O Uruguai está localizado estrategicamente posicionado no centro entre Brasil e Argentina, sendo o segundo menor território de um país sul-americano depois do Suriname. Com população de aproximadamente 3,4 milhões de habitantes, o Uruguai é terceiro país menos populoso da América do Sul, perdendo apenas para o Suriname e a Guiana.
O Uruguai é o único país da América do Sul que ostenta a condição de full democracy (democracia plena) de acordo com Índice de Democracia publicado pela unidade de inteligência da revista The Economist[1]. Segundo o ranking, o Uruguai é o país mais democrático da América do Sul com pontuação média de 8.66 sobre 10. Essa pontuação inclui quatro categorias: processo eleitoral e pluralismo, funcionamento do governo, participação política, cultura política e liberdades civis. Na categoria processo eleitoral e pluralismo, o Uruguai alcança impressionantes 10 pontos! Na categoria liberdades civis, recebeu 9.71, o que, novamente, impressiona.
Mas como podemos traduzir esses números?
Essas quatro categorias são decorrentes de uma cultura uruguaia de respeito a sua democracia constitucional, desde a redemocratização em 1985, assim entendida como uma democracia liberal representativa com ampla participação popular.
No início do ano de 2024, os deputados do Partido Nacional [2], de centro direita, apresentaram um projeto de lei para combater os chamados “deepfakes”, um acrônimo usado para se referir a áudios, imagens ou vídeos gerados por edição ou por meio de inteligência artificial (IA), que imitam a aparência e a voz característica de uma pessoa.
No projeto, buscaram garantir que a campanha eleitoral não seja contaminada por anúncios e notícias enganosas, e propõe penas de um a seis anos de prisão para quem gerar vídeos falsos sobre políticos ou pré-candidatos presidenciais de diferentes partidos.
Na véspera das eleições presidenciais, os partidos políticos uruguaios firmaram com as principais lideranças de imprensa um pacto onde se comprometeram a “não gerar ou promover notícias falsas ou campanhas de desinformação em detrimento de oponentes políticos”[3].
As eleições presidenciais de 2024, tanto no primeiro, como no segundo turno, transcorreram sem intercorrências relevantes, tendo sido Yamandú Orsi, da Frente Ampla, eleito no segundo turno, por pequena margem de diferença em relação ao candidato do Partido Nacional, Álvaro Delgado.
No último mês, além da eleição presidencial, os uruguaios também foram as urnas para decidir duas questões: uma relativa a direitos sociais sobre a forma de previdência social, em plebiscito impulsionado pela central única sindical (PIT-CNT) [4], onde se propunha a redução da idade mínima para aposentadoria de 65 para 60 anos e a abolição da previdência privada, alterando o art. 67 da Constituição; e outra relativa às liberdades individuais, em plebiscito sobre a autorização de operações policiais nas residências durante a noite, modificando o artigo 11 da Constituição. Ambos foram rejeitados.
Na forma do artigo 331 da Constituição uruguaia, uma reforma constitucional pode ser iniciada por participação popular direta, desde que seja alcançado o percentual mínimo de 10% dos cidadãos, por iniciativa de dois quintos dos membros da Assembleia Geral (Poder Legislativo). Em ambos os casos, a reforma só se efetivará se alcançada a maioria absoluta em votação popular ou plebiscito.
Além disso, também podem os poderes legislativo e executivo iniciarem uma reforma constitucional, cujo projeto deve ser aprovado pela maioria absoluta dos membros da Assembleia Geral e, nesse caso, deve o poder executivo convocar uma Convenção Nacional Constituinte que deliberará sobre a reforma da Constituição e submeterá o projeto ao referendo popular.
Por fim, as leis constitucionais (ou de hierarquia constitucional) podem ser aprovadas por dois terços do total de membros de cada casa legislativa, mas para efetivamente modificarem a Constituição precisam de concordância da maioria absoluta do eleitorado, que deve ser convocado especialmente para votação das referidas leis.
Essa complexa fórmula integrada de máxima participação popular direta, em sinergia com a democracia representativa, para decidir temas estruturais da democracia constitucional uruguaia já levou a população a decidir sobre temas capitais e sensíveis como: a derrogação da lei de anistia; a independência do orçamento do Poder Judiciário; estatização da água potável; monopólio da empresa nacional de petróleo (Ancap); reformas eleitorais; reformas previdenciárias; diminuição da idade penal, entre outras.
Com os exemplos atuais e das práticas democráticas constantes, desde que o Uruguai recuperou sua democracia constitucional em meados dos anos 80 do século passado, é possível ver um processo eleitoral limpo e democrático, que garante eleições autênticas no país, associada a uma cultura de democracia e de participação popular constante na tomada de decisões políticas fundamentais.
A rejeição dos uruguaios pelo modelo de polarização e a preferência por moderação fazem o país avançar com largos passos de vantagem relativamente as liberdades civis, políticas e econômicas em relação aos demais países da região.
A título de exemplo, o Uruguai foi o primeiro país sul-americano a estabelecer o aborto legalizado e seguro, desde 2012. É o primeiro país a prever a isenção de pena no caso do chamado homicídio piedoso, quando o autor do homicídio comete o crime em razão de reiteradas súplicas da vítima, isso desde 1934. Em 2013, o Uruguai se tornou o primeiro país do mundo a legalizar e regulamentar a produção e o consumo da cannabis.
A condição de democracia plena do Uruguai é condizente com outra conquista do país: o primeiro colocado no Índice de Estado de Direito do World Justice Project [5].
Bons perdedores
Toda essa prosperidade de direitos políticos e civis faz com que o Uruguai receba ainda outro título: o de sexto país mais livre do mundo, obviamente o mais livre da América do Sul, de acordo com o Freedom in the World, da ONG americana Freedom House [6].
Com isso, lembro a música de Jorge Drexler que diz “¿quién le roba un beso a Maracaná? Uruguay nomás. Uruguay nomás…”, que faz alusão aos gritos da torcida da garra charrúa pela seleção de futebol, a celeste, quando comemora o feito histórico de ter ganhado a Copa do Mundo do Brasil em pleno Maracanã, em 1950.
Precisamos reconhecer racionalmente nossa derrota em relação aos uruguaios no futebol e na vida democrática, como um incentivo a aprimorarmos o nosso Estado Democrático de Direitos e as suas liberdades de forma plena na América do Sul. Quem sabe assim, poderíamos deixar essa derrota de 7×1 para traz, dessa vez não contra a Alemanha, mas contra o Uruguai, que nos dá uma goleada de democracia constitucional na prática. Até que consigamos, vamos seguir a música orgulhosa da torcida e dizer: “Uruguay nomás, Uruguay nomás”! … é o Uruguai e nenhum mais [7].
[6] De acordo com os parâmetros o Uruguai alcança 96 pontos sobre 100 no medidor de respeito as liberdades https://freedomhouse.org/
[7] “Uruguai nomás” é uma expressão uruguaia que significa “Uruguai e nada mais” ou “Vamos, Uruguai!”. É usada para celebrar vitórias, conquistas e outras alegrias, e é considerada um ícone nacional. A expressão é uma abreviação de “Uruguai no más”, que por sua vez é uma abreviação de “Uruguai y nada más”.
A Comissão de Administração e Serviço Público da Câmara dos Deputados aprovou projeto de lei que proíbe ocupantes de cargo ou emprego no governo federal de manter contas bancárias em “paraísos fiscais” – países ou regiões autônomas com pouca ou nenhuma cobrança de tributo e falta de transparência em relação aos titulares dos ativos. A medida altera a Lei de Conflito de Interesses.
Sâmia Bomfim: atos que configuram conflito de interesses fragilizam a democracia – Mário Agra/Câmara dos Deputados
O texto também considera conflito de interesse o servidor ou empregado público possuir investimentos cujo valor ou cotação possa ser afetado por política ou decisão sobre a qual tenha informação privilegiada. Essa prática poderá levar o agente público a responder por improbidade administrativa.
O texto aprovado foi o substitutivo da relatora, deputada Sâmia Bomfim (Psol-SP), ao Projeto de Lei 3433/21, do deputado Ivan Valente (Psol-SP) e apensados (PLs 3454/21, 3455/21 e 3456/21). Sâmia reuniu dispositivos das quatro propostas em único texto.
“A prática de atos que configuram conflito de interesses não apenas fere os princípios da moralidade e da impessoalidade, como também mina a confiança da sociedade nas instituições, corroendo os pilares da democracia”, afirmou a relatora.
Próximos passos O projeto será analisado, em caráter conclusivo, pela Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania.
Para virar lei, o texto precisa ser aprovado pela Câmara e pelo Senado.
O Supremo Tribunal Federal (STF) inicia, nesta quarta-feira (27), o julgamento de três ações que tratam da responsabilidade de provedores de internet na remoção de conteúdos com desinformação e disseminação de discurso de ódio de forma extrajudicial, sem determinação expressa pela Justiça.
A Corte vai julgar ações relatadas pelos ministros Luiz Fux, Edson Fachin e Dias Toffoli. Oo processos foram liberados para análise em agosto deste ano.
No caso da ação relatada por Dias Toffoli, o tribunal julgará a constitucionalidade da regra do Marco Civil da Internet (Lei 12.965/2014) que exige ordem judicial prévia para responsabilização dos provedores por atos ilícitos.
No processo relatado pelo ministro Fux, o STF vai discutir se uma empresa que hospeda site na internet deve fiscalizar conteúdos ofensivos e retirá-los do ar sem intervenção judicial.
A ação relatada por Fachin analisa a legalidade do bloqueio do aplicativo de mensagens WhatsApp por decisões judiciais.
No ano passado, o Supremo realizou audiência pública para discutir as regras do Marco Civil da Internet.
O objetivo foi ouvir especialistas e representantes do setor público e da sociedade civil para obter informações técnicas, econômicas e jurídicas antes de julgar a questão.
Corte julga a partir desta quarta três ações que envolvem o MCI e discute futuro de artigo sobre responsabilização das plataformas digitais
O Supremo Tribunal Federal (STF) começa a julgar nesta quarta-feira (27/11) o conjunto de ações que discutem a constitucionalidade do Marco Civil da Internet, especialmente de seu artigo 19. O dispositivo prevê que as plataformas, provedores de internet e sites só podem ser responsabilizados civilmente caso não removam o conteúdo ilícito após ordem judicial.
O Marco Civil da Internet, sancionado em 2014, disciplina o uso da Internet no Brasil. A lei foi concebida para estabelecer deveres e direitos de plataformas digitais, provedores de internet e usuários. No entanto, apesar de avanços significativos, uma década depois, parte da legislação enfrenta questionamentos quanto à responsabilidade de plataformas por conteúdo ilícito de terceiros.
Entre os principais, estão as alegações de que a evolução tecnológica e o crescimento da audiência digital colocam à prova a sua adequação frente ao cenário atual. Nesse contexto, uma década depois, o Supremo discute a eficácia da legislação diante de um cenário tecnológico muito mais complexo.
Ações pautadas
Estão na pauta do STF três ações, o recurso extraordinário 1.037.396, (tema 987) discute a constitucionalidade do artigo 19 do Marco Civil da Internet, de relatoria do ministro Dias Toffoli, o RE 1.057.258 (tema 933), que também trata de moderação de conteúdo, refere-se a fatos anteriores à edição do Marco Civil da Internet, de relatoria do ministro Luiz Fux, e a ADPF 403, de relatoria do ministro Edson Fachin.
Esta ADPF foi ajuizada por conta das decisões judiciais em diferentes tribunais de Justiça brasileiros que determinaram a suspensão do aplicativo WhatsApp, após a empresa informar que não poderia fornecer os dados requisitados pelos magistrados por conta da segurança da criptografia. Em agosto deste ano, os três relatores pediram ao ministro Luís Roberto Barroso, presidente da Casa, para que as pautasse juntas.
Em setembro, a Advocacia-Geral da União (AGU) pediu ao Supremo para ingressar como amicus curiae nos dois recursos extraordinários que estão em pauta. À época, a AGU defendeu que, “em casos específicos, há a possibilidade de as plataformas digitais serem responsabilizadas, independentemente de haver ordem judicial prévia para a remoção do conteúdo, considerando o dever de precaução que devem ter as empresas, por iniciativa própria ou por provocação do interessado”.
“Não é razoável que empresas que lucram com a disseminação de desinformação permaneçam isentas de responsabilidade legal no que tange à moderação de conteúdo. Essas plataformas desempenham um papel crucial na veiculação de informações corretas e na proteção da sociedade contra falsidades prejudiciais. A ausência de uma obrigação de diligência nesse processo permite que a desinformação se propague de forma descontrolada, comprometendo a confiança pública e causando danos consideráveis”, ressalta trecho do documento enviado ao STF.
O caput do artigo 19 tem a seguinte redação: “Com o intuito de assegurar a liberdade de expressão e impedir a censura, o provedor de aplicações de internet somente poderá ser responsabilizado civilmente por danos decorrentes de conteúdo gerado por terceiros se, após ordem judicial específica, não tomar as providências para, no âmbito e nos limites técnicos do seu serviço e dentro do prazo assinalado, tornar indisponível o conteúdo apontado como infringente, ressalvadas as disposições legais em contrário”.
Liberdade de expressão
“O artigo 19, hoje, é a regra básica a respeito da responsabilidade das plataformas”, explica o advogado especialista em direito digital Marcelo Crespo, coordenador do curso de direito da ESPM. A norma se relaciona diretamente com a licitude de conteúdo na internet. Crespo, no entanto, considera que o dispositivo tende a ser usado pelas empresas como meio de se esquivar de responsabilizações. “O artigo 19 é bastante conveniente para as empresas e plataformas de tecnologia”, afirma.
Segundo ele, por causa da redação do dispositivo, “existe uma narrativa” de se falar que o artigo 19 quer proteger a liberdade de expressão, embora, para ele, esse não seja exatamente o interesse das empresas com a não responsabilização dos conteúdos.. “As plataformas têm interesses próprios em ganhar dinheiro com alguns conteúdos, inclusive com fake news, porque elas geram engajamento, geram receita”, declara.
Antes do Marco Civil da Internet, diz Crespo, havia uma relação “mais equilibrada” entre as empresas e as vítimas online, já que caso alguém se sentisse ofendido por um conteúdo publicado na internet, não era necessário, inicialmente, recorrer à Justiça. O procedimento comum era realizar uma notificação extrajudicial, exigindo que o conteúdo fosse retirado do ar por causar ofensa.
“Nesse cenário, as plataformas não tinham obrigação legal de remover o material, mas o processo era, de certa forma, mais equilibrado. Por um lado, a plataforma poderia optar por não remover o conteúdo; por outro, ela não gostaria de ter que ficar respondendo várias ações judiciais”, declara.
Um dos principais questionamentos sobre a moderação de conteúdos pelas plataformas é o risco de censura. O advogado Renato Opice Blum, do escritório Opice Blum, rebate as críticas que equiparam a remoção de discursos de ódio à restrição da liberdade de expressão.
“Bloquear discurso de ódio é censura? Aí, vamos para o conceito de censura que está ligado diretamente à liberdade de expressão. […] Quando se tem identificação de discurso de ódio, não é liberdade de expressão, o propósito é outro. Você não quer falar, você quer atacar”, afirmou o advogado.
No entanto, ele reconhece que os algoritmos das plataformas podem cometer erros ao remover conteúdos legítimos. Opice Blum refuta a ideia de que os algoritmos tenham vieses intencionais, os atribuindo a falhas de programação.
Apoio ao artigo 19
Por outro lado, estudo conduzido pelo Reglab, think tank especializado em mídia e tecnologia, mostrou que 48% das manifestações coletadas defenderam a manutenção do artigo, argumentando que ele equilibra a liberdade de expressão e responsabilidade das plataformas. O apoio veio de setores diversos, incluindo organizações que tradicionalmente divergem das grandes empresas de tecnologia, como algumas ONGs e instituições acadêmicas. A academia frequentemente adota posições críticas às big techs, especialmente em questões relacionadas à privacidade e regulação de mercado. Entidades da sociedade civil e academia representaram 50% da amostra, com mais da metade desses se manifestando a favor da constitucionalidade (59%).
A análise indica que os argumentos favoráveis à constitucionalidade “apresentaram uma variedade argumentativa maior que outras posições. Embora essa multiplicidade também possa refletir a necessidade de uma defesa mais robusta, isso também pode sugerir que o art. 19 possui um caráter mais estruturante, adaptável e democrático”.
Entre os argumentos mais citados pelos grupos que apoiam a constitucionalidade, estão a preservação da liberdade de expressão e o estímulo à inovação tecnológica. Para empresas, como afirmou a Meta em sua manifestação, o artigo reduz riscos jurídicos e mantém custos operacionais previsíveis. Já a sociedade civil e a academia destacam que o modelo atual protege direitos fundamentais e previne a censura prévia.
“Não é correto afirmar que o artigo 19 serve como escudo para provedores evitarem remoções de conteúdos ilegais. Ele apenas estabelece regras para garantir a proporcionalidade e evitar a censura prévia”, afirmou o Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (Idec) em manifestação. Para defensores da constitucionalidade, a decisão judicial como pré-requisito para a remoção de conteúdos é apontada como um mecanismo que respeita o devido processo legal e garante a liberdade de expressão.Os processos são: Recurso Extraordinário (RE) 1037396 (Tema 987 da repercussão geral), Recursos Extraordinários (RE) 1057258 (Tema 533 da repercussão geral) e Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 403.
Segundo episódio da nova temporada do podcast contextualiza como a Constituição foi recebida pelo Supremo
Até o início da década 1990, o Supremo Tribunal Federal (STF) era conhecido por seguir o escrito. Manter o que já estava posto. Foi por isso que um caso sobre licença maternidade parecia simples, afinal, a legislação era clara sobre o direito da mãe. No entanto, uma pergunta reversa a esse caso ilustra como o Supremo foi ganhando cada vez mais poderes e protagonismo. O segundo episódio da nova temporada do Paredes São de Vidro detalha o contexto da época, em que a Corte recebia uma nova Constituição.
O podcast do JOTA que conta os bastidores do STF relembra neste novo episódio que o Supremo costumava se isentar e deixar a função de preencher lacunas para o Congresso Nacional. Quem ajuda a fazer a conexão entre o momento que o Supremo vivia e a sua transição é o ministro aposentado Otávio Gallotti, relator do processo de Cláudia* — uma mãe que brigava pelo direito à licença-maternidade para cuidar de uma filha adotada.
As regras eram claras: a Constituição dizia que quem tem direito à licença-maternidade é a mãe que gestou o filho. Cláudia não havia gestado a criança, logo, não teria direito à licença. Mas e o direito da criança? “Pensar em novas soluções para além do texto, ou em novas interpretações diante de novos problemas, fazer uma leitura mais expansiva da lei ou até mesmo interpretar a lei para fazer a história avançar, como costuma dizer o ministro Luís Roberto Barroso – nada disso era a cara de Gallotti”, relata no episódio o diretor de Conteúdo do JOTA, Felipe Recondo, que apresenta o podcast.
E Gallotti não estava sozinho nessa. Com a Constituição de 1988 havia ficado mais fácil recorrer ao Supremo, e a sociedade esperava uma Corte mais avançada para defender a Constituição e dar efetividade a este novo plano de direitos e de garantias. Os ministros daquela composição, porém, logo nos primeiros julgamentos não pareciam dispostos a aceitar as atribuições que a Assembleia Constituinte havia oferecido.
Como isso mudou? Este segundo episódio da nova temporada do Paredes São de Vidro traz o contexto para responder a essa pergunta. Além disso, mostra como o caso de Cláudia entra nesse cenário.
O ministro Gilmar Mendes, do Supremo Tribunal Federal (STF), decidiu prorrogar os trabalhos da audiência de conciliação sobre o marco temporal para demarcação de terras indígenas para 28 de fevereiro de 2025. As reuniões estavam previstas para terminar em 18 de dezembro.
Em agosto deste ano, a Articulação dos Povos Indígenas (Apib), principal entidade que atua na defesa dos indígenas, se retirou da conciliação. A entidade entendeu que os direitos dos indígenas são inegociáveis e não há paridade no debate. No ano passado, o plenário do Supremo decidiu a favor dos indígenas e considerou o marco inconstitucional.
Após a Apib deixar a conciliação, Mendes decidiu manter os debates mesmo sem a presença dos indígenas. Segundo o ministro, “nenhuma parte envolvida na discussão pode paralisar o andamento dos trabalhos”.
Pela tese do marco temporal, os indígenas somente têm direito às terras que estavam em sua posse no dia 5 de outubro de 1988, data da promulgação da Constituição Federal, ou que estavam em disputa judicial na época.
Conciliação
A audiência foi convocada pelo ministro Gilmar Mendes, relator das ações protocoladas pelo PL, o PP e o Republicanos para manter a validade do projeto de lei que reconheceu o marco e de processos nos quais entidades que representam os indígenas e partidos governistas contestam a constitucionalidade da tese.
Além de levar o caso para conciliação, Mendes negou pedido de entidades para suspender a deliberação do Congresso que validou o marco, decisão que desagradou os indígenas. As reuniões estavam previstas para seguir até 18 de dezembro deste ano.
Na prática, a realização da audiência impede a nova decisão da Corte sobre a questão e permite que o Congresso ganhe tempo para aprovar uma Proposta de Emenda Constitucional (PEC) para confirmar a tese do marco na Constituição.
Em dezembro do ano passado, o Congresso Nacional derrubou o veto do presidente Luiz Inácio Lula da Silva ao projeto de lei que validou o marco. Em setembro, antes da decisão dos parlamentares, o Supremo decidiu contra o marco. A decisão da Corte foi levada em conta pela equipe jurídica do Palácio do Planalto para justificar o veto presidencial.
O Conselho Nacional de Justiça (CNJ) abre neste sábado (23) a 2ª Semana Nacional da Regularização Fundiária – Solo Seguro Amazonas, em Manaus. O programa está na segunda edição e promove o acesso regular à terra nos nove estados que compõem a Amazônia Legal.
A cerimônia de abertura do evento será realizada hoje, às 10h, no Teatro Amazonas e contará com a presença do corregedor-nacional de Justiça, Mauro Campbell Marques, o governador, Wilson Lima, e a presidente do Tribunal de Justiça do Amazonas (TJAM), desembargadora Nélia Caminha Jorge.
As ações de entrega dos títulos ocorrerão entre os dias 25 e 29 de novembro em todos os estados. Serão entregues títulos de regularização fundiária no Amazonas (2,7 mil), Mato Grosso (2 mil), Maranhão (4,7 mil), Pará (7,7 mil), Tocantins (5 mil) e no Acre (721).
Durante o evento, também serão realizadas audiências públicas, seminários e cursos de treinamento sobre o tema.
O Programa Permanente de Regularização Fundiária com foco na Amazônia foi criado pelo CNJ no ano passado e tem objetivo de dar celeridade às medidas de regularização urbana e rural, além da identificação de áreas destinadas à proteção ambiental.
Recentemente, foi divulgada a lista de ganhadores do prêmio Nobel de 2024, seguida pelo habitual alvoroço decorrente da enxurrada de análises, considerações e curiosidades tanto sobre as pesquisas quanto sobre os pesquisadores laureados. É navegando nesse mar de notícias, que o público leigo em geral tem a possibilidade de ter algum tipo de contato com os complexos estudos premiados que trazem relevantes contribuições a todos nós que compomos uma sociedade não apenas de pessoas, mas de ideias.
Quando o perfil dos pesquisadores e o conteúdo de algumas das pesquisas premiadas são analisadas conjuntamente, um fenômeno no mínimo curioso se destaca, abrindo possibilidades de reflexão sobre os rumos do sistema de justiça. Para a compreensão desse fenômeno, deve ser assinalado, primeiramente, que o prêmio Nobel de economia foi destinado para um trio de pesquisadores que apontaram, através de estudos da história econômica, o quanto instituições públicas fortalecidas contribuem para o desenvolvimento do bem-estar social e riqueza dos países.
O prêmio Nobel de química, por sua vez, foi destinado a pesquisadores que se dedicaram à decifração da estrutura de proteínas, cujos resultados somente foram possíveis de serem alcançados em razão do emprego de tecnologias de inteligência artificial. Já o Nobel de física premiou justamente estudos considerados fundacionais desse tipo de tecnologia.
Chama atenção a informação de que os pesquisadores dos Nobéis de química e física ocupam posições de liderança em grandes conglomerados empresariais de tecnologia. Esta é, inclusive, a primeira vez que o prêmio é concedido a pesquisadores explicitamente vinculados a corporações privadas, e não a centros acadêmicos de excelência, como costumava ser habitual.
Inclusive, é digno de registro o fato de que nenhum laboratório acadêmico ou instituição pública de pesquisa possui hoje capacidades operacionais para o desenvolvimento das tecnologias de inteligência artificial no nível em que as Big Techs vêm desenvolvendo. O que hoje a academia e as instituições fazem são as aplicações de “segunda camada”, se dedicando à análise de problemas e questões sobre o uso da tecnologia ou no desenvolvimento de algumas funcionalidades ao que já existe, mas sem condições de competirem no ecossistema de desenvolvimento da IA.
Escada de Escher
O fenômeno que emerge a partir de tais premiações é uma espécie de escada de Escher, um jogo óptico ilusionista onde aclive e declive se alternam, fazendo com que subida e descida se apresentem ao mesmo tempo, na mesma figura. Por um lado, temos a indicação de que o fortalecimento de instituições públicas é o caminho a ser trilhado para o aprimoramento de democracias e a reafirmação de valores civilizatórios.
Por outro lado, a premiação de pesquisadores-CEOs nos indica que o que, de fato, se fortalece e se agiganta é o poder dos grandes conglomerados tecnológicos. E tal crescimento transborda aspectos meramente econômicos, implicando na proporcional expansão de seus poderes políticos, sociais, bem como de suas capacidades de produção e controle sobre a circulação de informações e conhecimentos. Assim, assistimos tais conglomerados operarem como espécies de buracos negros, que capturam tudo aquilo situado em seu entorno para seus centros de gravidade, promovendo um verdadeiro deslocamento do eixo ontológico dos modos de vida e da própria realidade.
No que tange ao estudo laureado que enfatiza a correlação dos níveis de qualidade de vida e o grau de fortalecimento de instituições públicas, não há dúvida de que tais conclusões englobam as instituições de acesso e promoção de justiça. Isso porque, a dimensão protetiva do Direito é um elemento determinante para a vida de qualquer pessoa nas sociedades capitalistas contemporâneas, sendo que a segurança e a certeza jurídica podem ser consideradas bens de valor inestimável em razão dos níveis de dignidade que oferecem aos cidadãos em geral [1].
Mas quando as decisões vinculativas com força de autoridade passam a ser amplamente produzidas por tecnologias de inteligência artificial — que operam através de sistemas de linguagem mantidos pelos grandes conglomerados tecnológicos imunes a qualquer auditoria ou escrutínio público —, não são, definitivamente, as instituições do sistema de justiça que se fortalecem.
Mais do que isso, a própria concepção de justiça passa a ganhar diferentes contornos nesse novo capítulo da revolução digital promovido pelo uso massivo de tecnologias de IA, pois, para além da captura operacional das engrenagens do poder judiciário, há uma captura existencial das instâncias decisórias. E ao emergir uma nova forma de se fazer justiça, novas reflexões sobre a ideia de justiça devem também vir à tona.
Trazendo essas reflexões para o judiciário brasileiro, o que observamos de antemão é o uso massivo e incentivado das tecnologias de IA, que realmente possuem capacidades sobre-humanas no processamento de dados e identificação de padrões complexos. O discurso da eficiência ecoa enquanto os algoritmos leem quase instantaneamente incontáveis volumes de processos e elaboram intrincadas decisões judiciais que impactam diretamente a vida de inúmeras pessoas todos os dias.
E de fato, no atual estágio que a humanidade se encontra, a insurgência pura e simples contra o uso de tais tecnologias poderia ser encarada como uma espécie de ludismo anacrônico do século 21, um posicionamento sem sentido, na medida em que tenta situar o debate dois passos para trás quando o mundo já está quilômetros na frente.
Por outro lado, as reflexões que se impõem devem ir para além de questões éticas ou visões romantizadas sobre características intrinsecamente humanas que máquinas não conseguiriam alcançar. Sem dúvida há uma perspectiva ética quando informações sobre as vidas das pessoas são entregues a ferramentas tecnológicas de empresas privadas e decidem seus futuros, mas há, sobretudo, questões políticas, epistemológicas e ontológicas que merecem uma dedicada atenção dentro desse cenário.
Sobre uma suposta sensibilidade do olhar do julgador de carne e osso sobre as vidas humanas a serem decididas, basta pensarmos que esse mesmo olhar é o responsável pela atribuição de diferentes pesos ao que é dito num processo judicial, a depender da figura, se masculina ou feminina, e da cor da pele da pessoa que está falando. Em que pese a possibilidade da reprodução de vieses, é plenamente viável que tecnologias de IA sejam programadas para operarem sem levar em consideração fatores que a ecologia social humana, marcada por vieses identitários preconceituosos, acaba computando como relevantes.
Não se ignora que o uso das ferramentas de tecnologia cognitiva é uma realidade que se espraia também para outros campos do conhecimento, trazendo questões da mesma forma complexas para o centro do debate, como é o caso das obras de arte, músicas e literatura geradas por meio de sistemas de automação inteligentes. Porém, o fato de o poder judiciário ser também uma instância política, onde questões sociais complexas são levadas para sua apreciação, adiciona outras camadas de análise.
Ao solucionar conflitos, o judiciário inevitavelmente impacta as dinâmicas sociais, legitimando ou deslegitimando reivindicações, validando ou invalidando modos de vida e reafirmando ou enfraquecendo interpretações da realidade social. Portanto, muito além de um resolvedor de contendas, o judiciário possui o giz que delimita tudo aquilo que está dentro e fora do campo protetivo e legitimador do Direito.
Ainda que seja um espaço inevitavelmente captável pelos grandes interesses hegemônicos, é também um locus em que pessoas e grupos subalternizados ainda podem acessar, com perspectivas de transformações de suas realidades e, portanto, com perspectivas de transformações sociais.
Algoritmos
Por sua vez, as ferramentas de inteligência artificial funcionam principalmente por meio de algoritmos que, ao processarem dados, identificam padrões, e, a partir de tais identificações, tomam decisões ou fazem previsões. Esse processo somente é possível porque os algoritmos de IA são capazes de analisar e atribuir lógicas a estruturas complexas de dados, o que seria praticamente impossível para uma pessoa realizar de forma manual em grande escala.
Há diferentes formas de os algoritmos operarem, a depender da rotulação prévia ou não dos dados. Mas o que esses sistemas de inteligência artificial têm em comum, principalmente aqueles que se debruçam sobre dados não estruturados, isto é, não rotulados, é o fato de operarem em um modelo chamado “caixa preta”, no qual o processo de tomada de decisão ou a lógica interna do modelo não é facilmente compreendido ou acessível para os humanos. Os dados de entrada (comando) e de saída (resultado) são conhecidos, mas o processamento que permite a conexão dessas duas pontas deixa de ser cognitivamente compreensível, ainda mais para o grande público.
Nesse cenário, a premissa do sistema judicial, calcada na possibilidade do exercício do contraditório e do duplo grau de jurisdição, é inevitavelmente impactada, na medida em que os fundamentos da decisão podem tornar-se inacessíveis ao próprio julgador.
Não se ignora o fato de que as características intrinsecamente humanas podem fazer por si só com que as razões de decidir sejam inacessíveis ao julgador, na medida em que seres humanos não possuem um efetivo controle sobre os caminhos que seus processos mentais-decisórios elaboram e percorrem. Porém, em razão do dever de motivação que o julgador deve observar, deverá indicar ao menos de forma argumentativa e inteligível a linha consciente de raciocínio percorrida até a formação da sua conclusão.
Quando as decisões são geradas por algoritmos, o rastreio dessa linha pode se tornar uma tarefa inexequível para nós, humanos. Assim, não apenas as premissas do sistema de justiça, mas suas bases teóricas que se debruçam sobre possíveis formas de decisão, são afetadas.
Nesse sentido, a escola do realismo jurídico, assim como todas as correntes de teorias da decisão, precisa de urgentes atualizações. Um de seus pressupostos, calcado na ideia de que as decisões judiciais são influenciadas por fatores extrajudiciais, revela-se cada dia mais acertado, mas por razões que nenhum de seus principais pensadores cogitou sequer imaginar.
Outra de sua premissa, no sentido de que o Direito está longe de ser uma disciplina lógica e previsível, faz sentido quando a aplicação das leis depende da manipulação por mãos e mentes humanas, mas essa mesma constatação passa a ser questionável quando o sistema de justiça é colonizado por algoritmos, que estruturam e atribuem lógicas próprias no agrupamento de dados e informações.
Se não fossem suficientes as questões levantadas, ainda temos ingredientes que podem fazer a receita do estado democrático de direito desandar. A colonização dos algoritmos sobre o sistema de justiça é, na verdade, uma captura literal de suas engrenagens, que deixam de funcionar nos espaços institucionais públicos e passam a ser manejadas em espaços virtuais privados.
Importante o registro de que a revolução no consumo de IA que estamos vivenciando somente foi possível de acontecer considerando o amplo acesso e controle que os conglomerados de tecnologia possuem sobre os dados disponibilizados na internet. Vale lembrar que o sistema de publicação conhecido como World Wide Web (www) nasceu com a ideia de que qualquer pessoa poderia compartilhar conhecimento utilizando uma linguagem de publicação.
Mas aquilo que tinha aspirações de ser um bem público compartilhável, logo passou a ser sitiado e dominado por lógicas mercadológicas implementadas pelas grandes empresas de tecnologia. O que esperar então do massivo compartilhamento de dados que hoje ocorre quando processos inteiros são jogados em plataformas de tecnologias cognitivas, que retroalimentam a leitura e padronização desses mesmos dados? Mais do que problemas de violação de garantias de privacidade e intimidade, o que já é grave por si só, é a própria soberania e democracia de países que entram em cheque quando uma justiça ciborgue é formatada e passa a decidir os rumos das dinâmicas sociais.
A justiça ciborgue não veste toga, ao invés disso ela está logada em uma conta de e-mail de uma empresa privada. A justiça ciborgue também não possui como telos a promoção de ideais de justiça, pois a estrutura onde ela opera foi criada e é mantida para a persecução de apenas um único interesse: lucro.
A biopolítica de Foucault não passa de um frágil prenúncio da justiça ciborgue, pois a fusão do julgador e máquina inaugura uma pólis tecnológica não mais estruturada pela polaridade do público e do privado, na medida em que há uma transmudação dos bens públicos em privados.
O presente ensaio não pretende ser um manifesto apocalíptico, apesar de realmente estarmos assistindo o fim do mundo que as gerações nascidas no século 20 ou começo do século 21 até então conheciam. Mas a morte de um mundo velho não é o fim da história, é apenas o começo de outra. Ao tomar o “Manifesto Ciborgue”, escrito em 1985 pela filósofa estadunidense Donna Haraway, como inspiração para as presentes reflexões, é importante pontuar que a metáfora do ciborgue construída pela autora continha um grande potencial liberatório, pois, apesar de não ignorar que toda a invenção tecno-científica pode ser usada para sustentar as relações de dominação, a figura híbrida do ciborgue era, entre outras coisas, uma oportunidade para atacar o excepcionalismo humano e tudo o que ele endossa (pureza humana, racial, de gênero, etc.).
O ciborgue seria assim uma afirmação de nossas misturas, de nossa conexão e interdependência (humano-máquina-animal); uma figura facilitadora de inter-relações, múltiplos acoplamentos, agenciamentos e conexões. Em vez de ver a tecnologia como alienante, o ciborgue seria a oportunidade de ressignificação das relações de poder e das subjetividades.
Portanto, o presente ensaio consiste em primeiras reflexões sobre uma justiça ciborgue, apontando questões sensíveis que se revelam diante da colonização das IAs e Big Techs sobre as instâncias decisórias. Por outro lado, pensar quais seriam as possíveis brechas dessa nova realidade, capazes de lançar o sistema de justiça em direções mais potentes/democráticas/emancipatórias, são reflexões que também precisam acompanhar o diagnóstico mais crítico do presente cenário.
Na linha dos ensinamentos de Haraway [2], quando a ciência e a tecnologia fornecem fontes renovadas de poder, nós precisamos de fontes renovadas de análise e de ação política. Portanto, saber o que a justiça ciborgue será é uma questão radical; respondê-la é uma questão de sobrevivência.
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[1] MACCORMICK, Neil. Rhetoric and the rule of the law: a theory of legal reasoning. New York: Oxford University Press, 2005, p. 12.
[2] HARAWAY, Donna. Manifesto Ciborgue: Ciência, Tecnologia e Feminismo-Socialista no final do século XX.
A Comissão de Previdência, Assistência Social, Infância, Adolescência e Família da Câmara dos Deputados aprovou o Projeto de Lei 1608/24, que garante à mulher em situação de violência doméstica o direito de dispor dos valores depositados em conta corrente conjunta para se reacomodar em local seguro.
Ainda que brevemente, é importante distinguir a figura dos honorários de sucumbência e os honorários contratuais. Os honorários de sucumbência encontram-se previstos no artigo 85 do Código de Processo Civil e no artigo 22 [1] e artigo 23 [2] da Lei nº 8.906/94, que dispõe sobre o Estatuto da Advocacia e a Ordem dos Advogados do Brasil. Representam os valores devidos pela parte perdedora do processo ao advogado da parte vencedora, como um modo de remunerá-lo pelo serviço prestado.
Os honorários contratuais, por sua vez, são previstos no artigo 22 da Lei nº 8.906/94, e também no artigo 389 [3], 395 [4] e 404 [5] do Código Civil. Definidos em contrato, constituem os valores pagos pelo constituinte ao advogado constituído pelos serviços de advocacia prestados.
Um primeiro ponto sobre condenação em honorários em sede arbitral que não gera, ou não deveria gerar, controvérsia na doutrina é quando as partes ajustam em contrato — seja na convenção de arbitragem, no termo de arbitragem, ou em outro instrumento contratual — que a parte perdedora irá arcar com a condenação em honorários de sucumbência e contratuais.
Nessa hipótese, se as partes assim convencionam, é dever do tribunal arbitral, quando da prolação da sentença, condenar o vencido a arcar com tais valores. Caso não se pronuncie sobre o tema, a sentença será omissa, cabendo a parte interessada apresentar pedido de esclarecimentos, na forma do artigo 30, II, da Lei de Arbitragem.
É que o ajuste entabulado entre as partes em relação à condenação em honorários é negócio jurídico celebrado com fundamento no princípio da autonomia privada. Constitui acordo de vontades com a finalidade de produzir efeitos jurídicos, o qual deve — se existente, válido e eficaz — ser respeitado pelo tribunal arbitral. Tal registro não é feito aqui à toa, pois há sentenças arbitrais que, infelizmente, ignoram o negócio jurídico celebrado e decidem sobre honorários em sentido diferente ao acordado entre as partes.
De todo modo, tratando agora de tema mais controverso, a discussão quanto ao cabimento da condenação em honorários na arbitragem passa necessariamente pelo único dispositivo legal que trata do assunto na Lei de Arbitragem, o seu artigo 27.
Nos termos do artigo 27, “a sentença arbitral decidirá sobre a responsabilidade das partes acerca das custas e despesas com a arbitragem, bem como sobre verba decorrente de litigância de má-fé, se for o caso, respeitadas as disposições da convenção de arbitragem, se houver”.
A redação do dispositivo legal não é precisa e abre margem a diversos debates, que poderiam ter sido evitados, se de outra forma tivesse sido redigido o artigo 27.
Numa interpretação literal do dispositivo, nota-se que o legislador cria um dever do tribunal arbitral de decidir sobre a responsabilidade acerca de custas e despesas das partes com a arbitragem; por outro lado, não obriga necessariamente o tribunal a responsabilizar o vencido a arcar com tais custas e despesas.
Quer dizer, em um cenário hipotético, se nada for estipulado pelas partes contratualmente, ou previsto no regulamento da câmara arbitral que administra o procedimento, o tribunal arbitral pode, em princípio, decidir que não responsabilizará o derrotado em custas e despesas da arbitragem, de modo que a parte vencedora não será reembolsada pelos valores que desembolsou ao longo do procedimento.
Essa é a primeira impressão que o dispositivo legal passa, portanto, quando é interpretado em seu sentido literal.
A título exemplificativo, por outro lado, o Código de Processo Civil é mais assertivo e estabelece (i) no artigo 82, § 2º, que “a sentença condenará o vencido a pagar ao vencedor as despesas que antecipou”; (ii) no artigo 85, que “a sentença condenará o vencido a pagar honorários ao advogado do vencedor”; (iii) no artigo 86, que “se cada litigante for, em parte, vencedor e vencido, serão proporcionalmente distribuídas entre eles as despesas”; (iv) no artigo 87, que “concorrendo diversos autores ou diversos réus, os vencidos respondem proporcionalmente pelas despesas e pelos honorários”; e assim por diante.
Há quem entenda que a omissão do artigo 27 da Lei de Arbitragem em matéria de honorários seria positiva, tendo sido a intenção do legislador conceder amplos poderes ao tribunal arbitral para livremente dispor sobre o que constituem custas e despesas na arbitragem, bem como a forma como estas devem ser distribuídas entre as partes ao final da disputa.
A meu ver, contudo, quando o artigo 27 não define se o vencido terá de arcar com as despesas e custas da arbitragem, assim como não estabelece se os honorários estariam incluídos entre tais despesas e custas, ele acaba por gerar desuniformidade entre as sentenças arbitrais. Por consequência, causa-se um cenário de insegurança jurídica e imprevisibilidade às partes, que, até o momento da prolação da sentença, não conseguem contingenciar se e o quanto irão despender ou receber (a depender de sua posição de vencedor ou vencido), a título de custas e despesas.
O melhor cenário, evidentemente, seria o ajuste prévio entre as partes já na convenção de arbitragem ou no início do procedimento em relação à matéria, bem como os critérios para sua fixação, mas isso nem sempre ocorre.
De toda forma, partindo-se do pressuposto que haverá a responsabilização em custas e despesas a uma das partes ao final do procedimento, cabe aferir se o tribunal arbitral, quando da condenação, deve incluir no conceito de “custas e despesas” os honorários contratuais e de sucumbência.
Custas e despesas
Neste texto, defende-se que apenas os honorários contratuais estão incluídos no termo “custas e despesas” a que a parte deverá arcar se condenada pela sentença arbitral.
Por custas e despesas, na verdade, devem-se contemplar os gastos despendidos com a câmara arbitral responsável pela administração do procedimento, se contratada; os honorários dos árbitros; os honorários do perito e assistentes técnicos para a realização da perícia; os pareceristas eventualmente contratados; e os honorários contratuais dos advogados. Eventuais despesas com locomoção e hospedagem de árbitros, testemunhas, partes e advogados também devem ser incluídas no somatório.
Não há justificativa legal para se excluir do termo “custas e despesas” qualquer um dos gastos mencionados acima. A interpretação do dispositivo legal deve ser abrangente, não restritiva. As custas e despesas representam tudo que fora despendido pela parte ao longo do procedimento para assegurar sua defesa técnica.
É preciso seguir, aqui, a lógica de que o processo não deve ser fonte de prejuízo a quem tem razão. Se vencedora, a parte deve ser ressarcida pelos danos injustos que lhe foram causados. Nesse sentido, cabe ao tribunal arbitral na sentença garantir ao vencedor da disputa a mesma situação econômica que deteria se o vencido tivesse cumprido com suas obrigações de forma espontânea, antes de deflagrado o conflito.
Os artigos 389, 395 e 404 do Código Civil também reforçam a necessidade de pagamento das despesas incorridas com honorários contratuais de advogado, quando em mora ou não cumprida a obrigação pelo devedor.
No que diz respeito aos honorários sucumbenciais, estes não representam custas e despesas incorridas pela parte vencedora ao longo do procedimento, de modo que não há que falar em reembolso. Em essência, os honorários de sucumbência representam um direito autônomo do advogado da parte vencedora, que são pagos pelo vencido ao final da disputa.
Salvo estipulação em contrário pelas partes, os honorários de sucumbência não se aplicam à arbitragem. Além de não estarem previstos na Lei de Arbitragem, tais honorários são próprios da jurisdição estatal e encontram-se regulamentados no Código de Processo Civil, que não se aplica de forma automática à arbitragem.
No que diz respeito ao artigo 22 e artigo 23 do Estatuto da Advocacia [6][7], tais previsões por si só não obrigam a condenação em honorários de sucumbência em sede arbitral. Isso porque a necessidade de imposição dos honorários de sucumbência não decorre do Estatuto da Advocacia, mas, sim, do Código de Processo Civil, diploma legal que contém o complemento normativo que o tema exige.
O Estatuto da Advocacia, ademais, foi editado antes da Lei de Arbitragem, tendo sua parte relativa à sucumbência sido pensada e elaborada, à época, apenas para os processos judiciais, e não ao processo arbitral.
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[1] Art. 22. A prestação de serviço profissional assegura aos inscritos na OAB o direito aos honorários convencionados, aos fixados por arbitramento judicial e aos de sucumbência.
[…]
[2] Art. 23. Os honorários incluídos na condenação, por arbitramento ou sucumbência, pertencem ao advogado, tendo este direito autônomo para executar a sentença nesta parte, podendo requerer que o precatório, quando necessário, seja expedido em seu favor.
[3] Art. 389. Não cumprida a obrigação, responde o devedor por perdas e danos, mais juros e atualização monetária segundo índices oficiais regularmente estabelecidos, e honorários de advogado.
[4] Art. 395. Responde o devedor pelos prejuízos a que sua mora der causa, mais juros, atualização dos valores monetários segundo índices oficiais regularmente estabelecidos, e honorários de advogado.
Parágrafo único. Se a prestação, devido à mora, se tornar inútil ao credor, este poderá enjeitá-la, e exigir a satisfação das perdas e danos.
[5] Art. 404. As perdas e danos, nas obrigações de pagamento em dinheiro, serão pagas com atualização monetária segundo índices oficiais regularmente estabelecidos, abrangendo juros, custas e honorários de advogado, sem prejuízo da pena convencional.
Parágrafo único. Provado que os juros da mora não cobrem o prejuízo, e não havendo pena convencional, pode o juiz conceder ao credor indenização suplementar.
[6] Art. 22. A prestação de serviço profissional assegura aos inscritos na OAB o direito aos honorários convencionados, aos fixados por arbitramento judicial e aos de sucumbência. […]
[7] Art. 23. Os honorários incluídos na condenação, por arbitramento ou sucumbência, pertencem ao advogado, tendo este direito autônomo para executar a sentença nesta parte, podendo requerer que o precatório, quando necessário, seja expedido em seu favor.
A I Jornada Jurídica de Prevenção e Gerenciamento de Crises Ambientais, que acontecerá nos próximos dias 25 e 26, na sede do Conselho da Justiça Federal (CJF), em Brasília, trará grandes contribuições para a Justiça Federal, sobretudo com a aprovação de teses voltadas à interpretação e à simplificação de medidas processuais para solução de lides de conteúdo ambiental, afirmou o ministro Sérgio Kukina, do Superior Tribunal de Justiça (STJ).
O magistrado preside a Comissão III do evento, que tratará da gestão judicial de litígios e demandas estruturais no contexto das mudanças climáticas. Para o ministro, a Jornada é muito importante para enfrentar desafios relacionados à judicialização de questões ambientais e às mudanças climáticas. Nesta entrevista, o ministro destacou o otimismo com as contribuições que o encontro pode trazer para a Justiça brasileira, especialmente no campo da prevenção e do gerenciamento de crises ambientais.
Confira a íntegra da entrevista:
Qual é o papel da I Jornada para a interpretação das normas ambientais em litígios relacionados a mudanças climáticas?
Sérgio Kukina – O papel da Jornada, antes de tudo, será o de fomentar o debate e a busca por respostas juridicamente capazes de fazer frente às graves consequências dos, cada vez mais frequentes, sinistros ambientais e climáticos, cujos eventos, aliás, vêm assolando o Brasil em escala preocupante.
Qual a perspectiva da Comissão III para a criação de protocolos de prevenção perante as demandas estruturais no contexto das crises ambientais?
Sérgio Kukina – As expectativas quanto aos resultados a serem entregues pela nossa Comissão III são as melhores possíveis. As sugestões de teses a ela encaminhadas chegaram à casa de uma centena, o que revela o interesse de estudiosos pelo emprego das técnicas referentes ao processo estrutural, cuja regulamentação, aliás, acha-se em discussão no Senado Federal, tendo a comissão de juristas, designada para essa finalidade, entregue relatório final no último dia 31 de outubro de 2024.
No âmbito da Justiça Federal, existe um monitoramento da tramitação de processos relacionados ao tema, a fim de conhecer as estratégias adotadas para os tipos de litígios relacionados às situações de desastres ambientais?
Sérgio Kukina – Sim. A esse respeito, deve-se fazer especial alusão aos centros e às redes de inteligência da Justiça Federal, que se ocupam de monitorar e sugerir estratégias para a resolução de causas judiciais relevantes para a sociedade, aí se destacando o cuidado com as grandes demandas ambientais, abrangendo aspectos relativos à prevenção e ao gerenciamento de crises e desastres ambientais.
De acordo com as suas expectativas, quais propostas ou medidas os grupos que atuarão na Jornada podem sugerir para tornar o Judiciário ainda mais preparado e com uma atuação linear, com respostas mais ágeis e seguras ao jurisdicionado?
Sérgio Kukina – Em se tratando de ações judiciais que tenham por foco o assunto “crises ambientais”, é certo que o Judiciário precisará estar sempre preparado para fornecer respostas rápidas e eficazes aos pedidos individualmente formulados pelas partes afetadas ou por quem as represente coletivamente. Desastres climáticos severos, como o ocorrido nas inundações no Rio Grande do Sul, puseram à prova a capacidade de atuação do aparelho judicial, que, de modo geral, respondeu satisfatoriamente às incontáveis solicitações recebidas. Nesse panorama, acredito que essa 1ª Jornada poderá trazer grandes contribuições para o dia a dia da Justiça, sobretudo com a aprovação de teses voltadas à boa interpretação e simplificação de medidas processuais que possam contribuir para a melhor solução das lides de conteúdo ambiental.
Cumprindo a Agenda 2030, em especial o ODS 16, que versa sobre o acesso à Justiça, a natureza peculiar dos processos de pós-desastre ambiental requer que tipo de aperfeiçoamento e capacitação da magistratura, servidoras, servidores, colaboradoras e colaboradores do sistema de Justiça?
Sérgio Kukina – A Agenda 2030 da ONU, com os seus 17 objetivos de desenvolvimento sustentável, constitui-se em uma referência obrigatória para atividades de todos os atores do sistema de Justiça, em especial os jurisdicionais. Nesse sentido, faz-se imperiosa, dentre outras iniciativas, a progressiva especialização de unidades judiciais, provendo-as de equipes multidisciplinares suficientemente habilitadas a compreenderem as adversidades ambientais e a indicarem aos julgadores os melhores caminhos, preventivos ou reparatórios, tendentes a evitar ou, conforme o caso, restaurar o dano havido.
Existe algum tópico que o senhor queira acrescentar?
Sérgio Kukina – A transição energética e as mudanças climáticas converteram-se em temas afetos à governança global, na medida em que desastres ambientais têm-se multiplicado nos últimos anos, acompanhados de consequências aterradoras para as populações por eles atingidas. Assim, embora seja lícito aguardar, em termos ambientais, por resultados eficazes oriundos de reuniões como a do G-20, que ocorreu recentemente no Brasil, ou da COP-29, ainda em curso no Azerbaijão, mostra-se absolutamente oportuna a realização, pelo Centro de Estudos Judiciários do Conselho da Justiça Federal, da I Jornada Jurídica de Prevenção e Gerenciamento de Crises Ambientais, que reunirá dezenas de especialistas e centenas de proponentes de teses, de cujo esforço conjunto, seguramente, advirão luminosos marcos orientadores para a comunidade jurídica brasileira.
Fonte: STJ
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