Extinção de punibilidade: aspectos legais e precedentes do STJ em destaque no Entender Direito

O novo episódio do Entender Direito traz a extinção de punibilidade como o tema principal da entrevista, que aborda as previsões da legislação penal e processual penal, além de entendimentos firmados pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ). 

Conduzida pela jornalista Fátima Uchôa, a conversa tem como convidados os professores de direito e promotores do Ministério Público do Distrito Federal e Territórios (MPDFT) Dermeval Farias Gomes Filho e Maurício Saliba Alves Branco. 

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Fonte: STJ

Limitação de condenação solidária de empresa consorciada se há boa-fé

No boletim de jurisprudência do Tribunal de Contas da União nº 541 [1] há uma notícia relativa ao acórdão nº 1136/2025 [2], do Plenário daquela Corte de Contas que chama a atenção: “É possível a aplicação do artigo 944 do Código Civil para limitar a condenação solidária de empresa consorciada, se reconhecida a sua boa-fé, à proporção do débito equivalente à sua participação no consórcio, pois há espaço jurídico para tratamento diferenciado aos integrantes de consórcio, de forma a se atender ao princípio da isonomia e a se tratar de forma desigual os desiguais”.

No caso concreto, o Plenário do TCU analisava, por determinação de acórdão anterior (item 9.14.1 do acórdão nº 1361/2021, proferido no TC 027.542/2015-7) o sobrepreço de duas parcelas do Demonstrativo de Formação de Preços (DFP), a saber, “Fornecimentos” e “Subempreiteiros”, relativos ao contrato nº 0800.0053457.09.2, firmado pela Petrobrás e o Consórcio CNCC, cujo objeto era a realização de obras de implantação das Unidades de Coqueamento Retardado (UCR) da Refinaria Abreu e Lima (Rnest), localizada em Ipojuca (PE).

Tanto no acórdão anterior (nº 1.361/2021), como no acórdão ora analisado (nº 1.136/2025), aquele Plenário havia se pronunciado pela limitação da responsabilidade de uma das consorciadas ao limite de sua participação no consórcio (10%), porque: (i) tinha papel secundário no consórcio, contando somente com 10% de participação; (ii) os atos ilícitos que deram causa ao sobrepreço apurado foram de responsabilidade da parte predominante no consórcio, não havendo indicativos de sua participação nesses ilícitos; (iii) ausência de participação na licitação e na elaboração das propostas, pois integrou o consórcio em 2010, quando a execução do contrato já havia iniciado e (iv) inexistência de provas ou indícios de que a sucessão empresarial tenha ocorrido para acobertamento de ilícitos e/ou fuga de responsabilizações.

Os acórdãos, inclusive, defrontam uma possível responsabilização decorrente da inobservância do dever de diligência na análise dos contratos que a sucessora assumiria por consequência da incorporação empresarial, arrogando a si os riscos da contratação em questão. Contudo, foi consignado que o contrato era realmente complexo e a que própria Corte, ao examiná-lo, teve de partir de manifestações de inúmeros auditores para estimar o sobrepreço, de modo que não se deveria considerar da sucessora “que realizasse amplos e custosos estudos para que assumisse a contratação em andamento. Até porque, à época, não havia questionamentos em relação aos preços praticados”.

Nas fundamentações, ainda, ambos os acórdãos se respaldaram não apenas no art. 944, parágrafo único, do Código Civil, mas também no artigo 4º, § 1º da Lei nº 12.846/2013 (Lei Anticorrupção) e em fundamentos da decisão proferida pelo TRF-4 no julgamento do Agravo de Instrumento nº 5046411-08.2016.4.04.0000/PR.

Reflexões

Uma primeira leitura do acórdão pode trazer certo conforto, ante a sensibilidade com que os ministros consideraram as questões fáticas do caso. Entretanto, sob lentes mais questionadoras, parece haver necessidade de se depurar mais o entendimento e, então, arriscamos algumas linhas sobre ele, não para reprová-lo, obviamente, mas para suscitar reflexão.

No caso das contratações administrativas com consórcios de empresas, a solidariedade decorre da própria legislação. Desde a Lei nº 8.666/1993, vigente quando da contratação examinada pelo TCU, a regra da responsabilidade solidária das consorciadas está prevista (artigo 33, V da Lei nº 8.666/1993 e artigo 15, V da Lei nº 14.133/2021). Não bastante, o próprio Regulamento do Procedimento Licitatório Simplificado da Petrobras (Decreto 2.745/1998) também a prevê no item 4.10.1, letra e).

Acerca da solidariedade, prescreve o artigo 264 do Código Civil que “há solidariedade, quando na mesma obrigação concorre mais de um credor, ou mais de um devedor, cada um com direito, ou obrigado, à dívida toda”. E segue o artigo subsequente: “a solidariedade não se presume; resulta da lei ou da vontade das partes”.

Trata-se, evidentemente, de instrumento que “facilita a vida” do credor. Como afirmado por Fabiana Barros de Martin, em sua dissertação de mestrado pela Universidade de São Paulo: [3] “(…) a existência de solidariedade em uma relação obrigacional cria uma maior proteção ao crédito, tornando-se, por consequência, um instrumento de extrema segurança para o credor” e o Tribunal de Contas da União decidiu por afastar essa proteção, em homenagem aos princípios da isonomia, equidade e justiça.

O problema é que a superação de regras por princípios não é tarefa fácil. Isso porque, as regras possuem prevalência sobre princípios, ao menos numa primeira vista, pois são preceitos gerais e abstratos cuja relação de sopesamento e limitação do espectro principiológico já foi realizado aprioristicamente pelo legislador e, portanto, na maioria dos casos, deve haver aplicação da regra em desfavor em desfavor da otimização do princípio, eis que ela se apresenta como limitação ou restrição desta otimização. [4]

É inegável que essa prevalência apriorística dá lugar à aplicação do princípio em algumas situações, como “quando a aplicação da regra […] produz um resultado extremamente indesejado e, até mesmo, incompatível com a ordem constitucional ou mesmo quando há dúvidas quanto à constitucionalidade da regra”. [5] Entretanto, invocar princípios para afastar regras incidentes no caso concreto demanda um esforço argumentativo muito superior àquele natural a qualquer decisão, considerando que a regra, por si só, é um instrumento de maior previsibilidade e estabilidade que os princípios. [6]

Era imprescindível que o TCU, através do exame da adequação, da necessidade e da proporcionalidade em sentido estrito, efetuasse a demonstração da desproporcionalidade da regra legal da solidariedade. [7] Contudo, os acórdãos percorrem a via acima mencionada, indicando dúvida se o TCU teria satisfatoriamente se desincumbido de seu ônus argumentativo para afastar a regra da solidariedade entre consorciadas e mesmo a do artigo 1.116 do Código Civil, segundo a qual a sucessora “herda” todos os direitos e obrigações da sucedida.

Se assim for, não estaria o instituto da solidariedade esvaziado? Afinal, a solidariedade possui alguma relação entre grau de culpa ou se trata de instituto que dá maiores garantias a um credor? Sigamos com as reflexões.

O parágrafo único do artigo 944 do Código Civil permite a redução equitativa da indenização quando o juízo se deparar com uma grande desproporção entre a gravidade da culpa e o dano. O dispositivo, tal como posto, não faz distinção entre a indenização por danos materiais ou imateriais. Tampouco se a redução pode ser aplicada a casos de responsabilidade negocial e/ou extra negocial, [8] subjetiva e/ou objetiva. Dessas particularidades cuidou a doutrina — e com divergência.

Parece mesmo que a análise do grau de culpa sugere que a redução apenas pode ocorrer em casos de responsabilidade subjetiva, ao passo em que a responsabilidade objetiva dispensa a própria existência de culpa.

Quanto ao alcance do dispositivo em relação à espécie de dano causado, convence a tese de que tanto os danos materiais como os imateriais podem ser reduzidos, seja porque a lei não faz qualquer limitação a este respeito, seja porque os bens jurídicos tutelados na indenização por dano material e imaterial têm assento constitucional, revelando-se um nonsense permitir a redução da indenização de um, mas não do outro. Já no que tange aos danos decorrentes da responsabilidade negocial ou extra negocial, tem-se algumas ressalvas a serem formuladas sobre a ampla e irrestrita utilização do dispositivo para reduzir-se a indenização.

Como consignado em nota de rodapé, a responsabilidade negocial se origina no inadimplemento e a extra negocial nos atos ilícitos, propriamente ditos ou assim classificados pelo abuso de direito. Em geral, os negócios jurídicos, ainda que unilaterais, são previamente conjecturados e examinadas todas as suas condições e repercussões. Logo, devem, em regra, ser cumpridos (pacta sunt servanda). A partir dessa perspectiva, aparentemente, reduzir a indenização, cujos termos e razões de ser já estavam previamente ajustados e eram conhecido pelas partes do negócio parece inapropriado, principalmente quando esses termos decorrem da Lei e do Edital de Licitação.

Os acórdãos nos 1361 de 2021 e 1136 de 2025 do TCU examinavam a existência de danos ao erário e, consequentemente, a responsabilidade das consorciadas pelo ressarcimento desses danos. O contrato administrativo tido como pano de fundo do exame realizado pela Corte de Contas decorria de licitação pública realizada, em que as partes se submetem integralmente ao Edital e, obviamente, às normas de Direito Público.

Trata-se, portanto, de um contrato que se inicia com a resignação dos interessados aos termos e condições previstos na Lei e no Ato Convocatório e não nos parece que a sociedade sucessora desconhecia essas circunstâncias quando incorporou a consorciada originária.

Não é que se queira preservar intransigentemente a rigidez contratual, mas a própria segurança jurídica e o interesse do Estado enquanto lesado clamam pela observância da solidariedade, que era desde sempre conhecida por todos os envolvidos.

De outro lado, é apressado limitar a responsabilidade da sucessora no que tange ao ressarcimento do erário à sua participação no consórcio (10%), por força do artigo 4º, § 1º da Lei Anticorrupção. Isso porque, o dispositivo em questão diz: “Nas hipóteses de fusão e incorporação, a responsabilidade da sucessora será restrita à obrigação de pagamento de multa e reparação integral do dano causado, até o limite do patrimônio transferido (…)”.

Logo, a obrigação da reparação do dano ao erário é integral, desde que o patrimônio transferido seja superior a este montante a ser ressarcido, mas, se inferior, estará limitada ao valor deste patrimônio transferido. Porém, os acórdãos não identificam este patamar de limitação da indenização e, evidentemente, se o patrimônio transferido à sucessora tiver sido superior aos 10% do sobrepreço, o Estado está recebendo menos do que deveria receber e, se referido patrimônio tiver valor inferior aos 10% deste sobrepreço, a sucessora que foi responsabilizada por valor superior àquele fixado em lei.

Por fim, acerca do julgamento do Agravo de Instrumento nº 5046411-08.2016.4.04.0000/PR, não há correspondência adequada entre os casos, pois que tratam de matérias distintas.

No paradigma invocado, o objeto de discussão era a prática de improbidade administrativa, cuja responsabilização é subjetiva e na exata medida da culpabilidade pelos atos praticados e, nesta hipótese, o ressarcimento do erário é muito mais uma consequência do ato ilícito doloso (pressuposto da improbidade) que causa lesão ao erário que uma sanção propriamente dita. Tanto assim que, mesmo que inexista o dano ao erário, é possível ser constatada improbidade administrativa e vice-versa. Entretanto, no caso examinado, a responsabilidade solidária é uma consequência do império da lei e da vontade das partes, e diz respeito exclusivamente a questões patrimoniais, que não se inserem nas relações de direito administrativo sancionador, que é o caso da improbidade.

Por todas as razões acima mencionadas, aparentemente o Tribunal de Contas da União afastou incidência de regras relativas à solidariedade entre as consorciadas e, com arrimo em princípios jurídicos, responsabilizou uma das consorciadas pelo ressarcimento ao erário até o limite de sua participação no consórcio (10%) sem, contudo, desincumbir-se de seu ônus de fundamentação, muito mais qualificado em razão desta superação.

Ainda, os dispositivos legais utilizados e o próprio julgado invocado para a limitação da responsabilização da consorciada são de incidência incerta da forma como foram aplicados ao caso e, por essas razões, é necessária a reflexão acerca de ser ou não adequado afastar a responsabilidade solidária em casos em que fique demonstrada a boa-fé de consorciadas em relação a fatos e/ou atos que causem danos ao erário.

_________________ 

1 Disponível aqui.

2 Disponível aqui.

3 Das obrigações solidárias: relação com as obrigações indivisíveis no sistema jurídico romano e reflexo no direito brasileiro. Dissertação – Faculdade de Direito, Universidade de São Paulo, 2015. Disponível aqui.

4 Otimização de princípios, separação de poderes e segurança jurídica: o conflito entre princípio e regra. Dissertação – Faculdade de Direito, Universidade de São Paulo, 2012. Disponível aqui.

5 Ibid., p. 44.

6 Neste sentido, Rafael Scavone Bellem de Lima apud Bustamante: “a existência de uma regra implica, portanto, a existência de uma pretensão de estabilidade para o resultado das ponderações de princípios realizadas pelo legislador, isto é, uma pretensão de que esses resultados tenham caráter definitivo”. (Ibid. p. 68).

7 ÁVILA, Humberto. Teoria dos princípios: da definição à aplicação dos princípios jurídicos. São Paulo: Malheiros. 2021.

8 Segundo lições do Prof. Nelson Rosenvaldi: “Evita-se, aqui, a adoção do par responsabilidade contratual e extracontratual – usualmente adotada em doutrina e tribunais –, pela sua incompletude. O inadimplemento não é um fenômeno restrito aos contratos, mas se estende a qualquer obrigação, tenha ela origem em um contrato ou em um negócio jurídico unilateral. […] Não obstante a consagração pelo uso da expressão responsabilidade contratual, pelas razões técnicas ora suscitadas, optamos pela decomposição do fenômeno da responsabilidade em negocial e extranegocial”.

(Disponível aqui)

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A proteção dos consumidores na regulação bancária

O consumo de crédito e de outros serviços financeiros é um tema sensível no Brasil. Mesmo com a incidência do Código de Defesa do Consumidor, pautado nos princípios da boa-fé objetiva e do equilíbrio, as relações entre instituições financeiras e consumidores são marcadas por altíssima litigiosidade. Ano após ano, os relatórios Justiça em Números do CNJ indicam os bancos entre os maiores litigantes, em demandas que discutem desde os abusos em cobranças de dívidas e os pedidos de revisão dos contratos,[1] até os fenômenos mais recentes do superendividamento e a explosão de fraudes bancárias [2].

Com a intensa transformação digital dos serviços financeiros, a proteção dos consumidores exige cada vez mais o conhecimento especializado e multidisciplinar, tanto para compreensão dos novos problemas nas relações bancárias, quanto para construir as respectivas soluções. O Direito Bancário é naturalmente multidisciplinar e dialoga constantemente com outras ciências. Expressões como custo efetivo total, sistema de amortização, capitalização composta de juros, etc., são linguagem corriqueira dos contratos bancários, com conceitos definidos pela Economia ou Matemática Financeira.

O Direito Bancário também se funda em múltiplas fontes, como a Constituição, o direito dos contratos no CDC e no Código Civil, as legislações específicas do sistema financeiro, os precedentes do STJ e STF que interpretam esse arcabouço normativo, a regulação setorial do Conselho Monetário Nacional (CMN) e Bacen, os usos e costumes bancários, as recomendações de soft law e a autorregulação bancária [3].

O CDC, microssistema das relações de consumo, prevê expressamente, em seu artigo 7º, o diálogo das fontes. Esse método possibilita uma visão unitária, sistemática e coerente do direito privado, iluminado a partir da Constituição, para a concretização do direito fundamental de defesa do consumidor [4]. O diálogo entre o CDC e as demais normas que regulam o Sistema Financeiro Nacional foi reconhecido na Adin 2.591/DF, julgamento em que o STF consolidou a aplicação do CDC aos contratos e serviços bancários.

Quase duas décadas depois, o diálogo com a regulação setorial, exercida pelo CMN e Bacen, pode contribuir para o aprimoramento das relações entre bancos e consumidores, em três frentes distintas: (1) a informação adequada sobre os custos e riscos do crédito; (2) a limitação dos juros praticados em operações de alto risco de endividamento, como o cartão de crédito e o cheque especial; e (3) o reforço dos deveres de segurança das transações, para prevenção e reparação das fraudes bancárias.

O detalhamento do custo do crédito se articula com um dos principais direitos do consumidor: o direito básico à informação, artigo 6º, III, CDC, que exige que o consumidor seja informado, de forma prévia e adequada, sobre os elementos dos produtos ou serviços, inclusive a modalidade, riscos e preço. Para que o consumidor compreenda os custos do crédito, o CDC desde sua origem estabeleceu uma série de informações obrigatórias no artigo 52, dentre elas a “soma total a ser paga, com ou sem financiamento”. Ou seja, há mais de três décadas, exige-se que a concessão de crédito ou financiamento esclareça ao consumidor, de forma clara, o valor total devido pelo empréstimo.

Para reforçar a clareza sobre os custos do crédito, a Lei 14.181/2021 introduziu no CDC os artigos 54-B, 54-C e 54-D, com o intuito de prevenir o superendividamento dos consumidores. Desde então, os fornecedores de crédito devem não apenas informar mas também esclarecer os consumidores sobre os custos do crédito e modalidade de contratação, bem como advertir sobre os riscos gerais e específicos da inadimplência. O artigo 54-B especifica que o Custo Efetivo Total (CET) das operações, sintetizado em percentual ao ano, deve compreender todos os valores cobrados do consumidor, “sem prejuízo do cálculo padronizado pela autoridade reguladora do sistema financeiro”. E é justamente nesse cálculo padronizado do CET que a regulação bancária contribui para aprimorar o direito à informação [5].

Resoluções do Conselho Monetário Nacional

O custo das operações foi tratado pelo CMN em três resoluções, publicadas no Dia Mundial do Consumidor (15/3), no ano de 2013. A Resolução CMN 4.196 exigiu que os bancos esclareçam aos consumidores o direito aos serviços essenciais gratuitos nas contas correntes para pessoas físicas, devendo informar que o consumidor não é obrigado a contratar um pacote mensal de tarifas, para abertura e movimentação de contas correntes. Trata-se de dever importante de informação que deve ser atendido pelos bancos, para que a contratação de tarifas em contas correntes não seja imposta em venda casada, prática abusiva vedada pelo artigo 39, I, CDC.

A Resolução 4.198 regula as informações sobre os custos de transações de câmbio. Já a Resolução 4.197, estabeleceu que o Custo Efetivo Total das operações de crédito deve discriminar cada componente (juros, tarifas, IOF, seguros, etc.) em percentual ao ano e em reais. Ou seja, não basta apenas informar as taxas de juros e valores das prestações mensais. Para compreensão adequada do custo do crédito, cada encargo cobrado deve ser detalhado tanto em percentual ao ano, como em valor monetário, permitindo assim que o consumidor avalie com clareza o custo real do crédito. A Resolução CMN  4.881, de 23/12/2020, passou a exigir esse detalhamento do CET também para os contratos de empresários individuais e empresas de micro ou pequeno porte, que podem se enquadrar no conceito de consumidores, ante a vulnerabilidade que notadamente apresentam junto aos bancos [6].

O objetivo de aprimorar as relações entre bancos e clientes se observa também na Resolução CMN 2.878, de 26/7/2021, que estabeleceu que as instituições financeiras devem atuar com transparência nos relacionamentos com seus clientes, assegurando respostas tempestivas a dúvidas, clareza nas informações sobre os custos das operações, em contratos de fácil leitura, fornecendo aos seus clientes os contratos, extratos, demonstrativos de dívidas e demais documentos solicitados. O texto foi alterado pelas Resoluções CMN 3.694, de 26/3/2009, CMN 4.949, de 30/9/2021 e CMN 5.117, de 25/1/2024, e a versão atual exige deveres como adequação dos produtos às necessidades dos clientes, segurança das transações, em uma política de relacionamento cooperativo, equilibrado e justo para os clientes, considerando seus perfis de relacionamento e vulnerabilidades associadas.

Ainda para reforçar a transparência, as Resoluções CMN 5.004, de 24/3/2022 e CMN 5.112, 21/12/2023, estabelecem que a contratação de operações financeiras depende de formalização de instrumento representativo do crédito junto ao cliente. Tal exigência é de suma importância, num cenário em que não raro os consumidores não recebem cópia dos contratos, o que inclusive contribui para a propagação de fraudes bancárias. Essas mesmas resoluções determinam que as instituições financeiras devem fornecer aos clientes, pessoas físicas e empresários individuais, o Documento Descritivo de Crédito, detalhando informações como número do contrato, saldo devedor atualizado e demonstrativo de sua evolução, sistema de pagamento, além de informar o valor para quitação antecipada dos contratos, com o abatimento proporcional dos juros a partir das mesmas taxas contratadas. O Descritivo de Crédito deve ser fornecido imediatamente nos canais de atendimento presenciais, e em até um dia útil nos demais canais de atendimento.

Essas medidas reforçam um dos principais pilares do direito contratual, tanto do CDC, como do Código Civil: a boa-fé objetiva, princípio de ordem pública, fonte dos deveres colaterais de cooperação, transparência e lealdade. As próximas normas que serão abordadas corroboram com outro pilar fundamental do CDC: o princípio do equilíbrio, que reprime a onerosidade excessiva.

A proteção contra onerosidade excessiva em contratos bancários perpassa necessariamente pelo tema das altíssimas taxas de juros praticadas no Brasil. O provisionamento da inadimplência continua sendo a principal justificativa dos bancos para as estratosféricas taxas de juros brasileiras. Tal justificativa é questionada, a partir de estudos que demonstram o crescimento das taxas de juros mesmo em períodos em que a inadimplência se mantém estável [7]. Outras pesquisas identificam que o principal fator para as taxas de juros tão altas é o igualmente elevado spread bancário [8], decorrente da falta de competição no mercado financeiro [9]. O spread bancário do Brasil é o maior do mundo e cerca de 11 vezes o praticado em países desenvolvidos, não havendo diferença significativa entre o spread dos bancos públicos e privados no Brasil[10].

Apesar de todo o tabu que essa discussão enfrenta, o fato é que a Lei Bancária (Lei 4.595/64) atribui ao Conselho Monetário Nacional a competência normativa para limitar os juros praticados pelas instituições financeiras. A limitação é mais frequente nos contratos de crédito direcionado, linhas de crédito específicas, criadas por lei, para a execução de alguma política pública, como o crédito para habitação, financiamento estudantil e crédito rural. Apenas recentemente é que o CMN passou a exercer o seu poder regulatório também em operações de taxas livres, em que não há limitação legal de encargos. E o fez justamente em duas modalidades de concessão de crédito, de altíssimo custo e risco de endividamento: o cheque especial e o cartão de crédito.

A Resolução CMN 4.765, de 27/11/19 limitou em 8% a.m. as taxas máximas de juros cobradas pela utilização de limite de cheque especial, em contas correntes de pessoas físicas e microempreendedores individuais. Dentre as justificativas adotadas pelo Bacen, para estabelecer esse teto inédito de juros, destaca-se a constatação de que “entre 2017 e 2019, a taxa de juros do cheque especial aumentou − a despeito da queda na taxa básica de juros, da manutenção do nível de inadimplência e da queda dos spreads bancários para a quase totalidade das operações de crédito com taxas livremente pactuadas entre instituições financeira e clientes” [11].

Em relação ao cartão de crédito, que segue sendo um dos vilões de endividamento dos consumidores, a Resolução CMN 4.549 de 26/01/17, determinou que: (1) o uso do limite rotativo do cartão de crédito somente poderia ser feito em um mês, evitando que o cliente reiteradamente contrate essa modalidade de crédito de altíssimo custo; (2) a partir do mês seguinte, o banco deve ofertar ao cliente a possibilidade de parcelamento do valor em aberto, com taxas de juros mais baixas, em benefício do cliente. Importante frisar que ofertar uma linha de crédito alternativa, com juros mais baixos, não é o mesmo que impor um parcelamento automático, sem solicitação expressa do cliente, e com taxas muito maiores do que as do crédito pessoal.

Para conter o endividamento excessivo nos cartões de crédito, a Resolução CMN 5.112, de 21/12/2023, estabeleceu que os valores totais de encargos cobrados pelos parcelamentos de faturas de cartão de crédito não poderia ultrapassar o valor emprestado. A partir de janeiro de 2024, os bancos devem respeitar o teto de encargos fixado pelas autoridades monetárias.

As limitações de encargos nos contratos de cheque especial e cartão de crédito são um importante avanço. Entretanto, a regulação do CMN nas operações com “taxas livres” ainda é tímida, com parcimônia e omissão em relação a empréstimos para pessoas físicas, com taxas de juros que alcançam os absurdos patamares de 1000% ao ano. Se na limitação dos encargos a regulação setorial ainda deixa muito a desejar, o campo da segurança e prevenção contra fraudes talvez seja o de maior atuação.

No ano de 2012, a Súmula 479/STJ reconheceu a responsabilidade objetiva das instituições financeiras em reparar os danos causados a consumidores, por fraudes cometidas por terceiros. Trata-se de risco inerente da atividade bancária, que integra o chamado “fortuito interno”.

A regulação bancária permite aprofundar tanto a noção do fortuito interno, quanto as medidas que devem ser adotadas pelos bancos para cumprir os deveres de segurança. A Resolução CMN 4.557, de 23/2/2017 inclui expressamente as fraudes internas e externas como eventos inerentes ao risco operacional da atividade bancária. Em conjunto com a Resolução CMN 5.076, de 18/05/23, esclarecem uma série de falhas que integram o risco das atividades de pagamento, e exigem que a estrutura de gerenciamento de riscos operacionais deve contemplar sistemas, processos e infraestrutura de T.I. para assegurar integridade e segurança nas transações, mecanismos de proteção de redes, monitoramento das falhas de segurança e das reclamações dos consumidores, além de identificar movimentações financeiras e operações atípicas.

As operações atípicas podem ser compreendidas a partir do perfil de movimentação financeira e de uso do crédito de cada cliente da instituição financeira. No âmbito do Pix – pagamento instantâneo brasileiro, a regulação está em constante aperfeiçoamento. A Resolução BCB 142, de 23/9/2021 estabeleceu limites máximos de valores para transações realizadas entre 20h e 6h, bem como prazo mínimo de 24h para aumento de limites de transações a pedido dos clientes. As tentativas de fraudes devem ser registradas diariamente, cabendo aos bancos também discriminar as medidas corretivas adotadas.

A Resolução BCB 103 de 8/6/2021 criou o Mecanismo Especial de Devolução (MED), que pode ser iniciado tanto por iniciativa do usuário pagador, em caso de pagamento indevido ou suspeito de fraude, quanto por iniciativa própria da instituição financeira, que atende o usuário recebedor, em caso de suspeita de fraude. Ambos os processos são implementados por meio do Diretório de Identificadores de Contas Transacionais (Dict).

Já o Bloqueio Cautelar, criado pela Resolução BCB nº 147, de 28/9/21, estabelece a obrigação dos bancos de bloquearem preventivamente as operações, quando as transações destoarem do perfil do cliente e do histórico de transações anteriores, ou quando a chave recebedora dos valores for uma chave suspeita. O bloqueio cautelar deve ser implementado independentemente de solicitação do usuário pagador.

A Resolução Conjunta CMN/BCB 6 de 23/5/2023 e a Resolução BCB 343 de 4/10/2023 determinam aos bancos o compartilhamento de informações sobre suspeitas de fraudes. E a Resolução BCB 457 de 6/3/2025 estabeleceu que serão canceladas as chaves Pix vinculadas a CNPJs e CPFs que estejam irregulares junto à Receita Federal.

Em suma, a regulação bancária atual: (1) reforça a clareza das informações sobre os custos do crédito; (2) impõe limites às taxas de juros, que podem orientar os processos de revisão dos contratos, sobretudo nos casos de superendividamento; e (3) auxilia a identificar as falhas de segurança das transações bancárias, que ensejam o dever de reparação das fraudes. Se outrora houve resistência dos bancos à aplicação do CDC, da regulação setorial os bancos não podem se afastar.


[1] Sobre o tema, vide a robusta pesquisa indicando que, na maioria dos casos, os consumidores de crédito tem razão nos litígios judiciais contra os bancos. GREGORINI, Pedro Augusto. Jurimetria aplicada aos litígios em massa: o perfil dos processos envolvendo os bancos na Justiça Estadual de São Paulo. 2021. Dissertação (Mestrado) – Universidade de São Paulo, Ribeirão Preto, 2021. Disponível em: https://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/107/107131/tde-15082022-114649/. Acesso em: 11 jun. 2025.

[2] Metade dos brasileiros sofreu fraude em 2024, diz Serasa Experian | Agência Brasil. Acesso em 29/03/2025.

[3][3] MIRAGEM, Bruno. Direito Bancário. 2 ed. rev., atual. e ampl – São Paulo: Thomson Reuters, 2018, pp. 85-106

[4] MARQUES, Claudia Lima. Diálogo das fontes: do conflito à coordenação de normas no direito brasileiro / Claudia Lima Marques, coordenação. – São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2012, p. 59-63.

[5] Código de defesa do consumidor comentado / organização de Denise Hammersschmidt / Curitiba: Juruá, 2025. Artigos 54-A a 54-G, Andressa Jarletti Gonçalves de Oliveira / Maria Carla Moutinho, pp. 452-481.

[6] OLIVEIRA, Andressa Jarletti Gonçalves de. Defesa judicial do consumidor bancário. Curitiba: Rede do Consumidor, 2014, pp. 76-94.

[7] CAMARGO, Patrícia Olga. A evolução recente do setor bancário no Brasil. São Paulo: Cultura Acadêmica, 2009, pp. 84-85.

[8]NOGUEIRA, José Jorge Meschiatti. Tabela Price: Mitos e Paradigmas. 3. Ed. Campinas: Millenium Editora, 2013, pp. 208-209.

[9] BELAISCH, Agnès. Do Brazilian Banks Compete? IMF: [s.l.], 2003.

[10] DANTAS, José Alves. MEDEIROS, Otávio Ribeiro de; CAPELLETO, Lucio Rodrigues. Determinantes do spread bancário ex post no mercado brasileiro. RAM, Revista de Administração Mackenzie, v. 13, n. 4. São Paulo, jul./ago. 2012, p. 48-74.

[11] Banco Central do Brasil. Cheque Especial: avaliação do impacto da limitação da taxa de juros. Relatório de Economia Bancária. 2020.

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Debatedores defendem conscientização geral sobre riscos para crianças na internet

Participantes de uma audiência na Câmara dos Deputados defenderam o envolvimento de vários atores no enfrentamento dos riscos para crianças e adolescentes no ambiente virtual: governo, família, escola, polícia, Conselho Tutelar, Justiça e as plataformas digitais.

A deputada Flávia Morais (PDT-GO), que conduziu o debate na Comissão de Previdência, Assistência Social, Infância, Adolescência e Família, disse que está aberta a sugestões para apresentar projetos de lei sobre o assunto, inclusive sobre a verificação de idade para uso de redes sociais.

“Nossa legislação ainda é tímida para enfrentar esse problema que chega a todas as famílias brasileiras”, afirmou Flávia Morais. “Vocês têm sugestões para que a gente possa elaborar um marco legal de enfrentamento aos males que o acesso descontrolado, desacompanhado e exagerado às redes sociais pode trazer aos nossos jovens e às nossas crianças?”, perguntou.

De acordo com a publicação TIC Kids Online Brasil 2024, 93% dos brasileiros com idade entre 9 e 17 anos é usuária de internet. Muitas vezes sem supervisão, essa população está sujeita à exposição de imagens íntimas, utilização de dados para publicidade direcionada, cyberbullying, discurso de ódio, golpes, abuso sexual e problemas de saúde mental, como ansiedade e depressão.

Família
O gerente de projetos da Secretaria de Direitos Digitais do Ministério da Justiça e Segurança Pública, Ricardo de Lins e Horta, acredita que a família deve ser chamada a decidir acerca de um problema que está sendo discutido em todo o mundo.

“A gente precisa, no Brasil, resgatar o poder familiar, devolver às famílias um poder que hoje é praticamente inexistente de fazer a supervisão, o monitoramento e o acompanhamento do que está acontecendo”, defendeu Horta. “Uma criança de seis anos vai conversar na internet com estranhos com total privacidade? Essa nunca foi a concepção de parentalidade e poder familiar”, defendeu.

A advogada especialista em direitos da criança e do adolescente Roberta Densa acrescentou que muitas vezes os pais sequer sabem o que a criança está consumindo na internet. Também não sabem da existência de aplicativos de controle parental que podem colocar na internet de casa, na televisão. Segundo Roberta Densa, os países devem contar com leis de proteção, programas de conscientização e educação e responsabilização do setor privado.

Também na avaliação do promotor de Justiça da Bahia Moacir Silva do Nascimento Júnior, as plataformas “não podem cruzar os braços” quando se deparam com conteúdo criminoso. “O conteúdo tem que ser removido. Às vezes, precisa de uma ordem judicial para remover algo horrível envolvendo a imagem de uma criança”, lamentou.

Empresas que valem 1 trilhão de dólares merecem punição severa com base no faturamento, na opinião do promotor.

Ações
Representantes do governo listaram, na audiência, ações que o Brasil tem empreendido para o enfrentamento do problema. A Lei 15.100/25, que restringe o uso de celulares por crianças e adolescentes em escolas, foi uma das medidas citadas. Outra foi a Lei 14.811/24, que tipifica bullying e cyberbullying como crimes. A pena prevista para o cyberbullying é reclusão de dois a quatro anos, além de multa.

O diretor de Proteção da Criança e do Adolescente do Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania, Fábio Meirelles, mencionou ainda o Disque 100 como canal que recebe todo tipo de denúncia de violação de direitos humanos, entre outros programas.

Fonte: Câmara dos Deputados

De incêndios à ‘uberização’: os julgados-chave do STF em 2024

Supremo Tribunal Federal julgou 115 mil casos em 2024. As decisões colegiadas somaram 24 mil, tomadas em Plenário e nas duas turmas. Destacaram-se entre os temas de maior repercussão nacional, a determinação para um plano de prevenção e combate a incêndios na Amazônia e no Pantanal, a ilegalidade de abordagem policial e busca pessoal motivadas por raça, sexo, orientação sexual, cor da pele ou aparência física e a responsabilidade estatal por disparo de arma de fogo durante operações policiais.

Esses e outros temas foram selecionados por este Anuário da Justiça, que analisa não só a jurisprudência de temas relevantes julgados pelo Plenário durante 2024, mas também mostra como cada ministro votou – e defendeu seu entendimento – em julgamentos enfrentados nas 1ª e 2ª Turmas. O levantamento qualitativo foi construído com base nos julgados selecionados pela Corte em seu Boletim Informativo e nos processos selecionados pela redação na ferramenta de busca de jurisprudência do site do tribunal.

Litígios da área de Direito do Trabalho, como os que envolvem mudanças promovidas pela reforma trabalhista de 2017 (Lei 13.467) e as relações de trabalho alheias à CLT, continuam revelando as nítidas divergências entre os ministros. A maioria na corte é contra, por exemplo, o reconhecimento do vínculo de emprego entre motoristas de aplicativo e as plataformas. A ‘uberização’ teve repercussão geral reconhecida (Tema 1.291) e o processo envolvendo o caso ainda tramita no Plenário Virtual (RE 1.446.336). A expectativa recai sobre os votos de Flávio Dino, que ainda não se manifestou sobre o tema, e de Edson Fachin, relator do recurso, que tende a levar em conta impactos sociais na análise de matérias que envolvem direitos trabalhistas.

Nv¹: Não votou; IMP²: Impedido; NC e JNC³: Julgamento não concluído. Fonte: Pesquisa do Anuário com base no Informativo STF 2024

Fachin, inclusive, foi um dos que saiu vencido no julgamento em que o STF validou os dispositivos que instituíram o trabalho intermitente. O ministro compôs a corrente que entende que, a despeito de a modalidade assegurar ao trabalhador direitos tradicionais (repouso semanal remunerado, recolhimentos previdenciários e férias e 13º salário proporcionais), o formato de contratação, como foi instituído pela reforma trabalhista, não garante previsibilidade de trabalho e, consequentemente, de salário. Acompanharam essa tese Cármen Lúcia, Rosa Weber (aposentada), Luiz Fux e Cristiano Zanin. Já Nunes Marques (relator), Luís Roberto Barroso, Gilmar Mendes, Alexandre de Moraes, Dias Toffoli e André Mendonça integraram a ala que decidiu que o trabalho intermitente não suprime direitos trabalhistas, nem fragiliza as relações de emprego (ADI 5.826, 5.829 e 6.154).

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A posição dos ministros em matéria trabalhista também pode ser medida pelo índice de procedências de reclamações constitucionais, instrumento pelo qual empresas chegam diretamente ao Supremo para reverter decisões da Justiça do Trabalho. Levantamento deste Anuário da Justiça junto ao painel de estatísticas do STF mostra que Gilmar Mendes foi o ministro que mais votou pela procedência (total ou parcial) das 8,8 mil reclamações relacionadas a Direito do Trabalho na corte entre 2024 e 2025: 77%. Na sequência aparecem André Mendonça (74%); Fux (71%); Cármen Lúcia (69%); Zanin (66%); Alexandre (63%); e Nunes Marques (59%). Na outra ponta, estão Edson Fachin, que julgou procedentes 13% dessas reclamações, e Flávio Dino (36%).

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Só em 2024, o STF recebeu mais de 10 mil reclamações (de todas as áreas), um salto de quase 40% em relação ao ano anterior. “É uma consequência de o Supremo ter se tornado um tribunal de precedentes, e esses precedentes serem vinculantes, o que justifica o aumento das reclamações”, explica o presidente Luís Roberto Barroso.

No campo do Direito Penal, o Supremo enfrentou temas que evidenciaram posições mais duras dos recém-chegados Zanin e Dino. No julgamento sobre a ilegalidade de abordagem policial motivadas por raça, os dois acompanharam a maioria para denegar Habeas Corpus a um homem condenado por tráfico de drogas.

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No caso, o policial que o abordou afirmou em depoimento que avistou “indivíduo de cor negra que estava em cena típica de tráfico”. Gilmar, Toffoli, Nunes Marques e Mendonça também votaram contra o HC, por entender que a revista não foi motivada por filtragem racial. Já Barroso, Fux e Fachin votaram a favor do réu, alegando que a abordagem teria sido motivada unicamente pela cor da pele. “A prisão por 1,5 g de cocaína é muito atí-pica e reveladora, na minha visão, de um perfilamento que, se não for racial, pelo menos é social. Revela o tratamento desequiparado em partes diferentes da cidade”, disse Barroso, em seu voto.

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No mesmo julgamento, por unanimidade, o Plenário fixou a tese: “A busca pessoal independente de mandado judicial deve estar fundada em elementos indiciários objetivos de que a pessoa esteja na posse de arma proibida ou de objetos ou papéis que constituam corpo de delito, não sendo lícita a realização da medida com base na raça, sexo, orientação sexual, cor da pele ou aparência física” (HC 208.240).

A tendência de Dino mais favorável à acusação também ficou demonstrada no julgamento em que o STF definiu, por maioria, que cabe recurso de apelação contra decisão do Tribunal do Júri que absolve o réu por quesito genérico (absolvição por clemência), em contrariedade às provas. Zanin, Mendonça e Gilmar foram contra, por entenderem que a possibilidade de apelação esvazia a soberania dos veredictos populares, prevista na Constituição. Prevaleceu o entendimento de Fachin, de que a revisão da decisão nessas situações, com determinação de novo julgamento, não viola a soberania do júri. Foi acompanhado por Dino, Cármen Lúcia, Alexandre, Fux, Toffoli e Barroso.

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Mesmo não acolhido, pedido de esclarecimentos interrompe prazo para anular sentença arbitral

Ao negar provimento a recurso especial, a Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) decidiu que o prazo decadencial de 90 dias para ajuizar ação anulatória de sentença arbitral começa a correr na data da notificação da sentença que julgou o pedido de esclarecimentos, mesmo quando este não é acolhido.

Durante litígio em procedimento arbitral administrado por uma câmara de conciliação e arbitragem de Goiânia, as partes acordaram que as notificações das decisões seriam publicadas internamente na secretaria da própria câmara. A ata de audiência também dispôs as datas de publicação interna da sentença arbitral e da sentença sobre eventual pedido de esclarecimentos.

Com a publicação da sentença arbitral, houve pedido de esclarecimentos, cujo julgamento em nada alterou a decisão anterior. Na sequência, uma das partes entrou com ação para anular a sentença arbitral, alegando desrespeito aos princípios do contraditório e da ampla defesa.

Após o Tribunal de Justiça de Goiás (TJGO) ter entendido que a ação anulatória foi ajuizada dentro do prazo decadencial, o caso chegou ao STJ, tendo a parte recorrente sustentado a decadência do direito de pleitear a anulação da decisão, pois o prazo teria começado já com a intimação acerca da sentença arbitral. Segundo a recorrente, “o prazo decadencial (para ajuizamento de ação anulatória) só tem início a partir da intimação da decisão sobre o pedido de esclarecimentos quando esta decisão, excepcionalmente, promove alguma alteração substancial na sentença arbitral”.

Pedido de esclarecimentos não precisa ser acolhido

A relatora, ministra Nancy Andrighi, destacou que, independentemente de ter sido acolhido, o pedido de esclarecimentos interrompe o prazo de 90 dias para ajuizamento da ação anulatória de sentença de arbitragem. Conforme explicou, esse período começa a contar novamente a partir da notificação da decisão do árbitro sobre o pedido de esclarecimentos.

Ao observar que os esclarecimentos complementam a própria sentença, a ministra apontou que é naquele momento que deve recomeçar a contagem do prazo decadencial para uma eventual ação com o objetivo de anular a sentença arbitral.

“Não há necessidade de acolhimento dos esclarecimentos para que a interrupção do prazo decadencial ocorra”, reforçou Nancy Andrighi.

A relatora concluiu que o ajuizamento da ação anulatória da sentença arbitral ocorreu dentro do prazo decadencial de 90 dias estabelecido no artigo 33, parágrafo 1º, da Lei de Arbitragem.

Fonte: STJ

Avanços, desafios e inovação: autoridades iniciam debate sobre implantação do Juízo das Garantias

O I Congresso Juízo das Garantias e a Justiça Federal teve início na manhã desta segunda-feira (16), na sede do Tribunal Regional Federal da 4ª Região (TRF4), em Porto Alegre (RS). O evento é uma realização conjunta do Centro de Estudos Judiciários do Conselho da Justiça Federal (CEJ/CJF) com a Escola de Magistrados e Servidores do Tribunal Regional Federal da 4ª Região (EMAGIS/TRF4) e conta com o apoio da Associação dos Juízes Federais do Brasil (AJUFE). A iniciativa é um marco inovador para ampliar e reafirmar a implantação do instituto do juiz das garantias na Justiça Federal, destacando a importância do devido processo penal e da imparcialidade judicial.

O encontro visa aprofundar o debate sobre os desafios práticos da implementação do juízo de garantias nas diversas Regiões, reunindo magistradas(os) federais e estaduais, além de representantes da Advocacia-Geral da União (AGU), do Ministério Público da União (MPU), da Defensoria Pública da União (DPU), da Polícia Federal (PF), da Procuradoria-Geral da República (PGR) e servidoras(es) da Justiça Federal.

Durante a abertura, o presidente do Superior Tribunal de Justiça (STJ) e do CJF, ministro Herman Benjamin, participando remotamente, pontuou que o juiz de garantias é uma questão que desafia a magistratura brasileira e se relaciona profundamente com a cidadania no País: “esse é um tema que interessa não só à magistratura federal e à estadual, mas a todas as instituições que trabalham com o Direito Penal. Portanto, não há como tratar esta temática sem todos os atores que trabalham com ele”.

O vice-presidente do STJ e do CJF, corregedor-geral da Justiça Federal e diretor do CEJ, ministro Luis Felipe Salomão, ressaltou a importância da cooperação interinstitucional e da formação continuada das(os) magistradas(os) e salientou a relevância das ações de capacitação conduzidas pelo CEJ. “Com esse peso e essa dinâmica integrativa, conseguimos trazer a participação da base da magistratura para os nossos eventos. Acredito que somente juízes bem-preparados e informados é que podem cumprir com esse desafio atual do impacto das novas tecnologias. Temos que apostar em gestão, preparação e em eventos como esse para encaminharmos adequadamente os assuntos” afirmou.

Ao dar as boas-vindas às (aos) participantes, o presidente do TRF4, desembargador federal Fernando Quadros da Silva, apontou a importância do congresso para o fortalecimento da atuação jurisdicional no novo contexto processual. “É uma alegria muito grande recebê-los aqui. Devido à magnitude do evento e ao elevado interesse no tema”, celebrou.

O presidente da Associação dos Juízes Federais do Brasil (Ajufe), juiz federal Caio Marinho, evidenciou a importância do debate diante das recentes resoluções do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) e do CJF, com foco na operacionalização do instituto do juiz de garantias. “É nesse contexto que esse evento ganha especial relevância, porque, cerca de um ano depois, estamos debatendo aqui não só essa experiência de implementação, mas, acima de tudo, iniciativas para evoluirmos ainda mais”, afirmou.

O desembargador federal Rogério Favreto, diretor da EMAGIS/TRF4, ressaltou que “a temática do juiz de garantias é um desafio teórico e prático pela inovação e pouco tempo de vigência deste instituto jurídico, mas que será facilitada pela colaboração de todos os operadores do Direito”. Segundo o magistrado, a instituição do dispositivo significou profunda alteração em todo o andamento do processo penal, sendo uma “verdadeira mudança estrutural” do sistema de justiça penal brasileiro.

Representando a Defensoria Pública da União (DPU), o coordenador da Câmara de Coordenação e Revisão Criminal, Alexandre Gallina Krob, registrou que a medida representa “um avanço civilizatório” na perspectiva da DPU, uma instituição que se propõe a prestar assistência jurídica gratuita e integral no processo criminal. “Vemos o juiz de garantias como um extremo avanço na democratização do processo penal brasileiro. O instituto é novo, aprimoramentos precisaram ser feitos, mas começamos bem”, declarou.

Em seguida, o diretor-geral da Escola Nacional de Formação e Aperfeiçoamento de Magistrados (ENFAM), ministro Benedito Gonçalves, participando virtualmente, enfatizou que a nova figura processual “representa um avanço normativo em direção à proteção das liberdades individuais e à afirmação da imparcialidade do julgador”. O magistrado evidenciou que a ENFAM tem buscado fomentar esse debate de forma ampla e plural, estimulando a formação crítica e responsável da magistratura.

Compuseram também a mesa de abertura o vice-presidente do TRF4 e presidente eleito para o biênio 2025-2027, desembargador João Batista Pinto Silveira; o presidente do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul (TJRS), desembargador Alberto Delgado Neto; o desembargador do Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP), Marcos Zilli; o presidente da Ordem dos Advogados do RS, Leonardo Lamachia; o secretário-adjunto de segurança pública do RS, coronel Mário Ikeda; a representante da Polícia Civil do RS, delegada Patrícia Tolotti Rodrigues; e o procurador-geral de Justiça do RS, Alexandre Saltz.

Conferência

A programação prosseguiu com a conferência de abertura, conduzida pelo ministro Gilmar Mendes, do Supremo Tribunal Federal (STF), que participou remotamente e abordou aspectos constitucionais e institucionais relacionados à criação do juízo das garantias. Segundo o ministro, o instituto é uma importante conquista institucional: “É, sem dúvida, uma das mais importantes inovações institucionais da história recente da Justiça criminal em nosso País. O juiz de garantias não é um magistrado instrutor que participa da investigação, tampouco um juiz unilateral que protege apenas os interesses da defesa. Pelo contrário, é um instituto que busca assegurar a efetividade da investigação e a proteção adequada aos direitos fundamentais”.

O debate foi enriquecido pela contribuição do desembargador Marcos Zilli, do TJSP, que tratou do tema “O juiz das garantias e a estrutura acusatória do processo penal”. O conferencista definiu a instituição do juiz de garantias como “o ponto mais significativo e simbólico na trajetória de adensamento do sistema e da matriz acusatória”, além de ser uma tentativa de superar o modelo inquisitório presente em muitos ordenamentos latino-americanos que elevavam a juíza e o juiz à condição de presidente da investigação, alinhando o ordenamento jurídico brasileiro a reformas de direitos humanos.

Programação

O congresso terá continuidade nesta segunda-feira (16), com o primeiro painel do encontro: “Reflexos práticos da decisão do STF nas ADIs 6299, 6298, 6300 e 6305: competências do juízo das garantias e do juízo da instrução: arquivamento, ANPP, colaboração premiada”.

Nesta tarde, as (os) participantes se reunirão em quatro oficinas sobre os seguintes temas:

  • Oficina I – Competência Juízo das Garantias x Juízo de Instrução;
  • Oficina II – Juízo das Garantias – implantação na Justiça Federal – desafios práticos de acordo com as Resoluções CNJ n. 562/2024 e CJF n. 881/2024 (exclusivo a magistradas(os);
  • Oficina III – Juízo das Garantias: plantão e audiência de custódia; e
  • Oficina IV – Gerenciamento de bens apreendidos: Juízo das Garantias e Juízo da Instrução.

Mais informações estão disponíveis na página do congresso.

A montanha-russa regulamentar do Ex-tarifário

O regime de Ex-tarifário instituído pela Lei nº 3.244/1957 é um importante mecanismo de política comercial que permite a isenção ou redução do Imposto de Importação para bens de capital (BK) e bens de informática e telecomunicações (BIT), bem como suas partes, peças e componentes, quando não há produção nacional equivalente, ou esta é insuficiente para atender ao consumo interno. [1]

Sua base normativa encontra-se também no inciso I do artigo 14 do Decreto-Lei nº 37/1966, na Decisão Mercosul/CMC/Dec 34/03, em seu artigo 1º, e no Decreto no 5078, de 11/05/04. Sua importância está sintetizada pelo Ministério de Desenvolvimento, Indústria, Comércio e Serviços (MDIC), como sendo: (i) viabilizar o aumento de investimentos em bens de capital (BK) e de informática e telecomunicação (BIT); (ii) possibilitar o aumento da inovação por parte de empresas, com a incorporação de novas tecnologias inexistentes no Brasil, ampliando produtividade e competitividade; (iii) promover  um efeito multiplicador de emprego e renda da economia nacional.” [2]

Como o imposto de importação atende a objetivos muito diversos do que meramente ser fonte de arrecadação de receitas para o Governo Federal, dentro da sua função regulatória e extrafiscal, promove-se a sua redução por meio da concessão de um regime de exceção tarifária. Esse permite zerar a cobrança do imposto de importação, quando a entrada do produto estrangeiro no território nacional for de interesse do país. Importar máquinas e equipamentos sem produção nacional equivalente estimula o setor produtivo, a inovação, a utilização de tecnologia de ponta, gerando desenvolvimento econômico, social, tecnológico, renda e empregos.

Como o imposto de importação é uma exceção ao princípio constitucional da anterioridade, nos termos do artigo 153, §1º da CF/88, o uso do Ex-tarifário serve legitimamente às políticas de governo, ora se reduzindo, ora se ampliando sua concessão, atendendo a interesse de maior proteção da indústria nacional, ou estímulo às importações.

Para regular a previsão da exceção às tarifas da TEC (Tarifa Externa Comum), o Poder Executivo, através dos Ministérios competentes, da Fazenda (outrora da Economia) e do Desenvolvimento, Indústria, Comércio e Serviços, tem editado resoluções e portarias ao longo dos anos para estabelecer as regras procedimentais para a análise e deferimento dos pleitos de Ex-tarifário.

A aplicação desse benefício a bens usados e destinados à revenda têm sido, nos últimos anos, um ponto de câmbios regulatórios, gerando incertezas para os importadores e acerbas discussões. A análise das normas que regularam o Ex-tarifário nos últimos dez anos revela uma trajetória de idas e vindas e, notadamente quanto à possibilidade de importação de bens usados com o benefício, é possível distinguirmos três momentos principais, a saber: 

1º momento: vedação expressa (Resolução Camex nº 66/2014)

A Resolução Camex nº 66, de 14 de agosto de 2014, nesse período, foi a primeira norma a dispor sobre a redução temporária e excepcional da alíquota do imposto de importação para BK e BIT sem produção nacional equivalente, estabelecendo também as regras procedimentais para se requerer o benefício. Durante sua vigência essa resolução limitava expressamente a concessão dos Ex-tarifários exclusivamente a bens novos, excluindo, portanto, os bens usados, conforme previsão expressa do §3º do seu artigo 1º. Assim, qualquer Ex-tarifário analisado e deferido nesse período não abarcava a importação de bens usados.

2º momento: a abertura e a interpretação da Receita (Portaria ME nº 309/2019 e Soluções de Consulta Cosit)

Em 24 de junho de 2019 foi editada a Portaria ME nº 309/2019 revogando a Resolução Camex nº 66/2014. Uma novidade relevante na nova regulamentação foi que ela não manteve dentre seus dispositivos a vedação expressa à utilização do Ex-tarifário para bens usados, tampouco para bens de consumo. Embora a Portaria Sepec nº 324/2019 orientasse pela recomendação negativa para pedidos visando aplicação a bens usados na análise técnica, conforme disposição do seu artigo 3º, essa recomendação não possuía caráter vinculante, conforme entendimento 6ª Turma do TRF 3ª Região estabelecida no julgamento da apelação em remessa necessária, no 50018206720204036104 SP, Relator: Desembargador Federal Luís Antonio Johonsom Di Salvo, publicada em 18/02/2021. [3]

Diante da ausência de previsão normativa no texto da Portaria ME nº 309/2019 vedando a aplicação do Ex-tarifário a bens usados, a Receita Federal, respondendo a questionamento de um interveniente, publicou a Solução de Consulta Cosit nº 122/2020 consignando que o Ex-tarifário concedido nos termos da Portaria ME nº 309/2019 seria aplicável tanto à importação de bens novos, quanto de bens usadosincluindo os remanufaturados ou “refurbished[4]

A Solução de Consulta Cosit nº 122/2020 analisou especificamente um caso em que um Ex-tarifário, inicialmente concedido sob a Resolução Camex nº 90/2017 (que se submetia à vedação da Resolução Camex nº 66/2014), foi prorrogado pela Portaria Secint nº 461, de 26 de junho de 2019, já sob a égide da Portaria ME nº 309/2019. A Receita entendeu à época que deveria prevalecer o regramento procedimental vigente quando da concessão, ou prorrogação, do benefício e que, portanto, esse Ex-tarifário poderia ser aplicado a bens usados. Essa interpretação foi reafirmada de modo ainda mais claro na Solução de Consulta Cosit nº 174, de 18 de setembro de 2023, que reiterou a aplicabilidade do Ex-tarifário, indistintamente, a bens novos e usados, bem como para bens de consumo, isso em relação àqueles concedidos sob a Portaria ME nº 309/2019, dentro do prazo de vigência do ato concessório.

3º momento: o retorno à vedação e a proteção das expectativas legítimas. (Resolução Gecex nº 512/2023 e Solução de Consulta Cosit nº 76/2024)

Em 18 de agosto de 2023, foi publicada a Resolução Gecex nº 512, de 16 de agosto de 2023, que revogou as Portarias ME nº 309/2019 e Sepec nº 324/2019. Essa nova resolução voltou a prever, nos mesmos moldes da Resolução Camex nº 66/2014, a vedação da aplicação do Ex-tarifário para bens usados, conforme se verifica na disposição do seu art. 2º, §2º, inciso II.

A partir da publicação da Resolução Gecex nº 512/2023, em resposta a outra consulta de um importador, a Receita Federal estabeleceu sua interpretação das normas por meio da Solução de Consulta Cosit nº 76, de 09 de abril de 2024. Essa esclareceu que até 17 de agosto de 2023 (ou seja, para Ex-tarifários concedidos sob égide da Portaria ME nº 309/2019), a redução de alíquota podia ser utilizada para importação de bens novos e usados.

Contudo, a partir de 18 de agosto de 2023, com a publicação da Resolução Gecex nº 512/2023, o benefício não se aplicaria mais a importação de bens de capital usados e de consumo, restando prejudicado o entendimento exposto na Solução de Consulta Cosit nº 122/2020. [5]

É fundamental ressaltar que essa mudança não possui efeito retroativo, sendo inservível para interpretar e aplicar as exceções tarifárias concedidas anteriormente e com prazo fixo, inclusive prazo fixo posterior à data de publicação da Resolução Gecex nº 512/2023. [6] Ex-tarifários concedidos e válidos sob a vigência da Portaria ME nº 309/2019 podem e devem continuar a ser aplicados para bens usados e independente de sua destinação.

A não retroatividade da nova orientação procedimental da Resolução Gecex nº 512/2023, norma destinada à análise de novos pedidos de Ex-tarifário, é um imperativo legal, sob pena de violação do art. 178 do Código Tributário Nacional (CTN) e do artigo 24 da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (Lindb).

O artigo 178 do CTN estabelece que a isenção, salvo se concedida por prazo certo [7] e em função de determinadas condições, pode ser revogada ou modificada por lei a qualquer tempo, mas o benefício concedido por prazo certo passa a ser um direito e uma expectativa legítima do contribuinte. Além disso, a Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (Lindb), em seu artigo 24, proíbe que a autoridade dê aplicação retroativa a uma nova interpretação ou critério jurídico, vedando a declaração de invalidade de situações plenamente constituídas com base em mudança posterior de orientação geral. Princípios magnos como da segurança jurídica, da boa-fé objetiva e da confiança legítima do administrado nos atos da administração são pilares do Estado Democrático de Direito e garantem a estabilidade das situações jurídicas conformadas sob sua vigência.

Nesse quadro, qualquer tentativa de impedir o desembaraço aduaneiro de bens importados com Ex-tarifário válido, sob o fundamento de vedação de sua aplicação a bens usados e importados para revenda, hipóteses previstas na Resolução Gecex nº 512/2023, quando o benefício tenha sido concedido sob vigência da norma anterior, ou seja da Portaria ME nº 309/2019, constitui uma ofensa clara a tais princípios essenciais da ordem jurídica, em confronto com a  jurisprudência já firmada sobre o tema. A título de ilustração, tome-se a decisão do eg. TRF 6ª Região por sua 3ª Turma, no AI nº 6000696-85.2024.4.06.0000, publicado no D.E. 05/02/2024 [8], cujos principais pontos do venerando acórdão, destacamos:

Concessão válida do ex-tarifário antes da nova restrição normativa
A impetrante obteve regularmente, em 04/08/2023, a concessão do benefício ex-tarifário para a importação de bem usado (um bulldozer), antes da entrada em vigor da Resolução Gecex nº 512/2023 (de 16/08/2023), que passou a vedar o benefício a bens usados.

Registro da Declaração de Importação posterior à concessão
O registro da Declaração de Importação (DI) ocorreu em 26/12/2023, ou seja, após a vigência da Resolução GECEX nº 512/2023. Contudo, como o benefício foi concedido antes disso, deve prevalecer a norma vigente à época da concessão do ex-tarifário.

Prevalência de jurisprudência e orientação da PGFN
O acórdão destaca a jurisprudência pacificada do STJ (REsp 1.821.992/RS e outros) e a posição da PGFN (Nota SEI nº 28/2019), que reconhecem que os efeitos do ex-tarifário concedido antes da importação estendem-se até o desembaraço aduaneiro, mesmo para bens usados.

Caráter não retroativo das Resoluções Gecex/Camex
A Resolução Gecex nº 512/2023 não pode retroagir para prejudicar concessões anteriores. Como a concessão do benefício se deu antes da publicação da nova norma, não se aplica a vedação posterior.

Conclusões

A jornada regulatória do Ex-tarifário para bens usados e destinados à revenda é um exemplo claro da necessidade de se conhecer os princípios e regras aplicáveis a cada área e tema do Direito, sendo eles sensíveis para assegurar a previsibilidade nas relações entre a Aduana e os intervenientes, e como as mudanças, ainda que legítimas, do ponto de vista das fontes normativas e autoridades competentes, provocam incertezas e dúvidas que desestimulam a produção e novos investimentos.

Embora a legislação tenha oscilado entre a vedação e a permissão, a interpretação consolidada pela Receita Federal, reiterada em diversas soluções de consulta, é de que a regra aplicável à interpretação é aquela vigente no momento da concessão, ou prorrogação, do Ex-tarifário.

Isso significa que, mesmo com a atual e vigente Resolução Gecex nº 512/2023 vedando a importação de bens usados com aplicação de exceção tarifária, os benefícios que tenham sido concedidos sob a Portaria ME nº 309/2019 — que permitia tal importação, como vimos de ver — permanecem válidos, enquanto perdurar o prazo do ato concessório.

Impedir o desembaraço aduaneiro, ou exigir tributos, em casos de Ex-tarifário concedido sob o regramento anterior configura afronta aos princípios da irretroatividade, segurança jurídica e confiança legítima, garantias fundamentais para o Estado democrático de Direito, para o ambiente de negócios e a relação entre a Administração Pública e os administrados, cabendo ao administrado, se necessário, buscar amparo para o seu direito junto ao judiciário.

A compreensão e o respeito a essa linha temporal de vigência das diferentes normas e aos princípios constitucionais aplicáveis são essenciais para se evitar litígios desnecessários, assegurando um ambiente de negócios estimulante à produção, pautado no respeito às normas vigentes.

No que se refere aos pedidos de renovação de Ex-tarifário, comunicado do site do MDIC [9] estabelecendo o prazo limite até o dia 30 de junho de 2025 para protocolo do pedido em relação àqueles vigentes até 31/12/2025, está em flagrante conflito com o prazo previsto no artigo 5º da Resolução Gecex no 512/2023, que dispõe, ipsis litteris: Os pleitos de renovação de Ex-tarifários concedidos poderão ser solicitados dentro do período de vigência do Ex-tarifário, com antecedência máxima de 180 (cento e oitenta) dias do seu vencimento.

A mudança do prazo em desafio à norma procedimental também ofende expectativa legítima das empresas interessadas em investir na modernização do seu parque industrial. A ilegalidade merece corrigenda com base no princípio da autotutela administrativa, sem que seja necessária a judicialização da controvérsia. É o que se espera possa ocorrer o quanto antes, restabelecendo-se o prazo previsto no artigo 5º da Resolução Gecex no 512/2023.

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[1] Sobre o tema Ex-tarifário recomendamos a leitura do artigo publicado na coluna por nossa colega Fernanda Kotzias. Disponível em: link . Acesso em 13/06/2025.

[2] Disponível em: link . Acesso em 13/06/2025.

[3] Entendimento firmado pela RFB na Solução de Consulta Cosit n76/2024, em seus itens 10 a 14. Disponível em: link. Acesso em 13/06/2025.

[4] Segue trecho da Solução de Consulta n 122/2020 nesse sentido:  -se que não mais consta como requisito à concessão do Ex-tarifário que o bem importado seja novo, requisito existente quando em vigor a Resolução Camex nº 66, de 2014, que, no § 3º do art. 1º, que determinava que a redução da alíquota do Imposto de Importação fosse concedida exclusivamente para bens novos.  (…) quanto a se o bem remanufaturado é novo ou usado. Desde que o bem importado corresponda à descrição do bem constante do Ex-tarifário, terá direito à alíquota reduzida prevista para esse Ex-tributário.

[5] O colega de coluna Leonardo Branco defendeu a ilegalidade da restrição a importação de bens usados incluída na Resolução 512/2023, posição com a qual concordamos. Recomenda-se a leitura do artigo. Disponível em: link Acesso em 13/09/2025.

[6] No mesmo sentido, já escreveu Thales Belchior. Disponível em: link. Acesso: 13/09/2025.

[7] “Trata-se de uma isenção do imposto, concedida por prazo certo, com fundamento no art. 4º da Lei nº 3.244/1957, na redação do Decreto-Lei nº 63/1966:(…)”, in SEHN, Solon. Curso de Direito Aduaneiro. 3ª ed. São Paulo: Ed. Forense, 2025, p. 131.

[8] TRF6, AI 6000696-85.2024.4.06.0000, 3ª Turma, Relator Álvaro Ricardo de Souza Cruz, D.E. 05/02/2024

[9] Disponível em: link . Acesso em 13/06/2025.

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Comissão aprova permissão para acordo de não persecução penal em ações anteriores ao Pacote Anticrime

A Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania (CCJ) da Câmara dos Deputados aprovou o Projeto de Lei 5911/23, da deputada Laura Carneiro (PSD-RJ), que permite acordos de não persecução penal em ações penais anteriores ao chamado Pacote Anticrime.

A proposta insere a mudança no Código de Processo Penal.

O Pacote Anticrime criou a possibilidade de acordo de não persecução penal para crimes sem violência ou grave ameaça e com pena mínima inferior a quatro anos. O objetivo é evitar o processo judicial tradicional, mas, para isso, o investigado deverá confessar o crime, reparar o dano e prestar serviços à comunidade, entre outros pontos.

O texto aprovado estabelece que, nas ações penais em curso antes da vigência da lei, os acordos de não persecução são viáveis desde que ainda não haja sentença e que sejam solicitados pela defesa na primeira oportunidade de manifestação nos autos.

O relator, deputado Ricardo Ayres (Republicanos-TO), apresentou parecer favorável à proposta. “O acordo de não persecução penal representa um mecanismo inovador no sistema criminal, na medida em que objetiva desafogar o Poder Judiciário e promover uma justiça penal mais célere e eficaz, direcionando os esforços do aparato estatal para casos mais graves e complexos”, disse.

A autora, Laura Carneiro, explicou que apresentou o texto por causa de decisão do Supremo Tribunal Federal na qual se estabeleceu que esses acordos são viáveis em ações anteriores ao Pacote Anticrime, desde que não haja sentença e sejam solicitados na primeira oportunidade pela defesa. 

A proposta foi analisada em caráter conclusivo e poderá seguir ao Senado, a menos que haja recurso para votação pelo Plenário.

Fonte: Câmara dos Deputados

União tenta reverter coisa julgada e ameaça setor sucroalcooleiro

usina de açúcar

Das causas que opõem o governo ao setor produtivo brasileiro, uma delas está na pauta do Superior Tribunal de Justiça. Trata-se da discussão sobre os prejuízos causados pela União ao setor sucroalcooleiro. Em julgamento, a indenização devida aos produtores de açúcar e álcool — o que foi reconhecido pelo Judiciário há 26 anos.

Para esquivar-se da obrigação, o braço jurídico do governo vem protelando uma questão já pacificada. O litígio se encontra no Recurso Especial 2.202.015/DF, de relatoria do ministro Afrânio Vilela.

O julgamento, iniciado na semana passada com as sustentações orais das partes, foi suspenso com pedido de vista regimental feito pelo próprio relator. O que se examina é um paradigma já estabelecido pelo Supremo Tribunal Federal, com efeitos de repercussão geral.

Histórico do caso

O processo tem origem em uma ação de conhecimento ajuizada em 1990 contra a União. No mérito, busca-se indenização pelos prejuízos causados pela política de preços do setor sucroalcooleiro, por meio do extinto Instituto do Açúcar e do Álcool (IAA).

A decisão de mérito da ação de conhecimento transitou em julgado em 1999. Inconformada, a União ajuizou uma ação rescisória com o objetivo de desconstituir a sentença. A tentativa também fracassou: a rescisória foi definitivamente rejeitada, com trânsito em julgado no STF em 2017, o que confirmou de forma irrevogável a condenação.

Depois de 20 anos do trânsito em julgado da ação de conhecimento, quando o processo finalmente chegou à fase de cumprimento de sentença, a União interpôs agravo de instrumento contra a decisão que rejeitou sua impugnação.

A Justiça homologou os cálculos apresentados, fixou novos honorários e determinou a expedição de precatório. O Tribunal Regional Federal da 1ª Região não conheceu do recurso. A corte reconheceu que o meio adequado seria a apelação, não o agravo de instrumento — um erro grosseiro, já reconhecido reiteradamente pela jurisprudência.

Valores depositados afastam os argumentos da União

Os valores devidos já foram objeto de precatório e encontram-se depositados em conta vinculada ao juízo de origem, reforçando o caráter terminativo da decisão atacada.

O dado colide com o argumento da União quanto ao alegado risco ao erário, ausência de dotação orçamentária ou qualquer outra justificativa econômica ou fiscal. O dinheiro está depositado, à disposição do juízo, aguardando apenas o cumprimento pelo Estado quanto ao dever de indenizar.

Jurisprudência consolidada

A jurisprudência do STJ sobre a matéria é não apenas pacífica, mas consolidada. O entendimento da corte é claro: o recurso cabível contra a decisão que homologa os cálculos e determina a expedição de requisição de pequeno valor ou precatório é o de apelação.

A 2ª Turma do STJ tem aplicado esse entendimento. No julgamento do AgInt no REsp 2.120.344/PI, julgado em 13 de novembro de 2024, a ministra Maria Thereza de Assis Moura foi categórica:

“O recurso cabível contra decisão que homologa os cálculos apresentados e determina a expedição de precatório ou RPV, declarando extinta a execução, é o de apelação”.

O mesmo entendimento foi reafirmado no AgInt no AREsp 2.408.476/PR, julgado em 21 de fevereiro de 2024, quando se estabeleceu que “constitui erro grosseiro a interposição de agravo de instrumento” contra decisão que encerra a execução com expedição de precatório.

Distinguish em relação ao precedente citado pela União

Nas sustentações orais, a União invocou precedente da 1ª Turma (AREsp 2.569.918/MA) para justificar sua estratégia recursal. Contudo, a análise dos autos demonstra não haver semelhança entre os casos.

No precedente citado, o juízo de primeiro grau “apenas resolveu um incidente na fase de execução de sentença, sem pôr fim à execução”. A expedição dos requisitórios estava condicionada à preclusão da decisão — ou seja, não houve encerramento efetivo da fase executiva.

No caso, a situação é diferente. Houve expressa determinação de expedição imediata dos precatórios, condenação em honorários de sucumbência, encerramento definitivo da execução, sem qualquer atividade jurisdicional pendente. Mais relevante ainda: os precatórios já foram expedidos e os valores encontram-se depositados, reforçando de forma inequívoca o caráter terminativo da decisão.

A própria 1ª Turma tem reiterados precedentes na linha do que foi decidido pela 2ª Turma. No AgInt no Aresp 2.280.425/PE, o ministro Paulo Sérgio Domingues dispôs na ementa que, pela jurisprudência do STJ, “o recurso cabível contra decisão que homologa os cálculos e põe fim à execução, tendo em vista a sua natureza definitiva, é considerado erro grosseiro a interposição de agravo de instrumento”.

Óbices incontornáveis

O recurso da União enfrenta óbices processuais que, por si sós, impedem seu conhecimento, como a Súmula 83 do STJ, que impede conhecimento de recurso especial quando o acórdão recorrido está em consonância com a jurisprudência dominante da corte.

As Súmulas 282 e 356 do STF determinam que a ausência de prequestionamento, já que o TRF-1 não analisou o mérito, limita-se à rejeição do recurso inadequado (agravo de instrumento).

Tema 613 dos Recursos Repetitivos (EDs-REsp 1.347.136/DF): reafirma que a apuração dos valores deve seguir, rigorosamente, os critérios fixados no título executivo, sem reinterpretações posteriores ou rediscussões.

Afronta à coisa julgada

A estratégia processual do governo é a de relativizar a coisa julgada. Ao buscar reabrir discussões sobre critérios de liquidez, metodologia de apuração e até o período de indenização — todos já definidos no título executivo desde 1999 e reafirmados na ação rescisória encerrada em 2017 —, a União investe contra um dos pilares mais fundamentais do sistema jurídico: não se escolhe que sentenças se quer ou não cumprir.

Precedente do próprio relator

O próprio ministro relator, Afrânio Vilela, já decidiu questão idêntica no AREsp 2.841.063, poucos dias antes do julgamento do caso. Na ocasião, reconheceu expressamente que:

“O recurso cabível contra decisão homologatória de cálculos em execução, e com a correspondente expedição de precatório, é o de apelação, haja vista a sua natureza definitiva, e não o de agravo de instrumento”.

A decisão foi publicada no DJEN de 12 de maio deste ano, demonstrando a consolidação do entendimento e também a ausência de dúvida objetiva sobre o tema.

Padrão preocupante

O caso é mais do que um litígio isolado: é a expressão de um padrão reiterado de comportamento da União em processos indenizatórios do setor sucroalcooleiro.

Mesmo após decisões transitadas em julgado há décadas, confirmadas pelo STF, e com os valores já depositados, a Fazenda Nacional insiste na procrastinação do cumprimento do dever — argumento frequentemente usado pela União na cobrança dos deveres de contribuintes.

A documentação processual revela que a União continua sustentando teses como “incompatibilidade entre a decisão agravada e o que fora julgado nos embargos à execução” e questionamentos sobre “a liquidez do título exequendo e o período da indenização” — temas absolutamente superados desde 1999 e, posteriormente, reafirmados no trânsito em julgado da ação rescisória de 2017.

Riscos sistêmicos para a segurança jurídica

Especialistas alertam que, se essa postura for chancelada pelo STJ, o precedente que se formará ameaçará de forma estrutural o sistema de Justiça brasileiro.

Encoraja o descumprimento sistemático de decisões judiciais definitivas.

Compromete a credibilidade do sistema judicial e da própria autoridade do STJ e do STF, já que a matéria de fundo já foi resolvida em sede de julgamento com repercussão geral.

Efeitos do paradigma

O caso enquadra-se na moléstia detectada da litigância protelatória, quando o devedor perseguido é o contribuinte. Aplicado ao capítulo do sistema de precatórios, reforça a cultura de que o Estado só tem direitos e a sociedade, apenas obrigações.

Na dimensão temporal, o processo tem impacto econômico-social. O caso escancara de forma dramática o uso da morosidade do sistema judicial como um truque.

Uma ação ajuizada em 1990, com trânsito em julgado em 1999, confirmada em ação rescisória em 2017, e com os valores já depositados, configura deslealdade processual. No caso concreto, a resistência da União em 2025 — 35 anos depois do início da demanda e 26 anos após a formação da coisa julgada. Um estupro jurídico.

O prolongamento desse litígio, além de ferir o Estado de Direito, causou sérios impactos econômicos ao setor sucroalcooleiro, levou empresas à insolvência e impôs um ônus inaceitável aos credores, que aguardam há mais de três décadas o adimplemento de uma obrigação reconhecida judicialmente — com julgamento de mérito resolvido em repercussão geral pelo Supremo.

Perspectivas e o que está em jogo

O julgamento do REsp 2.202.015/DF, inicialmente pautado para 10 de junho passado, foi suspenso após pedido de vista regimental do ministro relator. A decisão final será muito mais do que a solução do processo específico. Ela definirá: os limites da atuação da Fazenda Pública frente à coisa julgada; a aplicação ou não da fungibilidade recursal diante de erro grosseiro; a efetividade da execução contra a Fazenda Pública; e a integridade do sistema de precatórios.

Não se trata apenas de um processo corriqueiro, mas, sobretudo, da credibilidade do próprio Estado de Direito no Brasil.

Caso a tese da União prospere, o precedente formado não impacta apenas um dos setores produtivos mais relevantes para a economia brasileira — mas a reputação do poder público, de forma generalizada. O fundamento de que a União, como devedora, pode escolher quais sentenças deseja ou não cumprir compromete o equilíbrio natural do sistema, ao revogar, de forma irreparável, o conceito de coisa julgada.

Afinal, se o Estado valida o argumento de que não precisa pagar, se o custo “compromete a governabilidade”, o contribuinte poderia sonegar, se o tributo compromete sua capacidade financeira.

Acompanhe a saga do caso:

1990: Ajuizamento da ação de conhecimento;

1999: Trânsito em julgado da sentença condenatória da ação de conhecimento;

2017: Trânsito em julgado da ação rescisória no STF, confirmando a condenação;

2025: A União ainda questiona a execução, mesmo com valores já depositados.

A cronologia mostra a resistência da Fazenda Pública em cumprir decisões judiciais definitivas, mesmo quando confirmadas pelas mais altas instâncias do Judiciário, em 35 anos de tramitação.

Na visão do tributarista Igor Mauler Santiago, “o poder público, no Brasil, é mau perdedor. Maldiz a litigância predatória, o devedor contumaz, o abuso nos recursos, mas não se olha no espelho. Coisa julgada ainda é coisa séria”.

O constitucionalista Georges Abboud não prensa diferente: “O Brasil tem vivenciado há anos governos nacionais, em maior ou menor medida, irresponsáveis do ponto de vista fiscal e orçamentário”, diz ele.

Para Abboud, “é um reflexo da desorganização fiscal e da sanha processual predatória praticada pela União Federal”. O caso, analisa, “é exemplo dessa prática, em que se litiga de forma descontrolada, busca-se superação de precedentes, violação de garantias fundamentais dos particulares, sempre com base em argumentos ad terrorem”.

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