Compartilhamento de custos em grupos empresariais: tratamento para o IBS e a CBS

A dinâmica dos grupos empresariais e a busca por eficiência torna comum a centralização em uma única pessoa jurídica, de gastos incorridos em benefício de todos os componentes do grupo. Para a gestão de caixa e preservação do princípio da entidade, as pessoas jurídicas beneficiadas por esses gastos procedem ao reembolso para a pessoa jurídica centralizadora, observando critérios objetivos e razoáveis de rateio. São os chamados contratos de compartilhamento de custos e despesas ou, ainda, cost sharing agreements.

Há anos, o tratamento tributário desses contratos está envolto de dúvidas, com divergências interpretativas entre contribuintes e autoridades fiscais (especialmente federais, para o IRPJ, a CSLL, a Contribuição para o PIS e a Cofins, e municipais, quanto ao ISS). Com a reforma da tributação do consumo, essas dúvidas ganham um novo capítulo: haverá incidência de IBS e CBS nas operações realizadas no contexto desses contratos de compartilhamento?

Para delimitar o escopo dessa análise, este artigo não se preocupará em retomar as discussões relativas aos tributos atualmente vigentes. Isso porque os parâmetros para análise da incidência desses tributos são absolutamente distintos daqueles a serem considerados para fins de IBS e CBS. Além disso, trataremos apenas do compartilhamento doméstico, isto é, realizado entre empresas domiciliadas no Brasil.

Assim, a situação a ser analisada envolve uma pessoa jurídica que efetua gasto em benefício de outra pessoa jurídica do seu grupo econômico, e é ressarcida mediante reembolso efetuado por esta. Esses gastos podem representar pagamentos (i) a fornecedores terceirizados, como é o caso, por exemplo, de um escritório de contabilidade contratado para efetuar os registros de todas as empresas de um grupo (compartilhamento de gastos com terceiros) ou (ii) de despesas “próprias”, ou seja, com pessoas que integram seus quadros de funcionários, com infraestrutura compartilhada, com ativos adquiridos centralizadamente, etc. Como será retomado, a distinção de cada uma dessas situações será relevante para o IBS e a CBS.

Fato gerador do IBS e da CBS e contratos de compartilhamento

Para analisar a incidência do IBS e da CBS sobre contratos de compartilhamento de custos devemos voltar à distinção que já apresentamos anteriormente entre o compartilhamento de custos internos da centralizadora e aquele referente a pagamentos feitos pela centralizadora a terceiros, por conta e ordem das demais entidades do grupo signatárias do contrato.

Objetivamente, a Lei Complementar nº 214/2025 define a hipótese de incidência do IBS e da CBS como a realização (i) de quaisquer operações onerosas com bens e serviços (artigo 4º) e (ii) de certas operações não onerosas expressamente indicadas na lei (artigo 5º). Como bem se sabe, nesse contexto, “bens” abrangem aqueles materiais ou imateriais, inclusive direitos, enquanto operações com serviços são definidas como todas aquelas que não envolvem bens, conforme previsões do inciso I do artigo 3º.

Por esse aspecto, a hipótese de incidência é extremamente abrangente, superando concepções atuais que pautam a discussão sobre o compartilhamento de custos (existência de renda ou receita, prestação de serviço etc.). Nesse sentido, o parágrafo 3º do artigo 4º da Lei Complementar nº 214/2025 prevê que, para a tributação de operações onerosas, é irrelevante a forma do negócio jurídico ou a obtenção de lucro com a operação.

Diante da abrangência da hipótese de incidência, parece possível afirmar que um compartilhamento de custos e de despesas referentes a custos internos da entidade centralizadora estaria sujeito ao IBS e à CBS, mesmo que estruturado com base em mecanismos de “reembolso”. Isso porque a empresa centralizadora recebe uma “contraprestação” (reembolso) pelo “fornecimento” de bens e serviços para as demais empresas envolvidas no rateio.

No caso do compartilhamento de custos da contratação de terceiros, seria possível sustentar que a empresa centralizadora não forneceria bens e serviços, na medida em que o seu papel se resumiria à realização de pagamentos por conta e ordem das demais entidades. Nessa lógica, seriam esses terceiros os efetivos fornecedores de bens e serviços, sejam eles empregados da centralizadora (não contribuintes do IBS e da CBS) ou outras pessoas jurídicas (possivelmente contribuintes).

No entanto, vale lembrar que o parágrafo 3º do artigo 4º da Lei Complementar nº 214/2025 prevê que, para a tributação de operações onerosas, é irrelevante a forma do negócio jurídico ou a obtenção de lucro com a operação.

No caso do compartilhamento de gastos com terceiros, a centralizadora é responsável por pagar a contraprestação de um fornecimento que é destinado a outra empresa. Essa espécie de “intermediação”, apesar de não caracterizar uma prestação de serviço na acepção civilista, pode ser considerada um fornecimento em si mesmo, diante da ampla definição de “serviços” para fins de IBS e de CBS.

Apesar de esses comentários envolverem operações onerosas, também parece haver repercussão para o IBS e a CBS no que se refere aos gastos incorridos por uma pessoa jurídica em benefício das demais, ainda que não haja qualquer forma de reembolso ou que o reembolso não seja suficiente para refletir a parcela do custo que efetivamente compete à pessoa jurídica beneficiária. Isso porque o artigo 5º Lei Complementar nº 214/2025 prevê a tributação de operações entre partes relacionadas, inclusive quando não há onerosidade ou quando os valores praticados são inferiores às práticas de mercado.

A definição de partes relacionadas trazida na Lei Complementar nº 214/2025 possui clara inspiração na legislação de preços de transferência, reproduzindo as previsões observadas na Lei nº 14.596/2023. Essa inspiração também parece ter levado à exigência, no artigo 12, parágrafo 4º, inciso IV, de que as operações não onerosas (incluindo aquelas entre partes relacionadas) sejam tributadas pelo IBS e a CBS considerando como base de cálculo o “valor de mercado dos bens ou serviços” correspondente ao valor observado “em operações comparáveis entre partes não relacionadas”.

Ou seja, ainda que não houvesse cobrança entre empresas de um grupo econômico dos gastos suportadas por uma delas em benefício das demais, haveria necessidade de mensurar o “valor de mercado” desse fornecimento para apuração do IBS e da CSB devidos [1].

Até aqui, é possível concluir que qualquer compartilhamento, formalizado ou não, parece apto a ser tributado pelo IBS e CBS. Afinal, se houver reembolso, a operação será tida como onerosa, sujeitando-se às regras gerais de incidência. Por outro lado, se não houver reembolso (por exemplo, despesas incorridas em favor de outra empresa do grupo, mas não formalizadas por um cost sharing), a operação será tributada de acordo com a previsão específica voltada para operações entre partes relacionadas.

Base de cálculo do IBS e da CBS: possível não tributação de reembolsos

Em meio a esse contexto, uma previsão relacionada à delimitação da base de cálculo poderia ser utilizada para afastar a tributação do compartilhamento de custos. Trata-se do artigo 12, parágrafo 2º, inciso IV, da Lei Complementar nº 214/2025, que retira da base de cálculo do IBS e da CBS “os reembolsos ou ressarcimentos recebidos por valores pagos relativos a operações por conta e ordem ou em nome de terceiros, desde que a documentação fiscal relativa a essas operações seja emitida em nome do terceiro”.

Essa previsão deve ser analisada com cuidado. A menção inicial aos “reembolsos” ou “ressarcimentos” não deve ser confundida com uma autorização para afastar a tributação de qualquer uma dessas hipóteses. Isso porque o dispositivo legal tem um escopo bem delimitado. Sua aplicação se dá nos casos em que X realiza um pagamento para Y por conta e ordem ou em nome de Z.

Caso Z proceda com reembolso para X, esse montante não comporá a base de cálculo do IBS e da CBS, desde que a documentação fiscal relacionada às operações “seja emitida em nome” de Z. Ou seja, o requisito fixado pelo legislador complementar envolve a emissão de documento fiscal que já indique, de antemão, aquele por ordem de quem o pagamento será realizado. O que se observa, portanto, é uma previsão voltada para casos em que o pagamento de valor determinado é sabidamente realizado para quitar a obrigação de um terceiro.

Apesar de sinalizar uma possível não tributação de reembolsos, o requisito exigido não é observado, atualmente, na maior parte das situações objeto de compartilhamento de gastos com terceiros. Hoje é comum que esse terceiro emita uma nota fiscal diretamente para a empresa centralizadora, sem qualquer menção às demais empresas beneficiadas. Em geral, esse fornecedor não tem conhecimento dos critérios de rateio que serão adotados pelo grupo econômico, não havendo possibilidade de individualizar os montantes a serem atribuídos a cada empresa.

Não há dúvida de que a reforma tributária demandará alterações e ajustes em relação a diversos hábitos empresariais. Havendo possibilidade dessa individualização prévia e da emissão de documento fiscal com indicação de cada uma das beneficiadas pelo fornecimento, parece possível se valer do artigo 12, parágrafo 2º, inciso IV para evitar a tributação dos reembolsos. Apesar disso, outra situação típica de compartilhamento pode impor desafios adicionais diante do requisito detalhado acima: o compartilhamento de gastos próprios, envolvendo folha de salários e mão de obra celetista.

Nesses casos, o fornecimento do serviço pela pessoa física não está sujeito ao IBS e CBS, considerando a hipótese de não incidência evidenciada no artigo 6º, inciso I, alínea “a”. Esse fornecedor, portanto, não emitirá documento fiscal, ao menos não nos termos estabelecidos no artigo 60 da Lei Complementar nº 214/2025. Em princípio, não se mostra possível, nessa situação, atender ao requisito para afastar a tributação de reembolsos, de modo que a tributação pelo IBS e CBS prevalece.

Para além das previsões extraídas do artigo 12, também seria cogitar uma solução a partir do artigo 5º, parágrafo 7º. Nesse caso, o legislador complementar autorizaria que a regulamentação flexibilizasse “exigência de verificação do valor de mercado” nas operações não onerosas, ou de valor inferior ao de mercado, realizadas em partes não relacionadas, observados outros requisitos específicos.

Neste artigo, descabe aprofundar a análise dessa hipótese, na medida em que tratamos de arranjos de compartilhamento em que efetivamente há uma “contraprestação” (o reembolso). Além disso, mesmo que o reembolso reflita um valor inferior àquele de mercado, o parágrafo 7º não autoriza que o regulamento afaste a tributação, mas apenas que simplifique a forma de mensurar a base de cálculo. Ou seja, trata-se de previsão voltada a conformar a base de cálculo, e não a afastar a incidência dos tributos. Com isso, não havendo aplicação do artigo 12, parágrafo 2º, inciso IV, continuaria devida a tributação em relação ao montante do reembolso.

Compartilhamento e créditos da não cumulatividade

Além das questões acima, a análise da legislação de IBS e CBS demanda atenção a outro aspecto: o creditamento. Isso porque a criação desses tributos veio acompanhada de promessas de instituição de uma não cumulatividade ampla. Notadamente, o artigo 47 da Lei Complementar nº 214/2025 exige que o IBS e a CBS incidentes na operação tenham sido extintos por qualquer uma das modalidades de quitação admitidas.

Apenas enquanto não instituídos os mecanismos de split payment ou o recolhimento pelo adquirente, haverá a possibilidade de apropriar créditos com base no valor destacado em documento fiscal, conforme artigo 48. Em qualquer caso, o pressuposto para a apropriação de crédito é a sujeição ao IBS e à CBS do fornecimento dos bens e serviços que forem adquiridos.

Diante disso, a distinção apresentada entre o compartilhamento de custos da contratação de terceiros e o compartilhamento de custos internos da centralizadora também será relevante. Iniciemos a análise quanto ao creditamento por essa primeira hipótese.

Como mencionado, o fornecimento realizado por um terceiro representa, como regra, uma operação sujeita ao IBS e à CBS. Logo, no cenário inicial de adoção da reforma tributária, a empresa centralizadora que realiza o pagamento teria a possibilidade de apropriar créditos em relação ao valor do tributo destacado em nota, salvo aplicação de outra hipótese específica de limitação ao creditamento (por exemplo, bens de uso e consumo pessoal).

Mantendo o foco nas situações ordinárias, os efeitos potencialmente prejudiciais da tributação do reembolso recebido pela centralizadora seriam, em teoria, neutralizados. Isso porque o débito incidente sobre o reembolso poderia ser confrontado com o crédito obtido no documento fiscal emitido pelo fornecedor terceiro. Sem prejuízo do cumprimento de deveres instrumentais inexistentes na atualidade, não haveria impacto financeiro — em termos nominais — para a centralizadora.

Além disso, como tratado acima, a Lei Complementar nº 214/2025 apresenta uma alternativa para que o reembolso não seja, em si, tributado. No caso em que a empresa centralizadora realize pagamento para o fornecedor terceiro, mas seu documento fiscal indique cada empresa beneficiária (na proporção do rateio), o reembolso recebido não compõe a base de cálculo. Nessa hipótese de pagamento “por conta e ordem ou em nome de terceiro”, artigo 3º, inciso IV, inciso “b”, o adquirente é considerado aquele por conta ou em nome de quem o pagamento foi feito. Ou seja, o papel de adquirente seria desempenhado por cada empresa beneficiária.

Como é o adquirente aquele habilitado a apropriar crédito, seriam beneficiárias aquelas que se creditassem do IBS e da CBS destacado pelo fornecedor terceiro. Por outro lado, a centralizadora não tributaria o reembolso, mas não apuraria créditos.

Uma certa neutralidade parece ser alcançada no compartilhamento de gastos com a contratação de terceiros, por meio de diferentes alternativas a serem exploradas.

Todavia, existe outra hipótese de compartilhamento a ser analisada: aquela envolvendo os gastos internos da própria centralizadora. Nesse caso, a neutralidade apontada acima parece não ser observada, especialmente quando há rateio dos salários pagos a empregados e executivos. Isso se deve aos requisitos do creditamento apontados acima: salários pagos a pessoas físicas no contexto da relação de emprego não são tributados pelo IBS e a CBS e, consequentemente, não geram créditos.

Se, nesses casos, parece que os reembolsos serão tributados por impossibilidade de atender ao requisito formal artigo 12, parágrafo 2º, inciso IV, também é certo que a empresa centralizadora não apropriará crédito. Ao receber o rateio, apurará um débito. O confronto com créditos que mitigaria os impactos da tributação do compartilhamento não existiria. Logo, a empresa centralizadora possivelmente se veria forçada a desembolsar caixa para quitar o IBS e a CBS.

Por certo, havendo essa tributação, a empresa beneficiária que realiza o rateio poderá apropriar créditos de IBS e CBS. Ou seja, o débito da centralizadora é o crédito da beneficiária envolvida no rateio. Ainda assim, a concretização desse tratamento demandará uma modificação das políticas de gestão de caixa nos grupos econômicos, alterando dinâmicas atualmente consolidadas.

Conclusões

As questões indicadas acima buscam evidenciar que a lógica para analisar a tributação de contratos de compartilhamento de custos e despesas deverá ser modificada uma vez que IBS e CBS passem a ser exigidos. Não existe uma correlação óbvia nem necessária entre os argumentos utilizados, atualmente, em discussões relacionadas aos antecessores desses novos tributos (notadamente, PIS, Cofins e ISS).

É preciso, como em todos os demais pontos da Reforma Tributária, uma análise cuidadosa e específica da legislação de IBS e de CBS. Examinando a Lei Complementar nº 214/2025, o que se constata é que os contratos de compartilhamento envolvem potencialmente fornecimento de bens e serviços que são, em princípio, tributados pelo IBS e pela CBS.

A efetividade da tributação parece obstada apenas pelo cumprimento de requisitos formais relacionadas à emissão de documento fiscal por fornecedor cujos bens e serviços serão rateados no grupo econômico. Certas situações atuais, no entanto, não demonstram viabilidade no cumprimento desse requisito, tal como se observa em relação ao rateio de gastos com folha de salários.

Sem prejuízo de todas as colocações acima, é importante destacar que o creditamento amplo de IBS e de CBS disciplinado no artigo 47 da Lei Complementar nº 214/2025 pode minimizar os efeitos prejudiciais da tributação de contratos de compartilhamento. Afinal, eventual recolhimento desses tributos realizado pela empresa centralizadora permitiria a apropriação de créditos pela empresa que procede ao reembolso. Naturalmente, esse cenário impõe novos desafios em relação à gestão de caixa nos grupos empresariais, além de gerar ambivalências no período de transição da reforma tributária.

Isso porque as discussões apresentadas acima se somarão, ao menos temporariamente, aos debates já enfrentados pelos contribuintes em relação ao PIS, Cofins e ISS. Logo, ao revisar estruturas e procedimentos, será preciso considerar os reflexos tanto para tributos antigos quanto para tributos novos.

Este artigo apresenta uma primeira aproximação quanto a esse relevante tema. Para além da necessária diferenciação entre formas de compartilhamento (gastos próprios ou com terceiros), ainda é preciso analisar uma série de outras previsões da Lei Complementar nº 214/2025. Com sorte, teremos contribuído para lançar luz a essas novas questões que a reforma tributária trouxe consigo.

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[1] Outra discussão relevante é a seguinte: a exigência de mensuração da base de cálculo a partir de valores de mercado é aplicável a toda e qualquer operação entre partes não relacionadas? Essas questões merecem uma avaliação específica, a ser oportunamente apresentada.

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Comissão aprova projeto que detalha colaboração entre as partes no processo civil

 

A Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania da Câmara dos Deputados aprovou o Projeto de Lei (PL) 837/22, que detalha o dever de cooperação entre as partes no processo civil.

Pela proposta, as partes devem atuar, durante todo o curso da ação, com ética e lealdade, agindo de modo a evitar vícios e cumprindo com os deveres mútuos de esclarecimento e transparência.

A medida é inserida no Código de Processo Civil (CPC), que prevê o dever de cooperação, mas de uma forma mais resumida. O objetivo da colaboração é acelerar o processo e evitar a litigância de má-fé, que é punida na lei.

Como foi aprovado em caráter conclusivo, o texto será enviado ao Senado, a menos que haja recurso para análise do Plenário.

Princípio fundamental
O PL 837/22 é do deputado Pinheirinho (PP-MG). Ele afirmou que o intuito é melhorar a redação do CPC a fim de deixar expresso o que se espera da colaboração entre as partes. O relator da matéria, deputado Ricardo Ayres (Republicanos-TO), recomendou a aprovação.

“O dever de cooperação no processo civil é um princípio fundamental que deve orientar a conduta das partes, advogados, juízes e demais sujeitos processuais. Tal dever visa garantir a eficiência, a celeridade e a justiça no andamento do processo”, disse.

Ayres apresentou um novo texto (substitutivo) englobando o projeto apensado (PL 1813/22), do deputado Rubens Pereira Júnior (PT-MA), que trata do mesmo assunto.

Fonte: Câmara dos Deputados

Lei das Bets: a falta de debate multissetorial no processo legislativo e as suas consequências

A Lei 14.790/2023, popularmente conhecida como Lei das Bets, teve origem no Projeto de Lei 3.626/23, do Poder Executivo, aprovado pela Câmara dos Deputados e pelo Senado. Ela está entre as medidas do governo para aumentar a arrecadação e contribuir para a meta de déficit zero.

Por ter sido uma proposição apresentada pelo Executivo, a mesma chegou à Câmara Baixa em regime de urgência constitucional, previsto no §1º do artigo 64 da Constituição. No decorrer da discussão, foi deliberado que a lei seria regulamentada, apenas, pelo Ministério da Fazenda (artigo 4º e seguintes da Lei).

Outro ponto relevante a ser trazido é o fato de que, antes elaboração do parecer preliminar de plenário, a Mesa Diretora da Câmara determinou que houvesse o debate nas Comissões de Finanças e Tributação (CFT) e Constituição e Justiça e de Cidadania (CCJ), ficando de fora a Comissão de Saúde.

No plenário da Câmara, das 40 emendas apresentadas, apenas sete demonstraram preocupações quanto à publicidade ao público jovem e ao combate à dependência que o jogo poderia causar [1].

Dentre estas, se destacam as emendas 30 [2] e 31 [3], do deputado Aureo Ribeiro, que solicitavam, respectivamente, a destinação para o tratamento de dependentes compulsivos em jogos e apostas, no mínimo, 20% do valor gasto pelo agente operador em publicidade e propaganda, e que a soma das apostas de quota fixa realizadas no mês não poderá ultrapassar 10% do salário-mínimo por CPF, em cada agência operadora de apostas. Ambas aprovadas, em sua integralidade, pelo relator, deputado Adolfo Viana.

No Senado, o PL foi encaminhado para as Comissões do Esporte e de Assuntos Econômicos, tendo neste local sido realizada a única audiência pública [4], em 19/10/2023, onde os convidados representaram a Associação Nacional dos Auditores Fiscais de Receita Federal do Brasil (Anfip); o Ministério da Fazenda; a Receita Federal do Brasil; a Associação Nacional de Lotéricos (Alspi) e o Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf).

Das 67 emendas apresentadas na Comissão de Esportes, apenas três tinham como finalidade a destinação de percentuais arrecadados para fins de combate ao danos sociais advindos pela prática de jogos [5] e, também, vetar pessoa portadora de ludopatia de participar na condição de apostador [6].

 

Das 71 emendas apresentadas na Comissão de Assuntos Econômicos, apenas duas foram destinadas para investimento em medidas de prevenção, controle e mitigação de danos sociais advindos da prática de jogos nas áreas de saúde [7] e ações informativas de conscientização dos apostadores de prevenção do transtorno do jogo patológico.

Por fim, das 23 emendas de plenário apresentadas, apenas uma previa que o Ministério da Fazenda regulamentasse a obrigatoriedade para que os operadores desenvolvam sistemas e processos eficazes para monitorar a atividade do cliente para identificar danos ou danos potenciais associados ao jogo [8].

Desta forma, se mostra latente que os temas delicados, envolvendo a saúde pública, não foram discutidas no espaço ideal, como audiência pública ou grupo de trabalho, mas sim em emendas de comissão e de plenário.

Riscos à saúde pública e à integridade dos apostadores

Trata-se de um tema extremamente delicado. A Organização Mundial da Saúde (OMS), classifica o vício nos jogos de azar como ludopatia. De acordo com o artigo Addictive behaviour [9], disponível na própria página virtual daquela organização, estudos em nível nacional de países da Oceania indicam que os danos potenciais devido ao jogo são comparáveis aos danos devido à depressão e aos transtornos por uso de álcool. Os danos impactam negativamente os próprios jogadores/apostadores, bem como suas famílias e comunidade.

Tendo em vista a sua relevância, esperava-se forte atuação do Ministério da Saúde para a regulamentação da lei. De acordo com as informações levantadas pela organização Fiquem Sabendo, ocorreram pelo menos 209 encontros entre autoridades do Executivo Federal e agentes privados de março a setembro de 2024. Contudo, a pasta da Saúde participara de apenas de dois encontros [10].

Com base nas omissões, tanto do Legislativo quanto do Executivo, a Confederação Nacional do Comércio de Bens, Serviços e Turismo (CNC), ajuizou a Ação Direta de Constitucionalidade (ADI) nº 7.721, a fim de obter a suspensão cautelar e a declaração de inconstitucionalidade da Lei das Bets.

Em suas razões, a confederação aponta que a legislação em questão não contém medidas suficientes para prevenir e combater os efeitos nocivos à saúde mental, como transtornos de ansiedade, depressão e até mesmo o desenvolvimento de dependência patológica ao jogo.

A relatoria foi distribuída para o ministro Luiz Fux por prevenção [11], que ao verificar o periculum in mora na evidente proteção insuficiente, com efeitos imediatos deletérios, sobretudo em crianças, adolescentes e nos orçamentos familiares de beneficiários de programas assistenciais, determinou que sejam implementadas medidas imediatas de proteção especial que impeçam a participação nas apostas de quota fixa com recursos provenientes de programas sociais e assistenciais como o Bolsa Família, o Benefício de Prestação Continuada e congêneres até decisão em definitivo.

Em novembro de 2024, o procurador-geral da República Paulo Gonet também questionou a Lei das Bets, através da ADI 7.749, até o momento sem decisão proferida pelo ministro Fux. Assim como a demanda movida pela CNC, o PGR demonstrou receios com a atividade, pois apresenta riscos à saúde pública e à integridade física e psíquica de seus usuários, inclusive entre adolescentes. Em conclusão, pleiteou a suspensão da eficácia das normas questionadas na inicial e posterior reconhecimento do retorno à vigência da legislação que torna ilícita a atividade.

Análise de impacto legislativo

Em outubro de 2022, o professor Victor Marcel Pinheiro publicou o interessantíssimo artigo Por que a análise de impacto legislativo ainda não é realidade no Brasil? [12], no qual afirmou que os desafios sobre a sua aplicabilidade estão em três fatores: a) a falta de institucionalização normativa da AIL, b) uma cultura de elaboração de legislação ainda fundada em uma visão voluntarista do exercício do poder político e c) o receio de apropriação da decisão política por agentes técnicos.

Tanto a análise de impacto legislativo (ex ante) quanto a avaliação de impacto legislativo (ex post[13] são amplamente debatidas no plano da legística material que, segundo Blanco de Morais [14], consiste no sistema de ação integrado por um conjunto de métodos e técnicas de gestão do conteúdo normativo, que busca assegurar a observância dos requisitos de qualidade.

Tendo em vista a ação judicial citada anteriormente, o autor do presente trabalho se reserva a aprofundar acerca da análise ex ante. Sobre esse instituto, é pertinente a sua definição do ponto de vista dos Autores Jonathan Verschuuren e Rob Gestel:

“Pesquisa orientada para o futuro sobre os efeitos esperados e efeitos colaterais da nova legislação potencial, seguindo um procedimento estruturado e formalizado, levando a um relatório escrito. Essa pesquisa inclui um estudo dos possíveis efeitos e efeitos colaterais das alternativas, incluindo a alternativa de não regulamentar” [15] (grifo do colunista).

Comparativo

A título de Direito Comparado com Portugal, o Guia de Avaliação de Impacto Normativo [16] daquele país, tal termo é nomeado como Avaliação Prévia de Impacto Normativo, sendo esta uma análise dos efeitos potenciais de normas jurídicas em formação, a ser realizada no momento anterior à aprovação da proposição, para salvaguardar a ocorrência de constrangimentos práticos ou a tomada de decisões políticas que limitam a profundidade da análise a efetuar.

Um bom exemplo para demonstrar, na prática, as metodologias setoriais usadas para uma proposição, é a Lei nº 4/2018, de 9 de fevereiro, que institui o Regime Jurídico da Avaliação de Impacto de Género de Atos Normativos em Portugal [17], cuja finalidade sob a perspectiva de gênero ajuda a indicar se as necessidades de homens e mulheres são igualmente levadas em consideração e incluídas em uma determinada proposta; permitindo que os tomadores de decisão elaborem políticas com um conhecimento da realidade socioeconômica de mulheres e homens, bem como o desenvolvimento de políticas que levem em conta as diferenças em questão.

Contudo, no Brasil ainda anda a passos lentos o prévio debate multissetorial.

Acerca da falta de cuidado do processo legislativo, o professor Manoel Gonçalves Ferreira Filho [18] explica que, ao elaborar às pressas para atender a contingência de momento, sem esperar a maturação da regra para promulgá-la, trazem leis com estigma da leviandade, por necessitarem de outras para completá-las, explicá-las e remendá-las.

Fernando Meneguin e Ana Paula Andrade de Melo [19] afirmam que, na produção normativa atual, existe a promoção de intervenções sem qualquer evidência, contrariando análises e pesquisas fundamentadas. Logo, concluem a necessidade da disseminação da análise de impacto legislativo a fim de combater essas situações, pois agrega informações pertinentes e qualifica o debate, propiciando uma melhor matriz institucional e impulsionando o desenvolvimento econômico do país.

Desta forma, o efeito da falta de esmero quanto ao processo legislativo resulta em judicialização, podendo posteriormente resultar na suspensão da eficácia da lei então promulgada e publicada.

Tal como o caso das bets, a falta de maturação, tanto do projeto de lei quanto a sua regulamentação, já levou o STF a suspender a efetividade da lei que previa o reajuste do piso salarial da enfermagem [20], quando o então relator, ministro Barroso, entendeu que o Legislativo aprovou o projeto e o Executivo o sancionou sem cuidarem das providências que viabilizariam a sua execução, como, por exemplo, o aumento da tabela de reembolso do SUS à rede conveniada. Nessa hipótese, teriam querido ter o bônus da benesse sem o ônus do aumento das próprias despesas, terceirizando a conta.

Portanto, a fim de evitar os desencontros analisados, que possam gerar, inclusive, tensões entre poderes, se mostra necessário o debate amplo, multilateral, sobre a análise e a avaliação de impacto legislativo para trazer maior tecnicidade e segurança jurídica, sem o receio de apropriação da decisão política por agentes técnicos, como exposto no decorrer deste artigo.

 


[1]Emendas 4, do Deputado Prof. Paulo Fernando (acolhida), 17, do Deputado Coronel Meira (rejeitada), 29, 30, 31 e 32, do Deputado Aureo Ribeiro (29 rejeitada, 30 e 31 acolhidas, 32 rejeitada), e 40, do Deputado Fernando Monteiro (rejeitada).

[2]BRASIL. Câmara dos Deputados. EMP 30 => PL 3626/2023. Disponível em https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=2387636 Acesso em 02.fev.25

[3]BRASIL. Câmara dos Deputados. EMP 31 => PL 3626/2023. Disponível em https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=2387639 Acesso em 02.fev.25

[4]BRASIL. Senado Federal. Projeto de Lei n° 3626, de 2023. Disponível em https://www25.senado.leg.br/web/atividade/materias/-/materia/160197 Acesso em 13.jan.25

[5]Emendas 22, do Senador Mecias de Jesus (acolhida parcialmente) e 39, do Senador Eduardo Girão (acolhida parcialmente).

[6]Emenda 23, do Senador Mecias de Jesus (acolhida parcialmente).

[7]Emenda 95, do Senador Alan Rick (acolhida parcialmente), e 110, do Senador Carlos Viana (acolhida).

[8]Emenda 161, do Senador Eduardo Girão(acolhida)

[9]Addictive Behaviour. World Health Organization. Disponível em https://www.who.int/health-topics/addictive-behaviour#tab=tab_1 Acesso em 13.jan.25

[10]Ministério da Saúde participou de apenas duas das 209 reuniões sobre a regulamentação das bets. Disponível em https://fiquemsabendo.com.br/saude/ministerio-da-saude-participou-de-apenas-duas-das-209-reunioes-sobre-a-regulamentacao-das-bets Acesso em 13.jan.25

[11]Antes da ADI ajuizada pela CNC, o Ministro Fux fora sorteado para a relatoria da ADI 7.640, apresentada pelos governadores de São Paulo, Minas Gerais, Acre, Paraná, Mato Grosso do Sul, Rio de Janeiro e do Distrito Federal, cuja causa de pedir questiona uma norma específica que restringe que o mesmo grupo econômico possa obter concessão para explorar serviços lotéricos em mais de um estado.

[12]BRASIL. Por que a análise de impacto legislativo ainda não é realidade no Brasil? Disponível em: <https://www.conjur.com.br/2022-out-18/fabrica-leis-analise-impacto-legislativo-nao-realidade-pais> Acesso em: 13.jan.2025.

[13]Ambas as terminologias adotadas com base no Decreto 10.411/2020. BRASIL. <https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2020/decreto/d10411.htm> Acesso em: 29.jan.2025.

[14]MORAIS, Carlos Blanco de; Manual de Legística; Verbo, 2007 p. 211.

[15]Tradução feita pelo Autor do seguinte trecho original: “Future oriented research into the expected effects and side-effects of potential new legislation following a structured and formalised procedure, leading to a written report. Such research includes a study of the possible effects and side-effects of alternatives, including the alternative of not regulating at all” VERSCHUUREN, Jonathan; VAN GESTEL, Rob. Ex Ante Evaluation on Legislation: An Introduction. In: VERSCHUUREN, Jonathan (Ed.). The Impact of Legislation. A Critical Analysis of Ex Ante Evaluation. Boston: Martinus Nijhoof Publishers, 2009. Chapter 1. p. 3- 12.

[16]MORAIS, Carlos Blanco. Guia de avaliação de impacto normativo. Coimbra: Edições Almedina, 2010.p. 18, 22.

[17]PORTUGAL. Assembleia da República. Disponível em <https://www.parlamento.pt/Legislacao/Documents/Legislacao_Anotada/AvaliacaoatosNormativos_Simples.pdf> Acesso em: 29.jan.2025.

[18]FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves Do processo legislativo / Manoel Gonçalves Ferreira Filho. – 7. ed. rev. e atual. – São Paulo: Saraiva, 2012, p. 35.

[19]MENEGUIN, Fernando B.; MELO, Ana Paula Andrade de. Análise de Impacto para Além das Regulações. Brasília: Núcleo de Estudos e Pesquisas/CONLEG/Senado, Outubro 2020 (Texto para Discussão nº 286). Disponível em < www.senado.leg.br/estudos > Acesso em: 29.jan.25

[20]BRASIL. SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. ADI nº 7222. Disponível em:<https://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=6455667> Acesso em 13.jan.25

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Controvérsia no STJ sobre o critério de arbitramento de honorários advocatícios sucumbenciais

Por expressa outorga constitucional, o Superior Tribunal de Justiça é a instância máxima do Poder Judiciário no Brasil em matéria de interpretação da legislação federal. Por óbvio, no conceito de “lei federal”, referido no artigo 105, inciso III e suas alíneas, da Constituição, inclui-se a Lei Federal nº 13.105/2015, o Código de Processo Civil (CPC/2015), que é a legislação mais interpretada pela Corte Superior, uma vez que é sob o regime desse Código que se processam quase todas as suas demandas alheias à matéria penal.

Naturalmente, um tribunal que julga centenas de milhares de casos por ano [1] vai tanto acertar quanto errar, sob qualquer que seja o parâmetro, em uma quantidade muito grande de casos. Ultimamente, nota-se que uma controvérsia, em particular, tem se multiplicado na Corte Superior, com um temível potencial multiplicador de uma posição que nos parece pouco refletida e, aliás, ostensivamente contra legem. Referimo-nos à discussão sobre se deve prevalecer, especialmente em demandas contra a Fazenda Pública em que há êxito dos particulares, o critério da sucumbência ou o critério da causalidade para o arbitramento dos honorários sucumbenciais.

Ordinariamente, na grande maioria dos litígios, essa discussão é supérflua. Ora, pelo critério da sucumbência, os honorários advocatícios sucumbenciais são devidos por quem é derrotado na contenda judicial, em favor do advogado do vencedor. Já pelo critério da causalidade, arca com a condenação em honorários sucumbenciais quem deu causa ao litígio, e se beneficia desse pagamento o advogado da parte que foi obrigada a suportar todos os ônus de litigar, mesmo sem ter contribuído para esse resultado. Quase sempre, esses critérios convergem para um mesmo resultado, pois quem sucumbe costuma ser quem a jurisdição reconheceu como sendo o autor da conduta ilícita que resultou, naquela relação causal específica, na necessidade de litigar em juízo.

Em alguns casos, porém, que, conquanto raros em relação ao total de litígios, são numerosos exatamente pela escala de litigância com que lida o Poder Judiciário no Brasil, não acontece tal convergência. Uma situação que serve de perfeito exemplo para ilustrar esse conflito é a de que o contribuinte, intimado pela administração tributária a apresentar determinada documentação, não atende integralmente à demanda, o que resulta em um auto de infração.

Em ação anulatória, mediante cognição judicial e dilação probatória ampla, vem-se a concluir, posteriormente, que a autuação e, por óbvio, o próprio tributo e penalidade cobrados, eram indevidos. O contribuinte, então, vence a disputa que iniciou contra a Fazenda Pública. Porém, os tribunais, em juízo de causalidade, atribuem à conduta do particular a condição de causa eficaz para o início do litígio. Nesses casos, quem deve suportar o ônus da condenação em honorários, e qual representante processual deve se beneficiar desse pagamento?

Por ora, a resposta do STJ é incerta, pois existem diversos precedentes, de ambas as turmas de Direito Público, em favor de ambas as posições. Apenas para exemplificar esse dissídio jurisprudencial, cita-se, como favoráveis à posição de prevalência do critério da sucumbência, os acórdãos do Agravo Interno no Agravo em Recurso Especial nº 2.389.836/SP [2]; do Agravo Interno no Agravo em Recurso Especial nº 2.331.697/SP [3]; e o do Recurso Especial nº 1.673.519/RS [4]. Todos recentes, todos decididos por unanimidade. Por outro lado, identificam-se vários outros julgados em favor da posição de que deve prevalecer o princípio da causalidade, como ocorre nos acórdãos do Agravo Interno no Recurso Especial nº 2.104.448/RJ [5]; do Agravo Interno nos Embargos de Declaração no Recurso Especial nº 1.671.347/RS [6]; e do Agravo Interno no Agravo em Recurso Especial nº 1.599.872/PR [7].

Essa divergência, apesar de aparentemente técnica, esconde tensões mais profundas relacionadas à função dos honorários sucumbenciais no processo. A jurisprudência e a doutrina revelam raízes históricas e filosóficas distintas: de um lado, a tradição da sucumbência como ressarcimento objetivo ao vencedor, conforme sistematizado por Chiovenda [8] e adotado pelo CPC/2015; de outro, a teoria da causalidade, influenciada por uma lógica de responsabilidade pelo litígio, como elaborada por Lourival Vilanova [9] e aplicada, por vezes, em juízos de equidade.

Essa aplicação da causalidade encontra apoio em parte da doutrina que a vê como instrumento de justiça material, capaz de impedir o enriquecimento sem causa por quem provocou indevidamente a judicialização. No entanto, autores como Orlando Venâncio dos Santos Filho [10] alertam para os riscos dessa abordagem quando desconsidera a literalidade legal e compromete a segurança jurídica do sistema.

Argui-se, entretanto, que se trata de matéria integralmente adjudicada pelo próprio legislador, que não deveria, pois, ser objeto de maiores dúvidas. Com efeito, antes de examinar qualquer fonte normativa, o próprio senso comum indicaria que “honorários sucumbenciais”, ou “honorários de sucumbência” devem ser arbitrados pelo critério de sucumbência, e não por qualquer outro, sob pena de se alterar a própria forma como se compreende o instituto.

Ubi lex non distinguit

Em todo caso, no Direito Positivo, o artigo 85 do CPC/2015, já em seu caput, consigna que “[a] sentença condenará o vencido a pagar honorários ao advogado do vencedor”. O § 10 do mesmo artigo, que é a base legal do princípio da causalidade, claramente prevê sua incidência mediante condição, ao explicitar que “[n]os casos de perda do objeto, os honorários serão devidos por quem deu causa ao processo”. Trata-se de oração condicional, que, como qualquer outra norma, associa uma determinada prescrição de conduta a uma hipótese de incidência, ou, em outros termos, gera um liame de dever ser entre “os casos de perda do objeto” e “honorários serem devidos por quem deu causa ao processo”.

São trivialidades hermenêuticas as de que, onde a lei não distingue, não pode o intérprete distinguir (ubi lex non distinguit, nec nos distinguere debemus); exceções se interpretam restritivamente (exceptio est strictissimae applicationis); e que a expressão de uma coisa é a exclusão de outra (expressio unius est exclusio alterius). Em outros termos, se o texto atribuiu uma consequência a um fato específico, não se pode inferir que essa prescrição se aplica a fato diferente do expresso no texto normativo, muito menos inferir exceção que lá não consta e, ainda para as que constam, a interpretação há de ser restritiva.

Após o mínimo de cogitação, ninguém razoável arguiria, por exemplo, que uma determinada penalidade contratual é aplicável mesmo quando não configurada a infração associada a ela, mas apenas um fato reprovável de outra espécie; nem se arguiria que se pode excepcionar a aplicação da penalidade quando inexistente exceção expressa no referido contrato. De idêntico modo, parece absurdo arguir que, mesmo não havendo perda de objeto, mas juízo de mérito, e, portanto, um sujeito processual vencedor e outro sucumbente, pode-se aplicar o princípio da causalidade do artigo 85, § 10, do CPC/2015.

O artigo 90 do mesmo Código apenas confirma essa noção, ao prever que “[p]roferida sentença com fundamento em desistência, em renúncia ou em reconhecimento do pedido, as despesas e os honorários serão pagos pela parte que desistiu, renunciou ou reconheceu”. Nota-se que, independentemente da causa, o ônus é atribuído a quem foi vencido. É esse o critério sempre adotado pelo Código, que é legislação federal vigente, específica e ainda recente.

Legislação e prática

Vale observar que, apesar de o texto legal reiterar o critério da sucumbência, a prática judiciária nem sempre lhe é fiel. A realidade forense tem testemunhado decisões baseadas em concepções subjetivas de “culpa pelo litígio”, muitas vezes sem correspondência com os parâmetros normativos. Essa prática, embora bem-intencionada, fragiliza a coerência do sistema processual [11] e pode afastar o jurisdicionado da justiça, sobretudo nas demandas contra o Estado.

Além disso, é relevante notar que a adoção indistinta do princípio da causalidade, especialmente em ações contra a Fazenda Pública, pode gerar efeitos inibitórios no acesso à justiça. Conforme discutido por Teixeira e Soares [12], o risco de condenação em honorários pode desencorajar o ajuizamento de ações legítimas, principalmente por cidadãos economicamente vulneráveis. Isso colide com o próprio fundamento do processo como instrumento de concretização de direitos.

Em outras discussões sobre o próprio CPC/2015, o STJ já chegou a pacificar orientações tão contra legem quanto a que ora se critica. Talvez, o exemplo mais famoso seja a manutenção da Súmula nº 211/STJ [13], mesmo após a vigência do CPC/2015, inutilizando o artigo 1.025 [14], que é de todo incompatível com a súmula. Esse tipo de postura, porém, tem um grave efeito de erosão democrática, pois torna os tribunais não-responsivos à deliberação dos representantes eleitos do povo, que é de quem deveria emanar todo o poder do Estado, nos termos do artigo 1º, parágrafo único, da Constituição.

Nesse caso, em que a posição do tribunal é ainda vacilante, ainda há a oportunidade de recusar o compromisso com o erro. Seja pela afetação dessa controvérsia ou pela produção reiteradas de julgados, mais cedo ou mais tarde, essa questão, que é essencialmente sobre interpretação de lei federal e bastante recorrente, terá de ser resolvida pela Corte Superior. É melhor que essa resolução ocorra, então, o mais rápido possível, de modo a minimizar os efeitos da insegurança jurídica que a contradição jurisprudencial, inequivocamente, gera.

Reduziria um tanto mais ainda a insegurança jurídica se a Corte Superior resolvesse a controvérsia em conformidade com o texto legal expresso, evitando gerar outra posição que tende a se tornar famosa, na literatura e no meio forense, pela sua contrariedade à legislação que o Tribunal deveria interpretar, como aconteceu com o artigo 1.025 do próprio CPC/2015.


[1] Por exemplo, em 2023, o total de julgados, incluindo o julgamento principal, agravos e embargos de declaração, foi de 608.863. Já em 2024 (dois mil e vinte e quatro), esse total foi de 698.453  julgamentos. Fonte: aqui. Acesso em: 17/03/2025.

[2] STJ, AgInt no AREsp nº 2.389.836/SP; órgão julgador: 2ª Turma; relator: Min. Herman Benjamin; julgado em: 26/02/2024.

[3] STJ, AgInt no AREsp nº 2.331.697/SP; órgão julgador: 1ª Turma; relator: Min. Gurgel de Faria; julgado em: 06/02/2024.

[4] STJ, REsp nº 1.673.519/RS; órgão julgador: 2ª Turma; relator: Min. Herman Benjamin; julgado em: 19/09/2017.

[5] STJ, AgInt no REsp nº 2.104.448/RJ; órgão julgador: 1ª Turma; relator: Min. Benedito Gonçalves; julgado em: 17/10/2024.

[6] STJ, AgInt nos EDcl no REsp nº 1.671.347/RS; órgão julgador: 2ª Turma; relator: Min. Og Fernandes; julgado em: 19/04/2021.

[7] STJ, AgInt no AREsp nº 1.599.872/PR; órgão julgador: 1ª Turma; relator: Min. Paulo Sérgio Domingues; julgado em: 19/06/2023.

[8] CHIOVENDA, Giuseppe. Instituições de direito processual civil. Tradução de Alfredo Buzaid. Campinas: Bookseller, 2001.

[9] VILANOVA, Lourival. Causalidade e relação no direito. 4. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000.

[10] SANTOS FILHO, Orlando Venâncio dos. O ônus do pagamento dos honorários advocatícios e o princípio da causalidade. Revista de Informação Legislativa, Brasília, a. 35, n. 137, p. 31-42, jan./mar. 1998.

[11] DALLA BERNARDINA DE PINHO, Humberto; SALLES, Tatiana. Honorários advocatícios: evolução histórica, atualidades e perspectivas no projeto do novo CPC. Revista Eletrônica de Direito Processual – REDP, v. 9.

[12] TEIXEIRA, Vitor Amm; SOARES, Hugo Zanon. Os honorários advocatícios sucumbenciais enquanto potencial obstáculo ao acesso à justiça. Anais do IV Congresso de Processo Civil Internacional, Vitória, 2019.

[13] “Inadmissível recurso especial quanto à questão que, a despeito da oposição de embargos declaratórios, não foi apreciada pelo Tribunal a quo.”

[14] “Art. 1.025. Consideram-se incluídos no acórdão os elementos que o embargante suscitou, para fins de pré-questionamento, ainda que os embargos de declaração sejam inadmitidos ou rejeitados, caso o tribunal superior considere existentes erro, omissão, contradição ou obscuridade.”

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Dívida prescrita não pode ser cobrada na Justiça, mas não deixa de existir

A prescrição de uma dívida impede que ela seja cobrada na Justiça, mas não anula a existência do débito. Com esse entendimento, a 32ª Câmara de Direito Privado do Tribunal de Justiça de São Paulo manteve a sentença que reconheceu a existência de uma dívida da Companhia de Desenvolvimento Habitacional e Urbano do Estado de São Paulo (CDHU).

Uma empresa de cobranças processou a CDHU por mensalidades de condomínio atrasadas, de maio a setembro de 2015, no valor de R$ 549,92. A ação não cobrava a dívida, mas pedia que ela fosse reconhecida em juízo, mesmo após a prescrição, para ser cobrada posteriormente.

O pedido foi aceito pelo juiz de primeiro grau, com base no Código Civil. Segundo a norma, a pretensão de cobrança da dívida prescreve em cinco anos, mas isso não extingue o débito, que permanece como uma obrigação natural.

O desembargador Marcus Vinicius Rios Gonçalves, relator do recurso, teve o mesmo entendimento. “A prescrição atinge tão somente a pretensão, não a dívida em si, razão pela qual acertada a sentença.”

O relator afastou a alegação da CDHU de que a ação movida pela empresa era inadequada porque a dívida já estava prescrita. Conforme destacou o magistrado, a ação não pedia a execução do débito, mas apenas o reconhecimento de sua existência.

“Quanto à carência de ação e inépcia da inicial, verifica-se que a ação visa apenas à declaração da existência de dívida prescrita, conforme se observa em destaque na inicial (fls. 7), sendo adequada a presente ação para tal finalidade, não tendo sido apontada, ainda, irregularidade na inicial. Não se postula qualquer cobrança ou execução”, afirmou Gonçalves.

O escritório Carneiro Advogados atuou no caso.

Clique aqui para ler o acórdão
AC 1018077-74.2023.8.26.0506

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Projeto prevê sigilo de testemunhas indicadas por empregado em processo trabalhista

O Projeto de Lei 4666/24 prevê o sigilo na identificação de certas testemunhas indicadas pelo empregado em processo trabalhista. O texto em análise na Câmara dos Deputados insere a regra na Consolidação das Leis do Trabalho (CLT).

Pela proposta, o juiz poderá convocar testemunha com sigilo quando ela possuir vínculo trabalhista formal ou não formal com a parte reclamada. O depoimento será então prestado por escrito, e a parte reclamada terá direito à contestação.

“Hoje, uma testemunha indicada pelo empregado que ainda possui vínculo com a empresa fica constrangida em depor contra o patrão”, disse o autor da proposta, deputado Vinicius Carvalho (Republicanos-SP), ao defender as mudanças.

Atualmente, a CLT prevê que toda testemunha será qualificada, indicando nome, nacionalidade, profissão, idade, residência, e, se for o caso, o tempo de serviço prestado ao empregador, ficando sujeita, em caso de falsidade, às leis penais.

Próximos passos
O projeto tramita em caráter conclusivo e será analisado pelas comissões de Trabalho; e de Constituição e Justiça e de Cidadania. Para virar lei, terá de ser aprovado pela Câmara e pelo Senado.

Fonte: Câmara dos Deputados

Corregedoria-Geral conclui pesquisa acerca da percepção da magistratura federal sobre segurança institucional

Informações subsidiarão novas ações para aprimoramento da segurança institucional da Justiça Federal

A Corregedoria-Geral da Justiça Federal (CG) encerrou a enquete de percepção da magistratura federal sobre a segurança institucional, com a participação voluntária de 216 magistradas(os). A iniciativa conecta-se com ações estratégicas e educacionais em andamento, promovidas pela CG e pelo Centro de Estudos Judiciários do Conselho da Justiça Federal (CEJ/CJF), com apoio da Assessoria Especial de Segurança Institucional e de Transporte do CJF (ASSEP).

As atividades incluem cursos, na modalidade a distância ou na presencial, voltados à proteção e à segurança dos principais ativos da Justiça Federal: as pessoas que a compõem. Entre as capacitações já realizadas, destacam-se os cursos sobre proteção de dados pessoais e privacidade na era digital, introdução ao contra-acompanhamento e ações presenciais de contra-acompanhamento para autoproteção.

O objetivo central é desenvolver a mentalidade de autoproteção na magistratura federal e em seu corpo técnico.

Resultados

A pesquisa apontou que 70% das(os) respondentes já foram ameaçadas(os) em razão da atuação profissional e cerca de 2/3 (65,3%) delas(es) já sentiu a segurança vulnerável ou se sentiu ameaçada(o) em decorrência do ofício. Na esfera pessoal, 60,9% relataram ter sido vítimas ou ter familiares que foram vítimas de crimes praticados com violência ou grave ameaça.

Como principais ameaças, as(os) participantes indicaram as oriundas de parte insatisfeita com decisão ou sentença (46,8%), preocupação com a atuação de facções criminosas (22,7%) e com a criminalidade urbana em geral (21,8%). Uma pequena parcela (8,8%) elegeu a atuação de extremistas (religiosas(os), políticas(os), nacionalistas etc.).

Próximos passos

As informações obtidas a partir da participação ativa de membros da magistratura federal serão interpretadas e sistematizadas em um relatório que será oportunamente difundido pela Corregedoria-Geral às(os) atoras(es) interessadas(os) e irão subsidiar o planejamento de novas ações, tanto no âmbito educacional, por intermédio do CEJ/CJF, quanto em medidas executivas, com o objetivo de aperfeiçoar a segurança institucional.

O projeto estratégico opera em colaboração com os Tribunais Regionais Federais (TRFs), suas comissões permanentes de segurança e órgãos de segurança pública e institucional. O intuito é integrar as percepções e necessidades da magistratura com as expertises dos órgãos de segurança para fortalecer a proteção dos ativos da Justiça Federal e a segurança de magistradas(os), servidoras(es), colaboradoras(es) e do público em geral, permitindo o exercício livre e independente da função jurisdicional.

Fonte: CJF

Terceira Turma admite envio de ofício às corretoras para encontrar e penhorar criptomoedas do devedor

Segundo o colegiado, embora esse tipo de ativo não seja considerado moeda de curso legal, as criptomoedas têm valor econômico e são passíveis de constrição.
 

A Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) entendeu que, no cumprimento de sentença, o juízo pode enviar ofício às corretoras de criptoativos com o objetivo de localizar e penhorar eventuais valores em nome da parte executada.

O recurso chegou ao STJ após o tribunal de origem negar provimento ao agravo de instrumento – interposto na fase de cumprimento de sentença – em que o exequente sustentava a possibilidade de expedição de ofícios para tentar encontrar criptomoedas que pudessem ser penhoradas. 

O tribunal local considerou a inexistência de regulamentação sobre operações com criptoativos. Além disso, para a corte local, faltaria a garantia de capacidade de conversão desses ativos em moeda de curso forçado.

Ativo digital faz parte do patrimônio do devedor

O relator na Terceira Turma, ministro Humberto Martins, lembrou que, para a jurisprudência do STJ, da mesma forma como a execução deve ser processada da maneira menos gravosa para o executado, deve-se atender o interesse do credor que, por meio de penhora, busca a quitação da dívida não paga.

O ministro ressaltou que as criptomoedas são ativos financeiros passíveis de tributação, que devem ser declarados à Receita Federal. Conforme disse, apesar de não serem moedas de curso legal, elas têm valor econômico e são suscetíveis de restrição. “Os criptoativos podem ser usados como forma de pagamento e como reserva de valor”, completou.

O relator comentou que, conforme o artigo 789 do Código de Processo Civil, o devedor inadimplente responde com todos os seus bens pela obrigação não cumprida, ressalvadas as exceções legais. No entanto, em pesquisa no sistema Sisbajud, não foram localizados ativos financeiros em instituições bancárias autorizadas.

Para Humberto Martins, além da expedição de ofício às corretoras de criptomoedas, ainda é possível a adoção de medidas investigativas para acessar as carteiras digitais do devedor, com vistas a uma eventual penhora.

Criptomoedas representam desafios para o Judiciário

O relator lembrou que uma proposta legislativa em tramitação, o Projeto de Lei 1.600/2022, define o criptoativo como representação digital de valor, utilizado como ativo financeiro, meio de pagamento e instrumento de acesso a bens e serviços.

Em voto-vista, o ministro Ricardo Villas Bôas Cueva informou que o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) está desenvolvendo uma ferramenta, o Criptojud, para facilitar o rastreamento e o bloqueio de ativos digitais em corretoras de criptoativos.

Cueva salientou a necessidade da regulamentação desse setor, diante das dificuldades de ordem técnica relacionadas com a localização, o bloqueio, a custódia e a liquidação de criptoativos, o que traz desafios para o Poder Judiciário tanto na esfera cível quanto na penal.

Fonte: STJ

Hierarquia administrativa e seus dois maridos

A hierarquia administrativa é mais que uma pirâmide de órgãos: é uma relação jurídica dinâmica, associada indissoluvelmente a dois conceitos fundamentais: organização administrativa escalonada e processo decisório multinível.

Não existe hierarquia administrativa se há apenas um estrato na organização. Mas tampouco a hierarquia é estado de fato ou a posição topográfica de órgãos na organização. É jurídica a relação que une órgãos em vínculos de direção e subordinação, comando e obediência, dependência e supremacia. Hierarquia é relação jurídica interorgânica que exige esses dois “maridos conceituais”.

A hierarquia nunca é vínculo de ordem e obediência absolutos nem admite que em seu nome ilegalidades sejam consumadas. Embute prerrogativas, mas igualmente deveres e responsabilidades. Seu contorno atual exige olhar analítico, resumido aqui ao essencial.

Pressuposto da hierarquia: a desconcentração

Hierarquia vem do grego hierarkhía, que se refere ao “comando de um alto sacerdote” e é composta por hiera (ritos sagrados) e arkhein (comando, governar) [1]. Com o tempo, a palavra hierarquia foi transposta do domínio eclesiástico para as estruturas de Estado, carregando consigo a noção de autoridade legitimada pelo escalão orgânico.

A hierarquia pressupõe repartição de competências entre órgãos, pois a concentração de poder em um órgão único inviabiliza a relação de hierarquia. Hierarquia pressupõe desconcentraçãoa repartição de competências entre órgãos distintos dentro de uma mesma pessoa jurídica. A desconcentração constitui a multiplicidades de órgãos decisórios e viabiliza a relação jurídica entre eles, conformada por normas jurídicas, na intimidade de uma mesma pessoa administrativa (político-administrativa ou exclusivamente administrativa).

Porém, duas observações cobram atenção.

A primeira. Ao contrário do que ocorre em outros sistemas jurídicos, no Direito brasileiro a desconcentração é sempre vínculo entre sujeitos de direito administrativo despersonalizados (órgãos). A legislação brasileira não prevê desconcentração entre pessoas administrativas. No Brasil, o vínculo organizativo entre pessoas administrativas denomina-se descentralização.

A segunda. A hierarquia sempre vem acompanhada da desconcentração, mas a recíproca não é necessária. Entender isso exige distinguir entre desconcentração horizontal e desconcentração vertical.

desconcentração vertical, assentada na hierarquia, vincula órgãos superiores e inferiores em estrutura escalonada e dentro da mesma pessoa jurídica: a exemplo da relação entre o Ministério da Educação e seus órgãos regionais ou setoriais. Mas há também a desconcentração horizontal, que não conhece hierarquia, pois coordena órgãos autônomos ou independentes, como o vínculo entre os Tribunais de Contas e o Poder Executivo. Na desconcentração horizontal vigoram relações paritárias, mesmo quando há em causa competências de controle (STF, ADI 3.329) [2].

Há crescente número de relações paritárias dentro de uma mesma pessoa jurídico administrativa. Órgão administrativos de extração constitucional, como o Ministério Público, os Tribunais de Contas, o Conselho Nacional de Justiça e o Conselho Nacional do Ministério Público desconhecem sujeição hierárquica em face do órgão administrativo central, embora não sejam pessoas jurídicas. Possuem orçamento próprio, pessoal próprio, competências próprias, e ordenação interna própria, não sujeita a ordem e comando do chefe do Poder Executivo. Entre esses órgãos autônomos – e outros, autonomizados funcionalmente pelo legislador – vigem relações laterais ou cooperativas e não relações verticais ou hierárquicas. Entre órgãos de igual hierarquia, os vínculos que se estabeleçam são igualmente paritários. E há órgãos inferiores que, pelas próprias funções, não se sujeitam funcionalmente à hierarquia, pois perderiam a razão de existirem se abrigados a ordens de serviço e comandos específicos, embora não possuam matriz constitucional (por exemplo, os órgãos consultivos e técnicos-representativos).

Em síntese: a hierarquia é relação interorgânica residente na intimidade de uma mesma pessoa administrativa e não relação interadministrativas; não impõe uma subordinação total necessária entre órgãos superiores e subalternos e tampouco é logicamente compatível com vínculos de desconcentração administrativa horizontal, que envolvam órgãos funcionalmente independentes ou de equivalente escalão orgânico.

Quando há mais de uma pessoa administrativa em causa não há relação de hierarquia nem tampouco desconcentração. Entre pessoas administrativas pode haver superintendência ou controle legal, que a velha doutrina francesa denominava tutela. Entre pessoas administrativas são possíveis relações interadministrativas e relações de descentralização [3].

Hierarquia e a organização administrativa escalonada

A estrutura escalonada representa a dimensão estática da hierarquia. Pirâmides organizacionais, organogramas, matrizes de distribuição de competências e cargos configuram o pressuposto organizacional da relação hierárquica escalonada. Este primeiro componente conceitual da hierarquia – a organização em escalões – materializa-se em decretos de estrutura, leis orgânicas e regimentos internos.

O escalonamento, porém, não representa mera disposição de cargos e órgãos. Constitui gradação jurídica de competências e responsabilidades, distribuição racional de atribuições segundo critérios de especialização, abrangência territorial decisória ou proximidade com o poder político.

Nessa dimensão deve ser reconhecida a discricionariedade organizatória do gestor na estruturação e distribuição de competências no interior da administração, observado o limite da impossibilidade de criar cargos sem lei e de reestruturar carreiras sem autorização legal específica. Fora isso, podem órgãos sofrer cisão, aglutinação, concentração temporária de competências e outras medidas diretamente relacionadas à estruturação e organização internas, sem reflexo em direitos e deveres de terceiros (artigo 5º c/c artigo 84, da Constituição) [4].

A jurisprudência do STF tem reiteradamente reconhecido a discricionariedade administrativa na configuração organizacional, embora estabeleça limites quanto à criação de cargos (ADI 3.602/GO) e reestruturação de carreiras (RE 642.895)

Hierarquia e processo decisório multinível

Se a estrutura escalonada representa a dimensão estática pressuposta pela hierarquia, o processo decisório multinível constitui a dimensão dinâmica da hierarquia administrativa. Esta segunda dimensão do conceito manifesta-se em fluxos de comando, supervisão, inspeção, revisão, solução de conflitos, avocação e delegação. Expressa-se em instruções normativas, ordens de serviço, homologações e decisão de recursos hierárquicos.

O processo decisório multinível traduz-se em poderes hierárquicos clássicos: poder de direção, poder de inspeção, poder disciplinar, poder de revisão e poder de delegação e avocação. Estes poderes, contudo, não são absolutos nem incondicionados. Encontram limites no próprio ordenamento jurídico e nas finalidades públicas a que devem servir.

Não pode o superior hierárquico, por exemplo, reformar atos administrativos emitidos em competência vinculada por autoridade subordinada. Tampouco pode avocar competências quando a lei reservar determinada competência a autoridade específica (competência exclusiva) [5].

Essa cadeia decisória pode envolver decisões organizatórias e decisões funcionais. Por vezes a lei autoriza uma espécie de decisão e nega a outra. Outras vezes, a lei autoriza decisões gerais e não decisões específicas. Por exemplo, no Ministério Público a Chefia Institucional – os procuradores gerais dos estados ou o procurador geral da República – não podem determinar decisões concretas ou substituir a decisão dos demais agentes do MP, que gozam de autonomia funcional, mas podem decidir sobre conflito de atribuições, definindo o agente competente para conhecer determinado caso. Além disso, embora não emitam ordens de serviço concretas para casos determinados, podem editar diretrizes, planos e programas funcionais gerais.

A hierarquia administrativa oferece ao gestor uma prerrogativa de vigilância sobre as decisões dos órgãos subordinados ou vinculados na dimensão de sua aplicação. Essa prerrogativa de controle pode ativar a competência disciplinar ou, quando couber, a substituição da decisão do inferior hierárquico em sede de decisão de recursos hierárquicos.

As patologias da relação hierárquica

A hierarquia administrativa, como qualquer relação jurídica, está sujeita a patologias e distorções. O autoritarismo hierárquico, o abuso de poder disciplinar, a interferência indevida em competências técnicas e a instrumentalização política da cadeia de comando representam desvios frequentes.

Mas a “cega obediência hierárquica” perdeu vigência na administração civil. O artigo 116, IV, da Lei 8.112/90, por exemplo, estabelece o dever de obediência dos servidores públicos às ordens superiores, mas dispensa do dever o cumprimento a ordens ilegais. A insubordinação grave e imotivada pode conduzir à demissão (artigo 132, VI), mas a resistência às ordens diretas ilegais é legítima e protegida, sendo assegurado ao servidor o direito de representação (artigo 116, XII, da Lei 8.112/90). Em paralelo, o Código Penal, em seu artigo 22, exclui a culpabilidade do servidor se cometer crime sob coação irresistível ou em obediência a uma ordem superior, desde que esta não seja manifestamente ilegal [6]. Se a ilegalidade for evidente, não resistir pode caracterizar o crime de prevaricação (artigo 319 do CP).

No âmbito da administração militar, no entanto, a compreensão do dever de resistência a ordens ilegais é menos abrangente: entende-se que a única ordem que não deve ser cumprida é a ordem manifestamente criminosa. Os militares devem cumprir as ordens emanadas dos seus superiores, caso não sejam criminosas, constituindo crime a recusa de obediência conforme previsto no artigo 163 do Código Penal Militar [7]. O fundamento para essa aplicação estrita decorre da singularidade da administração e da carreira militar, submetidas a exigências de hierarquia e disciplina rigorosas (Artigo 142, da CF) cujas limitações “visam a atender à supremacia do bem coletivo em detrimento de interesses particulares, até pela força, se necessário” (STF, ADI nº 6.595).

A hierarquia administrativa na era da governança pública

A concepção tradicional de hierarquia administrativa vem sendo desafiada pelos novos paradigmas de governança pública. A rigidez hierárquica mostra-se insuficiente diante da complexidade dos problemas contemporâneas, que exigem coordenação intersetorial, sistemas transversais de informação e participação social direta.

Emergem, assim, estruturas administrativas pós-hierárquicas: colegiados interinstitucionais, redes de políticas públicas, estruturas matriciais unificadas por projetos e outros mecanismos de governança colaborativa presenciais e digitais. Estes arranjos não eliminam a hierarquia como categoria conceitual ou como vínculo jurídico, mas restringem a sua aplicação no conjunto da organização administrativa.

Algumas dessas estruturas são temporárias, como o Comitê Gestor da Copa do Mundo Fifa 2014 e Comitê Gestor dos Jogos Olímpicos e Paraolímpicos de 2016. Outras devem ser permanentes, apoiadas inclusive no artigo 10, da Constituição, que assegura a “participação dos trabalhadores e empregadores nos colegiados dos órgãos públicos em que seus interesses profissionais ou previdenciários sejam objeto de discussão e deliberação”.

A atuação integrada horizontal entre órgãos e as entidades envolvidos na prestação e no controle dos serviços públicos constitui ainda princípio e diretriz do Governo Digital (Artigo 2º, IX, da Lei 14.129/2021). Sem alarde, em alguns domínios, a administração civil assume a forma de uma trama de redes.

A dimensão constitucional da hierarquia administrativa

A Constituição de 1988 não menciona explicitamente o princípio hierárquico entre os princípios gerais da administração pública, diferentemente de outros princípios referidos na cabeça do artigo 37. A hierarquia é considerada inerente, generalizada e estrutural apenas para a administração militar (artigo 142). Essa ausência da hierarquia no pórtico dos princípios gerais não é acidental: reflete a relativização da hierarquia como princípio estruturante da organização administrativa contemporânea.

A hierarquia administrativa, como vínculo jurídico complexo, permanece importante sobretudo na administração direta. Contudo, seus contornos transformaram-se para acomodar exigências de ampliação no número de órgãos com autonomia funcional, de órgãos de caráter intersetorial em regime paritário de funcionamento, de órgãos de representação social e de órgãos técnicos de assessoramento e deliberação colegiada.

A metáfora dos “dois maridos” ou componentes conceituais – estrutura escalonada e processo decisório multinível – evidencia a natureza multidimensional desse instituto. Ambas as dimensões requerem reconfiguração para que a hierarquia administrativa não se converta em anacrônico resquício autoritário, mas em ferramenta sintonizada com a gestão pública contemporânea.

A hierarquia na organização administrativa de nossos dias deve conciliar valores aparentemente contraditórios: coesão e participação; coordenação central e autonomia técnica; estabilidade estrutural e flexibilidade operacional. Esse equilíbrio dinâmico constitui um dos grandes desafios do Direito Administrativo no século 21: repensar a hierarquia e o funcionamento pluralista e aberto da administração sem abdicar de valores estratégicos fundamentais, como a responsabilidade, a eficiência, a unidade e a coordenação da ação estatal.

A hierarquia, assim ressignificada, deixa de ser um dado assumido como inevitável para tornar-se instrumento de realização dos fins constitucionais que legitimam a sua própria existência. Hierarquia não é palavra mágica para autorizar abusos de poder e o exercício irracional da autoridade. É relação organizativa estruturada, finalista, passível de disciplina flexível, cuja exploração rigorosa merece ser renovada tanto pelo legislador quanto pela doutrina.


[1] MACHADO, José Pedro. Dicionário Etimológico da Língua Portuguesa, III, Volume 7.ª Edição. Lisboa: Livros Horizonte, 1995, pág. 223. Ver ainda: VESCHI, Benjamin,  https://etimologia.com.br/hierarquia/ e TREVIJANO FOS, J. A. Garcia. Tratado de Derecho Amnistrativo, Tomo II, Vol. I, 2ª.ed, Ed. Rev. de Direito Privado, 1971, p. 426.

[2] No acordão referido, decidiu o STF ser inconstitucional norma legal do Estado de Santa Catarina que permitia a avocação de inquérito policial pelo Ministério Público. Decidiu a Corte que, a atribuição de controle externo da atividade policial pelo Ministério Público, de acordo com o artigo 129, VII, da Constituição Federal, não importa em relação de hierarquia entre o MP e a Polícia. (ADI 3329, Rel. Gilmar Mendes, Tribunal Pleno, DJe- 28-06-2024)

[3] Não se deve confundir pessoa administrativa e sujeito de direito administrativo. Órgãos podem ser sujeitos de direito administrativo, mas nunca são pessoas administrativas. Órgãos são unidades de atuação jurídica despersonalizadas (artigo 1º, §2º, I, da Lei nº 9.784/1999). Não são pessoas jurídicas e, portanto, não possuem aptidão genérica para direitos, deveres e obrigações, mas são sujeitos de direito (centros unitários de imputação de direitos e deveres) e, como tais, gozam de aptidão limitada ou parcial para direitos, deveres e obrigações. Desenvolvi o tema em vários textos inseridos em MODESTO, Paulo. Direito administrativo da experimentação. 2ª. Ed. São Paulo: Juspodium, 2025 (vg. p.59-61 e 273 e segs). Ver, ainda, VILANOVA, Lourival. Causalidade e Relação no Direito. 4ed. São Paulo: Ed. RT, 2000, p. 275 e segs.

[4] A hipótese foi prevista no art. 6º, do Anteprojeto de Normas Gerais de Reforma da Organização Administrativa Federal, porém decorre do art. 84, VI, da Constituição, com a redação da EC 32/01.

[5] A Lei 9784/99 não é expressa quanto a este último aspecto. No entanto, se não é possível delegar competência exclusiva do órgão subordinado (art. 13, III), penso que tampouco é possível avocar temporariamente competência exclusiva de órgão ou autoridade subalterna, competência exercida (consumada) ou competência do subalterno no curso do processo administrativo iniciado. Ver, sob a última hipótese, MOREIRA, Egon Bockmann. Processo administrativo. 5ª.ed. São Paulo: Malheiros, 2017, p.403.

[6] Art. 22, do Código Penal: “Se o fato é cometido sob coação moral irresistível ou em estrita obediência a ordem, não manifestamente ilegal, de superior hierárquico, só é punível o autor da coação ou da ordem.”

[7] Cf. MARREIROS, Adriano Alves; ROCHA, Guilherme; FREITAS, Ricardo. Direito Penal Militar. Teoria Crítica & Prática. São Paulo: Método, 2015, p. 629.

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Lei Complementar 213/2025: novos entrantes no setor de seguros e os desafios da regulação

Sociedades cooperativas

Inicialmente, observa-se que a Lei Complementar nº 213/2025 promove uma maior abertura do mercado às sociedades cooperativas. Com efeito, antes do advento da LC 213, as sociedades cooperativas somente podiam operar em linhas muito específicas de seguros – seguros agrícolas, de saúde e de acidentes do trabalho (artigo 24 do Decreto-Lei nº 73/1966). Essa realidade foi substancialmente alterada com o advento da LC 213, que permitiu que as sociedades cooperativas operem em qualquer ramo de seguros privados, com exceção daqueles que o CNSP expressamente proibir (artigo 88-A).

Essa significativa mudança é justificável. Cooperativas e mútuas possuem uma participação bastante relevante em mercados de seguros mais maduros, como aqueles do Japão, dos Estados Unidos e de boa parte de países europeus. No Brasil, apesar do apoio constitucional ao cooperativismo (§ 2º do artigo 174 da Constituição), existia uma limitação legal que impedia uma maior atuação das sociedades cooperativas no mercado de seguros. O advento da LC 213 produz a legítima expectativa de que novos players, sob a roupagem de sociedade cooperativa, ingressarão no mercado brasileiro de seguros privados, potencialmente ampliando a oferta de serviços e beneficiando os consumidores.

Administradora de Operações de Proteção Patrimonial Mutualista

Por outro lado, constata-se que a LC 213 criou a figura da Administradora de Operações de Proteção Patrimonial Mutualista (artigo 88-H). Trata-se de sociedade constituída sob a forma de sociedade por ações, incumbida de gerir a operação de proteção patrimonial mutualista mediante prévia autorização da Susep. De certo modo, as atividades desenvolvidas pela Administradora de Operações de Proteção Patrimonial Mutualista se assemelham àquelas executadas pelas seguradoras: elas processam as adesões ao contrato de participação, cuidando ainda de renovações, alterações, repactuações e cancelamentos; arquivam os dados cadastrais e documentos dos participantes, beneficiários, corretores de seguros e demais intermediários e seus prepostos; efetuam o cálculo, a cobrança e o recolhimento do rateio mutualista de despesas; regulam e liquidam eventos cobertos; e efetuam o pagamento de indenizações relacionadas à garantia de eventos cobertos. Justamente por se assemelharem às seguradoras, tais entidades se sujeitam a uma intensa regulação estatal, podendo, inclusive, ser alvo de direção fiscal e liquidação extrajudicial.

A criação dessa figura — Administradora de Operações de Proteção Patrimonial Mutualista — tem o objetivo de solucionar um problema específico observado há tempos no setor de seguros privados. Associações de proteção veicular oferecem serviços de proteção e assistência automotiva contra roubo e acidente aos seus associados, o que, na prática, corresponderia à atividade securitária. O problema é que tais associações não se submetiam à supervisão regulatória, colocando os consumidores em risco, e não pagavam tributos como as sociedades seguradoras, resultando em significativas perdas de receitas para o poder público. Em resposta a essa situação de alegada ilicitude, a Susep ajuizou centenas de ações civis públicas nos mais diversos estados da federação.

Diferentemente do que se observa com as sociedades cooperativas, cuja atuação no setor de seguros e em outros setores da economia (tais como crédito, saúde e agropecuária) não desperta maiores questionamentos, as associações de proteção patrimonial que oferecem serviços assemelhados a seguros privados são figuras controversas, sobre as quais recai a pecha de uma atuação clandestina no setor de seguros privados. Tal realidade levou a LC 213 a oferecer uma minuciosa disciplina, que abrange diversos aspectos desses players, tudo com o intuito de compatibilizar a sua atuação a certos vetores que presidem o regime regulatório securitário, tais como a proteção ao consumidor e a higidez econômico-financeira dos agentes regulados.

Além das próprias Administradoras de Operações de Proteção Patrimonial Mutualista, a LC 213 ofereceu uma minuciosa disciplina sobre outras noções indispensáveis à compreensão e ao funcionamento desse regime mutualista, tais como o Grupo de Proteção Patrimonial Mutualista (conjunto de pessoas naturais ou jurídicas que pertencem a uma mesma associação e encontram-se sujeitas a riscos predeterminados, os quais são repartidos por meio de rateio mutualista de despesas – artigo 88-E) e o Contrato de Participação em Grupo de Proteção Patrimonial Mutualista (instrumento por meio do qual o associado formaliza sua adesão ao grupo de proteção patrimonial mutualista – artigo 88-N).

Estimativas apontam que, com o advento da LC 213, o mercado das associações de proteção patrimonial poderia representar um acréscimo de 3 mil novos players no setor regulado de seguros. Especulações à parte, parece relevante destacar que diferentes aspectos, incluindo incentivos econômicos e jurídicos, irão condicionar o ingresso desses players no setor regulado. Diante da situação de ilicitude das associações de proteção veicular, a LC 213 estabeleceu um regime temporal de transição para que as Administradoras de Operações de Proteção Patrimonial Mutualista sejam criadas e submetidas à regulação setorial, com a suspensão e posterior extinção de processos judiciais e sancionadores eventualmente em curso contra as associações de proteção patrimonial. Parece legítimo supor que muitos players aproveitarão essa janela de oportunidade para adequar a sua situação jurídica e atuar no mercado de forma lícita. Inobstante, há de se reconhecer que muitos players poderão simplesmente optar por não ingressar no setor regulado, seja por causa da existência de significativos custos regulatórios, seja por eventual falta de fiscalização por parte do Estado, seja por falta de interesse mesmo.

Desafios da regulação

Vê-se, assim, que a LC 213 permite uma maior participação das sociedades cooperativas no setor regulado e viabiliza a atuação de um novo player, que são as Administradoras de Operações de Proteção Patrimonial Mutualista, o que evidentemente gera uma série de desafios regulatórios.

Um primeiro desafio é que, independentemente da questão de saber se a adesão ao novo regime regulatório será alta, média ou baixa, parece ser indiscutível que o advento da LC 213 resultará no ingresso de novos players no setor regulado, o que aumentará a carga de trabalho a ser desempenhado pela Susep. Esse é um aspecto que exige atenção, pois o órgão convive com um histórico de déficit de servidores. É bem verdade que a Susep está realizando concurso público para contratação de novos servidores, mas o quantitativo de vagas parece não ter sido estimado com base no aumento do escopo da atuação do regulador proporcionado pela LC 213. Mais do que nunca, a Susep precisará de planejamento estratégico e espírito criativo para lidar com o cenário complexo que se avizinha. Parece essencial cogitar no uso de novas tecnologias (as noções de Regtech e Suptech) [1] e na adoção de estratégias modernas de regulação, tais como a regulação responsiva [2] e a regulação baseada no risco [3].

Um segundo desafio diz respeito à necessidade de desenvolver um conhecimento apurado acerca das Administradoras de Operações de Proteção Patrimonial Mutualista e de todas as demais figuras que a LC 213 criou para submeter essa operação mutualista à regulação setorial. Um aspecto essencial para a correta compreensão desse novo regime é que, apesar de impor uma forte regulação às Administradoras de Operações de Proteção Patrimonial Mutualista, a LC 213 faz questão de ressaltar que a operação que tais entidades realizam não corresponde a uma operação de seguros (artigo 88-N, § 2º, inciso II). Isso significa dizer que existem diferenças significativas entre as operações mutualistas desenvolvidas pelas Administradoras de Operações de Proteção Patrimonial Mutualista e as atividades securitárias desenvolvidas pelas sociedades seguradoras tradicionais (que já são reguladas e, portanto, de pleno conhecimento do regulador). Isso exigirá esforço e atuação coordenada por parte do regulador e agentes de mercado (por exemplo, corretores, advogados, consultores) para o desenvolvimento de uma compreensão adequada sobre as nuances dessa nova atividade regulada.

Um terceiro desafio regulatório é que a introdução de novos players no mercado regulado pode impulsionar a concorrência, gerando benefícios aos consumidores. Ocorre que, para o desenvolvimento de um regime de concorrência regulatória adequado, os reguladores do setor de seguros privados precisam levar em consideração os aspectos que diferenciam sociedades seguradoras tradicionais, sociedades cooperativas e Administradoras de Operações de Proteção Patrimonial Mutualista. Com efeito, a modulação regulatória é uma necessidade diante das diferenças existentes em relação à forma de constituição dessas pessoas jurídicas, suas técnicas de governança e os serviços que ofertam aos destinatários finais. Porém, essas diferenças não podem justificar o estabelecimento de distinções ilimitadas, sob pena de atentarem contra a isonomia e gerarem distorções à concorrência do setor regulado.

Esses e outros desafios surgem a partir do advento da LC 213. Difícil relacionar aqui, com a brevidade do espaço, quais soluções regulatórias se mostram pertinentes para o enfrentamento de tamanha complexidade. Uma solução transversal a todos esses desafios é o papel de liderança que a Susep pode – e deve – desempenhar na construção de uma ampla articulação com entidades reguladas, suas associações, acadêmicos, advogados e outros profissionais que atuam no setor com o objetivo de estabelecer profícuos diálogos desde os estágios menos avançados da tomada de decisão regulatória, o que tem o condão de resultar em uma regulação mais efetiva, porquanto mais aderente à realidade e às aspirações do conjunto da sociedade, que tanto necessita de um setor hígido, equilibrado e que protege as hipossuficiências.


[1] Sobre o uso de novas tecnologias no setor de seguros, incluindo uma abordagem sobre as noções de Regtech e Suptech: GUERRA, Sérgio; GONÇALVES FILHO, Péricles. As insurtechs e o papel do regulador de seguros no século XXI. In GOLDBERG, Ilan; JUNQUEIRA, Thiago (coord.). São Paulo: RT, 2020.

[2] AYRES, Ian; BRAITHWAITE, John. Responsive Regulation. Transcending the deregulation debate. Oxford: Oxford University Press, 1992.

[3] Sobre a implantação da regulação baseada no risco em setores regulados: GONÇALVES FILHO, Péricles. Regulação baseada no risco: Questões relevantes para sua implantação nos setores regulados do país. Jota, 2024. Disponível em: https://www.jota.info/artigos/regulacao-baseada-no-risco. Acesso em 31 mar. 2025.

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