O corregedor Nacional de Justiça, ministro Mauro Campbell Marques, aprovou uma mudança no Provimento 149/2023 do Conselho Nacional de Justiça para permitir a consulta pública a dados básicos da Central de Escrituras e Procurações (CEP).
Agora, qualquer interessado poderá acessar as informações por meio de certificado digital (e-Notariado ou ICP-Brasil) e apresentação de nome completo e número de CPF ou de CNPJ. Antes, a consulta era restrita a tabeliães de notas e oficiais de registro, que poderiam ou não disponibilizá-las mediante solicitação.
Dessa forma, o serviço disponibilizará:
— O nome do cartório em que o ato notarial foi lavrado;
— Os números do livro e das folhas;
— Se é escritura ou procuração pública.
O preço de cada consulta será de R$ 19. O valor foi sugerido pelo Colégio Notarial do Brasil e equivale a 25% da média aritmética dos valores cobrados por certidão notarial nas unidades federativas.
Dados públicos
Campbell Marques aprovou a alteração no âmbito de um pedido de providências formulado pelo advogado Vitor Gomes Rodrigues de Mello. Ele relatou que atua na área de localização de ativos e recuperação de crédito e que teve pedidos de acesso a informação recusados por notários.
O advogado argumentou que a restrição violava o princípio da igualdade, estabelecido pelo artigo 5º, caput, da Constituição. Primeiro, ao permitir que apenas alguns agentes tivessem acesso aos dados. Segundo, porque testamentos, divórcios extrajudiciais, inventários extrajudiciais e diretivas antecipadas de vontade já eram informações de acesso livre.
Em sua decisão, o magistrado observou que a restrição questionada era obsoleta e estava na contramão de normas como a LAI, que garante a proteção de dados pessoais sensíveis. Também observou que as dificuldades encontradas por credores colaboram para os altos índices de congestionamento processual em execuções.
“Facilitar o acesso às bases da CEP, nessa linha, é providência que irá contribuir para facilitação da busca de atos negociais que tenham sido realizados e que possam envolver algum bem, permitindo, com isso, uma maior eficiência na busca patrimonial no bojo dos processos de execução no Brasil”, escreveu.
Clique aqui para ler a decisão Processo 0003263-30.2024.2.00.0000
Nos dias 4 e 5 de junho, o Conselho da Justiça Federal (CJF), por meio do Centro de Estudos Judiciários (CEJ), promoverá, em Brasília, a I Jornada de Direito Desportivo. A iniciativa inédita é voltada à consolidação de enunciados jurídicos que orientarão decisões judiciais e práticas institucionais, com o objetivo de fortalecer e modernizar o ordenamento jurídico aplicado ao esporte brasileiro.
A solenidade de abertura, marcada para a manhã do dia 4 de junho, reunirá autoridades e grandes nomes do esporte olímpico e paralímpico. O painel “Bate-Bola” trará a senadora Leila Barros, o medalhista olímpico Robson Caetano e o presidente do Comitê Paralímpico Brasileiro, Mizael Conrado.
O coordenador-geral da jornada, vice-presidente do Superior Tribunal de Justiça (STJ) e do CJF, ministro Luis Felipe Salomão, destaca a relevância do encontro. “Trata-se de uma construção inédita, que poderá resultar em diretrizes fundamentais para o futuro do direito desportivo brasileiro”, apontou.
Impacto
O esporte é uma ferramenta de transformação social, e seu fortalecimento jurídico é fundamental para ampliar a credibilidade, a segurança e o impacto econômico. Nesse contexto, a I Jornada de Direito Desportivo se apresenta como uma resposta institucional aos desafios contemporâneos do esporte, alinhando Justiça e inclusão social.
Para o ministro Salomão, o direito desportivo no Brasil sofre com lacunas legais, conflitos normativos e ausência de legislação unificada. Segundo o magistrado, embora o país disponha de leis como a Lei Pelé, a Lei de Incentivo ao Esporte e o Estatuto do Torcedor, ainda surgem impasses na aplicação dessas normas quando se trata de resolver conflitos relacionados ao tema.
Diante desse cenário, a Jornada se propõe a enfrentar, de forma técnica e participativa, os impasses que atravessam o desenvolvimento do esporte nacional por meio das 112 propostas de enunciados admitidas e organizadas em três comissões temáticas, todas presididas por ministros do STJ.
De acordo com o coordenador científico do evento, ministro do Tribunal Superior do Trabalho (TST) Guilherme Augusto Caputo Bastos, o direito desportivo é dinâmico, multidisciplinar e exige constante atualização para garantir segurança jurídica e proteção aos profissionais do esporte.
Entre os assuntos que serão debatidos na Jornada, estão os contratos e direitos trabalhistas de atletas, a estrutura e a competência da Justiça Desportiva, o doping e a responsabilidade disciplinar, além da inclusão, da diversidade e da equidade de gênero no esporte.
A programação completa da Jornada e outras informações podem ser conferidas no Portal do CJF.
Na última semana, circulou nos meios jurídicos a manifestação do ministro Flávio Dino no julgamento de recurso do Ministério Público do Trabalho (AO 2.417) contra decisão que negou ao parquet trabalhista o direito de atuar em um caso envolvendo a cobrança de honorários advocatícios em ações coletivas:
“Creio que ninguém no mundo pode dizer que isto constitui uma lesão ao patrimônio dos advogados: R$ 1 bilhão e 500 milhões de reais provavelmente de honorários sucumbenciais. Nós estamos aqui controvertendo sobre um plus. Como diz o povo da minha terra, um fora parte”.
Bom, esse valor foi arbitrariamente estipulado pelo ministro. É difícil dizer o valor exato ou até aproximado. Mas uma coisa é certa, segundo os advogados do processo: nem de longe é esse o valor; além disso, os honorários são divididos por mais de uma dezena de advogados que, frise-se, trabalha(ra)m no caso há dezenas de anos. Tem advogado que começou na causa e seus filhos a estão finalizando. Parece bizarra essa demora e, mais ainda, se o desfecho culminar com o descumprimento do dispositivo do Estatuto da OAB que garante esse direito aos causídicos. Demonstrarei na sequência.
A manifestação do ministro deu-se no contexto de divergência com o voto do relator, ministro Nunes Marques, no âmbito de embargos de declaração, quanto à possibilidade de intervenção do MPT em autos de execução trabalhista, com o propósito de obstaculizar a cobrança de honorários advocatícios contratuais acordados entre os patronos da reclamatória, a entidade sindical e os trabalhadores beneficiados.
Explicando: no caso em exame, (1) houve a contratação de advogado para atuar em defesa dos interesses da entidade sindical e seus sindicalizados; (2) ato contínuo, a execução dos honorários contratuais pelos causídicos, nos autos da reclamatória originária; (3) e, em decorrência disso, a intervenção pelo MPT, alegando — manifestamente contra o que aduz lei federal — a impossibilidade de cumulação dos honorários contratuais aos assistenciais e/ou sucumbenciais. Como ocorre seguidamente, é o fiscal da lei a insurgir-se contra a lei porque com ela não concorda.
Pois bem. Ao julgar o mérito da ação, o Plenário do STF decidiu que
“o Ministério Público do Trabalho não possui legitimidade ativa para recorrer de decisão referente a honorários advocatícios que não surjam diretamente da relação de trabalho, por se tratar de direito individual disponível.”
Em face desse acórdão, o MPT opôs embargos de declaração buscando efeitos infringentes. Embargos é aquele recurso que, quando usado pelo advogado no processo criminal, por exemplo, recebe seguidamente a ironia do membro do MP dizendo “o réu quer revolver a prova e mudar o resultado”…
É nessa estreita via que o ministro Flávio Dino reabre a controvérsia: “não se trata apenas de direitos individuais disponíveis”. A questão seria a forma como esse contrato de honorários se desenhou: com anuência da categoria em assembleia geral, e não mediante contratos individuais. Problema: nem a Constituição nem a lei exigem contratos individuais.
Ao contrário: substituição processual existe exatamente para evitar a individualização. Todavia, o entendimento do ministro é de que são indevidos os honorários contratuais firmados pelo sindicato a serem arcados pelo associado, exceto nos casos de contratos individuais regularmente firmados. De novo: tratou-se de substituição processual. O que o ministro Flávio Dino reivindica na sua manifestação em sede de EDs é o contrário do que estabelece a lei. Ele ainda invoca Kelsen, para dizer que, provavelmente, um dos maiores juristas do século 20 não ganhou “tudo isso” ao longo de sua vida.
O caso à luz da teoria da decisão
Se Kelsen ganhou ou não ganhou “tudo isso” em sua vida, difícil dizer. Ou Dworkin. Importa dizer que Kelsen nunca se preocupou com o modo de como os juízes devem decidir. Para ele a decisão jurídica é uma questão de “política jurídica” (TPD, p. 470).
Permito-me dizer que esse problema da adoção de critérios — objetivos — para a decisão jurídica é uma verdadeira batalha epistemológica que se trava no âmbito da busca de decisões adequadas à Constituição — não só no Brasil. Nesse exato sentido, uma lei só pode deixar de ser aplicada em seis hipóteses:
1) quando for inconstitucional, ocasião em que deve ser aplicada a jurisdição constitucional difusa ou concentrada – não é o caso em discussão;
2) quando for o caso de aplicação dos critérios de resolução de antinomias — tampouco há que se falar em lex anteriores ou posteriores etc.;
3) quando for necessário aplicar a interpretação conforme à Constituição (verfassungskonforme Auslegung), ocasião em que se torna necessária uma adição de sentido ao artigo de lei para que haja plena conformidade da norma à Constituição. Nesse caso, o texto de lei (entendido na sua “literalidade”) permanecerá intacto; o que muda é o seu sentido, alterado por meio de interpretação que o torne adequado à Constituição — igualmente não se vislumbra hipótese de se dizer que uma conquista como a substituição processual possa ser confrontada e reintepretada;
4) quando for preciso aplicar a nulidade parcial sem redução de texto — muito menos estamos diante disso que, originalmente, chamou-se de Teilnichtigerklärung ohne Normtextreduzierung;
5) quando for o caso de declaração de inconstitucionalidade com redução de texto, ocasião em que a exclusão de uma palavra conduz à manutenção da constitucionalidade do dispositivo – da mesma forma, não há o que “cortar” do dispositivo da OAB;
6) quando — e isso é absolutamente corriqueiro e comum — for o caso de deixar de aplicar uma regra em face de um princípio, ocasião em que a regra perde sua normatividade em face de um princípio constitucional, entendido este como um padrão, do modo como explicitado em Verdade e Consenso[1] — aqui, não se vislumbra qualquer princípio que poderia ser um obstáculo ao dispositivo da OAB que dá direito aos honorários convencionados.
Fora dessas hipóteses, o juiz tem a obrigação institucional e constitucional de aplicar a lei, porque é um dever fundamental Se o Judiciário achar que a lei não vale, deve então a declarar dentro das seis hipóteses. O Judiciário, quando não aplica lei válida, está legislando na via contrária.
Vejamos os dispositivos envolvidos no caso em discussão: o inciso III do artigo 8º da Constituição é claro em estabelecer a conquista político-jurídica da substituição processual:
“ao sindicato cabe a defesa dos direitos e interesses coletivos ou individuais da categoria, inclusive em questões judiciais ou administrativas.”
Trata-se, assim, de um direito fundamental de acesso à justiça por meio de um atalho institucional que livra o trabalhador/cidadão não somente das agruras de ingressar individualmente com uma demanda, como também o desonera das pressões dos detentores do capital. Repita-se: estamos diante de um direito fundamental!
Esse direito fundamental também é procedimentalizado pelo Estatuto da OAB, no artigo 22, §§ 6º e 7º, ao se conferir à advocacia a garantia de que
“aplica-se aos honorários assistenciais, compreendidos como os fixados em ações coletivas propostas por entidades de classe em substituição processual, sem prejuízo aos honorários convencionais”
e que
“os honorários convencionados com entidades de classe para atuação em substituição processual poderão prever a faculdade de indicar os beneficiários que, ao optarem por adquirir os direitos, assumirão as obrigações decorrentes do contrato originário a partir do momento em que este foi celebrado, sem a necessidade de mais formalidades.”
Essa lei federal é válida. E constitucional, até este momento. Lendo o que diz a lei, pergunta-se: qual é o fundamento para exigir a manifestação de vontade individual de cada sindicalizado antes da proposição de ações coletivas envolvendo direitos trabalhistas? Isso esvazia a substituição processual.
O eventual excesso no valor de honorários é um argumento que perigosamente atinge o cerne do sistema de advocacia brasileiro. Imagine-se a advocacia ingressar em juízo contra o valor dos salários (e vantagens) do Poder Judiciário e do Ministério Público, com o argumento de que são elevados?
O instituto da substituição processual e o pagamento de honorários contratuais reveste-se de uma constitucionalidade chapada. O dispositivo do Estatuto da OAB é claro. A Constituição alberga o poder de os sindicatos atuarem como substitutos processuais.
Mais: recentemente o STF entendeu que é constitucional restringir direitos trabalhistas por meio de acordos coletivos (Tema 1.046). Então, a autonomia coletiva da vontade do sindicato o autoriza a celebrar acordos que restrinjam direitos trabalhistas, mas não o autoriza a ajuizar ações coletivas para os proteger?
A consequência previsível disso tudo é o enfraquecimento dos sindicatos. Dia a dia o poder dos sindicatos vem sendo fragilizado. Dificilmente causídicos vão se interessar em ajuizar ações coletivas para entidades sindicais. Preferirão ações plúrimas: teremos cem ações com dez pessoas em cada, em vez de uma ação do sindicato em nome de milhares de filiados.
Em síntese, inconstitucional é qualquer limitação a essas normas, pois violaria a decisão do STF sobre a autonomia coletiva da vontade. E, mais do que isso, colocaria um óbice absolutamente indevido ao direito de acesso à justiça, à tutela dos direitos trabalhistas pelo sindicato e à própria autonomia das entidades sindicais.
Logo, com toda lhaneza epistêmica com a qual sempre opero, insisto: a constitucionalidade do pagamento de honorários contratuais em ações coletivas trabalhistas diz respeito à autonomia do Direito. É sobre preservar a advocacia. É sobre proteger o trabalhador.
[1] STRECK, Lenio Luiz. Verdade e Consenso: Constituição, Hermenêutica e Teorias Discursivas. 6. ed. São Paulo: Saraiva, 2017. p. 633 e seg.
Em entrevista coletiva realizada na segunda-feira (26/05), o Banco Central anunciou novos serviços de cidadania financeira, com o objetivo de ampliar a segurança, facilitar o acesso e automatizar serviços oferecidos à população.
As inovações em curso são o desenvolvimento do sistema no qual os cidadãos poderão informar o Sistema Financeiro de que não desejam que sejam abertas contas bancárias em seu nome; o recebimento automático de valores a receber (SVR) mediante solicitação do usuário; o uso de inteligência artificial no atendimento do chat bot do Banco Central, o Din; a integração e expansão de sistemas no Meu BC; e, a nova Calculadora do Cidadão.
Com base no conceito de cidadania financeira — que se apoia nos pilares de inclusão, educação, proteção e participação do cidadão —, os novos serviços têm o propósito de garantir mais autonomia aos cidadãos e facilitar o acompanhamento de sua vida financeira.
A primeira mudança a entrar em funcionamento é o recurso automático do Sistema Valores a Receber (SVR), disponível a partir de 27 de maio.
“O cidadão poderá cadastrar uma chave Pix [CPF] no SVR automático. Assim, quando houver um novo valor a receber, ele será depositado automaticamente para o usuário”, destacou Izabela Correa, diretora de Relacionamento, Cidadania e Supervisão de Conduta do BC.
A novidade simplifica o processo, eliminando a necessidade de consultas recorrentes e solicitações manuais para cada valor a ser resgatado. Em 2024, o SVR recebeu 73 milhões de consultas, com 25 milhões indicando valores a receber.
A função é exclusiva para pessoas físicas com chave Pix do tipo CPF.
Em dezembro, um novo sistema oferecido na área logada do Meu BC permitirá ao cidadão informar as instituições financeiras de que não deseja abrir novas contas (corrente, de poupança ou de pagamento). O objetivo é prevenir fraudes relacionadas à abertura indevida de contas com uso de identidade falsa.
A funcionalidade será gratuita, voluntária e reversível. “No início de dezembro, teremos um novo sistema de segurança em que o cidadão passa a informar sobre a intenção de não abrir contas, para prevenção a fraudes”, explicou Izabela Correa.
Futuramente, o serviço será ampliado para informação sobre a contratação de outros serviços financeiros.
Melhoria de serviços Uma facilidade que está por vir é o acesso a todos os serviços aos cidadãos oferecidos pelo Banco Central a partir de um único login. “Até o final de junho, vamos disponibilizar uma área logada do Meu BC onde o interessado poderá acessar todos os serviços prestados pelo Banco Central — como Registrato, SVR e acompanhamento de demandas —, a partir de um único acesso”, contou a diretora. Assim, quando alguém faz uma reclamação sobre uma instituição financeira, ele passará a ter acesso à resposta da entidade no sistema.
O BC também irá aprimorar os canais de diálogo com a sociedade. Até o final do ano, o chatbot DIN, canal de autosserviço, passará a utilizar inteligência artificial, ampliando a gama de serviços e respostas. Diariamente, o Banco Central atende cerca de 1.800 ligações e 300 pedidos de informação on-line. O DIN realiza atualmente 59 mil conversas mensais.
O Banco Central também fará lançamento da nova Calculadora do Cidadão, mais moderna e acessível. O objetivo das iniciativas é promover a compreensão de temas financeiros por meio de ferramentas simples e de linguagem acessível, para elevar o conhecimento sobre temas na vida financeira das pessoas.
Serviços voluntários “Todos os serviços são sempre voluntários, de iniciativa do usuário. Então cabe a ele autorizar ou não o SVR automático; caberá a ele habilitar a função de dizer que não deseja a abertura de novas contas ou de novos produtos, no futuro. A decisão é sempre do cidadão”, reforçou Carlos Eduardo Gomes, chefe do departamento de Atendimento Institucional do BC.
“É importante ressaltar que não temos uma comunicação ativa com o indivíduo”, explicou Gomes, alertando que as informações seguras estarão sempre disponíveis no sistema Meu BC, a partir de login do gov.br.
Continuando a análise das propostas da reforma do Código Civil para a doação [1], passo agora a mais algumas normas. Neste artigo, quero chamar a atenção para três problemas estritamente jurídico-dogmáticos: o incorreto uso da categoria jurídica da ineficácia na doação inoficiosa, uma insólita proposta de doação confiscatória e a imprecisão do termo ajuda patrimonial nas hipóteses de revogação da doação.
Doação inoficiosa
O artigo 549 foi completamente alterado. A doação inoficiosa segue vedada, mas o conceito que instrumentaliza essa proibição foi modificado. O caput atual dispõe que “[n]ula é também a doação quanto à parte que exceder à de que o doador, no momento da liberdade, poderia dispor em testamento”. A Reforma propõe uma alteração no início desse artigo, que rezaria: “[s]alvo na hipótese do art. 544, é ineficaz a doação (…)”. Diretamente ligada a essa alteração está a inclusão de um § 3º, cuja redação proposta é a seguinte: “[n]ão sendo proposta a ação de reconhecimento da ineficácia no prazo de cinco anos, a doação considerar-se-á eficaz desde a data em que foi realizada”. Isto é, trocou-se a noção de nulidade pela de ineficácia. Como o nulo jamais poderia convalescer ex artigo 169, CC, a categoria da ineficácia deve ter parecido à comissão um instrumento apto a instrumentalizar esse resultado.
No entanto, os conceitos dogmáticos não podem ser instrumentalizados de tal maneira. Se a finalidade era estabelecer um limite temporal, quadraria melhor utilizar a noção de anulabilidade, prevendo-se ou a aplicação do prazo decadencial geral, ou a criação de prazo específico. De fato, as anulabilidades têm de ser alegadas dentro de determinado prazo, sob pena de convalidação. Já o regime da ineficácia é muito distinto e não tem, entre seus princípios, a noção de aquisição geral de eficácia pelo decurso do tempo. A noção mesma de uma ineficácia cuja declaração se sujeita a um prazo causa estranheza: não se estaria próximo a uma verdadeira desconstituição? A ineficácia se converteria num direito formativo extintivo?
De fato, a ineficácia é incompatível com a situação. Como regra geral, a ineficácia produz-se inter partes, de modo que, beneficiado pela ineficácia seria apenas o autor da ação declaratória: trata-se de situação semelhante à da fraude à execução, cujo reconhecimento, importando em ineficácia, não faz com o que bem retorne ao patrimônio do executado, mas apenas declara a ineficácia da disposição em face de determinado credor. Esse resultado seria plenamente insatisfatório por duas razões. Em primeiro lugar, privilegiaria um herdeiro em detrimento de outro, desequilibrando os quinhões. Em segundo lugar, constituiria previsão arriscada para os credores. Afinal, “[s]e, somando-se ao que deixou o falecido o em que importaram as doações, há menos do que a soma das dívidas, legitimados ativos também são os credores, uma vez que no Código Civil [de 1916], artigo 1.176, se concebeu a regra jurídica como de nulidade”[2]. Esse esclarecimento de Pontes de Miranda é fundamental: a nulidade, como impede – perante todos – que o bem saia juridicamente do patrimônio do doador, é a categoria correta para tutelar não apenas o conjunto de herdeiros, mas também terceiros credores que eventualmente tenham de declarar a nulidade parcial da doação inoficiosa. É preciso ter extremo cuidado ao trocar categorias conceituais, pois nem todos os resultados podem ser concebidos desde logo.
Passando à aplicação prática de tal princípio, ela causa diversos problemas. Em primeiro lugar, antes da abertura da sucessão, a legitimação como herdeiro é mera expectativa de direito, podendo-se alterar a depender de quando sobrevier a morte para cada pessoa. Em verdade, não há herdeiro de pessoa viva: a legitimidade para suceder apura-se, em regra, no momento da abertura da sucessão. Assim, a legitimidade não seria verdadeiramente atribuída ao herdeiro, mas ao herdeiro presuntivo. A este caberia atuar em benefício dos herdeiros (efetivos) em geral, ainda não determinados; já sua inércia poderia também prejudicar outros herdeiros que, uma vez passado o prazo quinquenal, não teriam mais instrumento para questionar a doação.
O segundo problema prático está em apurar, durante a vida do doador, a inoficiosidade da doação: por vezes, nem mesmo o doador tem plena consciência do montante do seu patrimônio para avaliar a inoficiosidade. Imagine-se, então, que um herdeiro – e, de ordinário, em nítido conflito com o doador – teria de calcular o valor do patrimônio e provar a inoficiosidade em juízo. Considerando que grande parte da documentação dos bens que fazem parte do patrimônio não é pública, e que nem todos os bens permitem fácil estimação pecuniária, qual a probabilidade desse desenho institucional funcionar para além de patrimônios muito limitados, cujos bens sejam facilmente avaliáveis? É por isso que outras normas – como o artigo 550, CC, que trata da doação do cônjuge adúltero ao seu cúmplice – fazem iniciar o prazo de anulabilidade após a dissolução da sociedade conjugal, o que abrange também a morte do autor da herança. Caso se aplicasse a anulabilidade ao caso, conviria ser este o termo inicial do prazo decadencial.
A reforma propõe ainda a inclusão dos §§ 1º e 2º. O § 1º receberia a seguinte redação: “[o] cálculo da parte a ser restituída considerará o valor nominal do excesso ao tempo da liberalidade, corrigido monetariamente até a data da restituição, ainda que o objeto da doação não tenha sido dinheiro”. Já o § 2º teria a seguinte redação: “[e]m casos de doações realizadas de forma sucessiva, o excesso levará em conta todas as liberalidades efetuadas”.
O § 2º traz norma jurídica interessante, pois resolve dúvidas práticas embasadas em estudos doutrinários anteriores [3]. Já o § 1º mostra alguns problemas. Em primeiro lugar, não é preciso explicitar a necessidade de correção monetária, uma vez que, sendo a pretensão aplicável ao caso a do enriquecimento injustificado [4], essa previsão está explícita no artigo 884, parte final, CC. Em segundo lugar, é evidente que a disposição deve se aplicar ainda que a doação não tenha dinheiro por objeto, uma vez que a estimação pecuniária é a forma de avaliação comum a todos os objetos patrimoniais por definição.
Mas há algo mais grave: ao regular o que deve ser devolvido, a norma proposta toma posição a respeito do objeto do enriquecimento injustificado, que não é matéria pacífica no direito brasileiro. No direito estrangeiro, questiona-se se o objeto da pretensão de enriquecimento deve consistir na atribuição realizada, na reversão do efetivo enriquecimento ao patrimônio do donatário, ou em critério misto [5]. Não me parece prudente tomar partido dessa questão sem estudos doutrinários prévios de maior envergadura.
Expropriação confiscatória
O artigo 553, caput, CC, prevê três espécies de doação com encargo, conforme o interesse em sua realização: (a) do doador; (b) de terceiro; (c) do público em geral. Em todos esses casos, pela regulação atual, o donatário é obrigado a cumprir o encargo.
A Reforma amplia essa norma, concedendo ao terceiro interessado e ao Ministério Público não apenas a possibilidade de exigir o cumprimento do encargo em benefício de terceiro e no interesse geral, respectivamente, mas também a de revogar a doação. Assim, prevê o novo § 2º: “[n]as duas últimas hipóteses do caput deste artigo, caberá a revogação da doação pelo Ministério Público ou pelo terceiro beneficiado, e o bem doado será revertido ao fundo gerido por um Conselho Federal ou por Conselhos Estaduais de que participarão necessariamente o Ministério Público e representante da comunidade, nos termos da lei”.
Essa hipótese causa estranhamento, pois o direito formativo de revogação da doação não é nem mesmo exercitável pelos herdeiros, a não ser que continuem na ação já ajuizada pelo doador (cf. artigo 560, CC) ou em caso de homicídio (artigo 561, CC). O que causa ainda maior estranhamento, porém, é tratar-se de uma revogação em benefício de terceiro, já que o objeto doado, após a revogação a pedido do terceiro ou do Ministério Público, não regressará ao patrimônio do doador ou de seus herdeiros, mas será destinado a um conselho estadual ou federal.
A técnica legislativa causa espécie: se o bem não voltará ao patrimônio do doador ou de seu sucessor, de revogação não se trata. Também não se trata de hipótese de desapropriação, na medida em que não há previsão de indenização, como exigido pelo artigo 5, XXIV, CF. Resta apenas categorizá-la como expropriação confiscatória, à semelhança do que se prevê no artigo 243, CF, medida extrema para o caso de bens imóveis utilizados para cultivo de plantas psicotrópicas ou de exploração de trabalho escravo. Existem, de fato, hipóteses de expropriação na legislação ordinária, como o caso dos produtos e instrumentos do crime (artigo 91, CP), mas tal espécie de confisco está implicitamente autorizada no artigo 5, XLV, CF. De fato, em ambas as espécies, a destinação é bastante clara: a União é a destinatária, ainda que, no artigo 243, CF, se explicite que ela deverá empregar os imóveis expropriados para fins de reforma agrária e de programas de habitação popular. Já a reforma se limita a cometer a administração desses bens a um Conselho, cuja caracterização nem sequer se debuxa. Além disso, não se prevê a finalidade de emprego do produto da expropriação. É preciso observar, ainda, que as outras espécies de expropriação decorrem, direta ou indiretamente, de condenação criminal ou de situações criminosas; já o descumprimento do encargo constitui mero ilícito civil.
A categoria da revogação foi indevidamente manipulada neste artigo da Reforma. A revogação constitui direito formativo extintivo, cuja titularidade é, a princípio, do doador. Exercendo-o, o doador retira a vox [6], isto é, a declaração jurídico-negocial, com eficácia ex tunc, e, com isso, perde-se a causa jurídica que sustentava a atribuição que ele fizera ao donatário. Por essa razão, não há uma relação de liquidação após a revogação: o que há é apenas enriquecimento injustificado ou pretensão reivindicatória. E, no caso da primeira, não exatamente a condictio indebiti, mas a condictio obcausam finitam, já que a causa atributiva existiu, mas deixou de existir após a revogação. Como as condicções seguem a ordem da prestação [7] – realizada, por sua vez, entre doador e donatário – não há como o terceiro ser beneficiado: o bem doado tem de regressar ao patrimônio do doador, seja ele titularizado ainda pelo doador ou por seus herdeiros. Logo, uma revogação em benefício de terceiro é um contrassenso jurídico, que viola as regras estruturais de extinção dos negócios jurídicos, bem como as do enriquecimento injustificado. Na verdade, o termo “revogação” está aí apenas como eufemismo: o que há, de fato, é expropriação confiscatória.
Nesse sentido, o regime de execução do encargo torna-se excessivamente rigoroso com a reforma. Na hipótese do interesse ser de terceiro, a previsão carece mesmo de sentido: qual o interesse que o terceiro teria em pedir a revogação da doação, se o bem doado será destinado a um Conselho de que ele nem sequer participará? Haveria muitas outras formas, mais convenientes e eficazes, do que a previsão da expropriação confiscatória – que constitui, a bem da verdade, a forma mais radical para lidar com ilícitos relativos à propriedade. É o caso, por exemplo, da execução específica por meio de astreintes, da previsão de indenização por perdas e danos pela inexecução do encargo ou, mais radicalmente, da execução manu militari dos encargos em que tal espécie couber.
Em conclusão, as alterações propostas para o artigo 553, CC, geram uma espécie de expropriação confiscatória de constitucionalidade bastante duvidosa, sendo melhor manter a previsão genérica do atual artigo 562, CC, que concede ao doador a revogação da doação por inexecução do encargo. Além disso, o conceito de revogação não se presta à intenção da previsão normativa da reforma.
Ajuda patrimonial
O artigo 557, CC, prevê as hipóteses de revogação por ingratidão. A formulação legislativa atualmente vigente implica que as hipóteses de ingratidão são típicas. No entanto, a reforma prevê antepor ao texto atual a seguinte oração: “[e]ntre outras hipóteses de especial gravidade (…)”, explicitando que os fundamentos de revogação passam a constar de rol aberto.
Essa alteração, por si só, já causa estranhamento. Se as razões para revogação são tão graves, como não é possível prevê-las? Aqui se nota mais um problemático aspecto da reforma: o excessivo papel concedido à concretização judicial das hipóteses normativas. Especialmente em casos graves, como a perda de um direito, é conveniente que as hipóteses venham elencadas na lei. Há também falta de sistematicidade: a alteração do inciso II – adicionando que a ofensa física pode se voltar “(…) contra algum membro de sua família” é desnecessária, pois prevista já no artigo 558, CC.
No entanto, o que causa maior estranheza é o conceito empregado no inciso IV: “ajuda patrimonial”. Este conceito visa a substituir a noção de “alimentos”. Aqui há mais um traço comum da Reforma: a substituição de um conceito dogmático com grande densidade por outro sem nenhuma densidade dogmática. Afinal, o que pode ser considerado “ajuda patrimonial”? Se o doador pedir dinheiro mutuado ao donatário, trata-se de ajuda patrimonial? E, se pedir para morar gratuitamente em imóvel desocupado do donatário, o comodato seria ajuda patrimonial? Em rigor, a resposta positiva seria admissível, na medida em que, em ambos os casos, o patrimônio do doador ou aumenta, ou deixa de se reduzir mesmo recebendo uma benesse. Parece, porém, excessivo permitir a revogação da doação diante da negativa do donatário em aceitar a conclusão de tais “contratos”, se é que assim poderiam ser chamados diante da ameaça de revogação em caso de negativa. Já o conceito de alimentos, forjado no binômio possibilidade e necessidade, é muito mais adequado, pois permite ponderar judiciosamente a situação de ambas as partes envolvidas. Com a troca, não apenas não se ganha nada, mas, em verdade, se perde a clareza conceitual.
[1] METTLACH, J. C. A doação na reforma do Código Civil. Conjur, 30/04/2025. Acesso aqui.
[2] PONTES DE MIRANDA, F. C. Tratado de Direito Privado. Vol. XLVI. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2012, p. 330.
[3] Quanto ao § 2º, cf. PONTES DE MIRANDA, F. C., Tratado de Direito Privado. Vol. XLVI. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2012, p. 329.
[4] Emprego o termo enriquecimento injustificado como gênero, abrangendo os capítulos do pagamento indevido e do enriquecimento sem causa, e trato-os como concretizações do mesmo instituto jurídico.
[5] Para um panorama geral, cf. REUTER, Dieter; MARTINEK, Michael. Ungerechtfertigte Bereicherung. Tübingen: Mohr, 1983, pp. 518-20.
[6] PONTES DE MIRANDA, F. C. Tratado de Direito Privado. Vol. XXV. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2012, p. 351.
[7] WIELING, H. J. Bereicherungsrecht. 3ª ed. Berlin: Springer, 2004, pp. 89. As razões são plenamente aplicáveis ao direito brasileiro.
1. A Lei nº 14.193/2021 — Lei do Regime Centralizado de Execuções (RCE) — foi inspirada na Lei nº 11.101/05 (Lei da Recuperação Judicial), inclusive com informação legislativa de aplicação análoga de seus conceitos primários, consoante parecer da Comissão Especial do Senado Federal.
2. A máxima de ambas as legislações, nesse particular aspecto, é o prestígio aos princípios da preservação e da continuidade da empresa.
3. É natural que o Congresso Nacional não esgote a matéria em suas discussões parlamentares, pois a política nada mais é do que a arte do possível, conciliando todos os pensamentos em torno a uma necessidade social real, premente e concreta.
4. Originalmente o projeto de lei proposto pelo senador Rodrigo Pacheco não previa o regime centralizado de execuções. Todavia, na justificação da criação da norma o embrião dessa tão bem-vinda organização creditícia se fazia presente através do reconhecimento do valor econômico e cultural do desporto. A saber:
“Para além de ser um dos mais importantes fenômenos culturais-sociais deste País, o futebol revelou-se atividade econômica de grande relevância nacional: os principais clubes geram bilhões de reais em faturamento, empregam milhares de pessoas (direta e indiretamente) e movimentam verdadeiras indústrias de bens de consumo e prestação de serviços.
(…)
É preciso, portanto, reconhecer a necessidade de se promover uma verdadeira transformação do regime de tutela do futebol no Brasil, a fim de possibilitar a recuperação da atividade futebolística, aproximando-o dos exemplos bem-sucedidos que se verificaram em países como Alemanha, Portugal e Espanha.”
5. No parecer lavrado pelas mãos do deputado federal Fred Costa, relator do emendado projeto de Lei nº 5.516/2019, o plenário da Comissão Especial assim bem pontuou sobre a inspiração da Lei da S.A.F. na Lei de Recuperação Judicial, com especial ênfase à criação do Regime Centralizado de Execuções:
“Considero meritório e oportuno o projeto ora examinado, tendo em vista que o futebol brasileiro há muito enfrenta desafios com a gestão pouco profissional dos clubes. O formato associativo, predominante na atualidade, não viabiliza um modelo de governança por meio do qual os dirigentes possam ser responsabilizados por suas gestões, além de limitar as formas de financiamento junto ao público, não viabilizar o acesso aos institutos da recuperação judicial e extrajudicial e carecer de um sistema legal de transparência.
(…)
Como forma de solucionar os problemas acima mencionados, o PL 5.516, de 2019, propõe a criação da Sociedade Anônima do Futebol (SAF), um formato de sociedade anônima adaptado às peculiaridades do setor esportivo em que inseridas, as quais serão regidas subsidiariamente pela Lei n. 6.404, de 1976. O PL cria ainda o Regime Centralizado de Execuções, como modo alternativo para pagamento de obrigações pelo clube, regulamento o licenciamento privado das SAF via emissão de debênture-fut, e institui o regime de Tributação Específica do Futebol (TEF).
(…)
Como forma de endereçar a atual crise financeira vivida pelos clubes e a restrição legal de acesso das associações aos institutos recuperacionais da Lei n. 11.101, de 2005, o PL expressamente permite que os clubes escolham por efetuar o pagamento de suas obrigações seja pela recuperação judicial ou extrajudicial seja pelo concurso de credores, por intermédio do Regime Centralizado de Execuções.”
5. Esse parecer concluiu pela constitucionalidade, juridicidade e técnica legislativa, acenando positivamente para a aplicação subsidiária da Lei de Recuperação Judicial à Lei do RCE.
6. Prevendo, outrossim, que dessa dissonância haveria lacunas a serem preenchidas, o artigo 4º do Decreto 4.657/42 tratou de dispor que “Quando a lei for omissa, o juiz decidirá o caso de acordo com a analogia, os costumes e os princípios gerais de direito”.
8. De acordo com Serpa Lopes (Curso de direito civil, Rio: Freitas Bastos, 1998, v.I, p.135) “quando a lei não fez distinção o intérprete não deve fazê-la (ubi lex non distinguit nec nos distinguere debemus). Não deve o intérprete criar, na interpretação, distinções que não figuram na lei“.
9. Desta feita, evidencia-se, sem a menor sobra de dúvidas, que na ausência de normas comezinhas sobre o Regime Centralizado de Execuções, caberá o preenchimento desses espaços pela recuperação judicial.
10. É razoável que a Lei do RCE se servirá – mutatis mutandis – no que couber, do arcabouço interpretativo jurisprudencial sobre a Lei da Recuperação Judicial, consoante fixado no parecer da Comissão Especial do Senado que deu azo à conclusão positiva do então projeto de lei.
11. O objetivo primordial da Lei do RCE foi o de outorgar à deliberação das entidades de prática desportiva a construção das condições infraestruturais que lhes permitissem tratar de seus passivos e prover um ambiente seguro de negócios para constituição de uma Sociedade Anônima do Futebol (SAF) a investidores interessados no principal desporto nacional.
12. A blindagem patrimonial prevista no artigo 23 da Lei do RCE e no inciso I, do artigo 6º da Lei da Recuperação Judicial exsurge justamente do princípio da preservação da empresa.
13. Além disso, o Regime Centralizado de Execuções tem por escopo organizar os credores em fila, por ordem preferencial, excluídos os créditos extraconcursais, evitando, outrossim, a indesejável paralisação das atividades pelas mãos da asfixia financeira.
14. A previsão de um plano de pagamento de credores (artigo 16 da Lei do RCE) guarda semelhanças com o plano de recuperação judicial (artigo 53 da Lei da Recuperação Judicial), a saber:
Plano de Pagamento de Credores
Plano de Recuperação Judicial
I. Balanço patrimonial;
I. Avaliação dos bens e ativos do devedor, subscrito por profissional legalmente habilitado ou empresa especializada;
II. Demonstrações contábeis;
III. Obrigações em fase de execução;
IV. Estimativa auditada das dívidas ainda em fase de conhecimento;
II. Laudo econômico-financeiro;
V. Fluxo de caixa e a sua projeção;
III. Demonstração de sua viabilidade econômica;
VI. Termo de compromisso de controle orçamentário
VII. Ordem da fila de credores com seus respectivos valores individualizados e atualizados;
VIII. Pagamentos efetuados no período;
IX. Estabelecimento do plano de pagamento de forma diversa
IV. Discriminação pormenorizada dos meios de recuperação a ser empregados
15. As semelhanças não param por aí. A ordenação do pagamento no Regime Centralizado de Execuções (artigo17 da do RCE) muito se parece com a classe de credores (artigo 41 da Lei da Recuperação Judicial).
Ordem de Credores
Classe de Credores
I. Preferência de créditos trabalhistas;
I. Titulares de créditos laborais;
II. Idosos;
II. Titulares de créditos com garantia real;
III. Pessoas com doenças graves;
III. Titulares de créditos quirografários, com privilégio especial, com privilégio geral ou subordinados;
IV. Crédito inferior a 60 salários mínimos;
IV. Titulares de créditos enquadrados como microempresa ou empresa de pequeno porte;
V. Gestantes;
VI. Vítimas de acidentes de trabalho;
V. Crédito decorrente de acidente do trabalho
VII. Acordo com redução de 30% da dívida;
VIII. Antiguidade
16. Desde a proposta até a sanção da Lei do RCE foi clara a intenção do parlamento brasileiro em preservar as entidades de prática desportiva, provendo-lhe de meios e instrumentos capazes de gerar uma verdadeira transformação social e adequação a uma nova realidade que se impôs no curso do tempo.
Referências:
BRASIL. Decreto nº. 4.657, de 4 de setembro de 1942. Lei de Introdução às normas do Direito Brasileiro. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 9 set. 1942 – retificado em 8 out.1942 e retificado em 17 jun. 1943.
BRASIL. Lei nº 11.101, de 9 de fevereiro de 2005. Regula a recuperação judicial, a extrajudicial e a falência do empresário e da sociedade empresária. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 9 fev. 2005 – Edição extra.
BRASIL. Lei nº 14.193, de 6 de agosto de 2021. Institui a Sociedade Anônima do Futebol e dispõe sobre normas de constituição, governança, controle e transparência, meios de financiamento da atividade futebolística, tratamento dos passivos das entidades de práticas desportivas e regime tributário específico; e altera as Leis nºs 9.615, de 24 de março de 1998, e 10.406, de 10 de janeiro de 2002 (Código Civil). Diário Oficial da União, Brasília, DF, 6 out. 2021 – Edição extra e retificado no DOU de 21 out. 2021.
BRASIL. Projeto de Lei nº. 5.516/2019. Autor
Senado Federal – Rodrigo Pacheco – DEM/MG. Apresentação
15/06/2021
LOPES, Miguel Maria de Serpa. Curso de Direito Civil Civil. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1998, v. I, p. 135).
Desde que assumiu a presidência do Tribunal Regional do Trabalho da 15ª Região (TRT15), em dezembro, a desembargadora Ana Paula Pellegrina Lockmann tem enfrentado o desafio de gerir o segundo maior TRT do país em volume de processos. Sediado em Campinas, o tribunal registrou, apenas em 2024, uma média superior a 3,5 mil novos processos por desembargador.
Apesar do curto período à frente da corte, Lockmann já implantou iniciativas para otimizar o trabalho de magistrados e servidores, com o objetivo de garantir mais celeridade e segurança jurídica. A segunda instância ainda deve ganhar reforços. Em janeiro, houve a aprovação de um decreto que cria mais 15 cargos de desembargadores. A presidente do TRT15 ainda firmou um acordo inédito com o TRT da 2ª Região (TRT2), em São Paulo, para compartilhar precedentes que possam ter seu entendimento unificado.
Lockmann destaca que, embora a reforma trabalhista tenha inicialmente provocado uma redução no número de ações na primeira instância, esse efeito não se repetiu no segundo grau. A preocupação com a alta demanda impulsionou medidas estruturais e administrativas para melhorar o fluxo de julgamento.
Entre as principais medidas adotadas está a criação de 15 novos cargos de desembargador, viabilizada pela extinção de 25 cargos vagos de juízes substitutos e formalizada pelo Decreto-Lei 15.096/2025, sancionado em janeiro pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva. A reestruturação busca aliviar a sobrecarga na segunda instância. Segundo a presidente, o tribunal já trabalha nas adaptações físicas, normativas e contratuais para viabilizar os editais de promoção aos novos postos.
Precedentes
Já em relação à formação de precedentes, a presidente do TRT aponta que existem cinco Incidentes de Resolução de Demandas Repetitivas (IRDRs) pendentes de julgamento, que envolvem temas como responsabilidade subsidiária, concessão de gratuidade de justiça em favor de sindicato em ação de cumprimento de cláusulas normativas, merenda escolar, descanso semanal remunerado de professores, além de processo que trata do chamado incidente de desconsideração de personalidade jurídica. Esses temas, segundo Lockmann, podem ser pautados no início do próximo semestre.
Ao tratar da iniciativa pioneira firmada com o TRT2, em São Paulo, que prevê a criação de um procedimento simplificado para adesão de teses firmadas em incidentes de assunção de competência e de resolução de demandas repetitivas, o IRDR, ou de incidentes análogos de outros tribunais, afirma que a proposta é evitar retrabalho e conferir uniformidade às decisões. “A ideia é usar apenas situações iguais, ter um procedimento mais simplificado a partir do que outro tribunal já tenha adotado uma tese e já tenha passado por todo o rito de um IRDR. Mas com toda a observância, com toda a votação no tribunal Pleno, do nosso tribunal”. Para isso, afirma que ainda está sendo elaborada uma resolução administrativa que trará todo o rito que será adotado.
STF
A presidente do TRT15 também abordou a relação entre a Justiça do Trabalho e o Supremo Tribunal Federal (STF), destacando uma preocupação com o esvaziamento das competências da Justiça trabalhista. Ela citou, em especial, a questão da pejotização, e rebateu críticas de que a Justiça do Trabalho não estaria observando precedentes do STF sobre terceirização.
“Com todo respeito, terceirização e pejotização são fenômenos distintos”, afirmou. Para Lockmann, enquanto a terceirização caracteriza-se por uma relação triangular entre empregado celetista, prestador e tomador de serviço, a pejotização implica substituição do vínculo empregatício formal por uma relação entre dois CNPJs — frequentemente para ocultar uma relação de emprego. “A pejotização não pode servir de instrumento à generalização de fraudes. E o artigo 9º da CLT, a que nós devemos observância, é bastante claro e não foi, até onde eu sei, não há nenhuma revogação, ele autoriza expressamente o reconhecimento por parte do juiz do trabalho de verificar a fraude trabalhista.”
No último dia 14 de maio, a 3ª Seção do Superior Tribunal de Justiça, ao julgar os RHCs 196.150, 174.173 e o REsp 2.150.571, pôs fim à controvérsia sobre o alcance dos relatórios de inteligência financeira (RIFs). Por maioria de seis votos a três, fixou-se tese vinculante segundo a qual é inviável que o Ministério Público ou a Polícia Judiciária requisitem, sem ordem judicial, a remessa de RIFs pelo Coaf.
A decisão do STJ não apenas confirma essa tese: reafirma que, como sustentei em outra passagem nesta ConJur, o combate ao crime não pode sacrificar garantias fundamentais como o sigilo bancário, a intimidade e a ampla defesa. Práticas como a solicitação de RIFs sem autorização judicial, a ampliação indevida de escopos investigativos e a adoção de fishing expeditions colidem com os alicerces do Estado democrático de Direito, pois subvertem a presunção de inocência, vulneram a ampla defesa e contaminam de ilicitude as provas produzidas.
Ao afastar a leitura ampliativa do Tema 990 do STF — que legitima apenas o compartilhamento espontâneo —, o STJ recolocou a reserva de jurisdição no centro do controle das devassas patrimoniais e financeiras, impondo um freio jurídico à prática que, sob o rótulo de “eficiência investigativa”, vinha autorizando pescarias probatórias sem contraditório.
A corte deixou claro que o compartilhamento admitido pelo Supremo não autoriza o movimento inverso, ou seja, a requisição ativa por parte do Ministério Público ou da Polícia Judiciária. Prevaleceu a compreensão de que a eficácia estatal na repressão penal não dispensa a mediação judicial, sendo inaceitável a coleta de dados sensíveis à margem das garantias fundamentais.
Como sustentado no voto do ministro Messod Azulay, não se trata de impedir a produção da prova, mas de reafirmar que sua obtenção há de respeitar os limites constitucionais que distinguem um processo penal civilizado de experimentos inquisitoriais travestidos de modernidade.
A tese assentada é direta e enfática: “A solicitação direta de relatório de inteligência financeira pelo Ministério Público ao Coaf, sem autorização judicial, é inviável. O Tema 990 da repercussão geral não autoriza a requisição direta dos dados financeiros por órgão de persecução penal sem autorização judicial”.
O efeito é imediato e de largo alcance: a partir de agora, ambas as turmas criminais do STJ — que desde 2021 divergiam sobre a validade das requisições proativas — devem submeter-se à diretriz da 3ª Seção, reconhecendo como nulo todo RIF obtido sem prévia autorização judicial, ainda que requerido após a formalização de inquérito policial ou PIC. A decisão encerra a era dos “RIFs por encomenda” e exige, doravante, o indispensável crivo jurisdicional como condição de existência da prova.
Entre a pressão investigativa e o limite constitucional
Durante a sessão de julgamento, os representantes ministeriais defenderam que o enfrentamento ao crime organizado exige mecanismos céleres de investigação patrimonial. Invocaram, como pano de fundo, o colapso da segurança pública no Rio de Janeiro, a ocupação territorial por facções e o fenômeno da “exportação” de lideranças criminosas para outras unidades da federação. A defesa, por sua vez, evidenciou a gravidade do desvio funcional a que os RIFs vinham sendo submetidos.
Demonstrou-se que milhares de CPFs e CNPJs – até 10 mil em um único caso – foram objeto de requisição direta, sem inquérito formal, sem individualização prévia e sem qualquer controle judicial. O caso relatado de um escritório de advocacia alvo de devassa patrimonial por meio de VPI, sem sequer citação do nome em denúncia anônima, expôs o uso dos RIFs como dossiês secretos mantidos em “gavetas investigativas”. Ocultados por mais de um ano da defesa e até do próprio Ministério Público revisor, tais relatórios sustentavam investigações posteriormente legitimadas sob o pretexto de “encontro fortuito”.
A técnica foi denunciada como fraude processual sistêmica, contrariando frontalmente os postulados do devido processo legal e da paridade de armas.
Distinção entre compartilhamento e requisição
Relator da posição vencedora, o ministro Messod Azulay Neto enfatizou, com precisão didática, que o Tema 990 jamais autorizou a via inversa. O precedente do Supremo Tribunal Federal referia-se ao envio espontâneo de informações pela Unidade de Inteligência Financeira (UIF), condicionado a indícios prévios de ilicitude, à existência de procedimento formal e ao controle jurisdicional posterior. Segundo o voto condutor, não há na ordem jurídica qualquer respaldo – legal ou jurisprudencial – à requisição ativa de RIFs por órgãos de persecução penal.
Apenas o compartilhamento espontâneo foi validado pelo STF. Nas palavras do relator o art. 15 da Lei de Lavagem trata apenas do compartilhamento espontâneo. Não há autorização legal nem jurisprudencial para que o Ministério Público ou a polícia, de ofício, exijam o envio de RIFs sem prévia autorização judicial.
Ao contextualizar o cenário normativo e jurisprudencial, o ministro expôs a multiplicidade de entendimentos não apenas no âmbito das turmas do STJ, mas também entre a 1ª e a 2ª Turma do STF — um quadro de instabilidade interpretativa que tornou imperativa a fixação de uma tese unificada. Destacou ainda que, embora a Corte Especial do STJ tenha admitido, por maioria apertada, o acesso extrajudicial a dados cadastrais simples, os relatórios de inteligência financeira guardam conteúdo significativamente mais sensível, por isso submetidos a um regime de proteção qualificado. Para o relator, qualquer devassa em tal esfera exige a intervenção do Poder Judiciário como garantia indeclinável de um processo penal constitucionalmente legítimo.
Barreira contra o abuso institucional
O ministro Sebastião Reis Júnior, ao proferir voto paralelo, destacou com precisão o verdadeiro núcleo do debate: o STJ não está vedando a produção da prova — apenas exigindo que ela passe pelo crivo constitucional da autorização judicial. Em sua análise, os dados constantes nos RIFs não estão sujeitos a perecimento ou volatibilidade que justificasse qualquer alegação de urgência.
Por serem informações estáticas, não há razão legítima para dispensar a intermediação jurisdicional. Sua ponderação desarmou a narrativa fundada no apelo à segurança pública irrestrita, frequentemente usada para justificar mecanismos investigativos informais. “Ninguém está impedindo a produção da prova”, afirmou. “Estamos apenas exigindo que a produção obedeça aos limites legais.”
Ao colocar a exigência de ordem judicial como cláusula de estrutura e não de conveniência, o voto reafirma a centralidade da legalidade estrita no processo penal acusatório, impedindo que o combate ao crime se converta em uma válvula de escape institucional para práticas de exceção. Como assinalou o ministro, o respeito à reserva de jurisdição não enfraquece o Estado investigativo – ao contrário, o fortalece sob a luz do Estado de Direito.
O próprio ministro Reinaldo Soares da Fonseca, ao acompanhar a maioria, reafirmou a coerência de sua posição histórica: a reserva de jurisdição não diminui a legitimidade do Ministério Público, mas a projeta no exato lugar institucional que a Constituição lhe conferiu. Nenhum juiz — asseverou — negará acesso a dados sigilosos quando apresentados elementos mínimos de justa causa. O que se exige, portanto, não é um entrave, mas um filtro civilizatório, próprio de um processo penal que se pretenda democrático.
Em contraponto, os votos vencidos — liderados pelo ministro Og Fernandes e seguidos por Rogério Schietti e Ribeiro Dantas — sustentaram que o Superior Tribunal de Justiça não poderia reinterpretar o alcance do Tema 990, sob pena de afrontar a competência do STF. Ainda que fundamentados em premissas institucionais respeitáveis, esses votos não lograram convencer a maioria, que compreendeu ser inadmissível a omissão diante de um vácuo hermenêutico persistente, agravado por práticas reiteradas de informalidade persecutória.
Em nome da integridade do sistema acusatório, o STJ decidiu não apenas que podia, mas que devia firmar jurisprudência própria até que o STF venha a fixar entendimento definitivo.
Reafirmação do processo penal garantista
A decisão da 3ª Seção atua como verdadeiro antídoto contra a degeneração investigativa que vinha se consolidando nos bastidores da persecução penal. Sustentações orais e manifestações técnicas revelaram, de forma incontornável, que a requisição direta de RIFs havia se convertido em expediente quase automático – sem controle judicial, sem contraditório. Dados trazidos à tribuna apontaram aumento de 1.339% nos pedidos, expondo o uso desenfreado de uma ferramenta concebida para finalidades excepcionais. Transformado em braço informal da repressão estatal, o Coaf passou a alimentar uma arquitetura paralela de vigilância patrimonial, imune a qualquer controle defensivo.
Com a nova tese fixada, a equação jurídica se altera de modo estrutural: RIFs obtidos por requisição direta, mesmo após instauração de inquérito, passam a ser prova ilícita, atraindo a cláusula excludente do artigo 157 do Código de Processo Penal e comprometendo, por derivação, todos os atos subsequentes. Além disso, a prática reiterada por autoridades persecutórias, à revelia da decisão do STJ, poderá ensejar responsabilização funcional por violação do artigo 10 da LC 105/2001 e do artigo 25 da Lei de Abuso de Autoridade (Lei 13.869/2019).
Reafirma-se, assim, o compromisso com um processo penal garantista, no qual a eficácia investigativa não se constrói à custa da legalidade, da paridade de armas ou da cláusula de jurisdição.
Olimite que garante a legitimidade
Esse resultado não tolhe investigações legítimas – apenas lhes devolve o itinerário constitucional. O art. 5º, XII, da Constituição Federal, a Lei Complementar 105/2001 e o art. 3º-B, §1º, do Código de Processo Penal não são obstáculos burocráticos à persecução penal: são garantias estruturantes de um processo penal civilizado. A repressão eficaz ao crime, especialmente ao de natureza econômica e patrimonial, exige inteligência, estratégia e celeridade – mas nenhuma dessas virtudes autoriza o desprezo à reserva de jurisdição, à legalidade estrita ou ao contraditório.
Ao interditar a requisição direta de RIFs sem autorização judicial, o STJ não impõe um obstáculo arbitrário à atuação do Ministério Público ou das polícias. Pelo contrário, reforça a legitimidade de suas atribuições, submetendo-as ao controle judicial prévio, que é a moldura institucional própria de qualquer medida que atinja esferas sensíveis da intimidade financeira dos cidadãos. Não se trata de conferir privilégio a investigados, mas de garantir que, mesmo diante de investigações graves e complexas, a atuação estatal permaneça ancorada na legalidade e sujeita a controle de proporcionalidade.
Reafirma-se, assim, que a eficiência não é um valor absoluto. Quando dissociada da legalidade, converte-se em autoritarismo funcional, ainda que travestido de boa intenção. O que o julgamento da 3ª Seção expõe, com nitidez, é que a eficácia da persecução penal não pode legitimar métodos clandestinos, tampouco naturalizar práticas de exceção. Em matéria de sigilo bancário e financeiro, o controle judicial não é uma formalidade a ser superada: é a cláusula de validade, de legitimidade e de civilidade do processo penal democrático.
A decisão de 14 de maio de 2025 marca, assim, um ponto de inflexão: reequilibra a relação entre poder investigativo e garantias fundamentais, reafirma a centralidade do Judiciário no controle de medidas invasivas e devolve à dogmática processual penal a clareza que a prática vinha solapando. Ao fechar a porta da devassa informal, o STJ não enfraquece o combate ao crime – fortalece a República e o Estado democrático de Direito.
A Comissão de Comunicação da Câmara dos Deputados aprovou projeto de lei que cria punição para quem divulgar, sem motivo justo, conteúdo com cenas de suicídio, tentativas de suicídio ou automutilação. A pena será de detenção de 1 a 3 anos, além de multa.
O Projeto de Lei 2651/24 foi proposto pelo deputado Allan Garcês (PP-MA). O relator, deputado Julio Cesar Ribeiro (Republicanos-DF), apresentou parecer favorável.
Ribeiro apresentou uma nova versão do texto (substitutivo), fazendo ajustes para dar maior concisão à redação original. A mudança desloca o novo tipo penal para a parte do Código Penal que trata dos crimes contra a saúde pública.
“Divulgar conteúdo sobre suicídio sem motivo justo prejudica a saúde mental das pessoas”, disse Ribeiro. “Por isso, faz sentido incluir esse crime nessa parte do Código Penal”, justificou.
Modalidade culposa A nova versão do projeto também prevê punição para quem divulgar cenas de suicídio ou tentativas de forma não intencional (culposa). Nesses casos, a pena será de detenção de 2 meses a 1 ano.
Ribeiro explicou que essa regra se aplica, por exemplo, a jornalistas, canais de comunicação e redes sociais que não controlam conteúdos postados por outras pessoas ou pelos quais são responsáveis.
Próximos passos Agora, o projeto será analisado pelas comissões de Cultura; e de Constituição e Justiça e de Cidadania (CCJ). Depois, seguirá para votação no Plenário da Câmara.
Especialistas de diferentes esferas do Sistema de Justiça concordam em que a inobservância dos precedentes do STJ e do STF é uma das causas do aumento explosivo de habeas corpus nos tribunais.
Esta terceira e última parte da série de reportagens HC 1 milhão: mais ou menos justiça? propõe uma reflexão sobre como enfrentar o uso excessivo do habeas corpus sem prejudicar seu papel de garantia constitucional na proteção da liberdade. O desafio é complexo e sensível. Trata-se de equilibrar o peso das garantias fundamentais com a necessidade de racionalidade e eficiência no Sistema de Justiça penal.
No centro do debate, o que está em discussão é se é possível – e até que ponto – limitar o uso do habeas corpus em processos criminais. Várias propostas de mudanças jurisprudenciais e legislativas – como a criação de filtros de admissibilidade – estão na mesa, em um esforço para prestigiar o uso dos recursos e a própria função constitucional do HC.
Apesar de atuarem em diferentes esferas do Sistema de Justiça, os especialistas ouvidos convergem em um ponto fundamental: os operadores do direito devem seguir os precedentes fixados tanto pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ) quanto pelo Supremo Tribunal Federal (STF).
Para muitos, a inobservância das balizas estabelecidas pelas cortes superiores – especialmente por parte de magistrados de primeiro grau, tribunais estaduais ou regionais federais, além de integrantes do Ministério Público (MP) – é um dos principais fatores que alimentam o excesso de habeas corpus.
Precedentes criam unidade nacional na interpretação de questões jurídicas
O ministro Rogerio Schietti Cruz, integrante da Sexta Turma do STJ, diz que o julgamento pelo rito dos recursos repetitivos e a afetação de casos de direito penal para a Terceira Seção ou para a Corte Especial, bem como a edição de súmulas, são alguns mecanismos do tribunal para lidar com o congestionamento de processos: “Com isso, tentamos mostrar, não só à sociedade, mas a todos os tribunais, como pensa o STJ e como deve ser a interpretação das leis federais”.
Segundo o ministro, é importante sensibilizar toda a magistratura e o MP quanto à importância de seguir os precedentes.
Na medida em que fixamos determinadas teses em julgamentos qualificados, com a composição ampla, em temas já pacificados, elas deveriam ser observadas por todos, de modo a criar uma unidade nacional na interpretação de questões jurídicas, evitando uma série de impetrações de habeas corpus que só ocorrem porque não há a observância dessas decisões.
Ministro Rogerio Schietti Cruz
O desembargador do Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP) Guilherme de Souza Nucci também acredita que, se fossem seguidos os entendimentos consolidados pelos tribunais superiores – especialmente os que são favoráveis ao réu –, muitos processos seriam resolvidos logo no primeiro grau de jurisdição, não havendo necessidade de habeas corpus ou recursos às demais instâncias por parte da defesa.
Um olhar específico sobre a real utilidade do habeas corpus
A promotora Fabiana Costa, chefe da Coordenação de Recursos Constitucionais do Ministério Público do Distrito Federal e Territórios (MPDFT), pondera que um olhar específico sobre a real utilidade do HC para a sua admissão pode ser uma medida eficaz no combate ao uso indiscriminado do instrumento, fora de suas finalidades constitucionais.
Fabiana observa que, diferentemente dos recursos no processo penal, que devem cumprir uma série de requisitos legais e formais para serem admitidos, o habeas corpus chega mais rápido para a análise do ministro relator, mesmo quando não guarda relação direta com a liberdade do paciente, nem com nulidades graves ou afrontas à jurisprudência consolidada. “Não é à toa que a maioria dos habeas corpus nem sequer são conhecidos”, enfatiza.
Outro ponto sensível destacado pela promotora refere-se à limitação da atuação do Ministério Público durante o processamento do habeas corpus: “O MP é ouvido como custos legis, mas o membro que conhece todas as peças do processo, conhece todas as cautelares, toda a tramitação daquele feito – que às vezes é extremamente complexo –, nem sequer é ouvido no momento em que o HC está sendo processado”.
Um exemplo de racionalização criado pela jurisprudência
Em 2020, a Terceira Seção do STJ fixou um marco importante para conter a utilização excessiva do habeas corpus em situações já cobertas por recursos processuais próprios. No julgamento do HC 482.549, o colegiado entendeu que, uma vez interposto recurso cabível contra a mesma decisão judicial, o habeas corpus só poderá ser examinado se visar diretamente à tutela da liberdade de locomoção, ou se apresentar pedido distinto do recurso que reflita no direito de ir e vir.
O relator, ministro Rogerio Schietti, ressaltou que “é preciso respeitar a racionalidade do sistema recursal e evitar que o emprego concomitante de dois meios de impugnação com a mesma pretensão comprometa a capacidade da Justiça criminal de julgar de modo organizado, acurado e correto – o que traz prejuízos para a sociedade e os jurisdicionados em geral”.
Para o advogado criminalista Caio César Domingues de Almeida, no entanto, o habeas corpus é o instrumento mais eficaz para corrigir prisões ilegais e outros constrangimentos, e não pode sofrer restrições. “Um ponto crucial é a excessiva formalidade dos recursos. Se houvesse alguma alteração legislativa ou jurisprudencial para flexibilizar essas exigências nos recursos especial e extraordinário, isso poderia reduzir significativamente o número de habeas corpus impetrados”, opina.
Alteração do Código de Processo Penal divide opiniões
Uma oportunidade para a adoção dos aperfeiçoamentos em debate poderia ser a reforma do Código de Processo Penal (CPP), decretado por Getúlio Vargas em 1941. Diversas propostas já foram apresentadas ao Congresso Nacional nesse sentido, sendo uma delas o Projeto de Lei do Senado 156/2009, atualmente em trâmite na Câmara dos Deputados (PL 8.045/2010). A proposta original, elaborada por uma comissão presidida pelo ministro do STJ Hamilton Carvalhido (falecido), buscava evitar a utilização do HC como substituto recursal, restringindo as hipóteses de seu cabimento.
De acordo com o ministro Ribeiro Dantas, membro da Quinta Turma, essa proposta poderia melhorar a estrutura recursal do processo penal e direcionar muitas questões para serem resolvidas por outros meios processuais mais adequados. Na avaliação do ministro, essa é uma discussão relevante, que deve envolver não apenas os operadores do Sistema de Justiça, mas também administradores públicos e representantes políticos.
Contudo, Ribeiro Dantas alerta que qualquer eventual modificação legislativa deve ser feita com extremo cuidado, já que o habeas corpus vai além de uma mera peça processual: trata-se de uma garantia constitucional fundamental. “Essa garantia é algo que muitos países não possuem, mas que no Brasil está expressamente consagrada na Constituição. Portanto, é necessário ter cautela ao tratar desse tema”, afirma.
Por sua vez, o defensor público Marcos Paulo Dutra sustenta que o CPP em vigor já contém mecanismos adequados para coibir o uso abusivo do habeas corpus. Para ele, o problema não está na ausência de regras, mas na forma como elas são aplicadas. Segundo Dutra, é preciso adotar uma análise mais rigorosa dos critérios legais existentes e, sobretudo, respeitar as balizas interpretativas consolidadas pelos tribunais superiores ao longo dos anos.
Dutra explica que, quando uma nova lei surge, há todo um processo de criação de jurisprudências, doutrinas e interpretações, que gera inseguranças e “coloca em xeque” tudo o que já foi construído sobre o assunto.
“Acredito que é adequado o caminho trilhado pelo STJ e pelo STF de construir balizas, via interpretação do próprio CPP, que permitam uma racionalização do emprego do habeas corpus. Ainda mais diante de um ordenamento jurídico que, nos últimos anos, tem se preocupado tanto em prestigiar os precedentes judiciais. Se isso for prestigiado, não tenho dúvidas de que o próprio número de habeas corpus será reduzido”, expõe o defensor.
Tutela de urgência requerida na petição do recurso especial
O advogado Caio César Domingues de Almeida, que também defende a preservação do habeas corpus nos moldes atuais, propõe uma alternativa voltada à estrutura recursal: a criação, no próprio recurso especial, de um espaço específico para que a defesa possa formular pedidos de tutela de urgência.
“Isso daria mais segurança aos advogados, que hoje temem interpor apenas o recurso e ver a matéria de direito simplesmente não ser apreciada. Atualmente, não há um mecanismo que permita à defesa fazer esse pedido diretamente na peça recursal. Instituir essa possibilidade de forma clara e regulamentada poderia reduzir a quantidade de habeas corpus e tornar o sistema mais eficiente”, argumenta.
Para o advogado, se houver uma mitigação das formalidades processuais nos recursos às cortes superiores, haverá uma redução significativa do número de habeas corpus impetrados: “O que precisa ser repensado é o funcionamento do sistema recursal, especialmente no que diz respeito aos recursos especial e extraordinário”.
Nessa mesma perspectiva, o ministro Ribeiro Dantas defende um sistema de agravos no processo penal, os quais seriam interpostos diretamente nos tribunais, com a possibilidade de concessão de tutelas penais de urgência.
Atualização da Lei de Drogas poderia reduzir o número de impetrações
Na opinião do desembargador Guilherme Nucci, outra medida que pode levar à redução do número de habeas corpus é a reforma de leis já defasadas ou carentes de regulamentação mais precisa – a exemplo da Lei de Drogas, que, segundo ele, responde pelo maior número de habeas corpus analisados atualmente nos tribunais. Para o magistrado, mais do que criar restrições, é necessário corrigir uma grande falha: a ausência de parâmetros objetivos que orientem os juízes de todo o país na aplicação da norma penal.
“Está na hora do legislador entrar em campo e definir definitivamente o que é natureza de drogas, quais são as drogas mais perigosas à saúde, quais não são ou são menos perigosas e qual é a quantidade ideal para se presumir quem é usuário e traficante – como o Supremo fez com a maconha”, avalia o desembargador.
A falta dessas definições, conclui, reflete-se inclusive no aumento de prisões, o que gera mais pedidos de habeas corpus e o aumento desnecessário da população carcerária.
Salvo-conduto para Cannabis medicinal garante direito à saúde e à liberdade
Em meio a toda essa discussão, o habeas corpus segue desempenhando um papel essencial na defesa de direitos fundamentais, até para tutelar, de forma indireta, o direito à saúde. É o que tem acontecido com pessoas que recorrem ao Poder Judiciário em busca da garantia de não serem presas nem submetidas a quaisquer medidas repressivas em razão do uso medicinal da Cannabis sativa.
Em várias decisões, o STJ já deu habeas corpus preventivos para pacientes ou familiares de pacientes que se valem do óleo de canabidiol (CBD), um composto químico da Cannabis sativa que não tem efeitos psicotrópicos, para o tratamento de diversas doenças.
O vídeo abaixo mostra um desses casos em que o salvo-conduto do tribunal permitiu que o cidadão não fosse alvo de sanções penais por cultivar a planta para fins terapêuticos: uma história sobre como os direitos à saúde, à dignidade e à liberdade foram preservados pelo instituto do habeas corpus.
Fonte: STJ
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