitativa ou qualitativa, por via judicial, representa indevida extrapolação do papel que a Constituição reserva ao Judiciário.

A Constituição de 1988 delineia com clareza a repartição de funções entre os Poderes (artigo 2º). A competência para legislar sobre matéria penal é exclusiva do Congresso Nacional. O Judiciário, como guardião da Constituição (artigo 102, caput), não pode criar norma penal nova, sob pena de violação direta aos princípios da legalidade estrita (artigo 5º, II) e da reserva legal penal (artigo 5º, XXXIX). Criar um critério novo — como tornar a quantidade da droga um fator isolado para afastar o tráfico privilegiado — equivale, em última análise, a editar nova norma penal sem respaldo do Poder Constituinte Derivado. Isso compromete não apenas a segurança jurídica, mas a própria legitimidade da jurisdição penal.

Mais grave ainda: ao vincular a concessão do tráfico privilegiado a marcos objetivos rígidos, a jurisprudência propõe um verdadeiro rebaixamento da individualização da pena e da isonomia penal. Resta, então, uma política punitiva enviesada, desprovida de base empírica, que trata desiguais como se iguais fossem — primando por um simbolismo penal que não encontra respaldo constitucional nem eficácia real.

A tentativa de fixar balizas quantitativas para o §4º do artigo 33 da Lei nº 11.343/2006 revela um fenômeno perigoso: a judicialização da política criminal em sua forma mais aguda. A jurisprudência deixa de ser instrumento de concretização da norma e se torna mecanismo de criação normativa — invertendo a lógica democrática da separação de Poderes.

Exemplo disso é a atual tramitação no Senado do PLS 4.999/2024, que propõe disciplinar expressamente o uso da quantidade como critério modulador da causa de diminuição. A simples existência do projeto já é suficiente para demonstrar que o Legislativo entende tratar-se de matéria a ele reservada. Caso contrário, não haveria proposta de lei: bastaria aguardar o STJ decidir.

Não há evidência científica sólida, nem mesmo qualquer artigo científico, que assegure que o agravamento da pena, com base na quantidade e variedade da droga, reduza a criminalidade. Ao contrário, o excesso punitivo desarticula políticas públicas mais eficazes e reforça a seletividade penal — direcionada, quase sempre, à população mais vulnerável.

Não se trata, aqui, de negar a gravidade do tráfico de drogas. Mas sim de reafirmar que o combate ao crime deve se dar nos marcos do Estado Democrático de Direito. O Judiciário não pode, sob o pretexto de eficiência punitiva, invadir competência legislativa. Quando o faz, desrespeita a Constituição, viola o pacto federativo e compromete a legitimidade da jurisdição penal.

Extrapolação e fidelidade

A decisão a ser proferida nos Temas Repetitivos 1.154 e 1.241 pelo STJ tem o potencial de redefinir, de forma profunda e controversa, a aplicação do tráfico privilegiado. Ao fazê-lo com base em critérios que extrapolam o texto legal, o Judiciário se aproxima de um legislador positivo — em flagrante descompasso com os princípios estruturantes da Constituição de 1988.

O Direito Penal não pode ser reconstruído por interpretações, ainda que bem intencionadas. A fidelidade ao texto constitucional não é obstáculo à Justiça — é seu fundamento. E a Constituição não autoriza o Judiciário a substituir o Parlamento. Autoriza, apenas, a guardar a Lei Maior.

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Julgamento virtual sem intimação dos advogados é nulo, diz STJ

É nulo o julgamento de recurso de apelação em sessão virtual realizada sem a intimação dos advogados das partes.

Com esse entendimento, a 3ª Turma do Superior Tribunal de Justiça deu provimento ao recurso especial para anular um julgamento do Tribunal de Justiça de São Paulo.

O caso é de ação de indenização por danos materiais e morais contra uma construtora, por particulares que compraram um apartamento térreo pelo atrativo de ter uma área privativa externa.

A construtora instalou nesse local a caixa de gordura para armazenamento de dejetos de todo o sistema de esgoto do edifício, o que causou transtornos com mau cheiro, infestação de insetos e manutenção periódica para limpeza.

A ação foi julgada procedente para condenar a construtora a pagar indenização pela desvalorização do imóvel, além de R$ 10 mil por danos morais.

Julgamento virtual relâmpago

A apelação foi distribuída ao relator no TJ-SP em 22 de setembro de 2020 e julgada no dia seguinte, de forma virtual e sem intimação das partes. A corte deu provimento ao recurso da construtora e afastou a condenação por danos morais.

O tribunal paulista afastou nulidade pela ausência de prejuízo pelo julgamento virtual. Relator do recurso especial, o ministro Ricardo Villas Bôas Cueva reformou essa posição e anulou o acórdão, determinando novo julgamento.

Para ele, houve violação do artigo 935 do Código de Processo Civil, prevê que entre a data da publicação da pauta e a da sessão de julgamento decorrerá, no mínimo, o prazo de cinco dias.

Prejuízo evidente

O julgamento sem a intimação das partes ainda ofende o artigo 937 do CPC, segundo o qual será dada a palavra aos advogados das partes para oferecerem sustentação oral.

“Diversamente do afirmado pela Corte de origem nos aclaratórios, não há como afastar a existência de prejuízo para os recorrentes, mormente tendo sido provido o recurso da recorrida, sem que lhes fosse oportunizada a devida sustentação oral e a entrega de memoriais”, disse.

“Cumpre assinalar que a celeridade não autoriza o afastamento de regras que garantem a observação do contraditório”, acrescentou o ministro Cueva. A votação na 3ª Turma do STJ foi unânime.

Clique aqui para ler o voto de Villas Bôas Cueva
REsp 2.136.836

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CNJ libera acesso a dados da Central de Escrituras e Procurações

O corregedor Nacional de Justiça, ministro Mauro Campbell Marques, aprovou uma mudança no Provimento 149/2023 do Conselho Nacional de Justiça para permitir a consulta pública a dados básicos da Central de Escrituras e Procurações (CEP).

Agora, qualquer interessado poderá acessar as informações por meio de certificado digital (e-Notariado ou ICP-Brasil) e apresentação de nome completo e número de CPF ou de CNPJ. Antes, a consulta era restrita a tabeliães de notas e oficiais de registro, que poderiam ou não disponibilizá-las mediante solicitação.

Dessa forma, o serviço disponibilizará:

— O nome do cartório em que o ato notarial foi lavrado;

— Os números do livro e das folhas;

— Se é escritura ou procuração pública.

O preço de cada consulta será de R$ 19. O valor foi sugerido pelo Colégio Notarial do Brasil e equivale a 25% da média aritmética dos valores cobrados por certidão notarial nas unidades federativas.

Dados públicos

Campbell Marques aprovou a alteração no âmbito de um pedido de providências formulado pelo advogado Vitor Gomes Rodrigues de Mello. Ele relatou que atua na área de localização de ativos e recuperação de crédito e que teve pedidos de acesso a informação recusados por notários.

O advogado argumentou que a restrição violava o princípio da igualdade, estabelecido pelo artigo 5º, caput, da Constituição. Primeiro, ao permitir que apenas alguns agentes tivessem acesso aos dados. Segundo, porque testamentos, divórcios extrajudiciais, inventários extrajudiciais e diretivas antecipadas de vontade já eram informações de acesso livre.

Ele sustentou ainda que a alteração também adequaria a Central Notarial de Serviços Eletrônicos Compartilhados (Censec) à Lei de Registros Público (Lei 6.015/1973) e à Lei de Acesso à Informação (Lei 12.527/2011).

Em sua decisão, o magistrado observou que a restrição questionada era obsoleta e estava na contramão de normas como a LAI, que garante a proteção de dados pessoais sensíveis. Também observou que as dificuldades encontradas por credores colaboram para os altos índices de congestionamento processual em execuções.

“Facilitar o acesso às bases da CEP, nessa linha, é providência que irá contribuir para facilitação da busca de atos negociais que tenham sido realizados e que possam envolver algum bem, permitindo, com isso, uma maior eficiência na busca patrimonial no bojo dos processos de execução no Brasil”, escreveu.

Clique aqui para ler a decisão
Processo 0003263-30.2024.2.00.0000 

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Honorários contratuais em ações trabalhistas coletivas

Na última semana, circulou nos meios jurídicos a manifestação do ministro Flávio Dino no julgamento de recurso do Ministério Público do Trabalho (AO 2.417) contra decisão que negou ao parquet trabalhista o direito de atuar em um caso envolvendo a cobrança de honorários advocatícios em ações coletivas:

“Creio que ninguém no mundo pode dizer que isto constitui uma lesão ao patrimônio dos advogados: R$ 1 bilhão e 500 milhões de reais provavelmente de honorários sucumbenciais. Nós estamos aqui controvertendo sobre um plus. Como diz o povo da minha terra, um fora parte”.

Bom, esse valor foi arbitrariamente estipulado pelo ministro. É difícil dizer o valor exato ou até aproximado. Mas uma coisa é certa, segundo os advogados do processo: nem de longe é esse o valor; além disso, os honorários são divididos por mais de uma dezena de advogados que, frise-se, trabalha(ra)m no caso há dezenas de anos.  Tem advogado que começou na causa e seus filhos a estão finalizando. Parece bizarra essa demora e, mais ainda, se o desfecho culminar com o descumprimento do dispositivo do Estatuto da OAB que garante esse direito aos causídicos. Demonstrarei na sequência.

A manifestação do ministro deu-se no contexto de divergência com o voto do relator, ministro Nunes Marques, no âmbito de embargos de declaração, quanto à possibilidade de intervenção do MPT em autos de execução trabalhista, com o propósito de obstaculizar a cobrança de honorários advocatícios contratuais acordados entre os patronos da reclamatória, a entidade sindical e os trabalhadores beneficiados.

Explicando: no caso em exame, (1) houve a contratação de advogado para atuar em defesa dos interesses da entidade sindical e seus sindicalizados; (2) ato contínuo, a execução dos honorários contratuais pelos causídicos, nos autos da reclamatória originária; (3) e, em decorrência disso, a intervenção pelo MPT, alegando — manifestamente contra o que aduz lei federal — a impossibilidade de cumulação dos honorários contratuais aos assistenciais e/ou sucumbenciais. Como ocorre seguidamente, é o fiscal da lei a insurgir-se contra a lei porque com ela não concorda.

Pois bem. Ao julgar o mérito da ação, o Plenário do STF decidiu que

“o Ministério Público do Trabalho não possui legitimidade ativa para recorrer de decisão referente a honorários advocatícios que não surjam diretamente da relação de trabalho, por se tratar de direito individual disponível.”

Em face desse acórdão, o MPT opôs embargos de declaração buscando efeitos infringentes. Embargos é aquele recurso que, quando usado pelo advogado no processo criminal, por exemplo, recebe seguidamente a ironia do membro do MP dizendo “o réu quer revolver a prova e mudar o resultado”…

É nessa estreita via que o ministro Flávio Dino reabre a controvérsia: “não se trata apenas de direitos individuais disponíveis”. A questão seria a forma como esse contrato de honorários se desenhou: com anuência da categoria em assembleia geral, e não mediante contratos individuais. Problema: nem a Constituição nem a lei exigem contratos individuais.

Ao contrário: substituição processual existe exatamente para evitar a individualização. Todavia, o entendimento do ministro é de que são indevidos os honorários contratuais firmados pelo sindicato a serem arcados pelo associado, exceto nos casos de contratos individuais regularmente firmados. De novo: tratou-se de substituição processual. O que o ministro Flávio Dino reivindica na sua manifestação em sede de EDs é o contrário do que estabelece a lei. Ele ainda invoca Kelsen, para dizer que, provavelmente, um dos maiores juristas do século 20 não ganhou “tudo isso” ao longo de sua vida.

O caso à luz da teoria da decisão

Se Kelsen ganhou ou não ganhou “tudo isso” em sua vida, difícil dizer. Ou Dworkin. Importa dizer que Kelsen nunca se preocupou com o modo de como os juízes devem decidir. Para ele a decisão jurídica é uma questão de “política jurídica” (TPD, p. 470).

Permito-me dizer que esse problema da adoção de critérios — objetivos — para a decisão jurídica é uma verdadeira batalha epistemológica que se trava no âmbito da busca de decisões adequadas à Constituição — não só no Brasil. Nesse exato sentido, uma lei só pode deixar de ser aplicada em seis hipóteses:

1) quando for inconstitucional, ocasião em que deve ser aplicada a jurisdição constitucional difusa ou concentrada – não é o caso em discussão;

2) quando for o caso de aplicação dos critérios de resolução de antinomias — tampouco há que se falar em lex anteriores ou posteriores etc.;

3) quando for necessário aplicar a interpretação conforme à Constituição (verfassungskonforme Auslegung), ocasião em que se torna necessária uma adição de sentido ao artigo de lei para que haja plena conformidade da norma à Constituição. Nesse caso, o texto de lei (entendido na sua “literalidade”) permanecerá intacto; o que muda é o seu sentido, alterado por meio de interpretação que o torne adequado à Constituição — igualmente não se vislumbra hipótese de se dizer que uma conquista como a substituição processual possa ser confrontada e reintepretada;

4) quando for preciso aplicar a nulidade parcial sem redução de texto — muito menos estamos diante disso que, originalmente, chamou-se de Teilnichtigerklärung ohne Normtextreduzierung;

5) quando for o caso de declaração de inconstitucionalidade com redução de texto, ocasião em que a exclusão de uma palavra conduz à manutenção da constitucionalidade do dispositivo – da mesma forma, não há o que “cortar” do dispositivo da OAB;

6) quando — e isso é absolutamente corriqueiro e comum — for o caso de deixar de aplicar uma regra em face de um princípio, ocasião em que a regra perde sua normatividade em face de um princípio constitucional, entendido este como um padrão, do modo como explicitado em Verdade e Consenso [1] — aqui, não se vislumbra qualquer princípio que poderia ser um obstáculo ao dispositivo da OAB que dá direito aos honorários convencionados.

Fora dessas hipóteses, o juiz tem a obrigação institucional e constitucional de aplicar a lei, porque é um dever fundamental Se o Judiciário achar que a lei não vale, deve então a declarar dentro das seis hipóteses. O Judiciário, quando não aplica lei válida, está legislando na via contrária.

Vejamos os dispositivos envolvidos no caso em discussão: o inciso III do artigo 8º da Constituição é claro em estabelecer a conquista político-jurídica da substituição processual:

“ao sindicato cabe a defesa dos direitos e interesses coletivos ou individuais da categoria, inclusive em questões judiciais ou administrativas.”

Trata-se, assim, de um direito fundamental de acesso à justiça por meio de um atalho institucional que livra o trabalhador/cidadão não somente das agruras de ingressar individualmente com uma demanda, como também o desonera das pressões dos detentores do capital. Repita-se: estamos diante de um direito fundamental!

Esse direito fundamental também é procedimentalizado pelo Estatuto da OAB, no artigo 22, §§ 6º e 7º, ao se conferir à advocacia a garantia de que

“aplica-se aos honorários assistenciais, compreendidos como os fixados em ações coletivas propostas por entidades de classe em substituição processual, sem prejuízo aos honorários convencionais

e que

“os honorários convencionados com entidades de classe para atuação em substituição processual poderão prever a faculdade de indicar os beneficiários que, ao optarem por adquirir os direitos, assumirão as obrigações decorrentes do contrato originário a partir do momento em que este foi celebrado, sem a necessidade de mais formalidades.”

Essa lei federal é válida. E constitucional, até este momento. Lendo o que diz a lei, pergunta-se: qual é o fundamento para exigir a manifestação de vontade individual de cada sindicalizado antes da proposição de ações coletivas envolvendo direitos trabalhistas? Isso esvazia a substituição processual.

O eventual excesso no valor de honorários é um argumento que perigosamente atinge o cerne do sistema de advocacia brasileiro. Imagine-se a advocacia ingressar em juízo contra o valor dos salários (e vantagens) do Poder Judiciário e do Ministério Público, com o argumento de que são elevados?

O instituto da substituição processual e o pagamento de honorários contratuais reveste-se de uma constitucionalidade chapada.  O dispositivo do Estatuto da OAB é claro. A Constituição alberga o poder de os sindicatos atuarem como substitutos processuais.

Mais: recentemente o STF entendeu que é constitucional restringir direitos trabalhistas por meio de acordos coletivos (Tema 1.046).  Então, a autonomia coletiva da vontade do sindicato o autoriza a celebrar acordos que restrinjam direitos trabalhistas, mas não o autoriza a ajuizar ações coletivas para os proteger?

A consequência previsível disso tudo é o enfraquecimento dos sindicatos. Dia a dia o poder dos sindicatos vem sendo fragilizado. Dificilmente causídicos vão se interessar em ajuizar ações coletivas para entidades sindicais. Preferirão ações plúrimas: teremos cem ações com dez pessoas em cada, em vez de uma ação do sindicato em nome de milhares de filiados.

Em síntese, inconstitucional é qualquer limitação a essas normas, pois violaria a decisão do STF sobre a autonomia coletiva da vontade. E, mais do que isso, colocaria um óbice absolutamente indevido ao direito de acesso à justiça, à tutela dos direitos trabalhistas pelo sindicato e à própria autonomia das entidades sindicais.

Logo, com toda lhaneza epistêmica com a qual sempre opero, insisto: a constitucionalidade do pagamento de honorários contratuais em ações coletivas trabalhistas diz respeito à autonomia do Direito. É sobre preservar a advocacia. É sobre proteger o trabalhador.


[1] STRECK, Lenio Luiz. Verdade e Consenso: Constituição, Hermenêutica e Teorias Discursivas. 6. ed. São Paulo: Saraiva, 2017. p. 633 e seg.

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