A jurisprudência do STJ após a Lei 14.230 e o tratamento prioritário dos casos de improbidade

O julgamento dos casos de improbidade administrativa e das ações penais sobre crimes contra a administração pública está entre as prioridades do STJ para este ano.

A exigência de uma conduta honesta na administração de bens e interesses públicos remonta à Antiguidade: já no Código de Hamurabi, escrito no 18º século a.C., havia previsão de sanção ao juiz que conduzisse indevidamente um processo. Também a Lei das Dozes Tábuas, criada na Roma Antiga, estipulava que o juiz que recebesse dinheiro para julgar em favor de uma das partes deveria ser punido com a morte.

Ao longo da história, a probidade em funções públicas foi um princípio ampliado e renovado pelas leis nacionais. No Brasil, leis antigas, como o Código Criminal de 1830, traziam algumas sanções para o agente ímprobo (a exemplo de quem cometesse o crime de suborno), mas foi a partir da Constituição de 1988 que o conceito de improbidade administrativa ganhou seus atuais contornos.

Em atendimento ao comando do artigo 37, parágrafo 4º, da Constituição, o Brasil editou a Lei de Improbidade Administrativa (Lei 8.429/1992). Tida como um marco histórico no combate aos atos ilícitos na administração pública, a norma sofreu alterações importantes com a edição da Lei 14.230/2021. Entre as principais modificações, está a retirada da modalidade culposa para a configuração dos atos ímprobos.

A cobrança crescente da sociedade por uma administração pública guiada pelo interesse comum levou o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) a incluir nas Metas Nacionais do Poder Judiciário (Meta 4) a prioridade para o julgamento dos processos sobre crimes contra a administração e atos de improbidade administrativa.

Nesse contexto, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) tem dado especial atenção à análise desses casos, e, neste mês de abril, alcançou a marca de 75% de cumprimento da Meta 4 (julgar, até o fim do ano, 90% dos processos distribuídos até 2022).

Os entendimentos adotados pelo STJ sobre improbidade administrativa, especialmente após a edição da Lei 14.230/2021, são o tema da edição 234 de Jurisprudência em Teses e também desta reportagem especial.

Aplicação retroativa da Lei 14.230/2021 é limitada

Segundo a jurisprudência mais recente do STJ, a retroatividade das alterações trazidas pela Lei 14.230/2021 é restrita aos atos de improbidade culposos praticados na vigência da norma anterior, sem condenação transitada em julgado.

Conforme explicou o ministro Benedito Gonçalves no AREsp 1.877.917, o Supremo Tribunal Federal (STF), ao julgar o Tema 1.199, estabeleceu que a Lei 14.230/2021 se aplica aos atos ímprobos culposos praticados na vigência do texto anterior da Lei de Improbidade, porém sem condenação transitada em julgado, tendo em vista a revogação expressa dos dispositivos anteriores sobre o tema.

Sobre o mesmo assunto, o STJ tem considerado possível a aplicação retroativa da Lei 14.230/2021 aos atos de improbidade culposos sem trânsito em julgado, inclusive na hipótese de não conhecimento do recurso, ou seja, quando o recurso não ultrapassa a etapa do juízo de admissibilidade.

Indisponibilidade de bens exige demonstração de urgência da medida

Decisões recentes do STJ também definiram que, a partir da vigência da Lei 14.230/2021, o deferimento da indisponibilidade de bens em ação de improbidade administrativa depende da demonstração de urgência da medida.

Em recurso do Ministério Público do Rio Grande do Norte no AREsp 2.272.508, o ministro Gurgel de Faria apontou que, com a edição da nova Lei de Improbidade, o requisito de urgência passou a ser exigido ao lado da necessidade de indicação da plausibilidade do direito alegado.

O ministro também destacou que a decisão de indisponibilidade de bens tem caráter processual e natureza de tutela provisória de urgência – podendo, portanto, ser revogada ou modificada a qualquer tempo –, de modo que, nos termos do artigo 14 do Código de Processo Civil de 2015, a Lei 14.230/2021 tem aplicação imediata ao processo em curso.

Não é possível condenação genérica baseada em incisos revogados

Os colegiados de direito público do STJ também têm entendido que, com a nova redação do artigo 11 da Lei de Improbidade – que tipificou de forma taxativa os atos ímprobos por ofensa aos princípios da administração pública –, não é possível a condenação genérica com base nos revogados incisos I (ato visando a fim proibido em lei ou regulamento) e II (retardar ou deixar de praticar, indevidamente, ato de ofício), em relação aos atos praticados na vigência do texto anterior da lei e sem a condenação transitada em julgado.

Imagem de capa do card  Imagem de capa do card

A condenação com base em genérica violação a princípios administrativos, sem a tipificação das figuras previstas nos incisos do artigo 11 da Lei 8.429/1992 – ou, ainda, quando condenada a parte ré com base nos revogados incisos I e II do mesmo artigo, sem que os fatos tipifiquem uma das novas hipóteses previstas na atual redação do artigo 11 da Lei de Improbidade Administrativa –, remete à abolição da tipicidade da conduta e, assim, à improcedência dos pedidos formulados na inicial.
AREsp 1.174.735

Ministro Paulo Sérgio Domingues

No julgamento do AREsp 1.174.735, o ministro Paulo Sérgio Domingues afirmou que o panorama normativo da improbidade administrativa sofreu alterações significativas após a Lei 14.230/2021 – legislação que, em diversos pontos, representou verdadeira lei nova mais benéfica ao réu (novatio legis in mellius).

No caso analisado, diante do novo cenário legal, o ministro considerou desnecessário o retorno dos autos às instâncias de origem para reanálise, tendo em vista que não havia mais embasamento legal para a qualificação da conduta do agente público como ímproba.

Improbidade se mantém se novo texto tiver apenas modificado inciso que prevê a conduta

Ainda em relação à caracterização do ato ímprobo, o STJ já se manifestou no sentido de que não é possível afastar a acusação de improbidade se a conduta não foi completamente abolida da legislação, mas apenas teve alterada a sua especificação pelo novo texto legal.

O entendimento foi aplicado no AREsp 1.206.630, no qual se discutiu a improbidade decorrente de promoção pessoal do agente público em atos de uma prefeitura.

Segundo o ministro Paulo Sérgio Domingues, a alteração feita no caput do artigo 11 da Lei 8.429/1992, que passou a exigir que o reconhecimento do ato de improbidade por violação aos princípios administrativos ocorra com a indicação de uma das condutas previstas nos seus incisos, não alterou a caracterização do ato de improbidade. De acordo com o relator, a conduta do agente passou a ser enquadrada no inciso XII do artigo 11.

“Não obstante a abolição da hipótese de responsabilização por violação genérica aos princípios administrativos, anteriormente prevista no caput do artigo 11 da Lei 8.249/1992, a novel previsão, entre os seus incisos, da conduta considerada no acórdão como violadora dos princípios da moralidade e da impessoalidade evidencia verdadeira continuidade típico-normativa”, reforçou o ministro.

Absolvição por falta de dolo na ação de improbidade tem impacto na esfera penal

Entendimentos recentes do STJ também trataram de outros temas importantes sobre a improbidade administrativa, a exemplo da ausência de foro por prerrogativa de função na instauração de inquéritos civis ou nas ações de improbidade, tendo em vista que esses procedimentos não têm natureza criminal.

Outra posição definida nos últimos anos foi a de que, no julgamento da ação de improbidade administrativa, a absolvição por ausência de dolo na conduta do agente público e de obtenção de vantagem indevida esvazia a justa causa para a manutenção da ação penal.

Imagem de capa do card  Imagem de capa do card

Não é possível que o dolo da conduta em si não esteja demonstrado no juízo cível e se revele no juízo penal, porquanto se trata do mesmo fato, na medida em que a ausência do requisito subjetivo provado interfere na caracterização da própria tipicidade do delito, mormente se se considera a doutrina finalista (que insere o elemento subjetivo no tipo), bem como que os fatos aduzidos na denúncia não admitem uma figura culposa, culminando-se, dessa forma, em atipicidade.
RHC 173.448

Ministro Reynaldo Soares da Fonseca

Em um desses precedentes (RHC 173.448), o ministro Reynaldo Soares da Fonseca comentou que, embora haja independência entre as esferas civil, penal e administrativa, é necessário que a instância penal considere os fundamentos contidos na decisão que absolveu o agente em ação de improbidade administrativa.

No caso analisado, na visão do ministro, tendo a instância cível concluído que os réus não induziram ou concorreram para a prática de ato contrário aos princípios da administração, “não pode a mesma conduta ser violadora de bem jurídico tutelado pelo direito penal”.

É possível homologação de acordo de não persecução cível na fase recursal

Em precedentes recentes, o STJ também reforçou o entendimento de que a contratação de servidores públicos temporários sem concurso público, quando baseada em legislação local, não configura, por si só, o ato de improbidade administrativa previsto no artigo 11 da Lei 8.429/1992. Nessa situação, de acordo com os precedentes (a exemplo do REsp 1.930.054 – Tema Repetitivo 1.108), não estaria presente o dolo necessário para a configuração da improbidade.

Segundo o STJ, também não caracteriza ato de improbidade a falta de repasse, pelo prefeito, de informações solicitadas pelo Poder Legislativo ou por outros interessados, quando não há evidência de malícia ou desonestidade na omissão.

Julgados recentes das duas turmas de direito público do STJ, além da Primeira Seção, também admitiram a homologação judicial de acordo de não persecução cível em ação de improbidade administrativa que esteja em fase recursal. A homologação de um desses acordos, inclusive, ocorreu no STJ, no âmbito do EAREsp 1.831.535.

Fonte: STJ

STF adia conclusão de julgamento sobre poder de investigação do MP

O Supremo Tribunal Federal (STF) adiou nesta quinta-feira (25) a conclusão do julgamento sobre a constitucionalidade de investigações próprias realizadas pelo Ministério Público (MP).

A Corte julga ações protocoladas pelo PL e entidades que atuam em defesa de delegados de polícia para limitar o poder de investigação do órgão.

Foram questionados dispositivos do Estatuto do Ministério Público da União e da Lei Orgânica Nacional do Ministério Público. As normas autorizam o MP a fazer diligências investigatórias e requisitar perícias, entre outras medidas.

Até o momento, a Corte formou maioria de votos para confirmar o poder de investigação do órgão e determinar que os prazos de investigação em procedimentos do MP devem seguir os prazos estabelecidos para os inquéritos policiais. Além disso, os procedimentos abertos por promotores e procuradores devem ser comunicados à Justiça para permitir supervisão.

Ainda não houve consenso no fechamento das demais questões analisadas no julgamento, que serão examinadas na sessão marcada para 2 de maio.

Na retomada do julgamento, os ministros vão decidir se o MP tem a obrigação de abrir investigações para apurar mortes ocorridas em operações policiais. A sugestão foi feita pelo ministro Edson Fachin, relator das ações julgadas.

O ministro entendeu que a abertura de investigação para apurar mortes ocorridas em operações é obrigatória sempre que houver suspeita de envolvimento de agentes de segurança pública em mortes ou ferimentos graves em consequência da utilização de armas de fogo. Em caso de descumprimento, será cabível a responsabilização funcional de membros do órgão.

Fonte: Logo Agência Brasil

STJ unifica tese que afasta nulidade de multas do Ibama por restrição à defesa

A anulação da multa aplicada pelo Ibama pelo fato de o infrator ter sido intimado por edital para apresentar alegações finais no processo administrativo depende da demonstração de que houve prejuízo à defesa.

Multa foi aplicada após processo em que o infrator foi notificado por edital – Freepik

Com esse entendimento, a 1ª Turma do Superior Tribunal de Justiça deu provimento ao recurso especial do Ibama para validar a multa de R$ 40 mil aplicada a uma empresa que descumpriu normas administrativas ambientais.

O resultado unifica a posição do STJ sobre o tema da intimação do infrator por edital para apresentação de alegações finais no processo administrativo. A 2ª Turma tem precedente que classifica o procedimento como válido e sem prejuízo à defesa.

Essa posição é importante para o Ibama porque o procedimento de notificação por edital foi adotado em 183 mil processos administrativos, que correspondem a 84% das autuações por infrações ao meio ambiente. Isso representa R$ 29 bilhões em multas que poderiam ser afetados.

No caso concreto julgado pela 1ª Turma, a infração que levou à aplicação da multa foi o desligamento proposital do rastreador por satélite de uma embarcação pertencente à empresa.

O Ibama sabia o endereço do infrator, mas preferiu fazer a intimação para apresentação de alegações finais no processo administrativo por edital. O resultado foi a condenação ao pagamento da multa sem a devida defesa, de acordo com o réu.

Voto do ministro Paulo Sérgio Domingues levou a mudança de posição do colegiado – Lucas Pricken/STJ

Mudança de posição

O resultado na 1ª Turma foi unânime, conforme a posição do relator, ministro Paulo Sérgio Domingues. O julgamento foi encerrado no último dia 16, após voto-vista do ministro Gurgel de Faria.

Isso representa uma mudança de jurisprudência. O colegiado tem dois precedentes anteriores em que reconheceu a nulidade pela não intimação pessoal do infrator ambiental.

Para o relator, uma nova reflexão é necessária porque o tema é regulado pela Lei 9.605/1998, que no artigo 70, parágrafo 4º, estabelece um processo administrativo próprio para os casos de atividades lesivas ao meio ambiente.

Esse processo próprio é determinado pelo Decreto 6.514/2008, cuja redação, que vigeu até 2019, fixava que a intimação por edital só poderia ocorrer quando a autoridade julgadora não agravasse a penalidade ao interessado. Esse era o texto original do artigo 122.

Se houvesse a possibilidade de agravamento da penalidade, o artigo 123, parágrafo único, obrigava a intimação pessoal. Foi nesse contexto que as 183 mil multas foram aplicadas pelo Ibama.

Já no processo administrativo geral, regido pela Lei 9.784/1999, a intimação realmente deve ser feita por meio que assegure certeza da ciência do interessado. O artigo 26, parágrafo 3º, cita ciência no processo por via postal com aviso de recebimento ou por telegrama.

Para o ministro Paulo Sérgio Domingues, esse cenário impede que todas essas multas sejam anuladas com base na defesa em abstrato do devido processo legal e da ampla defesa.

REsp 1.933.440

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Comissão aprova projeto que permite consórcio entre escritórios de advocacia

A Comissão de Finanças e Tributação da Câmara dos Deputados aprovou o Projeto de Lei 3716/19, que permite sociedades de advogados firmem entre si consórcio para prestação de serviços jurídicos, com a delimitação do âmbito de atuação e das responsabilidades de cada parte. A proposta muda o Estatuto da Advocacia.

Ato em apoio à Proposta de Emenda à Constituição n. 14/2024 - Direito aos cuidados no rol de direitos sociais. Dep. Laura Carneiro (PSD - RJ)
A deputada Laura Carneiro recomendou a aprovação da proposta – Bruno Spada/Câmara dos Deputados

A relatora, deputada Laura Carneiro (PSD-RJ), recomendou a aprovação. Ela entende que a formação de consórcios entre escritórios de advocacia aumenta  eficiência e a qualidade dos serviços prestados, reduz custos e amplia a cobertura geográfica de atuação dos participantes.

“A aprovação do projeto representará um importante avanço para o sistema jurídico, permitindo que os escritórios de advocacia se adaptem às novas demandas do mercado e ofereçam serviços de melhor qualidade aos clientes”, disse Laura Carneiro.

A proposta foi apresentada pela ex-deputada e atual senadora Dorinha Seabra Rezende (União-TO).

Próximos passos
O PL 3716/19 será analisado agora, em caráter conclusivo, na Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania (CCJ).

Fonte: Câmara dos Deputados

Google não permitirá anúncios de políticos nas eleições de outubro

O Google anunciou nesta quarta-feira (23) que não vai permitir anúncios políticos nas eleições municipais de outubro.

A medida foi tomada pela plataforma em função da resolução aprovada em fevereiro deste ano pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE) para restringir o uso de inteligência artificial (IA) e determinar a adoção de medidas de combate à circulação de fatos inverídicos ou descontextualizados.

Em nota, o Google informou que a restrição aos anúncios começará em maio, quando as resoluções do TSE entrarão em vigor.

A empresa também declarou que apoia a integridade das eleições. “Vamos atualizar nossa política de conteúdo político do Google Ads para não mais permitir a veiculação de anúncios políticos no país. Essa atualização acontecerá em maio, tendo em vista a entrada em vigor das resoluções eleitorais para 2024. Temos o compromisso global de apoiar a integridade das eleições e continuaremos a dialogar com autoridades em relação a este assunto”,  informou a empresa.

Pelas regras do TSE, as redes sociais deverão tomar medidas para impedir ou diminuir a circulação de fatos inverídicos ou descontextualizados. As plataformas que não retirarem conteúdos antidemocráticos e com discurso de ódio, como falas racistas, homofóbicas ou nazistas, serão responsabilizadas.

A resolução também regulamenta o uso da inteligência artificial durante as eleições municipais de outubro.

A norma proíbe manipulações de conteúdo falso para criar ou substituir imagem ou voz de candidato com objetivo de prejudicar ou favorecer candidaturas. A restrição do uso de chatbots (software que simula uma conversa com pessoas de forma pré-programada) e avatares (corpos virtuais) para intermediar a comunicação das campanhas com pessoas reais também foi aprovada.

O objetivo do TSE é evitar a circulação de montagens de imagens e vozes produzidas por aplicativos de inteligência artificial para manipular declarações falsas de candidatos e autoridades envolvidas com a organização do pleito.

Fonte: Logo Agência Brasil

Por que não é vedado ao defensor ler alegações do MP no júri

1. Plenário do Júri — colocação do problema: a inovação legislativa no CPP

Há alguns anos foi feita uma alteração no CPP, visando a impedir que as partes usassem, como argumentos de autoridade, trechos de acórdãos ou decisões ocorridas no âmbito do mesmo processo sob julgamento em plenário.

Ficou assim:

“Art. 478. Durante os debates as partes não poderão, sob pena de nulidade, fazer referências:

I – à decisão de pronúncia, às decisões posteriores que julgaram admissível a acusação ou à determinação do uso de algemas como argumento de autoridade que beneficiem ou prejudiquem o acusado.”

Vejamos: não podem ser utilizadas a decisão de pronúncia e decisões outras (posteriores à pronúncia). Também não se pode falar sobre uso de algemas.

Ocorreu um caso em Minas Gerais que mostra o exagero da leitura do artigo 478 e que vale aqui ser referido, até para iluminar outras situações correlatas. O STJ está por julgar o agravo interposto no REsp porque o TJ-SE não admitiu o recurso.

2. O caso concreto em que o MP e o juiz censuraram o advogado

Nas alegações finais (atenção: alegações não é decisão), o Ministério Público admitiu que o caso teria duas possíveis versões e estaria em dúvida sobre o caso: homicídio simples e homicídio qualificado e que, diante de tal dúvida, deveria ser o acusado submetido a julgamento pelo mais grave. O MP invocou o famoso in dubio pro societate — ilegal e inconstitucional, registre-se.

No dia do julgamento pelo tribunal popular, a defesa tentou reler esse trechoAfinal, o MP dizia que tinha dúvidas! Contudo, foi impedido pelo MP em plenário, que disse que não seria possível ler as alegações finais do Parquet. Tal pedido foi acatado pelo magistrado e a defesa restou prejudicada. Isso restou registrado em detalhes na ata do julgamento.

Tudo muito claro, pois. A defesa alegou cerceamento e apelou da condenação. O TJ de Sergipe respondeu negativamente, dizendo que não foi provado o prejuízo e muito menos tinha razão a defesa na sua reclamação quanto ao artigo 478. Assentou o TJ que a interpretação do MP e do juiz estava correto: de fato, a defesa não poderia usar parte das alegações finais do MP.

3. A adequada hermenêutica do caso

Parece evidente que juiz e MP extrapolaram na interpretação do artigo 478 do CPP. O que não pode ser utilizado em plenário é decisão (ou decisões). No texto do dispositivo nada consta em relação às alegações finais do MP. A interpretação, porque trata de restrição a direitos, deve ser feita nos estritos limites fixados pelo legislador. Qualquer interpretação alargando o “tamanho semântico” do texto do inciso I do artigo 478 é analogia em malam partem. E isso é vedado.

Tratou-se de um desvio de finalidade hermenêutico da lei. O telos do dispositivo foi conspurcado. O legislador estabeleceu proibições taxativas. Caso contrário, se a defesa não pode ler o conteúdo de alegações, também não poderá ser lida sequer a denúncia. Afinal, escancarada a interpretação extensiva, limites já não existirão. Tudo será proibido. Simples assim.

Parece ser um easy case. No máximo poderia ser um hard case. Mas o TJ-SE o transformou em um tragic case. Para o réu.

Aqui fizeram o contrário do exemplo de Recaséns Siches: se é proibido carregar cães na plataforma, é razoável entender que ursos ou quaisquer animais que possam representar perigo para os transeuntes estejam igualmente proibidos. No caso de Minas Gerais, na ânsia de proibir cães, o juiz proibiu, além do cão guia do cego, o pequeno Yorkshire de uma criança.

Desde Schleiermacher que se pretende estabelecer critérios para evitar mal-entendidos na interpretação. Pelo visto, ainda não conseguimos.

Quanto à alegação do TJ-SE de que a defesa precisaria provar o prejuízo, trata-se de exigir a prova do demônio. Como provar o prejuízo? Parece evidente que, se o réu foi condenado (e por um voto), o prejuízo é decorrência lógica. Trata-se de uma exigência inconstitucional, que viola o devido processo legal. As ordálias já foram superadas.

Na hermenêutica brasileira, até a literalidade [1] dá azo a voluntarismos.


[1] Para evitar mal-entendidos, sugiro a leitura do verbete Literalidade no meu Dicionário de Hermenêutica, 2ª ed. Ed. Casadodireito.

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Fuga repentina ao avistar a polícia pode justificar busca pessoal em via pública

A Terceira Seção do Superior Tribunal de Justiça (STJ) definiu que, se uma pessoa em via pública foge correndo repentinamente ao avistar a polícia, esse fato pode autorizar a realização de busca pessoal; no entanto, a legalidade da medida depende de um exame minucioso, pois ela costuma ser justificada com base apenas no depoimento dos policiais.

A partir desse entendimento, o colegiado negou habeas corpus a um homem que foi preso em flagrante após os policiais, em revista pessoal, terem encontrado drogas em seu poder. De acordo com o processo, ele correu repentinamente na direção de um terreno baldio ao ver o carro da polícia, em atitude que motivou a abordagem.

As instâncias ordinárias rechaçaram a alegação de nulidade da prova obtida na busca pessoal e condenaram o réu por tráfico de drogas. Ao STJ, a defesa reiterou que a revista foi ilegal, pois a fuga não seria motivo suficiente para justificar o procedimento.

Busca pessoal e busca domiciliar têm tratamento jurídico distinto

De acordo com o relator, ministro Rogerio Schietti Cruz, o STJ – alinhado com a Corte Interamericana de Direitos Humanos e com o Supremo Tribunal Federal – tem precedentes que afirmam a necessidade de razões objetivas para a realização da busca pessoal (RHC 158.580 e outros). No caso em análise, acompanhando o relator, a Terceira Seção concluiu que a ação dos policiais foi válida diante da fundada suspeita – motivada pela fuga – de que o homem estivesse na posse de algo ilegal.

Em seu voto, Schietti observou que o tribunal vem rejeitando a validade de buscas domiciliares feitas apenas com base no fato de o suspeito haver corrido para dentro de casa ao perceber a aproximação da polícia. Ele enfatizou, porém, que há uma distinção importante entre busca pessoal e busca domiciliar.

“É bem verdade que buscas pessoais são invasivas e que algumas delas eventualmente podem ser quase tão constrangedoras quanto buscas domiciliares; no entanto, não há como negar a diferença jurídica de tratamento entre as medidas”, comentou o ministro, destacando que a inviolabilidade do domicílio é resguardada expressamente por normativos internacionais e pela Constituição Federal.

“No que concerne às buscas pessoais, apesar de evidentemente não poderem ser realizadas sem critério legítimo, o que a lei exige é a presença de fundada suspeita da posse de objeto que constitua corpo de delito, isto é, uma suspeição razoavelmente amparada em algo sólido, concreto e objetivo, que se diferencie da mera suspeita intuitiva e subjetiva”, explicou.

Fuga é fato objetivo capaz de gerar suspeita razoável

Schietti afirmou que a fuga repentina do suspeito, ao avistar a guarnição policial, não configura, por si só, flagrante delito ou justificativa para flexibilizar a garantia constitucional da inviolabilidade domiciliar.

“Trata-se, todavia, de conduta intensa e marcante que consiste em fato objetivo – não meramente subjetivo ou intuitivo –, visível, controlável pelo Judiciário e que, embora possa ter outras explicações, no mínimo gera suspeita razoável”, disse o relator.

Ainda de acordo com o ministro, o ato de fugir correndo indica bem mais do que gestos sutis como desviar o olhar ou mudar a direção ou o passo ao caminhar – estes, sim, insuficientes para justificar uma suspeição e autorizar a busca pessoal.

Depoimentos dos policiais envolvidos exigem atenção especial

Schietti alertou que, com frequência, em casos como o dos autos, há o risco de os fatos serem distorcidos com o objetivo de legitimar a diligência policial, o que exige um “especial escrutínio” sobre os depoimentos dos agentes de segurança. Para o relator, é preciso afastar “a cômoda e antiga prática de atribuir caráter quase que inquestionável a depoimentos prestados por testemunhas policiais”.

“Diante das premissas estabelecidas neste voto e da ausência de elementos suficientes para infirmar ou desacreditar a versão policial, mostra-se configurada a fundada suspeita de posse de corpo de delito a autorizar a busca pessoal, nos termos do artigo 244 do Código de Processo Penal“, concluiu o ministro.

Fonte: STJ

Ministro Herman Benjamin é eleito presidente do CJF para o biênio 2024-2026

Posse da nova gestão está prevista para o mês de agosto

Os ministros Herman Benjamin e Luis Felipe Salomão serão os novos presidente e vice-presidente, respectivamente, do Conselho da Justiça Federal (CJF) no biênio 2024-2026.

Ministro Herman Benjamin é eleito próximo presidente do CJF
Ministro Herman Benjamin é eleito próximo presidente do CJF

A eleição foi realizada pelo Pleno do Superior Tribunal de Justiça (STJ) na manhã desta terça-feira (23), quando foram definidos os nomes dos integrantes da próxima administração do tribunal. Os cargos de presidente e vice do CJF coincidem com os do STJ. O ministro Salomão também acumulará o cargo de corregedor-geral da Justiça Federal.

Eleito presidente, o ministro Herman Benjamin agradeceu a confiança dos colegas, que o escolheram por aclamação. A posse da nova gestão está prevista para agosto, quando se encerra o mandato dos ministros Maria Thereza de Assis Moura e Og Fernandes, como presidente e vice.

Além dos ministros Herman Benjamin e Salomão, também passarão a integrar o CJF no próximo biênio, com posse marcada para maio, os ministros do STJ Reynaldo Soares da Fonseca, como membro efetivo, e Messod Azulay Neto, como suplente.

O próximo presidente

O ministro Herman Benjamin é jurista de atuação destacada nas áreas do Direito Ambiental e do Direito do Consumidor. Natural de Catolé do Rocha (PB), é formado em Direito pela Universidade Federal do Rio de Janeiro e mestre em Direito pela Universidade de Illinois, nos Estados Unidos. Iniciou a carreira jurídica em 1982, no Ministério Público de São Paulo, e ao longo de 24 anos atuou em várias frentes na instituição. Conferencista e autor de diversos livros, ensaios e artigos jurídicos, conciliou atividades de docência no Brasil e no exterior.

Desde 1995, é professor visitante da Faculdade de Direito da Universidade do Texas, nos Estados Unidos. Também na condição de professor visitante, lecionou na Faculdade de Direito de Illinois e na Universidade Católica Louvain-la-Neuve, na Bélgica. O ministro é fundador e codiretor da Revista de Direito Ambiental, publicada desde 1995.

No STJ, integra a Corte Especial, a Primeira Seção e a Segunda Turma – as duas últimas especializadas em Direito Público. Foi membro do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) e do CJF e dirigiu a Escola Nacional de Formação e Aperfeiçoamento de Magistrados (Enfam).

Com informações do STJ

FGV Justiça divulga pesquisa inédita sobre ações anulatórias de sentenças arbitrais

Ao longo dos anos, houve um crescimento do número de casos resolvidos pelo método da arbitragem no Brasil, o que gerou um aumento das câmaras e dos profissionais (árbitros e advogados) que atuam na área. De fato, hoje, a arbitragem é um mercado relevante para as relações jurídicas e movimenta recursos financeiros bastante expressivos.

 

O bom funcionamento da arbitragem é um fator importante para (1) atrair investidores estrangeiros e (2) resolver conflitos empresariais de uma forma mais eficiente (em uma única instância) e rápida (“time is money”). Todavia, isso exige uma baixa taxa de procedência das ações anulatórias que, por sua vez, depende da alta qualidade do procedimento arbitral.

Obviamente, o Judiciário não pode tolerar sentenças arbitrais que afrontam a ordem pública processual ou material. Para o aperfeiçoamento do instituto, é fundamental conhecer os dados relacionados às ações anulatórias de uma forma mais precisa.

Dois pontos são fundamentais na comparação entre a arbitragem no Brasil e em países com longa tradição em métodos adequados de resolução de disputas. Na Europa, a arbitragem comercial é utilizada, principalmente, para a resolução de disputas transfronteiriças e pouco usada para disputas entre partes do mesmo país.

Já nas arbitragens com sede no Brasil, dominam os litígios entre partes nacionais, ainda que haja um número considerável de arbitragens em que uma das partes ou um dos elementos seja internacional. Essa diferença explica o motivo da existência de uma enorme quantidade de câmaras de arbitragem no país, enquanto mercados tradicionais da Europa se consolidaram com poucas instituições desse tipo.

Outra diferença marcante entre o mercado brasileiro e o da arbitragem comercial internacional é o fato de que o crescimento nacional começou a ocorrer de forma mais expressiva há duas décadas, enquanto os centros da arbitragem internacionais (por exemplo, de Paris, Londres e Geneva) se consolidaram a partir dos anos 1960.

No Brasil, a maioria dos profissionais da arbitragem começaram a carreira no contencioso judicial e, especialmente os advogados, continuaram com a atuação nas duas jurisdições. Por isso, fica nítida a influência da abordagem tradicional no procedimento arbitral. Na Europa, esse movimento aconteceu ao longo dos últimos 75 anos, consequentemente, é possível perceber uma divisão de trabalho muito mais acentuada entre trial lawyers e arbitration counsel.

O procedimento arbitral resolve as demandas de forma mais célere, por meio da atuação de profissionais (árbitro ou tribunal arbitral) especializados na matéria que embasa a relação jurídica entre as partes. Contudo, com a evolução do instituto da arbitragem no país, algumas questões começaram a exigir uma maior reflexão da academia, como as ações anulatórias de sentença arbitral, a impugnação de árbitros, o dever de revelação, entre outras.

 

Pesquisa

A FGV Justiça, coordenada pelo ministro Luis Felipe Salomão, do STJ (Superior Tribunal de Justiça), fez uma pesquisa sobre as ações anulatórias de sentenças arbitrais no Brasil, que foi apresentada no último dia 19, no seminário “Arbitragem e Judiciário: diálogos entre a justiça estatal e a justiça privada”.

Durante sua palestra no evento, o Ministro Luis Felipe Salomão destacou a importância da Lei nº 9.307, de 1996, que contou com a sua liderança na Comissão de Juristas.

A investigação consolidou informações para melhor compreender a anulação de sentença arbitral pelos tribunais do país e fazer uma análise das decisões, em sede de apelação e REsp, no período de 2018 a 2023, com os seguintes objetivos: avaliar o percentual de manutenção e a anulação das sentenças arbitrais por Tribunal de Justiça e no STJ; verificar a matéria discutida na arbitragem e a taxa de procedência na instância inferior; identificar as partes, o ano da decisão, o órgão prolator e a UF de origem do processo; averiguar a participação do poder público nessas arbitragens; categorizar os fundamentos legais que embasaram a decisão judicial que culminou na anulação da sentença arbitral, com base no rol do artigo 32 da Lei nº 9.307, de 1996; e detectar a Câmara responsável pela gestão do procedimento arbitral.

A relevância desta pesquisa está no seu escopo inédito de compilação e análise de dados sobre anulação de sentença arbitral, nos Tribunais de Justiça e no STJ, de modo a possibilitar um melhor entendimento sobre o assunto, com a categorização de dados científicos, tendo vista possibilitar o diagnóstico do funcionamento da ação anulatória, com o objetivo de aprimorar a arbitragem no Brasil com maior segurança jurídica.

Jusbrasil, parceiro neste trabalho, fez um levantamento de decisões judiciais a partir das seguintes palavras-chave: “lei”, “arbitral” e “anulatória”. A base de dados foi composta por decisões que continham esses três termos de forma concomitante. Foram analisadas 358 apelações e 32 REsp.

Em 2ª instância, no período de 2018 a 2023, a taxa de procedência das ações anulatórias foi de 22,6%. Os fundamentos mais comuns que embasaram a anulação da sentença arbitral, em sede de apelação, são: nulidade da convenção arbitral (artigo 32, I da Lei 9.307, de 1996); extrapolação dos limites da convenção de arbitragem (artigo 32, IV da Lei 9.307, de 1996) e violação aos princípios do contraditório, da igualdade das partes, da imparcialidade do árbitro e seu livre convencimento (artigo 32, VIII da Lei 9.307, de 1996).

O TJ-GO foi o tribunal com mais apelações em ação anulatória de sentença arbitral e a taxa de procedência foi de 15,6%. Foi identificado que, em Goiás, há uma multiplicidade de Câmaras que geriram esses procedimentos.

O segundo maior volume de apelações em ação anulatória de sentença arbitral foi o do TJ-SP, em que a taxa de procedência foi de 34,5% no período. Contudo, o principal impacto se deu pelos contratos do sistema cooperativo da Unimed.

Sem esses contratos, a taxa de procedência no TJ-SP passa para 17,5%. A anulação da sentença arbitral nesses casos se deve ao fato de que ela determinara a compensação de créditos posteriormente ao deferimento da liquidação extrajudicial, o que viola o concurso de credores da massa liquidanda, nos termos dos artigos 33, §§1º, 2º e 3º e artigo 36, parágrafo único da Resolução Normativa 316/12 da ANS c/c artigos 24, caput, 24-C e 24-D da Lei 9.656/98. O TJ-RJ, por sua vez, não anulou sentença arbitral em sede de apelação no período.

Em resumo, constatou-se que nos grandes centros de arbitragem, como São Paulo (com exclusão dos casos do sistema cooperativo Unimed), as taxas de procedência das ações anulatórias em 2ª instância são relativamente baixas. Vale destacar que, nesse contexto, o Rio de Janeiro ganhou proeminência frente ao TJ-SP. Em ambos os estados, a segurança jurídica da sentença arbitral é alta.

O relatório da pesquisa e o painel interativo com os resultados serão apresentados no Fórum de Lisboa, que acontecerá nos dias 26 a 28 de junho de 2024, para discutir as transformações jurídicas, políticas, econômicas, socioambientais e digitais no Brasil e na Europa.

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Concessão do Habeas Corpus de ofício e a inserção do artigo 647-a do CPP

Para compreender a inclusão ao Código de Processo Penal do artigo 647-A e seu parágrafo único, promovida pela recém-publicada Lei Federal nº 14.836/2024, é imprescindível um breve retrospecto jurisprudencial que culminou com essa disposição legislativa.

De fato, ao longo de dois séculos o Supremo Tribunal Federal consolidou uma história em torno do Habeas Corpus que o privilegia, dentre as garantias constitucionais, como um robusto e amplo instrumento no exercício da liberdade de locomoção e salvaguarda a direitos fundamentais – especialmente, contra decisões judiciais flagrantemente ilegais ou teratológicas.

Em primeiro lugar, houve o voto vencido (e único, em oposição a outros nove votos que acompanharam o voto do ministro Costa Barrada, relator) proferido pelo ministro Pisa e Almeida no julgamento da primeira impetração com cunho político (HC 300) [1], no qual divergia para conceder a ordem por, sob a sua perspectiva, tratar-se de julgamento afeto à Suprema Corte.

Segundo o que apontou o ministro Aliomar Baleeiro [2], no início do século 20 houve dicotomia bem consolidada entre as doutrinas do Habeas Corpus postuladas por Rui Barbosa e o ministro Pedro Lessa: enquanto o primeiro traçou os contornos da hipertrofia do instituto, com a ampliação de casos que comportavam a sua concessão, o segundo vinculou sempre o Habeas Corpus à liberdade de locomoção, ao enunciar que “além da liberdade de locomoção, nenhuma outra há defensável pelo habeas corpus”, compreendendo como “exclusiva missão do habeas corpus garantir a liberdade individual na acepção restrita, a liberdade física, a liberdade de locomoção” [3].

É digna de nota, ainda, a posição adotada pelo ministro Nelson Hungria, penalista e ávido defensor do resguardo aos direitos fundamentais que orbitam a liberdade de locomoção.

Em célebre pronunciamento, enunciou que “um dia de privação de liberdade jamais poderá ser restituído”, ao proferir a célebre expressão de que “para os casos anômalos, o remédio deve ser heroico” (HC 36.801) [4], adotando o entendimento pelo cabimento do Habeas Corpus para concessão de efeito suspensivo a recurso.

De acordo com o ministro Evandro Lins, a posição de Nelson Hungria assegurava ao Habeas Corpus “um sentido democrático e dinâmico”.

O incomparável papel do HC

Sobreveio, portanto, a posição capitaneada pelo ministro Evandro Lins durante a Corte Nunes Leal, penalista responsável por moderar o cabimento do Habeas Corpus, enquadrando-o para comportar o reconhecimento da irretroatividade de norma penal mais gravosa (HC 43.055 e HC 43.062) e o rechaçando, denegando a ordem postulada em favor de paciente que já cumprira integralmente a pena fixada por sentença transitada em julgado (HC 42.030).

Com a sua aposentadoria compulsória decorrente do Ato Institucional nº 5 de 1968, entretanto, tornou-se ferrenho defensor do restabelecimento do Habeas Corpus para prisões por motivo político (instituto que, além de outros direitos individuais, havia sido suprimido). É notável esclarecer, diante da oportunidade, que a ruptura democrática que se sucedeu revelou aos cidadãos o incomparável e excepcional papel exercido pelo instrumento do Habeas Corpus na salvaguarda de direitos individuais.

Na atual composição da Suprema Corte, porventura em virtude de sua matriz germânica partilhada com o ministro Moreira Alves, ao conceder a ordem no HC 157.627 o ministro Gilmar Mendes assinala que “toda vez que houver a possibilidade de uma condenação, portanto, que envolva a liberdade de ir e vir, cabe, sim, o habeas corpus[5].

Discorrendo acerca do controle difuso de constitucionalidade, o Decano defende que a liberdade de locomoção deve ser “entendida de forma ampla, afetando toda e qualquer medida de autoridade que possa em tese acarretar constrangimento para a liberdade de ir e vir” [6].

Diante deste turbulento e controverso cenário quanto ao cabimento do Habeas Corpus, consolidou-se a posição que compreende o writ como sendo uma via estreita que comporta a alegação direta de violência ou coação em sua liberdade de locomoção, por ilegalidade ou abuso de poder, segundo previsão do artigo 5º, inciso LXVIII, da Constituição da República.

HC de ofício e a inclusão do artigo 647-A no CPP

Entretanto, para solucionar um conflito aparente entre a estreita via do writ e o direito de proteção judiciária, ainda nos casos em que o Habeas Corpus não mereça conhecimento, convencionaram os tribunais e julgadores em conceder a ordem de ofício, diante de flagrante ilegalidade ou teratologia.

Não se trata de desfigurar a finalidade do Habeas Corpus, mas sim de consagrar a sua índole mandamental e estatura constitucional, interpretando-o sistematicamente em relação ao teor do artigo 5º, inciso XXXV, da Constituição, segundo o qual “a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito”.

Por fidelidade incondicional à Lei não pode o Poder Judiciário, ao deixar de conhecer o Habeas Corpus, deixar de suprimir os efeitos de ato ilegal ou teratológico: esta é a finalidade da concessão da ordem de HC de ofício.

Inclusive, rememora-se a possibilidade da expedição de Habeas Corpus de ofício não só no âmbito dos autos de ação mandamental, mas também em recursos criminais e excepcionais, como nos recursos especial e extraordinário, os agravos (artigo 1.042 do CPC) e agravos regimentais neles interpostos (artigo 1.030, §2º, do CPC) e dirigidos aos Tribunais de Justiça e Tribunais Regionais Federais.

Com a inclusão do artigo 647-A ao Código de Processo Penal pela Lei Federal nº 14.836/2024, legalizou-se o procedimento já adotado pelo Poder Judiciário, contemplando a noção de que será expedida a ordem de ofício no âmbito de ações autônomas de impugnação ou recursos, acrescentando-se a ressalva de que a autoridade interessada na expedição da ordem de ofício deve atentar-se aos limites de sua competência jurisdicional — porque o artigo 654, §2º, do CPP já disciplinava acerca da expedição do Habeas Corpus de ofício.

Preliminarmente, considerando que “não se presumem na lei palavras inúteis” [7], constata-se que a frase “no âmbito de sua competência jurisdicional” constante no “caput” do artigo 647-A do CPP pode resultar ao intérprete dois significados distintos: o primeiro, de que a autoridade não pode se julgar incompetente para conhecer do writ ou recurso e, posteriormente, conceder a ordem de Habeas Corpus de ofício; o segundo, de que é apenas defeso à autoridade judicial a expedição de ordem de ofício em processo que não tenha sido distribuído sob a sua competência jurisdicional (ainda que deixe de conhecer, por incompetência jurisdicional para tanto, a ação autônoma ou recurso em que esteja veiculado o pedido).

Em breve exemplo dos efeitos da primeira interpretação, excetuando-se os casos em que cabível a reclamação constitucional, não pode o jurisdicionado impetrar Habeas Corpus ou recurso ordinário em HC no Superior Tribunal de Justiça e almejar a expedição da ordem de ofício contra ato praticado por autoridade que não esteja prevista no rol do artigo 105, inciso I, alínea “c” e inciso II, alínea “a”, da Constituição.

Por outro lado, exemplifica-se o efeito da segunda interpretação, sob a luz da atual redação do artigo 647-A, “caput”, do CPP: uma vez admitido no Tribunal de origem e recebido no STF, não seja conhecido recurso extraordinário interposto com fulcro no artigo 102, inciso III, alínea “a”, da Constituição da República sob o argumento de que é reflexa a ofensa à Constituição alegada pelo recorrente não vedaria a expedição da ordem de HC de ofício pela Suprema Corte, simplesmente por ser incompetente para conhecer do recurso que aportou em seu âmbito.

HC concedido de ofício por autoridade incompetente

Em verdade, isso consubstancia um debate a respeito da legalidade da concessão do Habeas Corpus de ofício por autoridade incompetente para conhecer da impetração. Recentemente, debruçou-se a Suprema Corte sobre a controvérsia no julgamento do HC 134.240/MT [8], embora tenha a solucionado muito antes: no julgamento do HC 85.185/SP [9], o acórdão relatado pelo ministro Cezar Peluso subscrito pela unanimidade do Tribunal Pleno, determina-se que a aplicação da Súmula nº 691 do STF [10] não afasta do Supremo Tribunal Federal o poder de expedir de ofício a ordem de Habeas Corpus, caso atendidos os requisitos legais.

Com efeito, a amplitude do Habeas Corpus para cessar coação ou constrangimento ilegais, enquanto provimento concedido de ofício pelo Poder Judiciário e antes de eventualmente importar em menosprezo à finalidade da ação mandamental, representa a verdadeira literalidade do artigo 5º, inciso LXVIII, da Constituição da República.

Dentre as duas interpretações aventadas, a segunda se revela mais correta não somente por este ângulo, mas também por uma perspectiva teleológica: ao justificar o Projeto de Lei 3.453/2021 que resultou na Lei Federal nº 14.836/2024, o deputado federal Rubens Pereira Júnior nada menciona acerca de qualquer intenção direcionada ao controle do Habeas Corpus ou, ainda, o posicionamento da competência jurisdicional como pressuposto para a expedição da ordem de ofício.

No plano semântico, ainda, a expressão “no âmbito de sua competência jurisdicional” recebe os contornos democráticos quando contraposta com o parágrafo único instituído pelo artigo em comento, segundo o qual conceder-se-á o HC de ofício “ainda que não conhecidos a ação ou o recurso em que veiculado o pedido de cessação de coação ilegal”.

Em outras palavras, caso o writ (ou o recurso) não seja conhecido em razão da incompetência do julgador ou do colegiado e nele o paciente (ou recorrente) alegue contrariedade ao ordenamento jurídico da qual decorra violência ou coação ilegal em sua liberdade de locomoção, ainda se aventa a hipótese de se expedir a ordem de ofício.

Conclusão

Por fim, é notável que o Habeas Corpus sofreu interpretações diversas pela jurisprudência do Supremo Tribunal Federal desde o século 19, sendo a contemporaneidade reveladora de um amadurecimento na compreensão dos Ministros acerca da amplitude do instrumento.

Dito isso, a interpretação teleológica do artigo 647-A, “caput” e parágrafo único, do Código de Processo Penal não deve enveredar para a atribuição de efeitos restritivos à envergadura do Habeas Corpus, que deve ser ampla e mais favorável ao paciente ou recorrente, admitindo-se a expedição da ordem de ofício por qualquer autoridade judicial que se debruce em  exercício de sua competência sobre processo judicial e no qual se retrate decisão ilegal ou teratológica da qual resulte coação ou constrangimento ilegal.


[1] Impetrado em abril de 1892 por Rui Barbosa em que contestava atos do marechal Floriano Peixoto. STF – HC 300. Relator Ministro Costa Barrada. Voto Vencido do Ministro Pisa e Almeida. TP – Tribunal Pleno. Julgado em 23/04/1892. COSTA, Edgard. Os Grandes Julgamentos. RJ. v. 1, Ed. Civilização Brasileira, 1964, p. 26-33.

[2] BALEEIRO, Aliomar. O Supremo Tribunal Federal, esse outro desconhecido. Rio de Janeiro, Forense, 1968. p. 63.

[3] LESSA, Pedro. Do Poder Judiciário / Pedro Lessa; apresentação: Lenio Luiz Streck. Rio de Janeiro, Forense, 2022. p. 288.

[4] STF – HC 36.801/DF. Relator Ministro Convocado Candido Lôbo. Voto do Ministro Nelson Hungria. TP – Tribunal Pleno. Julgado em 12/05/1959.

[5] STF – HC 157.627 AgR/PR. Relator Min. Edson Fachin. Redator do acórdão Min. Ricardo Lewandowski. T2 – Segunda Turma. Julgado em 27/08/2019. Publicado em 17/03/2020.

[6] MENDES, Gilmar Ferreira. O Controle da Constitucionalidade no Brasil.

[7] MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e aplicação do direito / Carlos Maximiliano. Rio de Janeiro, Forense, 2005. p. 204.

[8] STF – HC 134.240/MT. Relator Min. Edson Fachin. T1 – Primeira Turma. Julgado em 28/06/2016. Publicado no DJe-197 de 15/09/2016.

[9] STF – HC 85.185/SP. Relator Ministro Cezar Peluso. TP – Tribunal Pleno. Julgado em 10/08/2005. Publicado no DJ em 01º/09/2005.

[10] Súmula nº 691 do STF: Não compete ao Supremo Tribunal Federal conhecer de habeas corpus impetrado contra decisão do Relator que, em habeas corpus requerido a tribunal superior, indefere a liminar.

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