Terceira Turma admite envio de ofício às corretoras para encontrar e penhorar criptomoedas do devedor

Segundo o colegiado, embora esse tipo de ativo não seja considerado moeda de curso legal, as criptomoedas têm valor econômico e são passíveis de constrição.
 

A Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) entendeu que, no cumprimento de sentença, o juízo pode enviar ofício às corretoras de criptoativos com o objetivo de localizar e penhorar eventuais valores em nome da parte executada.

O recurso chegou ao STJ após o tribunal de origem negar provimento ao agravo de instrumento – interposto na fase de cumprimento de sentença – em que o exequente sustentava a possibilidade de expedição de ofícios para tentar encontrar criptomoedas que pudessem ser penhoradas. 

O tribunal local considerou a inexistência de regulamentação sobre operações com criptoativos. Além disso, para a corte local, faltaria a garantia de capacidade de conversão desses ativos em moeda de curso forçado.

Ativo digital faz parte do patrimônio do devedor

O relator na Terceira Turma, ministro Humberto Martins, lembrou que, para a jurisprudência do STJ, da mesma forma como a execução deve ser processada da maneira menos gravosa para o executado, deve-se atender o interesse do credor que, por meio de penhora, busca a quitação da dívida não paga.

O ministro ressaltou que as criptomoedas são ativos financeiros passíveis de tributação, que devem ser declarados à Receita Federal. Conforme disse, apesar de não serem moedas de curso legal, elas têm valor econômico e são suscetíveis de restrição. “Os criptoativos podem ser usados como forma de pagamento e como reserva de valor”, completou.

O relator comentou que, conforme o artigo 789 do Código de Processo Civil, o devedor inadimplente responde com todos os seus bens pela obrigação não cumprida, ressalvadas as exceções legais. No entanto, em pesquisa no sistema Sisbajud, não foram localizados ativos financeiros em instituições bancárias autorizadas.

Para Humberto Martins, além da expedição de ofício às corretoras de criptomoedas, ainda é possível a adoção de medidas investigativas para acessar as carteiras digitais do devedor, com vistas a uma eventual penhora.

Criptomoedas representam desafios para o Judiciário

O relator lembrou que uma proposta legislativa em tramitação, o Projeto de Lei 1.600/2022, define o criptoativo como representação digital de valor, utilizado como ativo financeiro, meio de pagamento e instrumento de acesso a bens e serviços.

Em voto-vista, o ministro Ricardo Villas Bôas Cueva informou que o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) está desenvolvendo uma ferramenta, o Criptojud, para facilitar o rastreamento e o bloqueio de ativos digitais em corretoras de criptoativos.

Cueva salientou a necessidade da regulamentação desse setor, diante das dificuldades de ordem técnica relacionadas com a localização, o bloqueio, a custódia e a liquidação de criptoativos, o que traz desafios para o Poder Judiciário tanto na esfera cível quanto na penal.

Fonte: STJ

Hierarquia administrativa e seus dois maridos

A hierarquia administrativa é mais que uma pirâmide de órgãos: é uma relação jurídica dinâmica, associada indissoluvelmente a dois conceitos fundamentais: organização administrativa escalonada e processo decisório multinível.

Não existe hierarquia administrativa se há apenas um estrato na organização. Mas tampouco a hierarquia é estado de fato ou a posição topográfica de órgãos na organização. É jurídica a relação que une órgãos em vínculos de direção e subordinação, comando e obediência, dependência e supremacia. Hierarquia é relação jurídica interorgânica que exige esses dois “maridos conceituais”.

A hierarquia nunca é vínculo de ordem e obediência absolutos nem admite que em seu nome ilegalidades sejam consumadas. Embute prerrogativas, mas igualmente deveres e responsabilidades. Seu contorno atual exige olhar analítico, resumido aqui ao essencial.

Pressuposto da hierarquia: a desconcentração

Hierarquia vem do grego hierarkhía, que se refere ao “comando de um alto sacerdote” e é composta por hiera (ritos sagrados) e arkhein (comando, governar) [1]. Com o tempo, a palavra hierarquia foi transposta do domínio eclesiástico para as estruturas de Estado, carregando consigo a noção de autoridade legitimada pelo escalão orgânico.

A hierarquia pressupõe repartição de competências entre órgãos, pois a concentração de poder em um órgão único inviabiliza a relação de hierarquia. Hierarquia pressupõe desconcentraçãoa repartição de competências entre órgãos distintos dentro de uma mesma pessoa jurídica. A desconcentração constitui a multiplicidades de órgãos decisórios e viabiliza a relação jurídica entre eles, conformada por normas jurídicas, na intimidade de uma mesma pessoa administrativa (político-administrativa ou exclusivamente administrativa).

Porém, duas observações cobram atenção.

A primeira. Ao contrário do que ocorre em outros sistemas jurídicos, no Direito brasileiro a desconcentração é sempre vínculo entre sujeitos de direito administrativo despersonalizados (órgãos). A legislação brasileira não prevê desconcentração entre pessoas administrativas. No Brasil, o vínculo organizativo entre pessoas administrativas denomina-se descentralização.

A segunda. A hierarquia sempre vem acompanhada da desconcentração, mas a recíproca não é necessária. Entender isso exige distinguir entre desconcentração horizontal e desconcentração vertical.

desconcentração vertical, assentada na hierarquia, vincula órgãos superiores e inferiores em estrutura escalonada e dentro da mesma pessoa jurídica: a exemplo da relação entre o Ministério da Educação e seus órgãos regionais ou setoriais. Mas há também a desconcentração horizontal, que não conhece hierarquia, pois coordena órgãos autônomos ou independentes, como o vínculo entre os Tribunais de Contas e o Poder Executivo. Na desconcentração horizontal vigoram relações paritárias, mesmo quando há em causa competências de controle (STF, ADI 3.329) [2].

Há crescente número de relações paritárias dentro de uma mesma pessoa jurídico administrativa. Órgão administrativos de extração constitucional, como o Ministério Público, os Tribunais de Contas, o Conselho Nacional de Justiça e o Conselho Nacional do Ministério Público desconhecem sujeição hierárquica em face do órgão administrativo central, embora não sejam pessoas jurídicas. Possuem orçamento próprio, pessoal próprio, competências próprias, e ordenação interna própria, não sujeita a ordem e comando do chefe do Poder Executivo. Entre esses órgãos autônomos – e outros, autonomizados funcionalmente pelo legislador – vigem relações laterais ou cooperativas e não relações verticais ou hierárquicas. Entre órgãos de igual hierarquia, os vínculos que se estabeleçam são igualmente paritários. E há órgãos inferiores que, pelas próprias funções, não se sujeitam funcionalmente à hierarquia, pois perderiam a razão de existirem se abrigados a ordens de serviço e comandos específicos, embora não possuam matriz constitucional (por exemplo, os órgãos consultivos e técnicos-representativos).

Em síntese: a hierarquia é relação interorgânica residente na intimidade de uma mesma pessoa administrativa e não relação interadministrativas; não impõe uma subordinação total necessária entre órgãos superiores e subalternos e tampouco é logicamente compatível com vínculos de desconcentração administrativa horizontal, que envolvam órgãos funcionalmente independentes ou de equivalente escalão orgânico.

Quando há mais de uma pessoa administrativa em causa não há relação de hierarquia nem tampouco desconcentração. Entre pessoas administrativas pode haver superintendência ou controle legal, que a velha doutrina francesa denominava tutela. Entre pessoas administrativas são possíveis relações interadministrativas e relações de descentralização [3].

Hierarquia e a organização administrativa escalonada

A estrutura escalonada representa a dimensão estática da hierarquia. Pirâmides organizacionais, organogramas, matrizes de distribuição de competências e cargos configuram o pressuposto organizacional da relação hierárquica escalonada. Este primeiro componente conceitual da hierarquia – a organização em escalões – materializa-se em decretos de estrutura, leis orgânicas e regimentos internos.

O escalonamento, porém, não representa mera disposição de cargos e órgãos. Constitui gradação jurídica de competências e responsabilidades, distribuição racional de atribuições segundo critérios de especialização, abrangência territorial decisória ou proximidade com o poder político.

Nessa dimensão deve ser reconhecida a discricionariedade organizatória do gestor na estruturação e distribuição de competências no interior da administração, observado o limite da impossibilidade de criar cargos sem lei e de reestruturar carreiras sem autorização legal específica. Fora isso, podem órgãos sofrer cisão, aglutinação, concentração temporária de competências e outras medidas diretamente relacionadas à estruturação e organização internas, sem reflexo em direitos e deveres de terceiros (artigo 5º c/c artigo 84, da Constituição) [4].

A jurisprudência do STF tem reiteradamente reconhecido a discricionariedade administrativa na configuração organizacional, embora estabeleça limites quanto à criação de cargos (ADI 3.602/GO) e reestruturação de carreiras (RE 642.895)

Hierarquia e processo decisório multinível

Se a estrutura escalonada representa a dimensão estática pressuposta pela hierarquia, o processo decisório multinível constitui a dimensão dinâmica da hierarquia administrativa. Esta segunda dimensão do conceito manifesta-se em fluxos de comando, supervisão, inspeção, revisão, solução de conflitos, avocação e delegação. Expressa-se em instruções normativas, ordens de serviço, homologações e decisão de recursos hierárquicos.

O processo decisório multinível traduz-se em poderes hierárquicos clássicos: poder de direção, poder de inspeção, poder disciplinar, poder de revisão e poder de delegação e avocação. Estes poderes, contudo, não são absolutos nem incondicionados. Encontram limites no próprio ordenamento jurídico e nas finalidades públicas a que devem servir.

Não pode o superior hierárquico, por exemplo, reformar atos administrativos emitidos em competência vinculada por autoridade subordinada. Tampouco pode avocar competências quando a lei reservar determinada competência a autoridade específica (competência exclusiva) [5].

Essa cadeia decisória pode envolver decisões organizatórias e decisões funcionais. Por vezes a lei autoriza uma espécie de decisão e nega a outra. Outras vezes, a lei autoriza decisões gerais e não decisões específicas. Por exemplo, no Ministério Público a Chefia Institucional – os procuradores gerais dos estados ou o procurador geral da República – não podem determinar decisões concretas ou substituir a decisão dos demais agentes do MP, que gozam de autonomia funcional, mas podem decidir sobre conflito de atribuições, definindo o agente competente para conhecer determinado caso. Além disso, embora não emitam ordens de serviço concretas para casos determinados, podem editar diretrizes, planos e programas funcionais gerais.

A hierarquia administrativa oferece ao gestor uma prerrogativa de vigilância sobre as decisões dos órgãos subordinados ou vinculados na dimensão de sua aplicação. Essa prerrogativa de controle pode ativar a competência disciplinar ou, quando couber, a substituição da decisão do inferior hierárquico em sede de decisão de recursos hierárquicos.

As patologias da relação hierárquica

A hierarquia administrativa, como qualquer relação jurídica, está sujeita a patologias e distorções. O autoritarismo hierárquico, o abuso de poder disciplinar, a interferência indevida em competências técnicas e a instrumentalização política da cadeia de comando representam desvios frequentes.

Mas a “cega obediência hierárquica” perdeu vigência na administração civil. O artigo 116, IV, da Lei 8.112/90, por exemplo, estabelece o dever de obediência dos servidores públicos às ordens superiores, mas dispensa do dever o cumprimento a ordens ilegais. A insubordinação grave e imotivada pode conduzir à demissão (artigo 132, VI), mas a resistência às ordens diretas ilegais é legítima e protegida, sendo assegurado ao servidor o direito de representação (artigo 116, XII, da Lei 8.112/90). Em paralelo, o Código Penal, em seu artigo 22, exclui a culpabilidade do servidor se cometer crime sob coação irresistível ou em obediência a uma ordem superior, desde que esta não seja manifestamente ilegal [6]. Se a ilegalidade for evidente, não resistir pode caracterizar o crime de prevaricação (artigo 319 do CP).

No âmbito da administração militar, no entanto, a compreensão do dever de resistência a ordens ilegais é menos abrangente: entende-se que a única ordem que não deve ser cumprida é a ordem manifestamente criminosa. Os militares devem cumprir as ordens emanadas dos seus superiores, caso não sejam criminosas, constituindo crime a recusa de obediência conforme previsto no artigo 163 do Código Penal Militar [7]. O fundamento para essa aplicação estrita decorre da singularidade da administração e da carreira militar, submetidas a exigências de hierarquia e disciplina rigorosas (Artigo 142, da CF) cujas limitações “visam a atender à supremacia do bem coletivo em detrimento de interesses particulares, até pela força, se necessário” (STF, ADI nº 6.595).

A hierarquia administrativa na era da governança pública

A concepção tradicional de hierarquia administrativa vem sendo desafiada pelos novos paradigmas de governança pública. A rigidez hierárquica mostra-se insuficiente diante da complexidade dos problemas contemporâneas, que exigem coordenação intersetorial, sistemas transversais de informação e participação social direta.

Emergem, assim, estruturas administrativas pós-hierárquicas: colegiados interinstitucionais, redes de políticas públicas, estruturas matriciais unificadas por projetos e outros mecanismos de governança colaborativa presenciais e digitais. Estes arranjos não eliminam a hierarquia como categoria conceitual ou como vínculo jurídico, mas restringem a sua aplicação no conjunto da organização administrativa.

Algumas dessas estruturas são temporárias, como o Comitê Gestor da Copa do Mundo Fifa 2014 e Comitê Gestor dos Jogos Olímpicos e Paraolímpicos de 2016. Outras devem ser permanentes, apoiadas inclusive no artigo 10, da Constituição, que assegura a “participação dos trabalhadores e empregadores nos colegiados dos órgãos públicos em que seus interesses profissionais ou previdenciários sejam objeto de discussão e deliberação”.

A atuação integrada horizontal entre órgãos e as entidades envolvidos na prestação e no controle dos serviços públicos constitui ainda princípio e diretriz do Governo Digital (Artigo 2º, IX, da Lei 14.129/2021). Sem alarde, em alguns domínios, a administração civil assume a forma de uma trama de redes.

A dimensão constitucional da hierarquia administrativa

A Constituição de 1988 não menciona explicitamente o princípio hierárquico entre os princípios gerais da administração pública, diferentemente de outros princípios referidos na cabeça do artigo 37. A hierarquia é considerada inerente, generalizada e estrutural apenas para a administração militar (artigo 142). Essa ausência da hierarquia no pórtico dos princípios gerais não é acidental: reflete a relativização da hierarquia como princípio estruturante da organização administrativa contemporânea.

A hierarquia administrativa, como vínculo jurídico complexo, permanece importante sobretudo na administração direta. Contudo, seus contornos transformaram-se para acomodar exigências de ampliação no número de órgãos com autonomia funcional, de órgãos de caráter intersetorial em regime paritário de funcionamento, de órgãos de representação social e de órgãos técnicos de assessoramento e deliberação colegiada.

A metáfora dos “dois maridos” ou componentes conceituais – estrutura escalonada e processo decisório multinível – evidencia a natureza multidimensional desse instituto. Ambas as dimensões requerem reconfiguração para que a hierarquia administrativa não se converta em anacrônico resquício autoritário, mas em ferramenta sintonizada com a gestão pública contemporânea.

A hierarquia na organização administrativa de nossos dias deve conciliar valores aparentemente contraditórios: coesão e participação; coordenação central e autonomia técnica; estabilidade estrutural e flexibilidade operacional. Esse equilíbrio dinâmico constitui um dos grandes desafios do Direito Administrativo no século 21: repensar a hierarquia e o funcionamento pluralista e aberto da administração sem abdicar de valores estratégicos fundamentais, como a responsabilidade, a eficiência, a unidade e a coordenação da ação estatal.

A hierarquia, assim ressignificada, deixa de ser um dado assumido como inevitável para tornar-se instrumento de realização dos fins constitucionais que legitimam a sua própria existência. Hierarquia não é palavra mágica para autorizar abusos de poder e o exercício irracional da autoridade. É relação organizativa estruturada, finalista, passível de disciplina flexível, cuja exploração rigorosa merece ser renovada tanto pelo legislador quanto pela doutrina.


[1] MACHADO, José Pedro. Dicionário Etimológico da Língua Portuguesa, III, Volume 7.ª Edição. Lisboa: Livros Horizonte, 1995, pág. 223. Ver ainda: VESCHI, Benjamin,  https://etimologia.com.br/hierarquia/ e TREVIJANO FOS, J. A. Garcia. Tratado de Derecho Amnistrativo, Tomo II, Vol. I, 2ª.ed, Ed. Rev. de Direito Privado, 1971, p. 426.

[2] No acordão referido, decidiu o STF ser inconstitucional norma legal do Estado de Santa Catarina que permitia a avocação de inquérito policial pelo Ministério Público. Decidiu a Corte que, a atribuição de controle externo da atividade policial pelo Ministério Público, de acordo com o artigo 129, VII, da Constituição Federal, não importa em relação de hierarquia entre o MP e a Polícia. (ADI 3329, Rel. Gilmar Mendes, Tribunal Pleno, DJe- 28-06-2024)

[3] Não se deve confundir pessoa administrativa e sujeito de direito administrativo. Órgãos podem ser sujeitos de direito administrativo, mas nunca são pessoas administrativas. Órgãos são unidades de atuação jurídica despersonalizadas (artigo 1º, §2º, I, da Lei nº 9.784/1999). Não são pessoas jurídicas e, portanto, não possuem aptidão genérica para direitos, deveres e obrigações, mas são sujeitos de direito (centros unitários de imputação de direitos e deveres) e, como tais, gozam de aptidão limitada ou parcial para direitos, deveres e obrigações. Desenvolvi o tema em vários textos inseridos em MODESTO, Paulo. Direito administrativo da experimentação. 2ª. Ed. São Paulo: Juspodium, 2025 (vg. p.59-61 e 273 e segs). Ver, ainda, VILANOVA, Lourival. Causalidade e Relação no Direito. 4ed. São Paulo: Ed. RT, 2000, p. 275 e segs.

[4] A hipótese foi prevista no art. 6º, do Anteprojeto de Normas Gerais de Reforma da Organização Administrativa Federal, porém decorre do art. 84, VI, da Constituição, com a redação da EC 32/01.

[5] A Lei 9784/99 não é expressa quanto a este último aspecto. No entanto, se não é possível delegar competência exclusiva do órgão subordinado (art. 13, III), penso que tampouco é possível avocar temporariamente competência exclusiva de órgão ou autoridade subalterna, competência exercida (consumada) ou competência do subalterno no curso do processo administrativo iniciado. Ver, sob a última hipótese, MOREIRA, Egon Bockmann. Processo administrativo. 5ª.ed. São Paulo: Malheiros, 2017, p.403.

[6] Art. 22, do Código Penal: “Se o fato é cometido sob coação moral irresistível ou em estrita obediência a ordem, não manifestamente ilegal, de superior hierárquico, só é punível o autor da coação ou da ordem.”

[7] Cf. MARREIROS, Adriano Alves; ROCHA, Guilherme; FREITAS, Ricardo. Direito Penal Militar. Teoria Crítica & Prática. São Paulo: Método, 2015, p. 629.

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Lei Complementar 213/2025: novos entrantes no setor de seguros e os desafios da regulação

Sociedades cooperativas

Inicialmente, observa-se que a Lei Complementar nº 213/2025 promove uma maior abertura do mercado às sociedades cooperativas. Com efeito, antes do advento da LC 213, as sociedades cooperativas somente podiam operar em linhas muito específicas de seguros – seguros agrícolas, de saúde e de acidentes do trabalho (artigo 24 do Decreto-Lei nº 73/1966). Essa realidade foi substancialmente alterada com o advento da LC 213, que permitiu que as sociedades cooperativas operem em qualquer ramo de seguros privados, com exceção daqueles que o CNSP expressamente proibir (artigo 88-A).

Essa significativa mudança é justificável. Cooperativas e mútuas possuem uma participação bastante relevante em mercados de seguros mais maduros, como aqueles do Japão, dos Estados Unidos e de boa parte de países europeus. No Brasil, apesar do apoio constitucional ao cooperativismo (§ 2º do artigo 174 da Constituição), existia uma limitação legal que impedia uma maior atuação das sociedades cooperativas no mercado de seguros. O advento da LC 213 produz a legítima expectativa de que novos players, sob a roupagem de sociedade cooperativa, ingressarão no mercado brasileiro de seguros privados, potencialmente ampliando a oferta de serviços e beneficiando os consumidores.

Administradora de Operações de Proteção Patrimonial Mutualista

Por outro lado, constata-se que a LC 213 criou a figura da Administradora de Operações de Proteção Patrimonial Mutualista (artigo 88-H). Trata-se de sociedade constituída sob a forma de sociedade por ações, incumbida de gerir a operação de proteção patrimonial mutualista mediante prévia autorização da Susep. De certo modo, as atividades desenvolvidas pela Administradora de Operações de Proteção Patrimonial Mutualista se assemelham àquelas executadas pelas seguradoras: elas processam as adesões ao contrato de participação, cuidando ainda de renovações, alterações, repactuações e cancelamentos; arquivam os dados cadastrais e documentos dos participantes, beneficiários, corretores de seguros e demais intermediários e seus prepostos; efetuam o cálculo, a cobrança e o recolhimento do rateio mutualista de despesas; regulam e liquidam eventos cobertos; e efetuam o pagamento de indenizações relacionadas à garantia de eventos cobertos. Justamente por se assemelharem às seguradoras, tais entidades se sujeitam a uma intensa regulação estatal, podendo, inclusive, ser alvo de direção fiscal e liquidação extrajudicial.

A criação dessa figura — Administradora de Operações de Proteção Patrimonial Mutualista — tem o objetivo de solucionar um problema específico observado há tempos no setor de seguros privados. Associações de proteção veicular oferecem serviços de proteção e assistência automotiva contra roubo e acidente aos seus associados, o que, na prática, corresponderia à atividade securitária. O problema é que tais associações não se submetiam à supervisão regulatória, colocando os consumidores em risco, e não pagavam tributos como as sociedades seguradoras, resultando em significativas perdas de receitas para o poder público. Em resposta a essa situação de alegada ilicitude, a Susep ajuizou centenas de ações civis públicas nos mais diversos estados da federação.

Diferentemente do que se observa com as sociedades cooperativas, cuja atuação no setor de seguros e em outros setores da economia (tais como crédito, saúde e agropecuária) não desperta maiores questionamentos, as associações de proteção patrimonial que oferecem serviços assemelhados a seguros privados são figuras controversas, sobre as quais recai a pecha de uma atuação clandestina no setor de seguros privados. Tal realidade levou a LC 213 a oferecer uma minuciosa disciplina, que abrange diversos aspectos desses players, tudo com o intuito de compatibilizar a sua atuação a certos vetores que presidem o regime regulatório securitário, tais como a proteção ao consumidor e a higidez econômico-financeira dos agentes regulados.

Além das próprias Administradoras de Operações de Proteção Patrimonial Mutualista, a LC 213 ofereceu uma minuciosa disciplina sobre outras noções indispensáveis à compreensão e ao funcionamento desse regime mutualista, tais como o Grupo de Proteção Patrimonial Mutualista (conjunto de pessoas naturais ou jurídicas que pertencem a uma mesma associação e encontram-se sujeitas a riscos predeterminados, os quais são repartidos por meio de rateio mutualista de despesas – artigo 88-E) e o Contrato de Participação em Grupo de Proteção Patrimonial Mutualista (instrumento por meio do qual o associado formaliza sua adesão ao grupo de proteção patrimonial mutualista – artigo 88-N).

Estimativas apontam que, com o advento da LC 213, o mercado das associações de proteção patrimonial poderia representar um acréscimo de 3 mil novos players no setor regulado de seguros. Especulações à parte, parece relevante destacar que diferentes aspectos, incluindo incentivos econômicos e jurídicos, irão condicionar o ingresso desses players no setor regulado. Diante da situação de ilicitude das associações de proteção veicular, a LC 213 estabeleceu um regime temporal de transição para que as Administradoras de Operações de Proteção Patrimonial Mutualista sejam criadas e submetidas à regulação setorial, com a suspensão e posterior extinção de processos judiciais e sancionadores eventualmente em curso contra as associações de proteção patrimonial. Parece legítimo supor que muitos players aproveitarão essa janela de oportunidade para adequar a sua situação jurídica e atuar no mercado de forma lícita. Inobstante, há de se reconhecer que muitos players poderão simplesmente optar por não ingressar no setor regulado, seja por causa da existência de significativos custos regulatórios, seja por eventual falta de fiscalização por parte do Estado, seja por falta de interesse mesmo.

Desafios da regulação

Vê-se, assim, que a LC 213 permite uma maior participação das sociedades cooperativas no setor regulado e viabiliza a atuação de um novo player, que são as Administradoras de Operações de Proteção Patrimonial Mutualista, o que evidentemente gera uma série de desafios regulatórios.

Um primeiro desafio é que, independentemente da questão de saber se a adesão ao novo regime regulatório será alta, média ou baixa, parece ser indiscutível que o advento da LC 213 resultará no ingresso de novos players no setor regulado, o que aumentará a carga de trabalho a ser desempenhado pela Susep. Esse é um aspecto que exige atenção, pois o órgão convive com um histórico de déficit de servidores. É bem verdade que a Susep está realizando concurso público para contratação de novos servidores, mas o quantitativo de vagas parece não ter sido estimado com base no aumento do escopo da atuação do regulador proporcionado pela LC 213. Mais do que nunca, a Susep precisará de planejamento estratégico e espírito criativo para lidar com o cenário complexo que se avizinha. Parece essencial cogitar no uso de novas tecnologias (as noções de Regtech e Suptech) [1] e na adoção de estratégias modernas de regulação, tais como a regulação responsiva [2] e a regulação baseada no risco [3].

Um segundo desafio diz respeito à necessidade de desenvolver um conhecimento apurado acerca das Administradoras de Operações de Proteção Patrimonial Mutualista e de todas as demais figuras que a LC 213 criou para submeter essa operação mutualista à regulação setorial. Um aspecto essencial para a correta compreensão desse novo regime é que, apesar de impor uma forte regulação às Administradoras de Operações de Proteção Patrimonial Mutualista, a LC 213 faz questão de ressaltar que a operação que tais entidades realizam não corresponde a uma operação de seguros (artigo 88-N, § 2º, inciso II). Isso significa dizer que existem diferenças significativas entre as operações mutualistas desenvolvidas pelas Administradoras de Operações de Proteção Patrimonial Mutualista e as atividades securitárias desenvolvidas pelas sociedades seguradoras tradicionais (que já são reguladas e, portanto, de pleno conhecimento do regulador). Isso exigirá esforço e atuação coordenada por parte do regulador e agentes de mercado (por exemplo, corretores, advogados, consultores) para o desenvolvimento de uma compreensão adequada sobre as nuances dessa nova atividade regulada.

Um terceiro desafio regulatório é que a introdução de novos players no mercado regulado pode impulsionar a concorrência, gerando benefícios aos consumidores. Ocorre que, para o desenvolvimento de um regime de concorrência regulatória adequado, os reguladores do setor de seguros privados precisam levar em consideração os aspectos que diferenciam sociedades seguradoras tradicionais, sociedades cooperativas e Administradoras de Operações de Proteção Patrimonial Mutualista. Com efeito, a modulação regulatória é uma necessidade diante das diferenças existentes em relação à forma de constituição dessas pessoas jurídicas, suas técnicas de governança e os serviços que ofertam aos destinatários finais. Porém, essas diferenças não podem justificar o estabelecimento de distinções ilimitadas, sob pena de atentarem contra a isonomia e gerarem distorções à concorrência do setor regulado.

Esses e outros desafios surgem a partir do advento da LC 213. Difícil relacionar aqui, com a brevidade do espaço, quais soluções regulatórias se mostram pertinentes para o enfrentamento de tamanha complexidade. Uma solução transversal a todos esses desafios é o papel de liderança que a Susep pode – e deve – desempenhar na construção de uma ampla articulação com entidades reguladas, suas associações, acadêmicos, advogados e outros profissionais que atuam no setor com o objetivo de estabelecer profícuos diálogos desde os estágios menos avançados da tomada de decisão regulatória, o que tem o condão de resultar em uma regulação mais efetiva, porquanto mais aderente à realidade e às aspirações do conjunto da sociedade, que tanto necessita de um setor hígido, equilibrado e que protege as hipossuficiências.


[1] Sobre o uso de novas tecnologias no setor de seguros, incluindo uma abordagem sobre as noções de Regtech e Suptech: GUERRA, Sérgio; GONÇALVES FILHO, Péricles. As insurtechs e o papel do regulador de seguros no século XXI. In GOLDBERG, Ilan; JUNQUEIRA, Thiago (coord.). São Paulo: RT, 2020.

[2] AYRES, Ian; BRAITHWAITE, John. Responsive Regulation. Transcending the deregulation debate. Oxford: Oxford University Press, 1992.

[3] Sobre a implantação da regulação baseada no risco em setores regulados: GONÇALVES FILHO, Péricles. Regulação baseada no risco: Questões relevantes para sua implantação nos setores regulados do país. Jota, 2024. Disponível em: https://www.jota.info/artigos/regulacao-baseada-no-risco. Acesso em 31 mar. 2025.

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Proposta inclui contravenção penal como causa de reincidência criminal

 

O Projeto de Lei 4770/24, do deputado Evair Vieira de Melo (PP-ES), inclui as contravenções penais como causa de reincidência criminal. Ou seja, se a pessoa cometer um crime e depois uma contravenção penal, será considerado reincidente. O texto está em análise na Câmara dos Deputados.

Atualmente, o Código Penal estabelece a reincidência apenas para quem já tiver sido condenado por crime – no Brasil ou no exterior. O projeto acrescenta a contravenção como causa de reincidência, desde que a condenação tenha ocorrido no Brasil.

Tanto o crime como a contravenção são infrações penais. O crime é mais grave, com penas mais altas. Por exemplo: roubar é crime; já fazer barulho excessivo é contravenção penal.

Contagem do tempo
Atualmente, a contagem do tempo para uma pessoa deixar de ser reincidente (cinco anos) começa já na suspensão condicional da pena ou livramento condicional, quando houver.

Pela proposta, a contagem desse prazo vai se iniciar apenas após o cumprimento ou extinção da pena. “Não se tem por objetivo a extinção de tais benefícios ao agente infrator, mas sim a reafirmação e fortalecimento do sistema de reincidência”, disse Vieira de Melo.

Pena por multa
O projeto também proíbe que a prisão seja trocada por multa quando a condenação previr ambas as penalidades. Segundo Vieira de Melo, esse é o entendimento de decisão do Superior Tribunal de Justiça (STJ) de 1996.

Próximos passos
A proposta será analisada em caráter conclusivo pela Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania.

Para virar lei, a proposta precisa ser aprovada pela Câmara e pelo Senado.

Fonte: Câmara dos Deputados

Ministério Público colherá propostas para combater racismo no futebol

Por meio de consulta pública, o Ministério Público Federal (MPF) vai colher propostas da sociedade civil sobre medidas para combater o racismo no futebol. As sugestões devem ser enviadas ao e-mail da Procuradoria Regional dos Direitos do Cidadão Procuradoria Regional dos Direitos do Cidadão no Rio de Janeiro até o dia 23 deste mês.

As propostas serão discutidas com a Confederação Brasileira de Futebol (CBF) e os Ministérios do Esporte e da Igualdade Racial, em reunião marcada para o dia 28 deste mês.

A consulta pública é desdobramento do inquérito civil instaurado pelo MPF para analisar se houve omissão da CBF no caso de racismo sofrido pelo jogador Luighi Hanri Sousa Santos, da equipe sub-20 do Palmeiras. O episódio de violência racial ocorreu no dia 6 de março deste ano, durante partida contra o Cerro Porteño, no Paraguai. O jogo era válido pela Copa Libertadores Sub-20.

Em reunião na última sexta-feira (28), o Ministério Público recebeu representantes da CBF, de ministérios e da plataforma JusRacial para discutir o tema. Todos os participantes convergiram para a necessidade de aprofundar medidas para articulação de ações preventivas e coercitivas de combate ao racismo no futebol e de incluir a sociedade civil no debate sobre o assunto. 

Além de a CBF se manifestar sobre os pontos já abordados, a JusRacial e o Ministério da Igualdade Racial deverão consolidar suas propostas de enfrentamento até o dia 15. Em seguida, serão analisadas as sugestões apresentadas.

Caso Luighi

A instauração do inquérito para apurar a suposta omissão da CBF no caso Luighi teve como fundamento o dever de prevenção do racismo no futebol, com base na Convenção Interamericana contra o Racismo, a Discriminação e Formas Correlatas de Intolerância. Na portaria de instauração, o MPF destaca as obrigações internacionais assumidas pelo Brasil e as normas da Constituição Federal de 1988. Segundo o documento, o caso abrange a liberdade de expressão e o discurso de ódio, além do papel do esporte na prevenção do racismo.

Para os procuradores regionais dos Direitos do Cidadão adjuntos no Rio de Janeiro, Julio José Araujo Junior e Jaime Mitropoulos, responsáveis pela investigação, o cenário atual impõe dois desafios. 

“O primeiro é o posicionamento firme e contundente do Estado brasileiro e das organizações que representam o futebol do país quanto ao enfrentamento do racismo e ao dever de prevenir atrocidades massivas”. O segundo consiste na adoção de práticas e procedimentos que representem ações concretas e reais de enfrentamento do racismo, em diálogo com a sociedade civil e com as instituições de direitos humanos”, afirmam.

O esporte, apesar de ser palco de práticas racistas, tem potencial significativo como aliado no combate ao discurso de ódio. Nesse sentido, as Nações Unidas lançaram, em 2022, o plano de ação The Game Plan, com recomendações e estratégias para conter o discurso de ódio por meio do engajamento no esporte. As ações sugeridas incluem falar abertamente sobre o tema, promover mensagens positivas, organizar divulgação específica para torcedores e jogadores, reconhecer e recompensar histórias de sucesso e treinar todos os níveis para identificar e enfrentar o discurso de ódio.

No Brasil, a legislação já prevê mecanismos para enfrentar a discriminação no esporte, como a Lei Geral do Esporte e o Estatuto da Igualdade Racial, que estabelecem a responsabilidade do Estado na adoção de medidas concretas. Para o MPF, é preciso avançar na implementação dessas normas, priorizando a colaboração entre entidades esportivas e governo federal, como forma de prevenir e punir práticas racistas. 

“A exigência de posicionamento das federações e a adoção de medidas que previnam a ocorrência de fatos semelhantes ao do caso Luighi são imprescindíveis”, argumentam os procuradores.

Negligência

Na representação que motivou a instauração do inquérito, a JusRacial cita três fatos que apontariam para a suposta negligência da CBF na defesa do jogador Luighi Hanri Sousa Santos. O primeiro é a ausência de questionamento formal da decisão do árbitro de não interromper a partida, como determina a Conmebol. O segundo é que não houve questionamento da súmula da partida e pedido de acesso ao documento, que constituiria prova sobre o treinamento do árbitro para lidar com esse tipo de situação. 

Por fim, afirmam os procuradores, não houve questionamento do valor fixado para a multa, que é menor do que a punição para propaganda irregular, apesar de o Estatuto da Confederação Sul-Americana de Futebol (Conmebol) considerar discriminação racial uma infração grave, imprescritível (sem prazo para punição) e sujeita a sanções em escala mundial.

Fonte: EBC

Alterações no IR: considerações do PL 1.087/25 e suas consequências

O governo federal encaminhou ao Congresso, em 18 de março de 2025, o Projeto de Lei nº 1.087/25, que propõe alterações significativas na tributação do Imposto de Renda no Brasil. O objetivo principal do referido projeto é elevar o limite de isenção do imposto para rendas inferiores a determinado valor, bem como instituir uma nova alíquota de tributação direcionada especificamente às faixas mais elevadas de renda, definidas pelo projeto como superiores a R$ 50 mil mensais.

De acordo com o texto apresentado, o projeto introduz também a tributação sobre dividendos distribuídos por empresas quando ultrapassarem o valor mencionado, além de estabelecer uma tributação específica na fonte para dividendos remetidos ao exterior.

Diante da relevância das alterações, o presente artigo analisará os fundamentos e objetivos do PL 1.087/25, comparando-os com o regime atual de tributação do IR, e abordará as possíveis consequências jurídicas que poderão resultar da eventual aprovação desta proposta legislativa.

Qual a proposta do PL?

O Projeto de Lei nº 1087/25 visa alterar o regime atual do Imposto sobre a Renda das Pessoas Físicas (IRPF) no Brasil, propondo, em síntese, a ampliação significativa da faixa de isenção tributária. Como contrapartida às perdas arrecadatórias decorrentes dessa ampliação, o projeto prevê a instituição de novas modalidades tributárias aplicáveis às faixas mais elevadas de renda, descritas no texto legislativo como superiores a R$ 50 mil mensais.

Segundo dados oficiais disponibilizados pelo governo federal, estima-se que aproximadamente 90% da população brasileira seriam beneficiados de alguma forma pela ampliação proposta. Em termos numéricos, 65% dos atuais contribuintes (cerca de 26 milhões de pessoas) passariam a usufruir da isenção integral do imposto. Em contrapartida, aproximadamente 141 mil contribuintes seriam diretamente impactados pelo aumento da carga tributária, o que representa parcela reduzida do total de contribuintes atualmente cadastrados.

No cenário atual, a faixa de isenção do IR é limitada aos rendimentos mensais de até R$ 2.259,20. Caso aprovado, o projeto elevaria essa faixa para rendimentos mensais de até R$ 5 mil, instituindo ainda uma isenção parcial aos contribuintes com rendimentos de até R$ 7 mil. Contudo, o próprio governo reconhece que essas alterações resultarão em uma renúncia fiscal estimada em aproximadamente R$ 27 bilhões anuais.

Diante dessa redução na arrecadação, o projeto estabelece mecanismos compensatórios mediante tributação mais elevada das faixas superiores de renda, abrangendo também a tributação de dividendos distribuídos por empresas em montantes superiores ao referido limite e impondo a incidência de imposto na fonte sobre dividendos enviados ao exterior.

Da alíquota mínima do IR para altas rendas

Com o objetivo de compensar a renúncia fiscal decorrente da ampliação das faixas de isenção do Imposto sobre a IRPF, o PL propõe a instituição do Imposto sobre a Renda das Pessoas Físicas Mínimo (IRPFM), cuja vigência teria início em 2026. Trata-se de um tributo complementar, com incidência progressiva de até 10%, aplicado aos rendimentos anuais que ultrapassem o montante de R$ 600 mil (equivalente a R$ 50 mil mensais).

A alíquota máxima de 10% será aplicada exclusivamente aos contribuintes cujos rendimentos anuais excedam R$ 1,2 milhão, alterando substancialmente o regime atual, em que, segundo dados oficiais, indivíduos com renda elevada apresentam tributação média efetiva de aproximadamente 2,54%.

Para fins da apuração da base de cálculo desse novo imposto, serão considerados todos os rendimentos recebidos pelo contribuinte durante o exercício financeiro, incluindo salários, alugueis, dividendos e investimentos atualmente isentos do Imposto de Renda, tais como Letras de Crédito Imobiliário (LCI), Letras de Crédito do Agronegócio (LCA), Certificados de Recebíveis Imobiliários (CRI) e Fundos Imobiliários (FIIs). É importante destacar que tais rendimentos permanecerão formalmente isentos, sendo incluídos exclusivamente para efeito da definição da base tributável e posteriormente deduzidos.

Ressalte-se que ficam excluídos do cálculo para o IRPFM os ganhos de capital provenientes de operações realizadas na bolsa de valores e mercado de capitais, rendimentos previamente tributados na fonte e ganhos provenientes de doações ou herança. Da mesma forma, trabalhadores sob o regime celetista, que já possuem tributação retida na fonte, não serão submetidos ao pagamento adicional da alíquota mínima do IRPFM, desde que a soma total de seus rendimentos anuais não supere R$ 600 mil.

O processo de apuração do imposto ocorrerá em etapas: inicialmente, será verificada a faixa de incidência aplicável ao contribuinte conforme seus rendimentos anuais totais, podendo a alíquota alcançar até 10% para rendimentos acima de R$ 1,2 milhão anuais; posteriormente, serão deduzidos da base tributável os valores dos rendimentos isentos ou não tributáveis, como poupança, aposentadorias, pensões recebidas em decorrência de doenças graves e eventuais indenizações legalmente isentas.

Segundo as estimativas divulgadas pelo governo federal, a instituição do IRPFM poderá gerar uma arrecadação adicional da ordem de R$ 25,22 bilhões, atingindo aproximadamente 0,06% dos contribuintes brasileiros. Entretanto, cabe mencionar que o método de cálculo previsto pelo projeto demonstra elevada complexidade, especialmente em razão da necessidade de incluir diversas fontes de rendimento inicialmente e, em momento subsequente, deduzir os valores isentos. Essa sistemática poderá suscitar dúvidas interpretativas e desafios operacionais na aplicação prática da nova tributação. Ademais, o projeto ainda não detalha explicitamente a metodologia empregada na obtenção das estimativas oficiais, o que pode impactar a previsibilidade dos resultados efetivos dessa medida tributária.

Da instituição da alíquota sobre dividendos

Inicialmente, faz-se necessário esclarecer o conceito jurídico e contábil de dividendos, definidos como parcelas do lucro líquido apurado pelas sociedades empresárias, distribuídas aos acionistas conforme a participação de cada um, após dedução dos impostos e demais encargos necessários à manutenção operacional da empresa.

No ordenamento jurídico brasileiro vigente, os dividendos distribuídos aos acionistas são atualmente isentos do Imposto sobre a Renda. Todavia, o PL propõe alterações importantes nesse regime tributário, prevendo, a partir de 2026, a instituição de uma alíquota fixa de 10%, incidente sobre a distribuição de dividendos que excedam a média mensal de R$ 50 mil por acionista e por empresa. Assim, caso o valor médio mensal distribuído ao acionista não ultrapasse esse limite, não haverá incidência tributária.

Cumpre destacar que, diferentemente da sistemática proposta para as pessoas físicas, cuja alíquota é progressiva e admite deduções específicas, a tributação sobre dividendos ocorrerá mediante alíquota fixa, sem possibilidade de deduções. O imposto será retido diretamente na fonte pela empresa antes da distribuição ao acionista.

Outra inovação prevista no projeto refere-se à tributação dos dividendos remetidos ao exterior, que também estarão sujeitos à alíquota fixa de 10%. Essa medida está alinhada à prática internacional, uma vez que, geralmente, os países destinatários desses dividendos consideram, para fins de tributação doméstica, o valor já tributado no país de origem, evitando a dupla tributação internacional.

Segundo estimativas oficiais, a implementação dessas medidas poderá proporcionar ao erário um incremento arrecadatório estimado em R$ 8,9 bilhões, que, somados aos recursos decorrentes da tributação mínima das pessoas físicas de renda elevada, totalizam cerca de R$ 34,12 bilhões, superando em aproximadamente R$ 7,2 bilhões o déficit gerado pela ampliação da faixa de isenção.

Consequências

Diante das alterações tributárias propostas pelo PL nº 1.087/25, faz-se necessária uma análise cuidadosa das possíveis consequências práticas advindas de sua eventual aprovação.

Em primeiro lugar, verifica-se que a ampliação da faixa de isenção do IR beneficiará parcela expressiva da população brasileira, reduzindo a carga tributária, visto que dados recentes da Pnad Contínua, divulgados pelo IBGE, apontam que indivíduos com renda mensal em torno de R$ 5 mil já integram os 10% mais ricos da população nacional.

Outro impacto provável decorrente da aprovação desse projeto é o aumento da demanda por práticas de elisão fiscal, uma vez que os contribuintes, diante da complexidade metodológica adotada pelo projeto e da redação excessivamente técnica e de difícil compreensão, tendem a buscar mecanismos legais que lhes permitam reduzir a carga tributária.

Outra importante consequência decorre da criação do chamado Imposto sobre a Renda das Pessoas Físicas Mínimo (IRPFM), que prevê alíquotas adicionais progressivas, atingindo até 10% sobre rendimentos anuais acima de R$ 1,2 milhão. Ainda que tal medida busque recompor perdas arrecadatórias, a complexidade da sistemática proposta, envolvendo múltiplas etapas de cálculo, inclusão e subsequente dedução de rendimentos isentos, abre margem para interpretações divergentes e identificação de possíveis alternativas na legislação, favorecendo a litigiosidade fiscal.

A introdução da tributação sobre dividendos também merece análise crítica. A instituição de alíquota fixa de 10%, incidente sobre valores que excedam a média mensal de R$ 50 mil por empresa e acionista, embora justificada em possíveis alinhamentos com práticas internacionais, pode acarretar distorções importantes. Ao estabelecer uma alíquota única, o projeto iguala contribuintes em situações econômicas significativamente diversas.

Ademais, a tributação adicional sobre dividendos e altos rendimentos poderá desencorajar investimentos, tanto em novos negócios e empreendimentos, como também naqueles que serão objeto de posterior tributação. Nesse cenário, investidores tendem a migrar para alternativas isentas ou de menor risco, reduzindo o volume de capital direcionado ao setor produtivo nacional.

Em casos mais extremos, a literatura econômica, sobretudo a teoria da Curva de Laffer, sugere que aumentos substanciais na carga tributária podem levar à redução da base tributável e ao consequente declínio da arrecadação, em decorrência de evasão fiscal ou diminuição da atividade econômica geral e potencial prejuízo à geração de empregos.

Essas circunstâncias demonstram claramente a necessidade de uma análise legislativa aprofundada, com o intuito de promover aperfeiçoamentos técnicos no PL nº 1.087/25. É imprescindível assegurar clareza, simplicidade normativa e proporcionalidade nas medidas adotadas, a fim de evitar distorções econômicas e insegurança jurídica, promovendo efetivamente a justiça tributária sem comprometer o crescimento econômico, o ambiente de negócios e a arrecadação pública em médio e longo prazo.

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Proposta unifica certidão de processos civis e criminais em andamento

O Projeto de Lei 300/25, do deputado Gustavo Gayer (PL-GO), unifica em um único documento as certidões de processos em andamento de natureza civil e criminal, independentemente do órgão ou tribunal onde foram registrados.

Pela proposta, a certidão unificada terá validade nacional e poderá ser emitida em meio eletrônico ou impresso. O documento deverá indicar se é relativo a processos civis ou criminais e se é de caráter negativo ou positivo. O texto está em análise na Câmara dos Deputados.

Segundo Gayer, atualmente as certidões fornecidas são apenas do local onde o interessado reside ou exerce atividade. Com isso, de acordo com o deputado, ficam fragilizados o controle e a administração exercidos pelos diversos órgãos ou instituições sobre variadas atividades e negócios à vista de considerável margem para ilícitos e falsidades.

A proposta vai enfrentar essa fragilidade “com o intuito de fortalecer os mecanismos da administração e controle estatal”, disse Gayer.

Próximos passos
A proposta será analisada em caráter conclusivo pela Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania.

Fonte: Câmara dos Deputados

Fato gerador da multa cominatória é o descumprimento da ordem judicial

Para a Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ), o fato gerador do crédito relativo às astreintes é o descumprimento da decisão judicial que determinou a obrigação de fazer. “Tratando-se de obrigações de origem e finalidade diversa, é inafastável a conclusão de que o fato gerador da obrigação principal não se confunde com o fato gerador da multa coercitiva”, afirmou o relator do caso, ministro Ricardo Villas Bôas Cueva.

Na origem, após a Defesa Civil constatar defeitos de construção em um empreendimento residencial, o condomínio ingressou com ação para que as duas empresas responsáveis pela obra – em recuperação judicial – sanassem os problemas.

Em liminar confirmada posteriormente na sentença, o juízo de primeiro grau determinou às empresas que fizessem reparos no muro do condomínio, sob pena de multa diária. Como os reparos não foram realizados, o condomínio ingressou com pedido de cumprimento provisório da sentença, exigindo o valor das astreintes. O juízo, considerando que o fato gerador da obrigação executada foi posterior ao encerramento da recuperação judicial, acolheu o pedido para bloquear o valor em conta bancária, por meio do Sisbajud – decisão mantida pelo tribunal estadual.

No STJ, as empresas sustentaram que a obrigação de pagar as astreintes ainda está em discussão, já que não houve julgamento definitivo da apelação, motivo pelo qual a execução tem caráter provisório, o que não permite o levantamento de valores. Elas pediram que o crédito relativo à multa fosse reconhecido como concursal e habilitado na recuperação judicial.

Multa não substitui o cumprimento da obrigação

O ministro Ricardo Villas Bôas Cueva destacou que as astreintes têm como objetivo coagir a parte a cumprir obrigação imposta judicialmente, de acordo com o disposto no artigo 536, parágrafo 1º, do Código de Processo Civil (CPC).

Segundo esclareceu o ministro, a multa tem natureza processual, diferentemente da obrigação principal do processo; ela serve para fazer com que a obrigação principal seja cumprida, e não para substituí-la. “A multa é obrigação acessória à determinação do juiz, e não acessória ao ilícito contratual”, explicou.

“Diversamente da indenização, que objetiva recompor o dano causado à esfera jurídica da vítima, a multa cominatória objetiva a defesa da autoridade do próprio Estado-juiz”, completou.

Descumprimento da decisão judicial é fato gerador das astreintes

O relator salientou que, por terem finalidades diversas, a obrigação principal e a multa coercitiva não podem ter o mesmo fato gerador. Conforme observou, no caso em discussão, a obrigação tem como fato gerador o cumprimento defeituoso do contrato, que deu origem ao direito de obter reparação direta ou pecuniária.

Quanto ao fato gerador da multa, o relator comentou que ele ocorre com o descumprimento da decisão judicial que determinou o início da obra para sanar os defeitos de construção apontados pelo laudo da Defesa Civil.

Conforme apontou o ministro, o descumprimento da obrigação de executar a reforma começou quando já havia sido encerrada a recuperação judicial. “Diante disso, não há falar em habilitação do crédito ou reserva de valores”, concluiu. 

Levantamento de valores está condicionado ao trânsito em julgado

O relator lembrou que, para a jurisprudência do STJ, a multa cominatória somente pode ser objeto de execução provisória quando confirmada por sentença e desde que o recurso interposto não tenha sido recebido com efeito suspensivo.

De acordo com o ministro, a apelação pendente de julgamento não tem, em princípio, efeito suspensivo (artigo 1.012, parágrafo 1º, inciso V, do CPC), o que possibilita o prosseguimento do cumprimento provisório de sentença. No entanto, o levantamento dos valores deve aguardar o trânsito em julgado do processo.

“O fato de a multa cominatória ser passível de mudança não impossibilita sua execução provisória”, ressaltou.

Leia o acórdão no REsp 2.169.203.

Fonte: STJ