Pix acima de R$ 5.000: por que é ilegal exigência da Receita Federal?

Instituições de pagamento não se enquadram nem na previsão do CTN tampouco na LC 105/01

A Instrução Normativa 2219/2024 da Receita Federal entrou em vigor no início de 2025 e provocou um grande alvoroço nas redes sociais. “É um novo tributo?” “É aumento da arrecadação?”. Tudo isso passou pelo meu feed.

A histeria foi tamanha que o governo federal se apressou para soltar uma nota esclarecendo que “Novas regras para Pix não criam tributos”. A Receita Federal não ficou atrás e divulgou à população que seria uma mera evolução na e-Financeira.

E de fato é. Desde 2003 que as instituições financeiras e as operadoras de cartão de crédito são obrigadas a reportar semestralmente as transações de seus clientes quando a movimentação for superior a R$ 5.000, no caso de pessoas físicas ou R$ 15 mil, quando se tratar de pessoas jurídicas. Agora, a medida inclui as instituições de pagamento.

A IN 2219/2024 foi editada com fulcro na LC 105/2001 e no art. 16 da Lei 9.779/99, dispondo a primeira sobre o sigilo das operações de instituições financeiras e a segunda sobre a possibilidade de a Receita Federal dispor sobre as obrigações acessórias relativas aos impostos e contribuições por ela administrados, estabelecendo, inclusive, forma, prazo e condições para o seu cumprimento e o respectivo responsável.

A obrigação de fornecer informações é uma obrigação tributária acessória e o Código Tributário Nacional expressa que sua criação se dará nos termos da legislação tributária, a conferir:

Art. 113. A obrigação tributária é principal ou acessória.

  • 2º A obrigação acessória decorre da legislação tributária e tem por objeto as prestações, positivas ou negativas, nela previstas no interesse da arrecadação ou da fiscalização dos tributos.

Art. 96. A expressão “legislação tributária” compreende as leis, os tratados e as convenções internacionais, os decretos e as normas complementares que versem, no todo ou em parte, sobre tributos e relações jurídicas a eles pertinentes.

Art. 100. São normas complementares das leis, dos tratados e das convenções internacionais e dos decretos:

I – os atos normativos expedidos pelas autoridades administrativas.

Portanto, as obrigações acessórias não estão sujeitas ao princípio da legalidade estrita, sendo possível a criação da e-financeira por meio de instrução normativa. Ocorre que, no caso da IN 2219 a Receita Federal foi além o que poderia e com isso maculou de Ilegalidade parte da citada instrução normativa. Explico.

É notório que a Receita Federal objetiva imputar uma obrigação acessória às instituições financeiras e às instituições de pagamento, mas que não se relaciona aos tributos devidos por suas próprias operações, e sim operações de terceiros.

Segundo o CTN, é possível que determinados sujeitos sejam obrigados a atender a fiscalização tributária prestando todas as informações de que disponham com relação aos bens, negócios ou atividades de terceiros. Os limites dessa possibilidade estão no CTN incisos I a VI do artigo 197:

Art. 197. Mediante intimação escrita, são obrigados a prestar à autoridade administrativa todas as informações de que disponham com relação aos bens, negócios ou atividades de terceiros:

I – os tabeliães, escrivães e demais serventuários de ofício;

II – os bancos, casas bancárias, Caixas Econômicas e demais instituições financeiras;

III – as empresas de administração de bens;

IV – os corretores, leiloeiros e despachantes oficiais;

V – os inventariantes;

VI – os síndicos, comissários e liquidatários;

VII – quaisquer outras entidades ou pessoas que a lei designe, em razão de seu cargo, ofício, função, ministério, atividade ou profissão.

Parágrafo único. A obrigação prevista neste artigo não abrange a prestação de informações quanto a fatos sobre os quais o informante esteja legalmente obrigado a observar segredo em razão de cargo, ofício, função, ministério, atividade ou profissão.

Nesse sentido, ainda que a obrigação acessória possa ser exigida de terceiro não contribuinte, como prevê o Código Tributário Nacional, deve ela ficar restrita às pessoas enumeradas no artigo 197 e não pode violar o sigilo profissional.

Importante frisar que as instituições de pagamento não se enquadram em nenhuma das hipóteses do artigo 197 do CTN acima reproduzido.

Uma análise apressada pode levar a equivocada conclusão de que seriam as Instituições de Pagamento passíveis de enquadramento no inciso II, que trata os bancos, casas bancárias, Caixas Econômicas e demais instituições financeiras. Mas as suas atividades não se confundem com àquelas desenvolvidas pelos agentes indicados no inciso II do art. 197 do CTN.

As instituições de pagamento possuem atividades previstas na Lei 12.865/13, art. 6º inciso III[1], qualificadas como pessoa jurídica não financeira que executa os serviços de pagamento no âmbito do arranjo e que é responsável pelo relacionamento com os usuários finais do serviço de pagamentoEssa informação é dada pelo Banco Central, que diferencia as instituições financeiras das instituições de pagamento, com base na Lei 12.865/13:

Instituições de pagamento são instituições financeiras?

Não. A Lei 12.865, de 9 de outubro de 2013, veda, explicitamente, que instituições de pagamento realizem atividades privativas de instituições financeiras, como a concessão de crédito e a gestão de uma conta corrente bancária.

Um dos objetivos da referida lei é justamente tornar claro que a prestação de serviços de pagamento não é exclusividade de instituições financeiras e permitir que instituições não financeiras prestem serviços de pagamento sem necessitar ser uma instituição financeira[2].

Nem mesmo a LC 105/01, que dispõe sobre o sigilo das operações das instituições financeiras e elenca, no artigo primeiro, as entidades que estariam abrangidas pela citada lei complementar, qualifica as instituições de pagamento como instituições financeiras[3].

Por tais fundamentos é que se pode concluir que as instituições de pagamento não se enquadram nem na previsão do CTN e tampouco na LC 105/01. Ante ausência de lei expressa com essa previsão, não poderia a IN 2219/2024 criar obrigação e pretender equiparar a instituição pagamento à instituição financeira, posto que encontra óbice no artigo 110 do CTN[4].


[1]Art. 6º  Para os efeitos das normas aplicáveis aos arranjos e às instituições de pagamento que passam a integrar o Sistema de Pagamentos Brasileiro (SPB), nos termos desta Lei, considera-se:

(…)

III – instituição de pagamento – pessoa jurídica que, aderindo a um ou mais arranjos de pagamento, tenha como atividade principal ou acessória, alternativa ou cumulativamente:

  1. a) disponibilizar serviço de aporte ou saque de recursos mantidos em conta de pagamento;
  2. b) executar ou facilitar a instrução de pagamento relacionada a determinado serviço de pagamento, inclusive transferência originada de ou destinada a conta de pagamento;
  3. c) gerir conta de pagamento;
  4. d) emitir instrumento de pagamento;
  5. e) credenciar a aceitação de instrumento de pagamento;
  6. f) executar remessa de fundos;
  7. g) converter moeda física ou escritural em moeda eletrônica, ou vice-versa, credenciar a aceitação ou gerir o uso de moeda eletrônica; e
  8. h) outras atividades relacionadas à prestação de serviço de pagamento, designadas pelo Banco Central do Brasil

[2]http://www.bcb.gov.br/pre/bc_atende/port/arranjo.asp#l

[3]Art. 1º As instituições financeiras conservarão sigilo em suas operações ativas e passivas e serviços prestados.

  • 1o São consideradas instituições financeiras, para os efeitos desta Lei Complementar:

I – os bancos de qualquer espécie;

II – distribuidoras de valores mobiliários;

III – corretoras de câmbio e de valores mobiliários;

IV – sociedades de crédito, financiamento e investimentos;

V – sociedades de crédito imobiliário;

VI – administradoras de cartões de crédito;

VII – sociedades de arrendamento mercantil;

VIII – administradoras de mercado de balcão organizado;

IX – cooperativas de crédito;

X – associações de poupança e empréstimo;

XI – bolsas de valores e de mercadorias e futuros;

XII – entidades de liquidação e compensação;

XIII – outras sociedades que, em razão da natureza de suas operações, assim venham a ser consideradas pelo Conselho Monetário Nacional.

[4]Art. 110. A lei tributária não pode alterar a definição, o conteúdo e o alcance de institutos, conceitos e formas de direito privado, utilizados, expressa ou implicitamente, pela Constituição Federal, pelas Constituições dos Estados, ou pelas Leis Orgânicas do Distrito Federal ou dos Municípios, para definir ou limitar competências tributárias.

Fonte: Jota

STF vai analisar recurso sobre metodologia de atualização de débitos da Fazenda

O Supremo Tribunal Federal vai decidir se, na atualização dos débitos da Fazenda Pública, a taxa Selic deve incidir apenas sobre o valor principal corrigido do débito ou sobre o valor consolidado da dívida, que consiste no valor principal corrigido acrescido de juros.

A matéria é objeto do Recurso Extraordinário 1.516.074, que teve a repercussão geral reconhecida no Plenário Virtual (Tema 1.349). Com isso, a tese a ser definida deverá ser seguida pelos tribunais do país.

Duplicidade

No STF, o estado do Tocantins questiona decisão do Tribunal de Justiça estadual que rejeitou recurso a respeito da incidência da Selic sobre o valor atualizado do débito. De acordo com o TJ-TO, a partir da Emenda Constitucional 113/2021, a atualização do crédito deve ser feita pela taxa Selic sobre o valor consolidado do débito, que equivale ao valor principal corrigido acrescido de juros.

O estado argumenta que a Selic deve incidir apenas sobre o valor corrigido da condenação. Sustenta que, no julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade 5.867, o Supremo decidiu que a taxa Selic já engloba os juros de mora, e, por isso, sua incidência sobre o montante acrescido de juros configuraria uma aplicação de índices em duplicidade.

Interpretação

Ao se manifestar pela repercussão geral do tema, o presidente do tribunal, ministro Luís Roberto Barroso, frisou que o recurso trata exclusivamente da interpretação do artigo 3º da Emenda Constitucional 113/2021, de modo a determinar se o dispositivo fixou uma metodologia específica de cálculo de atualização dos débitos da Fazenda. Segundo ele, a questão ultrapassa os interesses das partes do processo, alcançando todos os entes federativos e os credores da Fazenda Pública.

Ainda não há data prevista para o julgamento de mérito do recurso. Com informações da assessoria de imprensa do STF.

RE 1.516.074

O post STF vai analisar recurso sobre metodologia de atualização de débitos da Fazenda apareceu primeiro em Consultor Jurídico.

Proposta muda legislação penal para permitir prisão de condenado em segunda instância

O Projeto de Lei 2110/24 permite a prisão imediata de pessoa com condenação criminal confirmada ou imposta por tribunal (segunda instância). O texto, em análise na Câmara dos Deputados, também muda as regras da prisão preventiva, previstas no Código de Processo Penal.

Mário Agra/Câmara dos Deputados
Discussão e votação de propostas legislativas. Dep. Delegado Ramagem (PL - RJ)
Delegado Ramagem: objetivo é acabar com a insegurança jurídica sobre o assunto

 

O deputado Delegado Ramagem (PL-RJ), autor do projeto, afirma que o texto visa acabar com a insegurança jurídica sobre o assunto.

Ele lembra que, em 2016, o Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu acatar a prisão de condenado em segunda instância. Três anos depois, em novo julgamento, a corte reverteu esse entendimento e determinou que o cumprimento da pena somente pode ter início após o fim de todos os recursos.

Para Ramagem, essa situação precisa ser regulamentada pelo Congresso Nacional. “O quadro descrito denota a carência de um urgente esclarecimento sobre o ponto, a ser feito autenticamente pelo legislador”, diz. Ele afirma ainda que não existe um impedimento constitucional contra a prisão após condenação em segunda instância.

Antecipação da pena
Em relação às regras sobre a prisão preventiva, o projeto de lei:

  • revoga a restrição vigente no Código de Processo Penal que impede a decretação da prisão preventiva com a finalidade de antecipação de cumprimento da pena;
  • permite a prisão preventiva quando houver indícios de perigo gerado pelo estado de liberdade do réu, que pode ser aferido pela existência de maus antecedentes, atos infracionais passados, inquéritos ou ações penais em curso;
  • admite a prisão preventiva de ‘faccionados’ que integram organizações criminosas ou exerçam atividades de comando, com violência ou grave ameaça a pessoa, por crimes como porte ilegal de armas, tráfico de drogas e associação criminosa.

Próximos passos
O projeto será analisado pela Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania (CCJ) e pelo Plenário.

Para virar lei, a proposta precisa ser aprovada pela Câmara e pelo Senado.

Fonte: Câmara dos Deputados

Comissão aprova nova regra sobre indenização por dano moral para vítima de violência doméstica

A Comissão de Defesa dos Direitos da Mulher aprovou, em novembro do ano passado, proposta estabelecendo o direito de indenização por dano moral nos casos de violência doméstica e familiar contra a mulher, desde que haja pedido expresso da acusação ou da parte ofendida, e independente de instrução probatória. A reparação será fixada pelo juiz, inclusive criminal. 

 
Discussão e votação de propostas. Dep. Silvye Alves(UNIÃO - GO)
Silvye Alves relatou a proposta na CCJ – Zeca Ribeiro/Câmara dos Deputados

O texto aprovado é o substitutivo da relatora, deputada Silvye Alves (União-GO), ao Projeto de Lei 1299/22, do deputado Cleber Verde (MDB-MA), e apensados. O texto inclui a medida na Lei Maria da Penha

A relatora destaca que hoje o Código Civil e a Lei Maria da Penha já preveem a possibilidade de o agressor, em caso de violência doméstica e familiar praticada contra a mulher, reparar os danos ocasionados à vítima, inclusive de natureza moral (resultantes, por exemplo, de violência praticada de caráter psicológico ou patrimonial). 

Silvye Alves também lembra que o Superior Tribunal de Justiça (STJ) firmou tese segundo a qual “nos casos de violência contra a mulher praticados no âmbito doméstico e familiar, é possível a fixação de valor mínimo indenizatório a título de dano moral, desde que haja pedido expresso da acusação ou da parte ofendida, ainda que não especificada a quantia, e independentemente de instrução probatória.” 

Para ela, é importante inscrever na lei a tese emanada pelo STJ. 

Alteração
O Projeto de Lei 1299/22 original garante à mulher vítima de violência doméstica o direito a indenização por dano moral paga pelo Estado, desde que seja comprovado o nexo entre a ação ou omissão do Estado e o dano.

Mas, para a relatora, é importante assegurar o direito independentemente de demonstração de culpa ou dolo de agente do Estado.

Próximos passos
A proposta será analisada em caráter conclusivo pela Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania. Para virar lei, precisa ser aprovada por deputados e senadores.

Fonte: Câmara dos Deputados

Repetitivo decidirá sobre arbitramento de honorários em desistência de desapropriação

Repetitivo decidirá sobre arbitramento de honorários em desistência de desapropriação
 
 

A Primeira Seção do Superior Tribunal de Justiça (STJ) decidiu afetar os Recursos Especiais 2.129.162 e 2.131.059, de relatoria do ministro Paulo Sérgio Domingues, para julgamento sob o rito dos repetitivos.

A questão submetida a julgamento, cadastrada como Tema 1.298 na base de dados do STJ, é “definir se os limites percentuais previstos no artigo 27, parágrafo 1º, do Decreto-Lei 3.365/1941 devem ser observados no arbitramento de honorários sucumbenciais em caso de desistência de ação de desapropriação por utilidade pública ou de constituição de servidão administrativa”.

O colegiado determinou a suspensão, em todo o território nacional, dos recursos especiais e agravos em recurso especial interpostos em processos que versem sobre a questão delimitada.

Em seu voto pela afetação dos recursos, o relator ressaltou que o caráter repetitivo da matéria foi verificado a partir de pesquisa na base de jurisprudência do STJ, tendo a Comissão Gestora de Precedentes e de Ações Coletivas (Cogepac) contabilizado 15 acórdãos e 282 decisões monocráticas sobre o tema.

O ministro salientou a importância de uniformizar, com força vinculante, o entendimento do STJ sobre a matéria, para consolidar definitivamente a jurisprudência. Paulo Sérgio Domingues comentou que algumas decisões recentes reconhecem a aplicação dos limites previstos no artigo 27, parágrafo 1º, do Decreto-Lei 3.365/1941 para a fixação dos honorários de sucumbência em casos de desistência de ações de desapropriação por utilidade pública. Contudo, segundo ele, coexistem julgados que não impõem essa limitação, o que evidencia a necessidade de se adotar uma jurisprudência estável e coerente.

Recursos repetitivos geram economia de tempo e segurança jurídica

O Código de Processo Civil de 2015 regula, nos artigos 1.036 e seguintes, o julgamento por amostragem, mediante a seleção de recursos especiais que tenham controvérsias idênticas. Ao afetar um processo, ou seja, encaminhá-lo para julgamento sob o rito dos repetitivos, os ministros facilitam a solução de demandas que se repetem nos tribunais brasileiros.

A possibilidade de aplicar o mesmo entendimento jurídico a diversos processos gera economia de tempo e segurança jurídica. No site do STJ, é possível acessar todos os temas afetados, bem como conhecer a abrangência das decisões de sobrestamento e as teses jurídicas firmadas nos julgamentos, entre outras informações.

Leia o acórdão de afetação do REsp 2.129.162.

Fonte: STJ

A fragilidade da democracia mundo afora

A instituição da democracia, ao longo da história, já demonstrou exaustivamente sua superioridade em relação a regimes autoritários e protecionistas de poucos. Seus principais pilares são soberania popular, respeito aos direitos fundamentais e às leis, iguais para todos, separação de poderes, com sistema ativo de freios e contrapesos, além de eleições livres, justas e transparentes.

As Constituições democráticas sucedem, muitas vezes, governos absolutistas e autoritários. A democracia tem de ser ativa, militante, no sentido de se proteger, mas essa militância tem de ser contida. Caso contrário, a democracia militante, “não esperando que seus adversários se tornem maioria”, conduz ao legalista autocrático, que é realidade em muitos países. Hungria, Polônia e Rússia são exemplos clássicos. Nesta altura, a democracia militante mostra seu lado mais obscuro e a “autocracia legal” instala-se. Quem vai retirar o poder supremo de Putin?

O autocrata legalista é minucioso e astuto, em busca do poder absoluto, ou quase. Acusa os inimigos (ou adversários) de praticarem atos antidemocráticos, cria falsa situação de pânico, alega que determinado(s) partido(s) político(s) adota(m) discurso preconceituoso ou nocivo ao povo, combate associações, pretensamente de fins escusos, é ardiloso e convincente, mobiliza a opinião pública a seu favor ou a constrange, para fazer com que alterações das normas constitucionais e infraconstitucionais pareçam naturais e benéficas, e restringe educação ao povo. O objetivo final é fazer com que os canais democráticos que o conduziram ao poder sejam fechados e seu cargo de mandatário-mor, perpetuado.

Jam-Werner Muller [1] defende uma legislação internacional que apoie intervenções multinacionais em defesa das democracias mais frágeis. A ONU, a OEA, a União Europeia e muitas outras entidades, nenhuma conta atualmente com real força para intervir. Débeis sanções econômicas e retórica eloquente não passam de matéria ilusionista preenchendo noticiários.

Os seus temores têm-se justificado mundo afora. Povo facilmente enganado, apoiando mudanças antidemocráticas, até por plebiscitos ou referendos de alterações que muito prometem. Quando passam a viger, só cumprem a parte que interessa ao propositor. Legislativo corrupto, que não se insurge, e Judiciário inerte ou corroborativo, uma vez pressionado ou agraciado. Mídia também (os insurgentes já foram previamente debelados).

Antídoto

A situação atual, pós-eleições, da Venezuela demonstra cabalmente o que se está discutindo. Trata-se de um ditador protegido por um pretenso regime democrático, em que as normas constitucionais relevantes para preservar a estrutura que o elegeu (ou melhor, que serviram para eleger seu antecessor) foram todas reformadas, ou melhor, deformadas. O Legislativo, as Forças Armadas e o Judiciário estão corrompidos, dando-lhe completa condição de exercer seu autoritarismo. E o povo tenta abandonar o país. A democracia militante levou à perda total. A mídia que sobrou é conivente.

Kim Lane Schepelle [2] alerta para aquelas ações, que significam risco à democracia, e defende, talvez utopicamente, que o grande antídoto seria o povo conhecer e debater as leis corriqueiramente, diariamente, preparando-se para detectar as pretensões golpistas dos governantes. Isso seria a democracia militante plena, sem excessos, com o povo ciente, culto e participativo diretamente no sentido de proteger o regime.

Sem real desenvolvimento humano, a essência democrática tende a evaporar. Na democracia representativa, cada voto tem de ser consciente e extremamente valorizado, e já passou da hora de o Judiciário, ao menos a Suprema Corte, ter seus ministros eleitos, por período determinado, e não indicados para cargos vitalícios. Obrigar-se-iam à transparência e à produtividade para serem reeleitos e o sistema só teria a ganhar em dignidade e autoproteção.


Referências

[1] Muller JW. Protecting Popular Self-Government from the People? New Normative Perspectives on Militant Democracy. Annu. Rev. Polit. Sci. 2016. 19:249–65

[2] Scheppele,KL. Autocratic Legalism. The University of Chicago Law Review. 2018. Disponível em: https://lawreview.uchicago.edu/print-archive/autocratic-legalism

O post A fragilidade da democracia mundo afora apareceu primeiro em Consultor Jurídico.

A linguagem como pilar do Direito Societário: lições de Delaware

O Direito Societário, em sua essência, é um exercício de precisão linguística. Recentemente, a juíza Karen Valihura, da Suprema Corte de Delaware, proferiu uma palestra esclarecedora sobre “Linguagem Clara no Direito Societário de Delaware”, destacando como a interpretação de palavras aparentemente simples pode ter consequências profundas no mundo corporativo. Delaware, reconhecido como o epicentro do Direito Societário nos Estados Unidos, oferece, por meio de suas decisões judiciais, lições valiosas que ressoam globalmente.

A precisão linguística, longe de ser um mero exercício acadêmico, emerge como um elemento fundamental na prática jurídica corporativa moderna. Casos emblemáticos de Delaware ilustram como a interpretação de palavras aparentemente simples pode ter consequências financeiras e legais impactantes.

O caso Weinberg v. Waystar (2023) serve como um exemplo paradigmático. A disputa centrou-se na interpretação da palavra “and” em um acordo de opções de ações. A cláusula em questão estabelecia que as unidades convertidas estariam sujeitas ao direito de recompra após “a rescisão do emprego de Weinberg e uma violação da cláusula restritiva” (“…converted units shall be subject to the right of repurchase following x, the termination of Weinberg’s employment and y, a restrictive covenant breach”). A corte interpretou “and” de forma a permitir a recompra após qualquer um dos eventos, não necessariamente ambos.

Para evitar tal ambiguidade, os redatores poderiam ter empregado uma linguagem mais específica, como: “…subject to the right of repurchase if either of the following events occurs: (i) the termination of Weinberg’s employment or (ii) a restrictive covenant breach”. Adicionalmente, uma cláusula de intenção poderia ter sido incluída: “It is the intention of the parties that the occurrence of either event shall be sufficient to trigger the repurchase right”. O uso de listas numeradas também aumentaria a clareza.

A importância da escolha cuidadosa de palavras é ainda mais evidenciada no litígio ION Geophysical Corp. v. Fletcher (2010). O cerne da disputa estava na interpretação de uma cláusula específica do acordo que permitia a Fletcher aumentar sua participação acionária na ION. O acordo permitia que Fletcher entregasse “a 65-day notice” (um aviso de 65 dias) para aumentar o número máximo de ações ordinárias da ION em que Fletcher poderia converter suas ações preferenciais.

Em novembro de 2008, Fletcher entregou um aviso de 65 dias aumentando o número máximo de ações em dois milhões. Posteriormente, Fletcher entregou outro aviso de 65 dias para aumentar sua participação em mais dois milhões de ações. A ION argumentou que Fletcher só poderia emitir um único aviso de 65 dias, não mais de um.

A corte considerou que o uso de “a” em vez de “the” sugeria que múltiplos avisos eram permitidos. Se a intenção fosse limitar Fletcher a um único aviso, o contrato poderia ter usado linguagem mais específica, como “one 65-day notice” ou “a single 65-day notice”. A corte também observou que o artigo definido “the” foi usado em outras partes do contrato para se referir a itens únicos ou específicos, reforçando a interpretação de que “a” neste contexto permitia múltiplos avisos. Literalmente, o “artigo que vale milhões”!

Para advogados brasileiros envolvidos em fusões e aquisições internacionais, este caso ressalta a necessidade de uma atenção meticulosa a cada elemento linguístico, mesmo aqueles aparentemente triviais. Em contratos bilíngues ou internacionais, a precisão na tradução e escolha de artigos é fundamental.

Em Kellner v. AIM ImmunoTech (2023), a Suprema Corte de Delaware invalidou uma cláusula de 1.099 palavras sem pontuação, considerada “indecifrável” pela corte. Esta decisão estabelece um limite claro para a complexidade aceitável em documentos corporativos. Clareza e concisão não são apenas virtudes estilísticas, mas requisitos legais essenciais.

Para evitar tais problemas, os redatores de contratos podem dividir cláusulas complexas em seções menores e numeradas, usar linguagem simples e direta, e incluir sumários no início de seções extensas. O uso de exemplos práticos e até mesmo diagramas ou fluxogramas para visualizar processos complexos pode aumentar significativamente a clareza.

O caso Fox Corporation/Snap Inc. Seção 242 Litigation (2023) surgiu após uma mudança na lei de Delaware que permitiu às empresas expandirem as proteções de responsabilidade para seus executivos. Fox e Snap, ambas com estruturas de múltiplas classes de ações, buscaram emendar seus certificados de incorporação (equivalentes aos estatutos sociais no Brasil) para incluir essas novas proteções. As classes com direito a voto aprovaram as emendas, mas as empresas não solicitaram um voto separado dos detentores de ações Classe A sem direito a voto. Estes acionistas entraram com uma ação, alegando que tinham direito a um voto separado com base na Seção 242(b)(2) [1] do Delaware General Corporation Law, argumentando que as emendas alteravam seus “poderes” ao diminuir sua capacidade de processar executivos por violação do dever de cuidado.

O cerne da disputa estava na interpretação da palavra “power” (poder) na lei. A Suprema Corte de Delaware adotou uma interpretação restrita, determinando que o direito de processar não constituía um “power” no sentido contemplado pela lei, referindo-se mais a direitos de voto ou outros poderes corporativos específicos. Consequentemente, a corte decidiu que as emendas não exigiam um voto separado dos acionistas da Classe A. Esta decisão tem implicações significativas, estabelecendo uma interpretação mais restrita do que constitui um “power” no contexto dos direitos dos acionistas, dando às empresas mais flexibilidade para fazer certas alterações sem aprovação de todas as classes de ações, e potencialmente limitando os direitos de acionistas sem direito a voto em certas situações.

Demonstra, inclusive, como a interpretação de um único termo legal pode ter ramificações extensas, afetando o equilíbrio de poder entre diferentes classes de acionistas e a capacidade das empresas de implementar mudanças em sua estrutura de governança.

A demanda da Activision Blizzard, Inc. Section 220 Litigation (2024) surgiu no contexto da aquisição bilionária da Activision Blizzard pela Microsoft, uma das maiores transações na história da indústria de jogos eletrônicos. Este caso levantou questões fundamentais sobre a diligência do conselho de administração e a importância da linguagem clara nos processos de governança corporativa. O conselho da Activision aprovou um rascunho incompleto do acordo de fusão com a Microsoft, que continha omissões significativas, o que gerou críticas severas da corte. A decisão enfatizou que a aprovação de um rascunho incompleto em uma transação dessa magnitude representa uma falha significativa no cumprimento dos deveres fiduciários dos conselheiros.

Documentos corporativos

A linguagem clara no Direito Societário não se refere apenas à interpretação de termos individuais, mas também à apresentação completa e precisa de informações em documentos corporativos. A mensagem é inequívoca: a diligência não é negociável, independentemente do tamanho ou da reputação das empresas envolvidas. Reforça a noção de que a governança corporativa eficaz vai além do cumprimento formal de regras e procedimentos. Ela exige um compromisso genuíno com a diligência, a transparência e a proteção dos interesses dos acionistas, manifestado através de uma linguagem clara, precisa e completa em todos os documentos corporativos relevantes.

O julgamento de The Williams Companies Stockholder Litigation (2021) envolveu a adoção de uma “poison pill” (medida defensiva que dificulta aquisições hostis, geralmente dando aos acionistas existentes o direito de comprar ações adicionais a um desconto) pela Williams Companies durante a volatilidade do mercado causada pela pandemia de Covid-19. O plano era excepcionalmente restritivo, com um gatilho baixo de 5% (significando que seria ativado se um acionista adquirisse 5% ou mais das ações, bem abaixo do padrão usual), definições amplas de “atuação em conjunto” e limitadas de “investidor passivo”.

A Corte de Chancelaria de Delaware considerou que os termos do plano eram excessivamente amplos e vagos, potencialmente englobando atividades legítimas dos acionistas, e desproporcional à ameaça alegada, resultando na sua invalidação. Esta decisão estabeleceu limites mais claros para “poison pills”, mesmo em tempos de crise, enfatizando a necessidade de equilibrar proteção corporativa com direitos dos acionistas. Reafirma, ainda, a disposição dos tribunais de Delaware em examinar minuciosamente as medidas defensivas corporativas, aplicando um escrutínio rigoroso à linguagem e à estrutura dessas medidas. Ao fazê-lo, a corte demonstrou que a precisão linguística e a proporcionalidade não são apenas questões de forma, mas elementos essenciais para a validade legal de tais medidas.

Estratégia

As decisões de Delaware oferecem lições relevantes para o aprimoramento do Direito Societário, destacando a necessidade de precisão linguística em todos os documentos corporativos, desde contratos até atas de reunião dos órgãos da governança. É fundamental promover clareza e concisão na redação legal, evitando a verbosidade excessiva comum na tradição jurídica brasileira. Além disso, deve-se garantir uma diligência rigorosa nos processos de aprovação corporativa. É igualmente importante manter um equilíbrio cuidadoso entre a proteção corporativa e os direitos dos acionistas, mesmo em tempos de crise. Por fim, deve-se prestar atenção às nuances linguísticas em diferentes contextos legais, especialmente em transações internacionais.

Para advogados e executivos brasileiros, adaptar-se a esses padrões não é apenas uma questão de conformidade legal, mas uma oportunidade de elevar a prática do Direito Societário no país. Deve-se entender que a governança corporativa no século 21 exige uma compreensão profunda das nuances linguísticas que podem fazer ou quebrar um negócio.

Sendo assim, a diligência na revisão e aprovação de documentos corporativos deve ser vista não como um fardo, mas como uma parte integral da estratégia de negócios e gestão de riscos.


[1] Seção 242(b)(2) do Delaware General Corporation Law (DGCL), que diz em parte:

“The holders of the outstanding shares of a class shall be entitled to vote as a class upon a proposed amendment, whether or not entitled to vote thereon by the certificate of incorporation, if the amendment would increase or decrease the aggregate number of authorized shares of such class, increase or decrease the par value of the shares of such class, or alter or change the powers, preferences, or special rights of the shares of such class so as to affect them adversely”.

Em tradução livre:

“Os detentores das ações em circulação de uma classe terão direito a votar como uma classe sobre uma emenda proposta, tenham ou não direito a voto conforme o certificado de incorporação, se a emenda aumentar ou diminuir o número total de ações autorizadas dessa classe, aumentar ou diminuir o valor nominal das ações dessa classe, ou alterar ou modificar os poderes, preferências ou direitos especiais das ações dessa classe de modo a afetá-las adversamente.”

Disponível em: https://delcode.delaware.gov/title8/c001/sc08/index.html. Consultado em: 06 jan 2025.

O post A linguagem como pilar do Direito Societário: lições de Delaware apareceu primeiro em Consultor Jurídico.

Corrupção de parte dos arquivos digitais impede seu uso como prova no processo penal

O processo aponta a ocorrência de falha na obtenção de parte dos arquivos digitais colhidos em busca e apreensão, os quais não foram disponibilizados em sua integralidade à defesa.

A corrupção de parte dos arquivos digitais compromete a sua integralidade e inviabiliza a sua utilização no processo penal. Para a Quinta Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ), provas desse tipo precisam ser completas e íntegras para admissão em juízo.

Com esse entendimento, o colegiado declarou inadmissíveis os arquivos digitais usados pelo Ministério Público de São Paulo (MPSP) em uma denúncia de fraude fiscal contra empresas farmacêuticas e determinou que eles sejam excluídos do processo, bem como as demais provas decorrentes. Com isso, o juízo de primeiro grau deverá analisar se as provas remanescentes sustentam o recebimento da denúncia.

Segundo o processo, houve falha na obtenção de parte dos arquivos digitais colhidos em busca e apreensão, os quais não foram disponibilizados em sua integralidade à defesa. O juízo de primeiro grau e o tribunal paulista indeferiram o pedido para a produção de provas adicionais, cujo objetivo seria esclarecer a confiabilidade e a integridade desses dados eletrônicos.

Ao STJ, a defesa alegou que o HD corrompido não foi apresentado em juízo, não tendo sido possível verificar se os arquivos disponibilizados pelo MPSP são os mesmos que lá estavam. Do mesmo modo, segundo a defesa, não houve comprovação de qual erro técnico corrompeu parte dos arquivos, nem do momento em que isso aconteceu, o que comprometeria a higidez de todo o material apreendido.

Não é possível usar provas incompletas na acusação criminal

O autor do voto que prevaleceu no julgamento, ministro Ribeiro Dantas, ponderou que seria necessário comparar as hashes dos arquivos disponibilizados à defesa em nuvem com as hashes daqueles constantes nos HDs de origem e no “HD do fisco”, no qual foram armazenados. Se idênticos os códigos, afirmou, seria possível concluir que os arquivos constantes nesses suportes são também idênticos.

“Como a acusação e o juízo de origem se recusaram a adotar esse procedimento, há um prejuízo concreto à confiabilidade da prova, porque não sabemos se os arquivos são, de fato, os mesmos”, disse.

No caso em análise, o ministro apontou um problema ainda maior: o Ministério Público, o juízo de primeiro grau e o TJSP reconheceram que parte do material apreendido é inacessível, porque seus arquivos foram corrompidos por algum tipo de erro, que se acredita ter acontecido no momento da extração dos dados na busca e apreensão.

Defesa deve ter acesso às provas em sua integralidade

“Todos os agentes processuais reconhecem que a defesa não tem acesso à integralidade do material, pois parte dos arquivos foi irremediavelmente perdida, por algum erro desconhecido. Não se sabe qual parte dos arquivos é essa, se ela fomentaria uma elucidação melhor dos fatos ou mesmo se ela corroboraria alguma linha fática defensiva. Por exclusiva responsabilidade do Estado, essa informação se perdeu, e não há como acessá-la”, verificou Ribeiro Dantas.

Para o ministro, o Estado não pode se contentar, na gestão da prova penal, em apenas afirmar depois de anos que aconteceu “algum tipo de erro”, sem averiguar o que efetivamente ocorreu, e ainda utilizar as provas incompletas para sustentar uma acusação criminal.

Ribeiro Dantas lembrou que a Sexta Turma, no HC 160.662, julgou caso semelhante, no qual a acusação perdeu parte dos arquivos de uma interceptação eletrônica e não pôde disponibilizar todo o material à defesa. Na ocasião, o colegiado declarou a inadmissibilidade de todos os diálogos interceptados, por estarem incompletos.

O número deste processo não é divulgado em razão de segredo judicial.

Fonte: STJ

Cadê a regulação dos vídeos sob demanda?

Há mais de seis anos havia uma forte reivindicação clamando pela regulação urgente e imediata do video on demand (VoD)pois o que se alegava era um enorme atraso por parte da agência reguladora para promover o adequado tratamento do tema. Veja-se que ainda naquele ano de 2018, a receita de serviços de streaming transmitidos pelo sistema over the top (OTT) ultrapassava US$ 56,17 bilhões, o que já apontava o crescimento vertiginoso desse modelo de negócio, algo que veio a se concretizar em 2024, com receita mundial batendo a casa dos US$ 182,40 bilhões [1], demonstrando que, passados seis anos, os números mais que triplicaram.

Nesse sentido alguns aspectos precisam ser devidamente explanados para que o leitor possa compreender o panorama da regulação do vídeo por demanda e ter uma leitura mais assertiva em consonância com a conjuntura dos fatos no seu devido tempo.

Mas antes de iniciar com as explanações, vale dizer que este artigo não visa discutir as motivações políticas ou ideológicas pelas quais se pleiteava efusivamente a atuação estatal efetiva naquele momento em especial, inclusive por parte dos próprios servidores da agência reguladora. O objetivo é simplesmente expor os acontecimentos de modo a demonstrar as razões pelas quais há de se constatar que a situação atual é muito mais preocupante.

Inicialmente, cumpre rememorarmos que, entre os anos de 2017 e 2018, estava em curso uma proposta para alterar a MP 2.228/2001, especificamente os dispositivos que tratam da tributação da Contribuição para o Desenvolvimento da Indústria Cinematográfica Nacional (Condecine) para fazer a inclusão da então denominada “Condecine VoD” que estava sendo discutida tanto pelos atores do mercado como pelas instituições governamentais no âmbito do Conselho Superior de Cinema [2].

Naquela época, pairava uma situação de grave insegurança jurídica sobre o mercado regulado, porquanto se questionava a legalidade e a constitucionalidade das instruções normativas da agência, que instituíam tributo por meio de ato normativo infralegal [3].

Cobrança de tributo pela Ancine

Em 2012, a Ancine decidiu inserir a cobrança de tributo por mecanismo infralegal mediante a realização de alterações nas instruções normativas 95, 104 e 105, introduzindo o segmento de mercado de vídeo por demanda na rubrica “outros mercados” dentro do espectro de incidência da Condecine Título.

Acontece que o fato gerador da Condecine Título não está previsto somente no artigo 32 da MP 2.228-1/2001. Ele é complementado pelo artigo 33. Como é cediço, a regra matriz da norma jurídica tributária nos dizeres do professor Paulo de Barros Carvalho é composta pelos critérios do antecedente e consequente. De modo que o antecedente da norma jurídica tributária formada pelos elementos: pessoal, material, temporal e espacial [4].

Portanto, quando o legislador elenca no artigo 32 da MP 2.228-1/2001 o rol de verbos (ações) praticadas pelos contribuintes para uma determinada conduta passível de tributação seguida da enumeração dos segmentos de mercado aposta no artigo 33 da MP 2.228-1/2001, significa dizer que o artigo 32 contém o “verbo” e o artigo 33 o seu devido complemento. Ambos, compõem assim o elemento material do antecedente da norma jurídica tributária.

Dessa maneira, o fato gerador tributário sujeita-se, nos dizeres do professor Luís Cesar Souza de Queiroz, ao princípio da legalidade materialmente qualificada [5]. De modo que a instituição de tributos pela introdução de novo fato gerador jurídico tributário deve ser realizado mediante lei formal, em respeito aos preceitos constitucionais dos artigos 149, § 4º e 150, I da Constituição e jamais por mera instrução normativa.

É bem verdade que existem outras razões pelas quais essa infração regulatória perpetrada por esses atos normativos infralegais é eivada de inconstitucionalidade, mas estes já foram objeto de diversos artigos científicos, bem como do meu livro Condecine e Poder Regulamentar. Portanto, não vale aprofundar essas questões já demonstradas e discutidas.

Conselho Superior de Cinema

No ano de 2019 foi apresentado um detalhamento durante a Reunião de Diretoria Colegiada nº 732, pela Superintendência de Registro da Ancine (SRE) acerca da quantidade de Certificados de Produtos Brasileiros (CPBs) e Certificados de Registro de Títulos (CRTs) emitidos no período de 2012 a 2019, evidencia-se o comportamento dos agentes regulados desde antes da criação da modalidade de tributação infralegal, até o momento em que se iniciaram as discussões sobre a Condecine VOD no âmbito do Conselho Superior de Cinema.

Dessa maneira, constatou-se que a rubrica do segmento denominado “outros mercados” sofreu um aumento significativo de 143% na arrecadação no final de 2015. Porém, a partir de 2017, quando começaram os debates no âmbito do Conselho Superior de Cinema, fica aparente o seu declínio acentuado, o que demonstra o retrato da insegurança jurídica [6].

Assim, após a aprovação de uma nova matriz para a tributação da Condecine no âmbito do vídeo por demanda ainda no ano de 2018 com as suas diretrizes e premissas, foram iniciadas as tratativas para a elaboração do texto legal e a agência reguladora acompanhava o desenrolar desse procedimento para se posicionar.

Nada mais natural do que aguardar um desenlace legislativo advindo do próprio Congresso Nacional ou até mesmo pela via de uma Medida Provisória para solucionar o imbróglio, dar segurança jurídica aos agentes de mercado e permitir o desempenho seguro da atividade regulatória e fiscalizatória por parte da Ancine.

Mudança de governo e outras prioridades

Porém, com a mudança de governo em 2019, a Presidência da República passa a ter outras prioridades. E essa matriz previamente discutida e trabalhada no âmbito do Conselho Superior de Cinema e dos agentes de mercado não segue o seu curso para aprovação.

Em vista disso, é de se constatar que, após o final do primeiro ano desse novo governo, em 2020, já era plenamente possível enxergar de modo mais claro que a regra matriz previamente trabalhada e discutida com os setores regulados não teria maiores avanços.

Nesse sentido, era imperioso construir uma nova solução para o passivo tributário que ia aumentando gradativamente com a inércia do órgão regulador. O que não foi feito!

Consequentemente, acumularam-se passivos tributários, e a situação de grave insegurança jurídica permaneceu até que em 15 de junho de 2021, com o advento da Lei nº 14.173, é inserido na MP 2.228-1/2001 o artigo 33-A com os seguintes dizeres: “Para efeito de interpretação da alínea e do inciso I do caput do art. 33 desta Medida Provisória, a oferta de vídeo por demanda, independentemente da tecnologia utilizada, a partir da vigência da contribuição de que trata o inciso I do caput do art. 32 desta Medida Provisória, não se inclui na definição de ‘outros mercados’”.

Longe de solucionar a questão, a alteração legislativa inaugurou novos problemas, senão vejamos: em primeiro lugar o texto legislativo inicia com “para efeito de interpretação”, indicando que se trata de uma “lei interpretativa”. Mas ocorre que a lei interpretativa carrega consigo um verdadeiro paradoxo, pois caso essa dita “lei interpretativa” diga respeito a entendimentos anteriores já asseverados, ela nada informa (não é o caso). Por outro lado, caso constitua, efetivamente, um novo entendimento sobre a questão, ela deve ser considerada autêntica “lei nova”, devendo, portanto, respeitar os preceitos constitucionais irretroatividade e da anterioridade, consoante artigo 150, III da CRFB/1988 (parece ser o caso).

Dessa maneira, quando o legislador aduz que a interpretação de vídeo por demanda não se inclui na definição de “outros mercados” é fundamental que seja unificado um entendimento a respeito dos recolhimentos anteriores ao advento da lei nova, haja vista que os fatos geradores ocorridos antes de 15 de junho de 2021 podem ser passíveis de cobrança ou de repetição de indébito tributário, a depender da solução que seja construída. Em outras palavras, essas soluções diametralmente opostas são ainda mais ensejadoras de insegurança jurídica.

Mudança na lei não contemplou outros segmentos

De conseguinte, é de se notar que a alteração legislativa cuida tão somente do vídeo por demanda, mas ignora solenemente os demais supostos “segmentos de mercado” que haviam sido incluídos nesse “cabide” dos “outros mercados”, aposto no artigo 33, I, ‘e’ da MP 2.228-1/2001. Basta observar o § 1º do artigo 21 da IN 105 da Ancine ao dispor que “entende-se por Outros Mercados os seguintes segmentos: I. Vídeo por demanda; II. Audiovisual em transporte coletivo; e III. Audiovisual em circuito restrito”. Ora se o legislador exclui o vídeo por demanda, o que acontece com esses demais segmentos de mercado, se é que podem ser classificados como tal?

Esse fato denota uma violação frontal à isonomia, pois não aponta soluções jurídicas para modelos de negócios (ou segmentos de mercado) que se encontram em similar situação de insegurança jurídica. Perceba-se que o vídeo por demanda ocupa verdadeiro lugar de destaque, mas nem por isso os demais modelos de negócio devem ser completamente ignorados.

Além de todas essas questões relacionadas, vem agora a cereja do bolo. Lembremo-nos que inserida nas espécies de Condecine também se encontra a Condecine Remessa, que é uma modalidade de Cide a qual incidirá sobre o pagamento, o crédito, o emprego, a remessa ou a entrega, aos produtores, distribuidores ou intermediários no exterior, de importâncias relativas a rendimento decorrente da ou exploração de obras cinematográficas e videofonográficas ou por sua aquisição ou importação, a preço fixo. Consoante o disposto no §2º do artigo 33 da MP 2.228-1/01, a Condecine será determinada mediante a aplicação de alíquota de onze por cento sobre as importâncias ali referidas.

Assim, quando o legislador trata, no parágrafo único do artigo 32 da MP 2.228-1/01, acerca da incidência do tributo sobre o “rendimento decorrente da exploração de obras cinematográficas e videofonográficas ou por sua aquisição ou importação, a preço fixo”, ele não faz uma diferenciação a respeito do mecanismo tecnológico que deverá utilizar para realizar o fato imponível tributário que está positivado de maneira genérica e abstrata no enunciado prescritivo. De modo que se torna, pelo menos em tese, juridicamente possível a incidência tributária na hipótese do video on demand, ainda que essa tecnologia não tenha sido vislumbrada em 2001 com o advento da MP 2.228-1/01.

Portanto, o agente econômico que pratica, no mundo concreto, um destes verbos previstos no parágrafo único do artigo 32 da MP 2.228-1/01, consuma o fato imponível tributário descrito no artigo 32 da MP 2.228-1/01. Logo, deverá recolher, a título de Condecine, a alíquota de 11% sobre as importâncias que forem objeto da remessa ao exterior. Isto é feito de modo que os conteúdos que derem ensejo a “rendimento decorrente da exploração de obras cinematográficas e videofonográficas ou por sua aquisição ou importação, a preço fixo” são passíveis de serem tributados pela Condecine Remessa.

Condecine Título por mecanismo infralegal

Diante disso, pergunta-se: por que instituir a Condecine Título por mecanismo infralegal e, ao mesmo tempo, negligenciar a incidência tributária da Condecine Remessa? A resposta é: “não se sabe”.

Mas antes tarde do que nunca…

Após longos anos de inércia do órgão regulador e sem qualquer outra perspectiva legislativa iminente como havia em 2018/2019, de acordo com matéria publicada pelo Tela Viva em 11 de dezembro de 2024 [7], em nota técnica, o diretor da Ancine  argumenta que a cobrança da Condecine-Remessa para serviços de streaming já está prevista na legislação atual, desde que haja remessa de lucros ao exterior. Ele destaca que a Medida Provisória 2.228-1/2001, que instituiu a Condecine-Remessa, não limita a cobrança a um ambiente tecnológico específico.

Essa é a posição que defendemos longamente no livro “Condecine e Poder Regulamentar: um ensaio sobre a infração regulatória”[8].

Porém novas dúvidas surgem a respeito deste gigantesco passivo tributário que se acumula progressivamente e agora parece ter sido reconhecido pelo próprio órgão público. Esse passivo tributário está sendo fiscalizado? Ele será cobrado? Quem responde por essa inércia?

Contudo, o que mais impressiona em todo esse cenário é a ausência do senso de urgência que predominava há cerca de seis anos.

É notório que a situação evidencia uma prática regulatória que se distancia dos preceitos constitucionais e tributários, acumulando passivos significativos sem que haja uma fiscalização ou cobrança efetiva. Tal fenômeno nos remete ao clássico A Revolução dos Bichos, de George Orwell, em que os animais, inicialmente movidos por um forte senso de justiça, acabam progressivamente aceitando a opressão de uma das espécies que assume o poder e que manipulam as leis de forma a legitimar seu domínio. Sem olvidar a famosa frase de Orwell aposta na regra nº 7 que dizia que “todos os animais são iguais” e posteriormente é alterada para: “todos os animais são iguais, mas alguns animais são mais iguais que outros”.


[1] STATISTA. Video on Demand Worldwide. Chicago. 2020. Disponível em: <https://www.statista.com/outlook/dmo/digital-media/video-on-demand/worldwide>. Acesso em 03 de janeiro de 2025.

[2] Para fins de contextualização acerca da discussão do tema, entre os meses de novembro de 2017 e junho de 2018, os representantes dos segmentos de produção, distribuição, programação e difusão multiplataforma de conteúdos audiovisuais, bem como os operadores das redes de infraestrutura de telecomunicações, sob mediação dos representantes da Agência Nacional do Cinema – ANCINE e do Ministério da Cultura – MinC, fizeram diversas reuniões buscando um consenso sobre o modelo de tributação que constituiu uma matriz consolidada, a qual foi submetida aos membros do Conselho Superior do Cinema – CSC e foi aprovada por unanimidade no dia 05 de junho de 2018.

O documento final aprovado pelo Conselho Superior do Cinema foi elaborado em reunião realizada no dia 30 de maio de 2018, na ANCINE, por um grupo de trabalho composto por juristas do setor e coordenado por representantes da Agência Nacional do Cinema e do antigo Ministério da Cultura. Dessa matriz, resultou uma proposição legislativa que tramita nas casas legislativas.

[3] MARANHÃO JUNIOR, Magno de Aguiar. Condecine e Poder Regulamentar: um ensaio sobre a infração regulatória. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2021. p. 130.

[4] CARVALHO, Paulo de Barros. Curso de direito tributário. 30.ed. São Paulo: Saraiva Educação, 2019. p. 430.

[5] QUEIROZ, Luís Cesar Souza de. Interpretação e Aplicação tributárias. contribuições da hermenêutica e de teorias da argumentação. 1ª Edição, Rio de Janeiro: GZ. 2021. p. 255.

[6] MARANHÃO JUNIOR, Magno de Aguiar. Condecine e Poder Regulamentar: um ensaio sobre a infração regulatória. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2021. p. 131.

[7] LAUTERJUNG, Fernando. Para diretor da Ancine Condecine Remessa sobre serviços de streaming já está previsto na legislação atual. Tela Viva. Matéria publicada em 11 de dezembro de 2024. Acesso em 04 jan.2025.

[8] MARANHÃO JUNIOR, Magno de Aguiar. Condecine e Poder Regulamentar: um ensaio sobre a infração regulatória. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2021.

O post Cadê a regulação dos vídeos sob demanda? apareceu primeiro em Consultor Jurídico.

Comissão de Constituição e Justiça aprova projeto que valida documentos médicos digitais

A Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania (CCJ) da Câmara dos Deputados aprovou em dezembro proposta que confere validade no território nacional a todos os atos e documentos com assinatura digital e autenticidade certificada adotados pelos profissionais no âmbito da telessaúde. O texto insere dispositivo na Lei Orgânica da Saúde.

Bruno Spada/Câmara dos Deputados
Discussão e votação de propostas legislativas. Dep. Kim Kataguiri (UNIÃO - SP)
Kim Kataguiri relatou o texto na CCJ

O texto aprovado é o substitutivo da Comissão de Saúde ao Projeto de Lei 481/22, da ex-deputada Rejane Dias. O relator na CCJ, deputado Kim Kataguiri (União-SP), apresentou parecer pela constitucionalidade.

Hoje, a Lei Orgânica da Saúde já determina que os atos do profissional de saúde, quando praticados na modalidade telessaúde, terão validade em todo o País. Porém, não exige a autenticidade das assinaturas digitais que acompanham os documentos.  

O projeto tramitou em caráter conclusivo e segue para a análise do Senado.

Fonte: Câmara dos Deputados