Extinção do cargo de vogal: retrocesso social

A proposta de extinção do cargo de vogal nas Juntas Comerciais, conforme prevista no Projeto de Lei nº 3.956/2019, ameaça profundamente a pluralidade e a representatividade que são pilares fundamentais dessas instituições.

Desde a promulgação da Lei nº 8.934, de 18 de novembro de 1994, que regulamenta o Registro Público de Empresas Mercantis, os vogais desempenham um papel essencial ao garantir que as decisões colegiadas sejam embasadas por diferentes setores da sociedade. Eliminá-los seria comprometer a integridade, a imparcialidade e o caráter democrático das juntas.

A justificativa apresentada pelo relator do PL, Alessandro Vieira (MDB), que defende a substituição dos vogais por servidores com conhecimentos técnicos em Direito Comercial, parte de uma premissa perigosa. Ao centralizar o processo decisório nas mãos de poucos servidores, ignoram-se os diferentes olhares e interesses que sempre coexistiram nas Juntas Comerciais, para favorecer uma visão puramente tecnicista e, em última análise, excludente.

É ilusório acreditar que o conhecimento técnico, por si só, assegura decisões justas e equilibradas. A pluralidade proporcionada pelos vogais é o que enriquece o debate e assegura que cada decisão reflita não apenas um saber específico, mas os interesses coletivos da sociedade.

Além disso, vale lembrar que os vogais são indicados a partir de entidades de classe e categorias profissionais, o que garante que diferentes realidades econômicas estejam presentes nas discussões. Em um momento em que o País precisa de mais diálogo e colaboração entre os setores produtivos e o Estado, eliminar esse canal de participação é um verdadeiro retrocesso.

Confiança

A extinção desse cargo não apenas fragiliza a estrutura das Juntas Comerciais, mas também coloca em risco a confiança que o empresariado deposita nesse sistema. Ao reduzir a representatividade, as decisões dessas instituições podem perder legitimidade, afastando-as da realidade e das necessidades do setor produtivo.

Nos últimos anos, a CNC tem se posicionado contra essa tentativa de reforma, seja no âmbito do Projeto de Lei nº 3.956/2019, seja em outras iniciativas legislativas semelhantes, como nas Emendas 20 e 127, ambas de autoria do deputado Alexis Fonteyne (Novo/SP). O mesmo posicionamento foi mantido durante a tramitação da MP nº 876/2019 e da MP nº 1040/2021.

O motivo é claro: as Juntas Comerciais desempenham um papel fundamental na regulamentação e formalização das atividades empresariais no Brasil, e sua estrutura deve ser preservada para garantir o equilíbrio entre as diferentes partes interessadas.

É preciso também destacar o risco de centralização excessiva de poder, caso a proposta avance. A ausência dos vogais, que hoje atuam como contrapeso às decisões dos presidentes e relatores das Juntas, poderia abrir espaço para decisões menos transparentes e menos representativas dos interesses da sociedade. Em vez disso, o aprimoramento do sistema deveria focar em modernizar e fortalecer a atuação dos vogais, preservando o caráter colegiado e a pluralidade que sempre nortearam as Juntas Comerciais.

A CNC defende que qualquer reforma nas Juntas Comerciais deve considerar o equilíbrio entre eficiência técnica e representatividade democrática. A extinção dos vogais é uma medida extrema e desnecessária que, em vez de melhorar, enfraquece a estrutura administrativa dessas instituições.

O próprio governo federal emitiu Nota Técnica SEI nº 303/2024/MEMP defendendo que os vogais desempenham papel essencial na diversidade de opiniões e na legitimidade das decisões e devem ser mantidos. Da mesma forma, somos favoráveis a ajustes pontuais que otimizem o funcionamento das Juntas, mas sem comprometer sua pluralidade.

Por isso, conclamamos o Senado a rejeitar essa proposta e garantir que as Juntas Comerciais continuem sendo um espaço de pluralidade, transparência e equilíbrio, respeitando a importância de cada setor da economia no processo decisório.

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Ministra do STJ propõe que atrasados do INSS sejam pagos a partir da citação

Para a ministra Maria Thereza de Assis Moura, do Superior Tribunal de Justiça, os benefícios previdenciários reconhecidos ou revisados por decisão judicial devem ter como termo inicial de pagamento a data da citação do INSS.

Maria Thereza de Assis Moura 2024
Relatora, ministra Maria Thereza de Assis Moura propôs tese mais benéfica ao INSS – Gustavo Lima/STJ

 

 

 

Essa foi a tese proposta por ela à 1ª Seção do STJ em um julgamento sob o rito dos recursos repetitivos. A definição de uma posição vinculante foi adiada por pedido de vista do ministro Paulo Sérgio Domingues.

O tema é de imenso impacto para o segurado do INSS e para advogados previdenciários, e vai decidir a situação de milhares de ações que tramitam principalmente nos Juizados Especiais Federais.

A controvérsia diz respeito aos casos em que o segurado pede um benefício previdenciário ao INSS, mas a solicitação é negada por não ter sido apresentada documentação mínima.

A negativa administrativa dá ao segurado o interesse de agir para pedir na Justiça o benefício, desta vez com os documentos necessários. É o que vai gerar, também, honorários de sucumbência em favor dos advogados, em caso de deferimento.

Uma das alternativas seria concluir que o termo inicial dos efeitos financeiros dos benefícios previdenciários concedidos ou revisados judicialmente é a data do requerimento administrativo feito ao INSS.

A argumentação em favor dessa posição, mais benéfica aos segurados, é de que a única possibilidade de subtração de valores devidos seja a da prescrição das parcelas vencidas há mais de cinco anos.

Além disso, segurados têm encontrado dificuldades para lidar com pedidos de benefícios, que passam por indeferimento automático a partir de análises feitas por sistemas automatizados.

O voto da ministra Maria Thereza, por outro lado, adota uma posição mais favorável ao INSS ao indicar que, superada a questão do interesse de agir, o termo inicial do pagamento será a data da citação da autarquia, caso o direito tenha sido comprovado de determinadas maneiras ali listadas.

Interesse de agir

Um dos objetivos do recurso é discutir se há interesse de agir nos casos em que o documento novo — apresentado apenas em juízo — já estava disponível no momento do requerimento ao INSS, mas não foi juntado pelo segurado.

Por causa do pedido de vista, a ministra Maria Thereza de Assis Moura não leu o voto. E a tese proposta não fez qualquer referência a essa discussão.

Ela é relevante porque pode obrigar o segurado a fazer novo pedido administrativo, desta vez com a documentação correta, antes de se habilitar a ajuizar ação. Isso afeta, portanto, a judicialização do tema, que é amplíssima no Brasil.

Há ainda os casos em que o interessado não tinha acesso ao documento ao fazer o pedido administrativo. Nessas situações, abre-se a hipótese de avaliar a natureza do documento e o grau de controle que o requerente tinha de sua disponibilidade.

A tese proposta pela ministra foi a seguinte:

Superada a ausência do interesse de agir, o termo inicial dos efeitos financeiros dos benefícios previdenciários concedidos ou revisados judicialmente será a data da citação, caso o direito tenha sido comprovado por:

a) Documento não juntado ao processo administrativo;

b) Testemunha não apresentada em justificação administrativa designada para tanto;

c) Prova pericial após ausência de apresentação da pessoa ou coisa a ser periciada ou qualquer forma de falta de colaboração com a perícia administrativa; ou

d) Outra prova qualquer, quando incumbir à pessoa interessada a fazê-lo, sem ônus excessivo, e for conferida a devida oportunidade no processo administrativo.

REsp 1.905.830
REsp 1.913.152
REsp 1.912.784

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Tutela específica de obrigação de fazer nos contratos de seguro

O Direito Processual Civil brasileiro disciplina o julgamento dos conflitos relacionados com o descumprimento de obrigações de fazer, não fazer e entregar coisa. Quando julga procedente o pedido, o juiz deve conceder a tutela específica ou determinar providências que assegurem a obtenção do resultado prático equivalente ao adimplemento (CPC, artigo 497).

O regime da tutela específica foi introduzido em 1990 pelo Estatuto da Criança e do Adolescente (artigo 213) e pelo Código de Defesa do Consumidor (artigo 84), seguidos pela Lei nº 8.952 de 1994, uma das micro reformas por que passou o CPC/73 naquela época (artigo 461). Foi uma reação do sistema. A tutela ressarcitória (sancionatória) tradicional se mostrou insuficiente para atender às pretensões insatisfeitas quando o bem da vida perseguido não era pagamento em dinheiro, mas sim uma atividade pessoal do devedor [1]. Em muitos casos, sobretudo nas obrigações infungíveis, o ressarcimento do dano já consumado não passa de um melancólico “prêmio de consolação”, na expressão de Barbosa Moreira, para quem “nem todos os tecidos deixam costurar-se de tal arte que a cicatriz desapareça por inteiro” [2].

Era preciso imprimir mais efetividade à prestação jurisdicional para torná-la capaz de inibir a ameaça do ilícito, evitar sua repetição ou cessar sua continuidade, campo de trabalho das tutelas inibitórias e reintegratórias (de remoção) [3], movimento iniciado na doutrina italiana apontando um catálogo de “novos direitos” que reclamavam proteção especial. A falta de procedimento para regular a execução de obrigação de fazer e não fazer constituía uma obscura terra de ninguém (“un’ambigua terra di nessuno”), queixava-se Sergio Chiarloni nos anos 80 [4].

As preocupações se voltaram para os direitos não patrimoniais da personalidade (vida, integridade física e psíquica, liberdade, honra, imagem), da concorrência, da propriedade intelectual, práticas abusivas no mercado de consumo, degradações ao meio ambiente, conflitos de família [5] etc. Com ênfase no direito fundamental do credor [6], a preferência do sistema pela tutela específica convoca o devedor a produzir resultado igual, ou o mais próximo possível, ao que produziria se tivesse a prestação sido cumprida, sob pena de medidas de pressão psicológica para curvá-lo ao adimplemento [7].

Conversão

Entretanto, existem limites à busca do cumprimento “in natura”. A lei dispõe que a obrigação pode ser convertida em perdas e danos em duas hipóteses: (a) se o autor requerer essa conversão ou (b) se for impossível a tutela específica ou a obtenção de tutela pelo resultado prático equivalente (CPC, artigo 499). Vale dizer, se a tutela específica não puder ser realizada, porque se tornou inviável, o interessado pode requerer um resultado prático equivalente. Mas se não quiser nem uma coisa nem outra, ou seja, nem o objeto específico nem algo que lhe faças as vezes, o credor pode requerer uma indenização que compense o prejuízo gerado pela inadimplência.

Na técnica processual, ele pode ajuizar diretamente sua pretensão ressarcitória ou formular seus pedidos em cumulação eventual (se não me der o bem A, quero a indenização B[8]. Nada impede também que solicite a conversão no curso do processo quando a tutela específica não tiver mais aderência à realidade material [9], seja na fase de conhecimento [10], seja no cumprimento de sentença [11].

Aqui, a grande discussão era a seguinte: o órgão judicial pode converter a pretensão específica para o procedimento de perdas e danos sem requerimento do credor? A resposta é sim. As hipóteses são alternativas: requerimento do autor ou impossibilidade de cumprimento da prestação. A conversão pode ser voluntária, se o autor preferir, mas pode também ser aplicada de ofício diante das circunstâncias pessoais ou materiais que impossibilitam o cumprimento da obrigação original (conversão compulsória) [12], gatilho que vem do Código de 1973 [13], seguido pelo atual [14].

Nada impede também o devedor de requerer a conversão em perdas e danos, desde que prove a impossibilidade de cumprir a obrigação. É o caso do provedor de internet que, condenado a reativar o perfil do usuário indevidamente excluído da plataforma, consegue demonstrar que é tecnicamente inviável a recuperação do conteúdo apagado do sistema [15].

Agora façamos o caminho inverso. Uma vez pleiteada a conversão pelo autor, pode o órgão discordar para manter o pleito de recebimento do objeto específico? A resposta é negativa. Não se pode impor prestação original a quem já desistiu dela pelos desgastes da inadimplência. A conversão constitui um direito do credor de preferir o ressarcimento e seguir nele até o fim (CC, artigo 247 e 249). Se ficar evidenciado algum abuso de sua parte, isso não lhe retira a pretensão ressarcitória, podendo render algum reflexo negativo na liquidação do dano por falta de mitigação do próprio prejuízo [16].

Portanto, o fato de a lei autorizar a conversão da demanda em perdas e danos, quando houver requerimento do autor ou quando impossível a tutela específica, não significa que, na situação contrária, a demanda de ressarcimento pode ser “convertida” de ofício em tutela específica. Uma vez realizada a conversão, ou preenchidas as condições para tanto, nem o juiz pode impor e nem o réu pode “insistir” no cumprimento de uma obrigação a contragosto do autor. Seria muita invasão em sua esfera de disponibilidade [17].

Como lembrado de início, tudo foi pensado para resolver a crise dos direitos não patrimoniais, o que justifica o esforço pela tutela específica dentro de certos limites. Fora do seu raio, o sistema abre a porta da pretensão ressarcitória.

O § único do artigo 499 do CPC

No entanto, as coisas mudaram com a Lei nº 14.833, de 27/3/2024. O Congresso introduziu um § único no artigo 499 do CPC, que ganhou a seguinte redação:

“Art. 499. A obrigação somente será convertida em perdas e danos se o autor o requerer ou se impossível a tutela específica ou a obtenção de tutela pelo resultado prático equivalente.

Parágrafo único. Nas hipóteses de responsabilidade contratual previstas nos arts. 441618 757 da Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002 (Código Civil), e de responsabilidade subsidiária e solidária, se requerida a conversão da obrigação em perdas e danos, o juiz concederá, primeiramente, a faculdade para o cumprimento da tutela específica.”

O novo dispositivo está dizendo agora que, mesmo após formulado o pleito de conversão em perdas e danos, o juiz concederá, primeiramente, a faculdade para o cumprimento da tutela específica nos casos de vícios redibitórios (CC, artigo 441), nos contratos de empreitada (CC, artigo 618), de seguros (CC, artigo 757) e na responsabilidade subsidiária e solidária.

A redação não ficou clara. O verbo “conceder” é transitivo indireto. Quem concede, concede algo a alguém. Faculdade conferida a quem? Ao sujeito passivo? Parece que sim. Ora, se o juízo deve consultar o devedor sobre o interesse dele em cumprir a obrigação, então significa, no fundo, que o credor deixou de ser o titular do direito de preferir o caminho das perdas e danos. A lei transferiu àquele a prerrogativa de avaliar a conveniência da medida.

Aparentemente sutil, a modificação mexe bastante no sistema processual. O que antes foi estruturado para oferecer tutela específica vocacionada ao cumprimento de prestações de cunho não patrimonial a critério do credor, agora está sendo esgarçado para impor obrigações tipicamente patrimoniais a serviço do devedor. Uma supervalorização da tutela específica com mudança no centro de controle.

Múltiplas interrogações estão brotando do novo parágrafo. Qual foi a razão dessa reforma? O Projeto de Lei nº 2.812/2013 nasceu na Câmara dos Deputados por iniciativa dos parlamentares Luciano Bivar (União-PE) e Fernando Marangoni (União-SP). A justificativa era a necessidade de conceder oportunidade para o devedor honrar sua obrigação como forma de preservar a intenção original das partes, especialmente quando o inadimplemento não foi intencional ou foi causado por circunstâncias alheias à vontade do devedor. Registrou-se também que era preciso prestigiar a conservação dos negócios jurídicos e garantir a execução menos gravosa.

Evidente que a motivação política carrega uma crítica às pretensões ressarcitórias. Porém, o projeto parece preocupado com situações muito laterais que não justificam tamanha mudança no regime processual, com reflexo no campo das obrigações. Muitas vezes, o conflito decorrente da inadimplência gerou um estado de coisas tão desgastante que, mesmo sendo possível sua continuidade, o credor não confia e nem aceita mais a presença do prestador de serviço em sua residência ou empresa para continuação de uma obra que não deu certo por uma série de motivos. Não é justo que essa decisão se transforme em direito potestativo na mão do devedor.

Seguros

Avançando um pouco mais, o que têm os contratos de seguro a ver com isso? Os segurados, beneficiários e terceiros prejudicados têm pretensões tipicamente indenizatórias, fundadas no descumprimento de obrigação de pagar quantia certa, sujeitas às condições contratuais e limites de cobertura. Contam-se nos dedos as obrigações de fazer da companhia de seguros: prestar o serviço de regulação do sinistro, proceder à contratação, à prorrogação ou à renovação do contrato em determinadas situações particulares, constituir reserva técnica etc.

Talvez alguma proximidade com o seguro-garantia de obrigações contratuais. Excepcionalmente, em obras e serviços de engenharia, havendo inadimplência no contrato de prestação de serviço, a seguradora pode assumir o compromisso de dar prosseguimento ao projeto para concluí-lo sob sua responsabilidade. É a chamada cláusula de retomada [18], uma experiência da nova Lei de Licitações [19], buscando resolver a crise das obras públicas inacabadas no Brasil [20].

Entretanto, antes de assumir a direção dos trabalhos, a seguradora precisa instaurar o processo de regulação do sinistro à luz do contrato de seguro. Imaginemos então que ela investigue a crise contratual, apure suas causas, mas conclua pela ausência de cobertura, o que significa que não deve assumir a obra e nem pagar indenização ao segurado. Diante desse fato, o segurado ingressa em juízo com ação cominatória para obrigá-la a tocar o serviço mal-acabado, mas depois pede sua conversão em perdas e danos. De acordo com o § único do artigo 499 do CPC, o juiz deve perguntar à companhia de seguros o que ela prefere fazer: executar a obra por meio de terceiros ou pagar a indenização ao segurado?

A essa altura dos acontecimentos, já recusada a cobertura, é muito provável que ela não queira e nem possa assumir a execução do projeto no lugar do agente inadimplente. Aceitará a conversão em perdas e danos. Até pelo princípio da menor onerosidade (CPC, artigo 805), depositar a indenização em juízo, se for o caso, será muito mais palatável à seguradora do que providenciar a execução do contrato por intermédio de empreiteira às suas custas.

Difícil enxergar alguma utilidade prática nessa prerrogativa para os contratos de seguro. Mais estranho ainda ficará essa “consulta” quando o segurado já optou por ajuizar originalmente sua pretensão de cobrança da indenização securitária.

A benesse cria distinções. Parece aplicável a todos os seguros, incluindo contratos de consumo e empresariais, massificados e grandes riscos, mas privilegia corresponsáveis solidários em detrimento dos não solidários. Como fica o princípio da igualdade? É uma boa pergunta formulada por José Miguel Garcia Medina [21]. Aliás, curioso observar que, surgindo a necessidade de conversão na fase de conhecimento, o juiz terá que dizer antecipadamente se existe ou não solidariedade, quando essa seria uma questão a ser dirimida pela sentença ou decisão parcial de mérito.

Na verdade, não havia necessidade de mencionar o artigo 757 do Código Civil numa regra processual com tamanha generalidade. Tampouco se teve preocupação de ouvir especialistas para entender qual seria o impacto da proposta na relação securitária. Esse mesmo dispositivo pode sofrer alterações no futuro próximo, seja pelo processo de atualização do Código Civil no Congresso Nacional, seja por força do Projeto de Lei nº 2.597/2024, que propõe a revogação do seu Capítulo XV para estabelecer uma lei específica em matéria de seguros.

É preciso ter cautela. O acesso à Justiça que prestigiou o sistema de tutelas específicas, com balanceamentos graduais à disposição do credor, é o mesmo acesso à Justiça que pode sair machucado agora com as extravagâncias que essa inversão de papeis pode causar na dinâmica dos litígios. Para dar um tempero ao § único do artigo 499 do CPC, sua leitura poderia ser a seguinte: o juiz deve consultar as partes sobre a possibilidade de cumprimento da tutela específica. Apenas um convite ao diálogo e não uma imposição a contragosto do credor.

Esta coluna é produzida pelos professores Ilan Goldberg e Thiago Junqueira, bem como por convidados.


[1] DIDIER JR, Fredie et alCurso de Direito Processual Civil – Execução. 9ª ed., Salvador: Juspodium, 2019, v. 5, p. 593.

[2] Essa crítica vinha em construção: BARBOSA MOREIRA, J. C. Tutela sancionatória e tutela preventiva. Temas de direito processual (2ª série). São Paulo: Saraiva, 1980, p. 21-30.

[3] ZAVASCKI, Teori Albino. Antecipação da tutela e obrigações de fazer e de não fazer. Gênesis – Revista de Direito Processual Civil, v. 2, 1997, p. 111.

[4] CHIARLONI, Sergio. Misure coercitive e tutela dei diritti. Milano: Giuffrè, 1980, p. 102; RAPISARDA, Cristina. Profili della Tutela Civile Inibitoria. Pádova: Cedam, 1987, p. 77.

[5] MARINONI, Luiz GuilhermeTutela inibitória (individual e coletiva). 4ª ed., São Paulo: RT, 2006, p. 272.

[6] GUERRA, Marcelo Lima. Direitos fundamentais e a proteção do credor na execução civil. São Paulo: RT, 2003, p. 116.

[7] BARBOSA MOREIRA, J. C. A tutela específica do credor nas obrigações negativas. Temas de direito processual (2ª série). São Paulo: Saraiva, 1980, p. 33; MONNERAT, Fábio Victor da Fonte. Execução específica das obrigações de fazer e não fazer. In: ARRUDA ALVIM et al (Coord.). Execução civil e temas afins do CPC/1973 ao novo CPC – Estudos em homenagem ao Professor Araken de Assis. São Paulo: RT, 2014, p. 338.

[8] SCARPINELLA BUENO, Cassio. Manual de Direito Processual Civil. 8ª ed., São Paulo: Saraiva, 2022, p. 527.

[9] WAMBIER, Teresa Arruda Alvim et al. Comentário ao artigo 499. Primeiros comentários ao novo Código de Processo Civil: artigo por artigo. 2ª ed., São Paulo: RT, 2016, p. 898.

[10] Enunciado 525 do FPPC: “A produção do resultado prático equivalente pode ser determinada por decisão proferida na fase de conhecimento”.

[11] STJ, 3ª T., REsp 1.760.195-DF.

[12] CUNHA, Leonardo Carneiro da. CPC comentado. Rio de Janeiro: Forense, 2023, p. 778.

[13] STJ, 4ª T., AgInt no Agravo em RESP 2.081.278-SP.

[14] STJ, 4ª T., AgInt nos EDcl no RESP 1.821.265-SP.

[15] Precedentes envolvendo o Facebook: TJSP, 31ª Câmara de Direito Privado, Agravo nº 2184697-88.2024.8.26.0000, Des. Antonio Rigolin, j. 12.07.2024; 19ª Câmara de Direito Privado, Agravo nº 2144045-29.2024.8.26.0000, Des. Cláudia Tabosa Pessoa, j. 13.08.2024.

[16] TALAMINI, Eduardo. Tutela relativa aos deveres de fazer e de não fazer e sua extensão aos deveres de entrega de coisa. 2ª ed., São Paulo: RT, 2003, p. 331.

[17] Interessante reflexão à luz do CPC anterior: NEVES, Daniel Amorim Assumpção. A Tutela Específica e o Princípio Dispositivo – Ampla Possibilidade de Conversão em Perdas e Danos por vontade do Autor – https://blog.grupogen.com.br/juridico/.

[18] Circular SUSEP nº 662/2022, art. 21, inc. II.

[19] Lei nº 14.133/2021, art. 102.

[20] MELO, Roque de Holanda. A busca pela efetividade do seguro garantia nas contratações públicas. In: GOLDBERG, Ilan & JUNQUEIRA, Thiago (Coord.). Direito dos Seguros em Movimento. São Paulo: Foco, 2024, p. 306.

[21] MEDINA, José Miguel Garcia. Tutela específica mitigada: alteração do CPC pela Lei 14.833, de 27/3/2024 – https://www.conjur.com.br/2024-mar-28/a-tutela-especifica-mitigada-a-alteracao-do-cpc-pela-lei-14-833-de-27-3-2024/.

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Pensionamento: fórmula do valor presente; fator tempo e sua influência no percentual de deságio

Em artigo já publicado [1], defendi a utilização da fórmula do valor presente como sendo o método científico adequado para se calcular o valor atual e justo de um pensionamento que seria pago em prestações ao longo de muitos anos, mas que, por desejo do credor, é antecipado para os dias atuais.

A fórmula matemática não é simples, pois envolve cálculos exponenciais, próprios da área financeira, sendo muito utilizada pelas instituições bancárias nos contratos de mútuo.

Não é, por assim dizer, uma área científica em que os profissionais do direito se sintam à vontade. Muito pelo contrário, algumas conclusões matemáticas podem se tornar incompreensíveis para o desenvolvimento do raciocínio jurídico preocupado mais com a disciplina legal, sua interpretação e o senso do justo.

Essas mentes vocacionadas para o humanismo muitas vezes questionaram o motivo de nos impor a matemática como disciplina obrigatória nas primeiras fases da nossa vida estudantil, mas agora, quando do exercício prático da atividade jurídica, constatamos como as ciências se conjugam e se entrelaçam e o quanto é importante aprimorarmos nossos conhecimentos em áreas paralelas à nossa atividade principal.

Mais recentemente, algumas turmas do Tribunal Superior do Trabalho passaram a adotá-la como critério apropriado para cálculo do pensionamento que será pago em parcela única. Vejam-se alguns precedentes:

RECURSO DE REVISTA. VIGÊNCIA DA LEI Nº 13.467/2017. INDENIZAÇÃO POR DANOS MATERIAIS. PAGAMENTO EM PARCELA ÚNICA. FÓRMULA DO VALOR PRESENTE.1. A jurisprudência desta 1ª Turma é firme no sentido de que o critério de arbitramento mais adequado para apuração do valor do pensionamento convertido em parcela única, com observância do princípio da reparação integral, é o que utiliza a fórmula matemática destinada à obtenção do “valor presente”.2. O método, muito utilizado pelas instituições financeiras para deduzir os juros incorporados nos empréstimos na hipótese de pagamento antecipado, leva em consideração o valor periódico e o tempo de duração do pensionamento, considerando-se adequado o ressarcimento, em parcela única, de montante que, submetido à determinada taxa de juros, permita uma retirada periódica que corresponda à renda mensal e, ao mesmo tempo, amortize parte do capital de forma que ele se esgote ao final do período de duração estipulado. 3. A planilha deverá ser utilizada apenas para calcular o valor das parcelas futuras do pensionamento, pois, quanto aos valores pretéritos ao momento do pagamento, o pensionamento deverá ser quitado pelo valor integral. Recurso de revista conhecido e provido” (RR-0020002-66.2022.5.04.0233, 1ª Turma, Relator Ministro Amaury Rodrigues Pinto Junior, DEJT 14/05/2024)

(…)

RECURSO DE REVISTA. INTERPOSIÇÃO NA VIGÊNCIA DA LEI N.º 13.467/2017. PENSÃO MENSAL. PAGAMENTO EM PARCELA ÚNICA. REDUTOR. FÓRMULA DO VALOR PRESENTE. Conforme entendimento firmado nesta Turma de julgamento, uma vez identificada situação em que se justifica a condenação ao pagamento de pensão ao trabalhador e tendo o órgão julgador, no exercício do seu poder discricionário, decidido pela conversão da pensão em parcela única, na forma facultada pelo art. 950, parágrafo único, do Código Civil, o cálculo da indenização deve observar a denominada “fórmula do valor presente” ou “fórmula do valor atual”. Usual em sistemas contábeis e de gestão de investimentos, tal fórmula permite conhecer o valor que corresponde, no momento atual, à retirada de prestações mensais futuras, descontado o custo do capital previamente estabelecido. Para extrair-se o montante devido, necessário, apenas, que seja informado o valor da pensão mensal fixada e a quantidade de parcelas deferidas, que conforme jurisprudência sedimentada neste TST deve corresponder ao número de meses que faltarem para atingir o tempo de expectativa de vida do interessado, segundo a tabela de mortalidade do IBGE. Ainda conforme o entendimento encampado, a taxa de juros a ser descontada deve ser 0,5% ao mês, compatível com o índice dos investimentos mais conservadores, aplicando-se o redutor somente em relação às parcelas futuras (vincendas), pois apenas sobre elas ocorre a antecipação do capital. Precedentes. Recurso de Revista conhecido e parcialmente provido ” (RRAg-20011-94.2017.5.04.0203, 1ª Turma, Relator Ministro Luiz Jose Dezena da Silva, DEJT 13/05/2024).

(…)

DANOS MATERIAIS. PENSÃO MENSAL. DEFERIMENTO EM PARCELA ÚNICA. ART. 950, PARÁGRAFO ÚNICO, DO CÓDIGO CIVIL. REDUTOR. UTILIZAÇÃO DA METODOLOGIA DO VALOR PRESENTE. TRANSCENDÊNCIA POLÍTICA RECONHECIDA . Constatada a incapacidade permanente do empregado, total ou parcial, em virtude de acidente de trabalho ou doença a ele equiparada, incumbe ao magistrado proceder à apuração do valor da indenização devida, além da forma de sua execução, a fim de assegurar real efetividade à condenação. Contudo, em caso de reparação por danos materiais, deferida na forma de pensionamento, cujo pagamento foi autorizado em parcela única, nos moldes do artigo 950, parágrafo único, do Código Civil, o quantum indenizatório resultante da incapacidade deve, ainda, considerar os efeitos da antecipação das parcelas. Desse modo, não pode ser limitada ao mero somatório do valor correspondente às pensões mensais a que faria jus o empregado, porquanto indispensável, também, a adequação da condenação à modalidade de sua execução. Atento a esta situação, o legislador atribui ao julgador a responsabilidade pelo arbitramento, a fim de atender o objetivo da reparação integral do dano sofrido pela vítima (artigo 944, Código Civil), sem ocasionar excessivo prejuízo ao empregador, ante a vedação do enriquecimento sem causa. Contudo, a utilização de um percentual único, a ser aplicado indistintamente em todos os casos, como tem ocorrido na jurisprudência desta Corte, inclusive desta Turma, não parece ser a solução mais adequada, uma vez que dissociada do conceito de justiça, tendo em vista os diferentes períodos de apuração do montante devido, resultante do interregno entre a data do pagamento antecipado e o termo final a que se refere o cálculo. Ressalte-se também que a antecipação do valor pago em cota única também tem consequências financeiras, pois não se pode deixar de considerar as vantagens econômicas propiciadas ao credor, ao receber a quantia total de uma única vez e antecipadamente, situação mais vantajosa do que recebê-la de forma parcelada, ao longo de vários anos. Essa é a conclusão lógica que se deriva da máxima de que “o dinheiro tem valor no tempo”. Assim, revela-se mais adequada – e consequentemente justa – para as partes (credor e devedor) a utilização do método do “valor presente” ou “valor atual” para arbitramento do valor da pensão paga antecipadamente, nos termos do art.950, parágrafo único, do Código Civil. Isso porque, essa metodologia permite ao julgador a adequação do valor devido a título de indenização a cada caso concreto e atento às suas particularidades, por basear-se em critério objetivo (a definição do percentual), levar em consideração os diferentes períodos de apuração – resultantes do intervalo medido entre a data do pagamento e o termo final do cálculo – , adotar percentual de juros a incidir sobre a parcela devida mensalmente, além de também se revelar mais consentâneo com o Princípio da Razoabilidade. Precedentes. Recurso de revista conhecido e parcialmente provido” (RRAg-20650-38.2017.5.04.0551, 7ª Turma, Relator Ministro Claudio Mascarenhas Brandao, DEJT 16/08/2024).

(…)

2 – DANOS MATERIAIS. PENSIONAMENTO. PAGAMENTO EM PARCELA ÚNICA. REDUTOR. VALOR PRESENTE. DESÁGIO. TRANSCENDÊNCIA NÃO RECONHECIDA. 1. A Subseção de Dissídios Individuais I do Tribunal Superior do Trabalho, em precedente exarado em E-ED-RR-2230-18.2011.5.02.0432 decidiu pela possibilidade da aplicação de um redutor, na hipótese de pagamento de indenização em parcela única dos danos materiais. 2. Assim, mostra-se adequada a utilização da metodologia de cálculo do valor-presente para a fixação do deságio para as parcelas vincendas, por levar em conta a remuneração mensal que seria paga à título de pensão mensal, exatamente como entendeu a Corte de origem. Agravo conhecido e não provido” (AIRR-0010338-97.2020.5.18.0004, 8ª Turma, Relatora Ministra Delaide Alves Miranda Arantes, DEJT 16/09/2024).

“(…)

“AGRAVO EM RECURSO DE REVISTA INTERPOSTO PELA RECLAMADA NA VIGÊNCIA DA LEI 13.467/2017. DANOS MATERIAIS. PENSIONAMENTO. DESÁGIO. CÁLCULO DO VALOR-PRESENTE. TRANSCENDÊNCIA NÃO RECONHECIDA. 1. De acordo com decisão proferida pela Subseção de Dissídios Individuais I, deste Tribunal Superior do Trabalho, nos autos de E-ED-RR-2230-18.2011.5.02.0432, é possível a aplicação de um redutor, na hipótese de pagamento de indenização em parcela única relativa a danos materiais. 2. Está adequada a metodologia de cálculo do valor-presente para a fixação do deságio para as parcelas vincendas, por levar em conta a remuneração mensal que seria paga a título de pensão mensal, acrescida das parcelas salariais incidentes, além do percentual da perda de capacidade, indexados pela remuneração da poupança . Agravo conhecido e não provido” (Ag-RR-24071-58.2020.5.24.0071, 8ª Turma, Relatora Desembargadora Convocada Marlene Teresinha Fuverki Suguimatsu, DEJT 25/06/2024).

Avaliação do ‘justo’ pelo percentual redutor do valor final

Outro dia, um advogado me abordou indignado pois, ao utilizar o aplicativo que calcula o valor presente de um pensionamento que seria pago em parcela única, constatou que o percentual de desconto ultrapassava 50%, quando o Tribunal Superior do Trabalho arbitra o deságio em 20 ou 30%. Questionou-me se havia justiça naquele resultado ou se havia erro de cálculo.

Como também sou da área de humanas, não soube responder de pronto o questionamento. Mas uma certeza eu tinha: a matemática não agasalha dubiedade e o resultado final não é fruto de interpretação.

Pois bem.

A fórmula é mundialmente conhecida e admitida para o fim a que se propõe, logo, já foi testada e aprovada. Caso contrário, o Poder Judiciário estaria abarrotado de ações contestando os descontos concedidos em razão do pagamento antecipado de empréstimos, além do que, como já destacado no trabalho anteriormente referido, tribunais do mundo inteiro a utilizam para calcular o pagamento antecipado de um direito devido mediante parcelas futuras.

Os elementos de cálculo são três: o valor da prestação mensal devida, o percentual de desconto e a quantidade de parcelas, todas fixadas pelo magistrado, o que afasta de pronto a ideia de que o percentual de deságio será inferior ou superior ao habitualmente fixado nos precedentes judiciais elegíveis como parâmetro.

De qualquer forma, é preciso esclarecer que, entre as variáveis da fórmula, se encontra o tempo, refletido pela quantidade de prestações futuras. Quanto maior o tempo, maior a antecipação e, consequentemente, maior o deságio. Consequência matemática de indiscutível justiça e exatidão.

Vamos a dois exemplos extremos, fazendo uso do o aplicativo que utiliza a fórmula[2]: tratemos de um trabalhador com remuneração de R$ 10.000,00, já incluída a proporção anual das férias e do 13º salário.

O período de pensionamento era de um ano, e vamos utilizar uma taxa de juros de 0,5% (como normalmente se arbitra).

Aplicando-se a fórmula, teremos que o valor presente corresponde a R$ 116.189,32. Traduzindo em percentual, corresponde a 3,17% de deságio em relação à soma dos valores que o trabalhador receberia mensalmente ao longo do ano.

Como se vê, o deságio é muito inferior ao que normalmente se arbitra nos tribunais (20 ou 30%). É pequeno, mas é justo, pois é proporcional à quantidade de tempo de antecipação.

Por outro lado, esse mesmo trabalhador que recebe os R$ 10.000,00 é beneficiado com o pagamento antecipado de um pensionamento que receberia ao longo de 20 anos. Mantida a taxa de deságio de 0,5%, teremos, ao utilizar a fórmula, o valor presente de R$ 1.395.807,72, correspondente a 41,84% de deságio em relação à soma dos valores totais que o trabalhador teria direito de receber, por mês, ao longo de 20 anos.

Mais uma vez chama-se a atenção para o percentual de deságio, agora muito superior ao arbitrado nos tribunais. É alto, mas ainda assim é justo, pois proporcional à quantidade de tempo da antecipação.

Esses dois extremos apenas realçam a imprecisão do arbitramento aleatório e invariável que, por óbvio, não leva em conta o tempo de antecipação do pagamento e, portanto, não atende ao princípio da reparação integral, podendo, por vezes, não corresponder ao valor que o trabalhador efetivamente teria direito e, em outros momentos, proporcionar-lhe uma vantagem econômica que não reflete matematicamente o direito que possui.

As situações hipotéticas acima referidas também demonstram que a ideia de “valor justo” para o pagamento do pensionamento em quota única não pode estar atrelada a um percentual fixo e indiferente ao tempo de antecipação do direito.

Erro de percepção que compromete avaliação do justo e pode ocasionar erro de cálculo

Agora retorno ao questionamento inicial do advogado para concluir que não há injustiça ou erro de cálculo, mas erro de percepção.

Não se percebe que o momento da utilização da fórmula não deverá ser aquele em que ocorreu a incapacidade, tampouco a data do ajuizamento da ação trabalhista, da prolação da sentença, do julgamento do recurso ou mesmo do trânsito em julgado.

A fórmula deverá ser utilizada no momento da elaboração do cálculo de liquidação e servirá para pagamento no mesmo mês.

A razão é simples e decorrente de raciocínio aritmético: estaremos calculando o valor presente de parcelas que seriam exigíveis no futuro, pois em relação às parcelas já vencidas, o credor tem direito ao pagamento atualizado e com acréscimo de juros e não com deságio.

Repita-se: o valor devido não pode ser calculado no momento do julgamento, pois ainda não teremos em definitivo um dos elementos do cálculo: a quantidade de meses futuros.

Caberá ao julgador definir apenas o valor da prestação e o seu termo final, informação necessária para quantificar os meses faltantes no momento da elaboração do cálculo. O percentual de juros a ser descontado poderá ser definido apenas no momento da liquidação, considerando a conjuntura econômica da época do pagamento.

Na liquidação da sentença, o cálculo será elaborado em duas partes distintas:

  • a) as parcelas vencidas serão apuradas sem qualquer deságio, atualizadas e acrescidas dos juros legais.
  • b) somente as parcelas futuras serão apuradas mediante utilização da fórmula do valor presente, considerando apenas e tão somente a quantidade de meses que restam entre aquele momento e o termo final fixado na coisa julgada.

Realça-se, ainda, que a fórmula do valor presente poderá ser utilizada pelos advogados para avaliar a conveniência de se optar pelo recebimento do direito em parcela única, mas principalmente para obter parâmetros de conciliação.

Alerte-se, porém, para o perigo do erro de percepção aqui realçado: a fórmula serve para calcular apenas as prestações futuras, pois as passadas não sofrerão qualquer deságio. O erro de percepção poderá resultar em erro de cálculo e consequente prejuízo no momento de conciliar.

Um último alerta se faz necessário, agora dirigido aos julgadores: o 13º salário, as férias e qualquer outra parcela que se reconheça deva integrar o pensionamento deverá ser incluída no valor da prestação e não na quantidade de prestações futuras, sob pena de desvirtuamento do cálculo, pois influenciará negativamente no fator tempo.

Conclusão

Reafirma-se que, para se calcular o deságio decorrente do pagamento antecipado de direito previsto para ser adquirido mediante prestações periódicas que se prolongam no tempo, o único método pelo qual se pode obter um valor justo e que observe o princípio da reparação integral é que utiliza a fórmula do valor presente ou do valor atual.

A avaliação do que seria justo fundamentada exclusivamente no percentual de deságio não leva em consideração o tempo de antecipação do direito e, portanto, não observa o critério da equidade.

Ademais, essa avaliação é contaminada por erro de percepção, pois não considera que a fórmula deverá ser aplicada no futuro, no mês em que o pagamento da parcela única será realizado e não no momento mesmo em que se está fazendo a avaliação.

Claro está que o juízo de valor realizado com fundamento em quantidade de prestações muito superior ao que efetivamente será utilizado no futuro está irremediavelmente comprometido pela falsidade da premissa.


[1] PINTO JUNIOR, Amaury Rodrigues. Pensionamento: pagamento em parcela única e a fórmula do valor presente. Revista Ltr: legislação do trabalho, São Paulo, v. 82, n. 2, p. 147-154, fev. 2018.

[2] Como o cálculo envolve matemática financeira, pode-se utilizar um aplicativo que, inseridos os dados solicitados, nos fornece o “valor atual” de uma dívida que envolve prestações futuras. Entre vários sites com esse programa, destaca-se o do Tribunal Regional do Trabalho da 24ª Região: https://www.trt24.jus.br/web/guest/calculo-do-valor-presente.

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Valores de condenações desestimulam abusos da imprensa, mas geram riscos

O grau de subjetivismo envolvido nas condenações de jornalistas pelas falsas imputações que produzem contra suas vítimas torna difícil avaliar se os valores das indenizações são suficientes para desestimular esse tipo de conduta da imprensa.

Indenizações são calculadas pelo Judiciário a partir de critérios subjetivos e de difícil uniformização – freepik

 

Como mostrou a revista eletrônica Consultor Jurídico, o Poder Judiciário está subindo o tom contra membros da imprensa que passeiam pelos bancos dos réus. E não só pelo dano moral tradicional.

A avaliação de especialistas é de que as punições aplicadas podem ter o desejado efeito de evitar que os abusos se repitam, seja em publicações tradicionais ou não. Mas há o risco de a tendência descambar para o cerceamento da liberdade de imprensa.

E não são poucos os casos. Dados dos sistemas do Superior Tribunal de Justiça indicam ao menos 1.308 acórdãos em recursos para discutir o mérito de ações envolvendo danos, abalos e prejuízos causados pela atuação de jornalistas e seus veículos.

As principais situações a gerar condenações são publicações de informações falsas, associações indevidas a crimes, exposições da vida privada e divulgações de informações sem a devida apuração.

Os valores das indenizações variam, já que o cálculo é subjetivo: o juiz determina o montante a partir das particularidades do caso, considerando a gravidade da ofensa, a repercussão da notícia, a condição econômica das partes e a necessidade de desestimular esse tipo de comportamento.

O STJ vem reiteradamente apontando que a indenização deve ser suficiente para restaurar o bem-estar da vítima e desestimular o ofensor a repetir as ofensas, desde que não represente um enriquecimento sem causa do ofendido.

Caráter punitivo

Sandro Schulze, do escritório A. C Burlamaqui Consultores, explica que o caráter punitivo das indenizações é uma criação jurisprudencial destinada a dar função moralizadora à reparação, para que o responsável sinta a reprovação em relação ao ato ilícito que cometeu.

O Código Civil não traz essa previsão. O artigo 944 da norma estabelece a extensão dos danos como regra para determinar a indenização, sem importar se resultou de intenção maliciosa.

“Há quem entenda, contudo, que a responsabilidade civil pode ter um caráter punitivo. Nesses casos, a ideia clássica de reparação civil, em que a compensação é medida pela extensão do dano sofrido, não atingiria uma das finalidades da indenização”, diz Schulze.

Assim, a meta seria remediar condutas que se mostram especialmente reprováveis, caracterizadas pela intenção do agressor de causar o dano ou, no mínimo, por uma evidente desconsideração pelos direitos alheios.

“De fato, o Superior Tribunal de Justiça reconhece a possibilidade de indenizações com caráter punitivo, apesar de não existir uma previsão específica no Código Civil nesse sentido”, afirma o advogado, que ressalta a limitação da corte superior para apreciar o tema.

“O STJ, realmente, não tem a finalidade de decidir sobre a correção do valor fixado a título de indenização por danos morais, uma vez que para isso seria necessário analisar a prova dos autos, o que é vedado em razão da Súmula 7 do STJ. Assim, a atuação da corte superior fica limitada aos extremos, ou seja, a condenações irrisórias ou exorbitantes.”

Riscos envolvidos

Beatriz Canotilho Logarezzi, do escritório Bottini&Tamasauskas Advogados, atua em pautas ligadas à liberdade de imprensa e avalia que a fixação dos valores tem impacto positivo na prevenção, efeito que, no entanto, acaba dilapidado pela morosidade judicial.

Ainda que jornalistas sejam condenados, tratam-se de processos de longa duração, que impõem execuções custosas e morosas. Nesse cenário, ela aponta que a escolha do valor da indenização é uma das ferramentas de conscientização, mas não pode ser a única.

Para a advogada, é preciso ter muito cuidado ao analisar essas condenações. Ela destaca que há causas no Supremo Tribunal Federal que discutem questões atinentes a essas responsabilizações para evitar que ações contra a imprensa sejam usadas para cercear a liberdade de informação.

Uma delas é o Tema 995 da repercussão geral. Em agosto de 2023, o STF decidiu que veículos de imprensa podem ser responsabilizados civilmente por injúria, difamação ou calúnia proferida por terceiro. O entendimento está sujeito a modificações no julgamento dos embargos de declaração, atualmente paralisados por pedido de vista.

Outras ações são as ADIs 6.792 e 7.055, em que o Supremo reconheceu que constitui assédio judicial comprometedor da liberdade de expressão o ajuizamento de inúmeras ações a respeito dos mesmos fatos para constranger jornalistas.

“Essas discussões são importantes para delimitar que o Judiciário responsabilize a imprensa, em situações específicas em que, de fato, houver abusividade. Sem isso, a imprensa fica sujeita a inúmeros perigos. E há tribunais com decisões totalmente fora da caixinha”, avalia Beatriz.

Para ela, embora as balizas para a fixação das indenizações estejam definidas na jurisprudência do STJ, a abstração do tema gera posições muito díspares.

“O Judiciário precisa ter razoabilidade, proporcionalidade, considerar peculiaridades e avaliar se houve realmente a conduta apontada. Acredito que, quando vamos analisar condenações desse tipo no Brasil inteiro, há algumas que fogem muito do parâmetro que os tribunais superiores apresentam.”

Súmula 7

No âmbito do STJ, o elevado número de pedidos de revisão das condenações e dos valores das indenizações esbarra, em sua maioria, em óbices processuais como o da Súmula 7, que impede que a corte reanalise fatos e provas.

Assim, o montante que membros da imprensa e seus veículos precisam pagar para suas vítimas só é revisto se for considerado irrisório ou exorbitante — e mesmo essa análise é altamente subjetiva.

Um exemplo dessa dificuldade reside no caso dos processos contra a revista IstoÉ por reportagem sobre as investigações que apontavam desvio de dinheiro público em contratos do Metrô e da CPTM de São Paulo.

Publicado em 2013, o texto não acusou nenhum governador, mas citou que as irregularidades ocorreram nos governos de Mário Covas, José Serra e Geraldo Alckmin, e usou fotos deles. A relação feita foi considerada ilícita e gerou três processos.

Dois deles caíram pelo caminho sem condenações — o de José Serra chegou a passar pela 4ª Turma do STJ, sem sucesso. O de Alckmin ganhou razão na 3ª Turma. E assim ele se tornou o único dos três a ser indenizado.

No banco de julgamentos do STJ há decisões com todo tipo de indenização e variados processos, envolvendo desde pequenos blogs até grandes escândalos como o caso da Escola Base — possivelmente, o maior erro da história da imprensa brasileira.

Os excessos jornalísticos ainda abriram as portas para o STJ estabelecer a tese do direito ao esquecimento, que acabou declarada inconstitucional pelo STF em 2021.

Isso fez diversos casos voltarem ao STJ para reapreciação. Curiosamente, as condenações foram mantidas. Uma delas, por um programa que relembrou o episódio da Chacina da Candelária. A outra trata de um caso de crimes sexuais contra crianças.

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Ato que aprova e manda complementar prestação de contas é decisão interlocutória

A 3ª Turma do Superior Tribunal de Justiça entendeu que o ato judicial que aprova as contas prestadas por inventariante e, ao mesmo tempo, determina a sua complementação é uma decisão interlocutória — portanto, impugnável por meio do agravo de instrumento.

Ato que aprova e pede complemento a prestação é decisão interlocutória – freepik

 

Na origem do caso, a inventariante apresentou uma prestação de contas, de forma incidental na ação principal do inventário, a fim de demonstrar as despesas realizadas em favor de determinadas herdeiras, durante um período específico.

O juízo, apesar de julgar boas as contas prestadas pela inventariante, decidiu que ela deveria estender a prestação para todo o período de sua inventariança, independente de quem fosse o beneficiário da despesa.

Acontece que esse ato judicial foi intitulado pelo juízo como sentença, o que levou o tribunal de origem a não conhecer do agravo de instrumento interposto contra ele.

Ato judicial classificado como híbrido

Segundo a relatora no STJ, ministra Nancy Andrighi, a questão está em saber se o ato do juízo deve ser definido como sentença, impugnável por apelação, ou como decisão interlocutória, impugnável por agravo de instrumento.

A ministra reconheceu que o ato judicial impugnado possui elementos de sentença, já que o juiz julgou boas as contas prestadas parcialmente pela inventariante. Entretanto, ela explicou que o mesmo ato não encerrou em definitivo a prestação de contas, já que determinou a sua complementação. Assim, para ela, o ato judicial se classifica como híbrido ou objetivamente complexo.

“Ao determinar o prosseguimento da prestação de contas incidental ao inventário, o ato judicial impugnado, em verdade, revestiu-se de natureza e conteúdo de decisão interlocutória, uma vez que não houve o encerramento da fase cognitiva que seria indispensável à sua qualificação como sentença”, completou.

Por fim, a relatora ressaltou que foi correta a interposição de agravo de instrumento, tendo em vista que a natureza e o conteúdo do ato judicial, intitulado como sentença, era, na verdade, de decisão interlocutória. O número do processo não é divulgado em razão de segredo judicial. Com informações da assessoria de imprensa do STJ.

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Funções do mínimo existencial no contexto do superendividamento do consumidor

O conceito de mínimo existencial desempenha um papel crucial na proteção da dignidade do consumidor em situações de superendividamento. O mínimo existencial transcende uma definição única e engloba a parcela da renda do consumidor que deve ser protegida para garantir suas necessidades básicas e o acesso a bens e serviços essenciais. Sua importância reside em garantir a dignidade da pessoa humana, impedindo que o indivíduo seja privado do mínimo necessário para viver com dignidade, mesmo em situações de endividamento.

A Lei do Superendividamento (Lei nº 14.181/21) trouxe o conceito de mínimo existencial para o centro do debate, determinando sua regulamentação. A pedido da Febraban, logo após o aparecimento na lei da expressão “mínimo existencial”, foi incluída a expressão “nos termos da regulamentação”.

Em audiência pública realizada pelo Ministério da Justiça antes da regulamentação do mínimo existencial, das 25 autoridades que se manifestaram oralmente, ao menos 20 defenderam categoricamente que a regulamentação não deveria adotar um valor fixo, principalmente em razão da realidade socioeconômica diversificada que existe em nosso país.

O Brasil é um país com grande desigualdade social e econômica, com realidades muito distintas entre as regiões e mesmo dentro de uma mesma cidade. Um valor fixo para o mínimo existencial não seria capaz de atender às necessidades básicas de todos os cidadãos, desconsiderando as particularidades de cada indivíduo e família, como custo de vida regional, composição familiar, faixa etária, condições de saúde, entre outros fatores relevantes.

Ademais, o conceito de mínimo existencial é dinâmico e evolui ao longo do tempo, acompanhando as mudanças sociais, econômicas e tecnológicas. O que era considerado essencial para uma vida digna há alguns anos pode não ser mais suficiente hoje. Fixar um valor implicaria em desatualizações constantes, tornando a lei obsoleta e injusta.

Desconsiderando a grande maioria das autoridades e estudiosos que se manifestaram na audiência pública no Ministério da Justiça, o Decreto Presidencial 11.150/2022, posteriormente alterado pelo Decreto 11.567/2023, definiu o mínimo existencial como R$ 600, valor este alvo de críticas por ser considerado insuficiente para garantir uma vida digna. A crítica reside no fato de que R$ 600 se mostra insuficiente para cobrir as despesas básicas de uma família, como alimentação, moradia, saúde e educação, não garantindo uma vida digna e tornando a lei ineficaz em sua principal função: proteger o consumidor superendividado.

Há, atualmente, duas ações diretas de inconstitucionalidade (ADI) e uma ADPF (Descumprimento de Preceito Fundamental) em relação ao Decreto 11.150/2022 no STF.

Enquanto o STF não se manifesta sobre a (in)constitucionalidade do decreto em questão, o magistrado, ao se deparar com uma ação de repactuação de dívidas, poderá exercer o controle difuso de constitucionalidade, afastando, por ora, a aplicação da limitação do decreto, analisando o caso concreto, tendo o poder e o dever de assegurar a proteção do consumidor e garantir que o valor do mínimo existencial seja suficiente para atender às suas necessidades básicas.

Alguns tribunais, sensíveis ao tema, não tem aplicado a regulamentação do decreto do mínimo existencial, justamente por considerar o valor de R$ 600 insuficiente para a manutenção digna do consumidor, tornando a lei inefetiva.

“A preservação do mínimo existencial foi incluída como direito básico do consumidor pela Lei nº 14.181/2021 (Lei do Superendividamento), que entrou em vigor em 2 de julho de 2021, alterando o Código de Defesa do Consumidor para disciplinar o fornecimento de crédito responsável e dispor sobre a prevenção e o tratamento do superendividamento. Em 26 de julho de 2022, foi editado o Decreto n. 11.150/2022, que regulamenta a Lei do Superendividamento indica, após modificação, irrisórios 600 reais como o valor que conferiria existência digna ao superendividado. (…) Apesar da sensível diferença entre os critérios propostos para a fixação de um valor que expresse o mínimo existencial, os que se adequam à teleologia do entendimento do STJ sobre a preservação da vida digna por meio da proteção do valor de natureza alimentar para a provisão das necessidades básicas de uma família é o do salário necessário para isso, portanto o valor indicado pelas pesquisas tradicionalmente feitas pelo Dieese, valor esse corroborado normativamente na resolução da Defensoria Pública sobre a necessidade de assistência judiciária gratuita. Fixo, portanto, o valor relativo ao mínimo existencial alimentar em cinco salários-mínimos, atualmente correpondentes a R$7.060,00 (sete mil e sessenta reais), valores portanto impenhoráveis.”  (TJ-DF 0718027-81.2024.8.07.0000, voto do relator: Roberto Freitas Filho, 3ª Turma Cível, data de publicação: 10/5/2024)

Ainda que não se exerça o controle difuso de constitucionalidade, é importante entender quais as funções que a regulamentação do mínimo existencial exerce. O mínimo existencial possui três funções principais no contexto brasileiro, especialmente em relação ao superendividamento do consumidor:

1. Parâmetro para a definição de superendividamento:

A Lei nº 14.181/21, conhecida como Lei do Superendividamento, define o superendividamento como a “impossibilidade manifesta de o consumidor pessoa natural, de boa-fé, pagar a totalidade de suas dívidas de consumo, exigíveis e vincendas, sem comprometer seu mínimo existencial”. Nesse sentido, o mínimo existencial funciona como um elemento essencial na própria definição legal de superendividamento, estabelecendo um limite para a cobrança de dívidas e garantindo que o consumidor não seja privado dos recursos mínimos para sua subsistência digna.

2. Orientação para concessão responsável de crédito:

O princípio do mínimo existencial, intrinsecamente ligado à dignidade da pessoa humana, transcende a mera definição de superendividamento e serve como um importante parâmetro para a concessão responsável de crédito. As instituições financeiras, ao analisar a concessão de crédito, devem considerar a capacidade do consumidor de arcar com a dívida sem comprometer seu mínimo existencial. Isso significa que a análise de crédito deve ir além da simples comprovação de renda, levando em conta as despesas básicas do consumidor para garantir que o crédito concedido não o leve a uma situação de superendividamento.

3. Limitação ao poder dos credores na repactuação de dívidas:

Em situações de superendividamento, o mínimo existencial atua como um limitador do poder dos credores na repactuação de dívidas. Durante o processo de repactuação, o mínimo existencial do devedor deve ser preservado. Isso significa que o plano de pagamento negociado não pode comprometer os recursos mínimos necessários para que o consumidor e sua família mantenham uma vida digna, garantindo o acesso a bens e serviços essenciais como alimentação, saúde, educação e moradia.

A inserção da expressão “nos termos da regulamentação”, após a expressão “mínimo existencial” na lei foi uma exigência da Febraban, justamente porque ela queria ter uma certeza, através de um patamar objetivo, de que não estaria ofendendo o princípio do crédito responsável quando da concessão do crédito. Ou seja, a finalidade da regulamentação do mínimo existencial seria permitir que as concedentes de crédito tivessem uma segurança na avaliação da capacidade de pagamento do consumidor na concessão do crédito, através de um valor fíxo (e, portanto, objetivo), de modo a respeitar o princípio do crédito responsável.

Assim, a restrição da regulamentação do decreto somente pode aplicado para a concessão do crédito (para o fornecedor ter conhecimento da capacidade de pagamento do consumidor na hora da concessão do crédito, de modo a não sofrer as sanções do artigo 54-D, parágrafo único), mas jamais para a definição de quando o consumidor está superendividado ou para elaboração do plano de pagamento na repactuação das dívidas.

Para a configuração do consumidor superendividado e a quantificação do mínimo existencial, para efeitos de tratamento (artigo 104-A, B e C), será o caso concreto é que definirá os valores para manutenção da vida digna do consumidor e de sua família.

O Enunciado nº 40 do Fonamec atesta nesse sentido:

“Na pactuação do plano de pagamento das dívidas do consumidor superendividado deverá ser respeitado o mínimo existencial, considerando a situação concreta vivenciada pelo consumidor e sua entidade familiar, de modo a não comprometer a satisfação de suas necessidades básicas, observados os parâmetros estabelecidos no artigo 7º, inciso IV, da Constituição da República.”

A justificativa apresentada para este enunciado foi a seguinte:

“A leitura do Decreto n.11.150, de 26 de julho de 2022, confrontou o superprincípio da dignidade da pessoa, cuja função precípua era conferir-lhe unidade material. O princípio da dignidade atua como fundamento à proteção do consumidor superendividado e criador do direito ao mínimo existencial, cuja previsão infraconstitucional foi sedimentada pelo Poder Legislativo na Lei nº 14.181/21, que atualizou o Código de Defesa do Consumidor, instalando um microssistema de crédito ao consumo. Para além da redação do regulamento determinado no Código do Consumidor atualizado, artigo 6º, XI, a eficácia horizontal direta dos direitos fundamentais nas relações privadas, para a preservação da dignidade da pessoa, era avanço doutrinário e jurisprudencial pátrios já reconhecidos, a partir da previsão do art. 5º , parágrafo 1º, da CF/88. Afinal, a garantia de 25% do salário mínimo a qualquer família brasileira, sem considerar a situação socioeconômica e individualizar as necessidades que comportam as despesas básicas de sobrevivência, não representa interpretação harmônica com os valores constitucionais. Assim, resta evidente a possibilidade de composição sem incidência do Decreto nº 11.150/22, em controle difuso de constitucionalidade.” (Obs: o valor do mínimo existencial foi alterado para R$ 600 em 2023)

Somente para exemplificação, veja caso real que aconteceu no estado do Espírito Santo:

No caso real acima ilustrado, mesmo a autora sendo descontado em valores maiores do que a integralidade do montante recebido mensalmente (assim, ela não dispõe de nenhum recurso para pagar o restante das dívidas e nem para sobreviver!) — o que demonstra claramente a sua situação de superendividamento — aplicando o decreto para configuração de superendividamento neste caso, considerando que vários empréstimos são consignados e que o montante destes ultrapassam o valor de R$ 600 [1], consideraríamos que esta consumidora não estaria superendividada e, o pior, não mereceria o tratamento destinado pela lei, o que seria um absurdo, atestando, assim, a ineficácia da lei.

Assim, por razões de justiça e visando atender à finalidade maior da lei (que é o tratamento do consumidor superendividado, restabelecendo sua dignidade), o magistrado deverá não aplicar o Decreto 11.150/2022 para definição de superendividamento, sob pena de esvaziamento da lei (por ineficácia) ou que, ao menos, limite sua aplicação para apenas a concessão do crédito.


[1] Isso porque o Decreto 11.150/2022, além de estipular o valor de R$ 600, retirou os valores do empréstimo consignado da análise do mínimo existencial.

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Retroação do acordo de não persecução penal e seus próximos desafios

No mês passado, o Supremo Tribunal Federal formou maioria a respeito da possibilidade de aplicação retroativa do acordo de não persecução penal a investigações e processos criminais já iniciados na ocasião em que entrou em vigor a Lei 13.964/2019 (“pacote anticrime”). Naquele momento, ainda não havia consenso no tribunal sobre os efeitos complexos da retroatividade do instituto.

O plenário do STF resolveu essa indefinição e definiu a tese do julgamento do Habeas Corpus 185.913/DF. É fundamental reconhecer que a tese representa um avanço que limitará casuísmos e arbitrariedades na aplicação do ANPP. Mas ela também deixa transparecer que algumas perguntas precisarão ser revisitadas para se garantir uma interpretação do instituto plenamente harmônica com os princípios da nossa ordem constitucional.

Sem prejuízo de uma análise mais detalhada dos argumentos dos ministros, por hora voltamos nosso olhar para alguns dos aspectos mais importantes da tese fixada.

Juízo de discricionariedade do MP para propositura do ANPP?

No primeiro item da tese, o STF estabeleceu que é de competência do Ministério Público avaliar a presença dos requisitos para a negociação e a celebração do ANPP. Ainda fixou que a avaliação deve ser motivada e que se trata de poder-dever do MP.

 Não há dúvidas de que a obrigatoriedade de fundamentação acerca do oferecimento do acordo é um ponto positivo. A fundamentação limita o exercício arbitrário de eventuais convicções pessoais contrárias à lei e permite uma revisão objetiva dos requisitos legais pelo órgão superior (artigo 28-A, § 14, do CPP).

Por outro lado, continua problemático considerar-se o oferecimento do ANPP como atividade exercida dentro de uma esfera de “poder-dever” do MP. Embora o artigo 28-A, caput, do CPP afirme que o MP poderá propor o acordo quando presentes as condições legais, é necessário ter em primeiro plano que o ANPP tem como efeito uma extinção antecipada da punibilidade sobre o fato investigado ou processado, sem a formação de um juízo de culpa.

Por se tratar de um efeito que limita o poder de punir do Estado, ele não pode ficar sujeito a ponderações discricionárias de agentes públicos, mas apenas à observância estrita dos requisitos legais. É necessário resgatar a discussão sobre se o ANPP deve ser considerado um direito subjetivo do investigado ou acusado, assim como ocorreu com a transação penal e a suspensão condicional do processo.

Possibilidade de oferta do ANPP nos processos em andamento

O segundo item da tese corresponde ao cerne do tema discutido pelo STF. Fixou-se em definitivo que o ANPP pode ser celebrado em processos que se encontravam em andamento quando a lei do pacote anticrime entrou em vigor.

Com isso, reconheceu-se que o instituto não se limita a disposições de caráter puramente processual e que ele deve retroagir a fatos e processos anteriores à sua vigência. Logo, as regras de interpretação da norma penal material devem ser consideradas sem restrições para o instituto.

Desnecessidade de confissão prévia

Outro ponto muito importante foi estabelecer que o ANPP não depende de confissão prévia. O ANPP não é um instrumento investigativo, nem um meio de produção de prova. A jurisprudência ainda tem que avançar para compreender se a exigência de confissão é compatível com os direitos constitucionais defensivos.

De todo modo, na prática são frequentes os casos em que o MP se recusa a oferecer o ANPP porque o investigado não confessou o crime no inquérito policial ou porque o acusado não o confessou no interrogatório. A tese do STF deve encerrar em definitivo esses casos de recusa, tendo em vista que leva a hipótese de confissão para o momento das tratativas sobre o acordo.

Trânsito em julgado de condenação penal deve ser limite para oferecimento do ANPP?

O segundo item da tese ainda estabelece que o pedido de ANPP para processos em curso deve ser feito antes do trânsito em julgado da sentença condenatória. Aqui há o risco de violação princípio de retroação da lei penal benéfica. O artigo 2º, parágrafo único, do Código Penal é suficientemente claro e autoriza a retroação para casos “decididos por sentença condenatória transitada em julgado”.

Pode-se ponderar se há alguma utilidade na aplicação do ANPP nesses casos. Ainda assim, esse é um tema que deve ser avaliado nos processos de execução concretos, tendo em vista que a lei não prevê qualquer tipo de limite antecipado às regras de retroação da lei penal benéfica.

Até quando uma proposta do ANPP pode ser oferecida?

A manifestação sobre a possibilidade de oferecer ANPP deve ser a primeira providência a ser tomada pelo Ministério Público após a publicação da tese do STF, porque a análise de uma possível causa de extinção da punibilidade deve ter precedência sobre quaisquer outros temas no curso do processo.

No terceiro item, a tese prevê justamente que, nos processos em que a negociação do ANPP ainda não foi oferecida ou foi recusada sem motivação, o MP deve falar sobre o assunto na primeira oportunidade após a publicação da ata do julgamento do habeas corpus.

Também é acertado o quarto item da tese quando estabelece que, para investigações e processos iniciados depois do julgamento do habeas corpus, a propositura ou a rejeição do ANPP deve ocorrer antes do recebimento da denúncia. Dentre outras coisas, isso significa que a proposta de ANPP pode ser apresentada concomitantemente à denúncia.

O ANPP deve ser integrado com os demais substitutivos penais. Há, por exemplo, casos em que tanto o acordo quanto a suspensão condicional do processo são cabíveis. Em princípio, a lei prevê que o oferecimento do ANPP antecede a suspensão condicional do processo. No entanto, se o investigado considerar que a suspensão condicional do processo é a alternativa mais benéfica para o seu caso, não faz sentido que ele tenha que manifestar previamente uma recusa com efeito preclusivo sobre o acordo. Nesse ponto, o STF permitiu a resolução clara de uma questão procedimental que vinha causando controvérsias práticas.

Longe de pretenderem ser exaustivas, essas considerações apontam para os desafios dos instrumentos de política criminal que pretendam buscar caminhos alternativos à judicialização sem sacrificar os direitos e garantias individuais de todos os cidadãos.

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ADPF 743: o STF formulando políticas públicas?

A figura dos litígios estruturais tem sido identificada por muitos como um mecanismo processual hábil ao enfrentamento de problemas de alta complexidade, cuja solução não se viabilize pela simples edição de um comando declaratório, condenatório ou constitutivo, como é próprio à prestação jurisdicional clássica.

A ideia de que se possa buscar, sob a intervenção articuladora do Judiciário, a superação de bloqueios institucionais diversos que expliquem a inefetividade de políticas públicas encanta corações e mentes, que normalmente discutem o desenho em abstrato da novel figura processual. A observação, todavia, de exemplos concretos mais recentes, aponta realidade diversa, com efeitos negativos sobre as políticas públicas em curso — este o tema de hoje.

A ADPF 743 ocupa recentemente o Judiciário, eis que, tendo por objeto a declaração de inconstitucionalidade do estado de coisas relacionado à gestão ambiental brasileira, pretende ainda providências de diversas ordens como medidas de prevenção, monitoramento e controle de incêndios; redução do desmatamento; extensa publicização das ações públicas na matéria etc.

É no bojo desta demanda que o ministro Flávio Dino exarou decisões monocráticas diversas tendo em conta o estado atual de disseminação de incêndios em todo o país. Alguns apontamentos merecem atenção em relação à demanda e às ordens judiciais a ela associadas.

Primeiro ponto diz respeito à temporalidade. A ADPF 743 foi ajuizada em 18/9/2020, distribuída à época ao ministro Marco Aurélio, que entendeu, em 29/9/2020, inexistentes elementos que autorizassem a edição de decisão unipessoal em relação às providências acauteladoras objeto de pedido específico.

Segue-se a arguição de prevenção do ministro Roberto Barroso, relator da ADO 60 e ADPF 708, versando sobre a omissão da União na aplicação de recursos vinculados a fundo orçamentário especial (Fundo Clima) orientados também à proteção ambiental.

A prevenção é afastada pelo ministro Luiz Fux, então presidente, em 18/12/2020, e segue sem qualquer providência jurisdicional específica até 6/12/2023, quanto tem início em Plenário o julgamento, ainda com sustentações orais. Por praticamente três anos, a demanda, vocacionada a superar inércia injustificada de parte da administração, segue sem qualquer determinação judicial que envolvesse providências concretas. Caberia falar em inércia judicial?

Identidade de pedidos

Vale consignar que, em paralelo, tramitavam na corte a ADPF 760 e a ADO 54, ambas sob relatoria da ministra Cármen Lucia e nas quais se requeria a adoção de providências, pela União, no âmbito do Plano de Ação para Prevenção e Controle do Desmatamento na Amazônia Legal (PPCDAm) e de outros programas, para reduzir o referido fenômeno. Curiosamente, não se identificou, em juízo preliminar, a relação de conexão ou prevenção antes vislumbrada quanto às ADO 60 e ADPF 708.

Não obstante isso, a relação de dependência lógica existia — tanto que, o voto exarado pelo ministro André Mendonça na ADPF 743 (sucessor do acervo do ministro Marco Aurélio) refere expressamente ao decidido nas ADPF 760 e ADO 54, cuja sessão de julgamento se deu em 14/3/2024.

Já nesse ponto, verifica-se o distanciamento entre a proposta teórica de exercício de jurisdição estruturante e aquilo que se tem passado em concreto no STF. Afinal, ainda que não se identificasse uma identidade plena de pedidos, ou uma inegável relação de conteúdo e continente entre as ADPF 743 e 760, é evidente que uma política pública de alinhamento da gestão ambiental brasileira, como pretendido na primeira demanda, envolverá necessariamente a consideração do desmatamento da Amazônia Legal, objeto do pedido da ADPF 760.

Ramificações

Um dos desafios dos chamados litígios estruturais, é a identificação das ramificações da ação pública reclamada pelo autor da demanda — providência indispensável para que a entrega jurisdicional seja efetivamente hábil a superar bloqueios institucionais, ou harmonizar atores institucionais que precisem operar em relações de cooperação. O mapeamento destas ramificações exige um conhecimento profundo do problema público em discussão.

A par disso, o reconhecimento destas relações de conexão entre ações públicas diversas exclui como possibilidade soluções simplistas, cuja aptidão para determinar resultados úteis decorra simplesmente da autoridade de quem a profere – na hipótese, o STF. O resultado é que em relação a um problema complexo, mas único, tem-se duas determinações judiciais distintas, exaradas em processos distintos. O risco imediato é o de redundância de esforços, seja no âmbito da administração, chamada a desenhar providências e expedir informes e relatórios em ambas as demandas; seja no âmbito judicial, que chama para si a tarefa de análise da suficiência e adequação dos planos requeridos em cada qual das demandas.

Retomemos a análise do julgamento da ADPF 743…

A oferta dos votos propriamente se inicia em 29/2/2024 e só se conclui em 21/3/2024, com decisão por maioria e a substituição do relator — agora, o ministro Flávio Dino. A prestação jurisdicional ali desenhada, uma vez mais se distanciando daquilo que seria de se esperar em matéria de litígio estrutural, opta pelo modelo tradicional de sentença lato sensu, entendida como manifestação judicial que “põe fim ao litígio”.

Não se cuidou, portanto, de desenvolver ações de articulação entre os vários níveis federados envolvidos na demanda como medida prévia à determinação de quais seriam as obrigações constitucionais envolvidas. Ao contrário, a preferência se deu pela emissão de ordem judicial clássica com assinalação de prazo para cumprimento — gesto de suposta reafirmação de autoridade da corte, que se viu, todavia, desautorizado pela subsequente convocação de ofício, de audiência de conciliação em 12/8/2024.

A convocação da audiência acima referida evidencia o equívoco na inversão da ordem das providências — eis que dela pode resultar a evidenciação da inviabilidade prática da concretização das ordens já exaradas. Mais ainda, integra a lista de destinatários da convocação o Núcleo de Solução Consensual de Conflitos da Corte — numa curiosa hipótese em que a busca da consensualidade se deu depois da decisão de mérito já expedida.

Uma vez mais tem-se a inversão do que deveria ser a prestação jurisdicional em sede de litígio estrutural. Afinal, a expedição prévia da ordem coloca o Judiciário não como o articulador da solução, mas como a autoridade mandante.

A par disso, tem-se claro que as ordens já expedidas não foram antecedidas do aprofundamento necessário em relação ao problema público em discussão, tampouco da sondagem juntos a cada qual dos atores institucionais envolvidos, de qual sua disposição em concorrer para com a solução da quaestio constitucional.

Dissonância

As perplexidades não cessam. Nos termos do item I da decisão exarada pela corte, determina-se ao governo federal que apresente, no prazo de 90 dias, um “plano de prevenção e combate aos incêndios no Pantanal e na Amazônia, que abarque medidas efetivas e concretas para controlar ou mitigar os incêndios que já estão ocorrendo e para prevenir que outras devastações dessa proporção não sejam mais vistas”.

Tem-se aqui um aparente alinhamento com a tese de repercussão geral enunciada no Tema 698, segundo a qual “a decisão judicial, como regra, em lugar de determinar medidas pontuais, deve apontar as finalidades a serem alcançadas e determinar à Administração Pública que apresente um plano e/ou os meios adequados para alcançar o resultado” [1].

Diz-se aparente porque uma leitura mais atenta do decidido evidencia que a avidez por aparentar uma ação judicial resolutiva resulta, uma vez mais, em desarranjo das políticas públicas no segmento.

Primeiro ponto de dissonância, a rigor, entre a tese fixada no Tema 698 e a decisão exarada na ADPF 743 é a ausência de maior densidade na indicação das “finalidades a serem alcançadas”.

Afinal, que um plano de prevenção e combate a incêndios deve resultar em controle ou mitigação destes mesmos eventos, como referido na decisão, é mais do que intuitivo — é verdadeiramente tautológico. E esse tipo de afirmação não oferece parâmetro real para a avaliação dos resultados da ação pública desenvolvida, seja de parte do próprio STF, seja pela sociedade organizada.

Distancia-se em muito a decisão na ADPF 743 do que seja próprio das políticas públicas, nas quais a indicação de metas e sobretudo, de indicadores de desempenho, torna mais objetiva não só a execução em si das medidas como também o monitoramento por qualquer estrutura institucional, de sua efetiva execução e aptidão para dar resposta ao problema público.

Transferência de atividade

Segundo ponto que merece crítica está em que na ADPF 743 determina-se que o plano de ação exigido no item I do decisum é de ser “apresentado ao Conselho Nacional de Justiça, que deverá centralizar as atividades de coordenação e supervisão das ações decorrentes da execução da presente decisão”.

Tem-se então uma espécie de transferência da atividade que seria típica da jurisdição estruturante (coordenar e supervisionar as ações tendentes à solução de um problema público) para o CNJ, que, salvo erro ou omissão, não encontra no desenho constitucional de suas competências esse tipo de atividade.

Mais ainda; soa então redundante a existência do Núcleo de Processos Estruturais e Complexos, criados junto à Presidência do STF, se a coordenação e supervisão das ações tendentes à superação do problema público são assinaladas a outra estrutura institucional, distinta da corte.

Esdrúxulo adendo

Finalizando o presente texto — mas não as perplexidades sugeridas pela decisão na ADPF 743 e providências subsequentes —, tem-se o item V da decisão sob crítica, no qual se determina “medida sugerida pelo Núcleo de Processos Estruturais da Presidência desta Corte” para “[…] que o Poder Executivo, em articulação com os demais entes e entidades competentes, apresente, no prazo de 90 dias, a complementação do Plano de Ação para Prevenção e Controle do Desmatamento da Amazônia Legal”.

Tenha-se em conta que o Plano de Ação para Prevenção e Controle do Desmatamento da Amazônia Legal foi objeto não da ADPF 743, mas daquela antes dela decidida, a saber, a ADPF 760.

Tem-se, nesse esdrúxulo adendo à decisão sob análise, a evidenciação de que, na perspectiva de outorga de jurisdição estruturante no seu verdadeiro sentido, as demandas haveriam de ter sido julgadas em conjunto, e não separadamente. Mais ainda, a medida sugerida pelo Núcleo de Processos Estruturais da Presidência (Nupec) extrapola em muito os limites fixados pelo item 2 da já multi referida tese de repercussão geral fixada no Tema 698.

Afinal, o Nupec propõe, e o colegiado acolhe, a delimitação de aspectos muitos específicos da política pública relacionada à prevenção e controle do desmatamento da Amazônia Legal [2].

Considerações finais

Todo o quadro narrado evidencia que a reivindicação de competência institucional vocalizada e praticada pelo STF para a formulação de políticas públicas é um equívoco a toda prova.

A estratégia política de elevação de problemas públicos complexos à corte pelos instrumentos de controle de constitucionalidade tem seduzido ministros à linha de frente do enfrentamento de desafios que exigem ação articulada, municiada de conhecimento do problema técnico subjacente e dos limites de atuação de cada qual das instituições envolvidas.

O desenho de estratégias de solução é atividade típica do domínio das políticas públicas, e não da jurisdição. Essa cunhagem de respostas exige mais do que espíritos elevados e boas intenções. É preciso conexão permanente com a prática que permeia o problema — afinal, o principal ponto de contato com a realidade é a experiência.

Intervenções judiciais descoordenadas disseminam os esforços da administração pública, e podem conduzir a proposições que, no imperativo de atender a prazos judiciais fixados autoritativamente, não se beneficiem da maturidade que o tempo pode proporcionar ao desenho de uma ação pública.

Na perspectiva do Judiciário, podem resultar em erosão da sua autoridade, à medida em que sucessivas reconsiderações ou extensões de prazo para cumprimento evidenciem a total inviabilidade da ordem judicial originária.

Sob o prisma da utilidade da jurisdição estrutural, tem-se o desvio de um modelo de solução de problemas constitucionais, com um Judiciário resistindo a abdicar do seu espaço de poder de emissor da ordem.

Formular políticas públicas é um exercício de humildade — diante da complexidade do problema, e das limitações das possibilidades de ação. Este é um exercício a que a administração pública está habituada, mas que é estranho ao Judiciário.

O dilema está em verificar-se que o aprendizado da modéstia judicial pode se dar à custa de uma investidura do papel de solucionador de problemas que se revela puramente retórica; retórica essa desmentida todos os dias pela experiência de vida dos cidadãos.


[1] A referida tese de repercussão geral cunhada no Tema 698 foi já objeto de comentário anterior nesta coluna, no texto intitulado “O STF ‘lacrou’ o controle de políticas públicas ao julgar o Tema 698?”

[2] Leia-se: “complementação do Plano de Ação para Prevenção e Controle do Desmatamento da Amazônia Legal, com propostas de medidas concretas, para: a) processar, de acordo com cronograma e planejamento a serem desenhados pelos atores envolvidos, as informações prestadas até a presente data ao Cadastro Ambiental Rural e aprimorar o processamento de informações a serem coletadas no futuro, preferencialmente com o uso de análise dinamizada;” e b) integrar os sistemas de monitoramento do desmatamento, de titularidade da propriedade fundiária e de autorização de supressão de vegetação, ampliando o controle automatizado do desmatamento ilegal e a aplicação de sanções;”

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Falta de habilitação não configura agravamento de risco de acidente de trânsito

A ausência de habilitação por um condutor não configura, por si só, agravamento do risco de um eventual acidente de trânsito, mas mero ilícito administrativo.

moto motocicleta
Relatora do caso disse ser necessário comprovar que conduta contribuiu para o acidente – Freepik

 

Com esse entendimento, a 10ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça de Minas Gerais reformou sentença para determinar que dois envolvidos em um acidente de trânsito sejam indenizados.

Comprovação sobre conduta

Ambos trafegavam em uma mesma motocicleta quando foram atingidos em um cruzamento de uma área urbana por uma caminhonete.

O motorista do veículo maior alegou, entre outras coisas, que era presumida a falta de conhecimento das normas de trânsito pelo condutor da moto, uma vez que ele não tinha carteira nacional de habilitação (CNH).

A desembargadora Jaqueline Calábria Albuquerque, relatora do caso, destacou, contudo, ser necessário comprovar que a conduta do motociclista foi determinante para o acidente, o que não se sustenta pela mera falta de CNH.

De todo modo, a magistrada reconheceu que ambos os condutores contribuíram, de forma concorrente, para o evento danoso: o motociclista dirigia em uma velocidade inadequada para o cruzamento, e o motorista da caminhonete realizou uma conversão de maneira imprudente, colocando a outra parte em risco.

Análise das indenizações

Por conta disso, a relatora pontuou que seria levado em conta o grau de culpa dos litigantes na análise das indenizações pelo dano moral sofrido pelos ocupantes da motocicleta, evidenciado pelas fraturas que tiveram.

Assim, o passageiro que estava na garupa da moto deverá ser indenizado em R$ 15 mil. Já o condutor dela, que contribuiu de maneira determinante para o acidente, teve o valor reduzido em 50%, para R$ 7,5 mil.

Devido ao condutor da caminhonete ter falecido no curso do processo, a condenação se estendeu à única herdeira dele, a filha. Ela também terá de arcar com metade das custas e os honorários advocatícios fixados em 15%.

Atuou na causa a advogada Vanessa Andreasi Bonetti.

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Processo 1.0000.24.213749-5/001

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