Perda de objeto deixa STJ sem tomar decisão sobre ausências em julgamentos

Uma alteração legislativa levou a Corte Especial do Superior Tribunal de Justiça a declarar a perda do objeto de uma questão de ordem levantada para discutir o impacto da ausência de ministros durante os julgamentos.

Corte Especial do STJ concluiu julgamento sobre aplicação da Selic com base no artigo 406 do Código Civil

A questão foi levantada pelo ministro Luis Felipe Salomão em 6 de março, quando o colegiado decidiu que o índice adequado para corrigir condenações por dívidas civis, previsto no artigo 406 do Código Civil, é a Taxa Selic.

proposta do ministro, relator do caso, era permitir a substituição da Selic por outros índices mais adequados — no caso, juros simples de 1% ao mês, como prevê o artigo 161 do Código Tributário Nacional, e correção monetária por algum dos índices oficiais.

Essa posição ficou vencida por 6 votos a 5. A ministra Maria Thereza de Assis Moura desempatou a votação. O problema é que o pleito foi encerrado na ausência de dois ministros que estavam habilitados a participar do julgamento.

Naquele 6 de março, a sessão da Corte Especial excepcionalmente foi iniciada na parte da manhã e continuou à tarde. Os ministros Francisco Falcão e Og Fernandes faltaram no primeiro período, mas estariam presentes após o almoço.

Sem eles, o julgamento ficou 5 a 5, o que exigiu o voto de desempate da então presidente. O ministro Salomão propôs interromper o julgamento para permitir que os colegas participassem da votação à tarde, medida que foi negada por Maria Thereza.

Isso levou à questão de ordem, com a proposta de anular o julgamento. Salomão também levantou questões práticas sobre como aplicar a Selic nos casos em que juros de mora começam a correr em período anterior à correção monetária.

O questionamento sobre o quórum levantou debate no colegiado e gerou pedido de vista do ministro Mauro Campbell, renovado por mais 30 dias em 15 de maio. O julgamento não foi retomado antes do recesso judicial de julho.

Porém, em 28 de junho, entrou em vigor a Lei 14.905/2024, que padronizou a questão discutida ao alterar a redação do artigo 406 do Código Civil. Dessa forma, não havia mais sentido em discutir as questões práticas decorrentes da aplicação da Selic.

Na quarta-feira (21/8), o ministro Salomão reconheceu a perda de objeto da questão de ordem. Assim, caiu por tabela a discussão sobre o quórum de julgamento por causa da ausência parcial dos ministros.

Quem faltou, faltou

A discussão era importante porque questões de quórum influenciam julgamentos no STJ. No caso da Corte Especial, Salomão disse que, se soubesse que a situação terminaria assim, teria pedido para o caso ser julgado à tarde. Naquela data, Francisco Falcão e Og Fernandes acabaram participando da continuação da sessão.

Responsável por conduzir os trabalhos na Corte Especial, a ministra Maria Thereza foi terminantemente contra anular o julgamento. “Não podemos votar e suspender o julgamento na espera de saber se um ministro virá ou não virá.”

Já o ministro João Otávio de Noronha apontou que situações como essa colocam em xeque a honorabilidade da Corte Especial. “Não há nulidade nenhuma. Se não estão, não participam. Se não participam, não votam. Senão vamos anular todos os julgamentos”, disse ele. A ministra Nancy Andrighi reforçou que o regimento interno deveria ser cumprido.

Debates de quórum

O caso da Selic foi um dos episódios em que questões de quórum geraram debates no tribunal.

Outro exemplo foi o caso do ex-jogador Robinho, julgado em 20 de março. Relator da matéria, o ministro Francisco Falcão votou por homologar a sentença italiana que condenou o ex-jogador a nove anos de prisão por estupro. A votação correu normalmente até o ministro Sebastião Reis Júnior, último a votar, argumentar que não cabia à Corte Especial avançar para impor o cumprimento imediato da pena e a fixação do regime fechado.

O então vice-presidente Og Fernandes, que estava presidindo o julgamento porque a ministra Maria Thereza estava ausente, quis ouvir os colegas sobre a questão.

O problema é que o ministro Herman Benjamin já tinha ido embora. Sem ele, desenhou-se a hipótese de um empate. Falcão fez pressão ao destacar que Benjamin acompanhou seu voto na íntegra e conseguiu fazer com que esse voto fosse considerado. Por fim, o ministro Ricardo Villas Bôas Cueva realinhou sua posição para acompanhar o relator e resolver a questão por 6 a 4.

A ministra Nancy Andrighi esteve presente na sessão, mas não votou porque estava dando uma palestra e perdeu as sustentações orais. Mais tarde, o julgamento ficou desfalcado também de Villas Bôas Cueva, que precisava receber candidatos a uma vaga de ministro em seu gabinete, e Luis Felipe Salomão, que tinha compromissos na Corregedoria Nacional de Justiça.

Outro episódio ocorreu na sessão seguinte, em 3 de abril, quando a Corte Especial votou a possibilidade de reduzir seguidas vezes o valor da multa por descumprimento de decisão judicial. Às 16h41, Francisco Falcão pediu a palavra e disse que precisaria sair às 17h. A ministra Maria Thereza devolveu dizendo que o caso em julgamento era de sua relatoria. “Então vamos pedir para que os colegas façam um resumo ou eu peço vista. Eu vou ter de sair. Eu avisei Vossa Excelência há mais de uma hora”, disse Falcão. O julgamento seguiu de forma acelerada e foi encerrado às 16h55.

A 3ª Seção do STJ, colegiado que mais sofreu com ausências neste ano, chegou a mudar o rito de julgamento para se adequar. Isso aconteceu em 28 de fevereiro, quando estava na pauta o julgamento para estabelecer tese sobre a obrigatoriedade da redução da pena-base quando há o afastamento de circunstância judicial negativa contra o réu condenado. A ministra Daniela Teixeira e o ministro Joel Ilan Paciornik estavam ausentes por problemas de saúde. Isso significa que o precedente qualificado seria construído com sete dos nove votos possíveis.

Para não atrasar o andamento do caso, o colegiado adiou as sustentações orais e começou pelo voto do relator, ministro Sebastião Reis Júnior, que leu a ementa. O ministro Messod Azulay pediu vista. Mais tarde, em 22 de junho, o julgamento foi retomado com a manifestação das partes, mas teve novo pedido de vista. Isso ocorreu na única das nove sessões do primeiro semestre em que a 3ª Seção teve composição completa, graças a um combinado dos ministros.

Combinado e adiamentos

Questões de quórum também têm levado a adiamentos de julgamentos. A 3ª Seção, por exemplo, tinha planejado começar a julgar a revisão da Súmula 321 do STJ, que veta pena abaixo do mínimo legal, em 24 de abril, mas três ministros estavam ausentes.

Cogitou-se adiar a sessão para 8 de maio, mas outros três adiantaram que não poderiam comparecer. Ficou, então, para a sessão seguinte. Presidente do colegiado, o ministro Ribeiro Dantas fez um apelo aos colegas. “Na sessão de 22 de maio vamos ver se teremos quórum completo para tentar julgar esse assunto de tanta importância.” O julgamento começou, teve pedido de vista e foi concluído em 14 de agosto.

Em outros colegiados, os adiamentos por um ou outro motivo também são constantes. O ministro João Otávio de Noronha deu um exemplo durante sessão da 2ª Seção, em 24 de abril. Ele relatou que um advogado foi a seu gabinete e reclamou da demora na retomada de um caso que estava com pedido de vista, após oito adiamentos. O advogado contou que, nesse período, mudou de categoria no programa de pontos de uma companhia aérea por causa da quantidade de viagens feitas. “Já era diamante só de ir e voltar de São Paulo a Brasília, pela demora no julgamento.”

O relato foi feito enquanto a 2ª Seção discutia se o ministro Marco Buzzi poderia ou não votar em um repetitivo. O fator impeditivo era sua ausência na sessão em que as sustentações orais foram feitas — ele havia passado por problema cardíaco e estava se recuperando. A conclusão foi de que não seria possível incluir seu voto. Mas levantou-se a ideia de se discutir uma alteração no regimento interno para que isso seja possível, o que, em tese, flexibilizaria a necessidade da presença dos ministros nos julgamentos.

O tribunal já admitiu pedido de vista de ministro que não se encontrava presente. Um exemplo é o do AREsp 1.769.050. Em 12 de dezembro de 2023, o julgamento foi retomado com voto-vista do ministro Mauro Campbell, mas acabou suspenso para aguardar Francisco Falcão, que estava ausente e registrou pedido de vista no sistema. O caso já tem quatro votos e maioria formada, mas ainda não foi concluído, oito meses depois.

Ossos do ofício

Há uma série de fatores que levam os ministros a se ausentar das sessões. Há participação em eventos e missões institucionais. Alguns tiveram problemas de saúde relevantes em 2024. Outra parte precisa lidar com o acúmulo de funções: dois ministros da casa integram também a composição titular do Tribunal Superior Eleitoral, sendo um deles na posição de corregedor da Justiça Eleitoral.

O vice-presidente do STJ é também o corregedor da Justiça Federal. Outros quatro ministros compõem o Conselho da Justiça Federal. Por fim, ainda ficam a cargo de ministros da casa a direção-geral da Escola Nacional de Formação e Aperfeiçoamento de Magistrados (Enfam) e a Corregedoria Nacional de Justiça, do Conselho Nacional de Justiça.

As atas de julgamento do tribunal mostram que, quanto maior o colegiado, maior a probabilidade de a sessão de julgamento estar incompleta. As ausências pontuais nas seis turmas de julgamento se tornam quase a regra nas seções e na Corte Especial — nenhuma dessas teve mais de metade das sessões com quórum completo no primeiro semestre deste ano.

Juntando todos os colegiados, o STJ fez 147 sessões ordinárias de julgamento no período, sendo 48 delas com quórum incompleto (32,6%). Em outras 99 (67,3%), ninguém faltou. A conta não inclui as sessões de abertura e encerramento do semestre judicial, feitas pela Corte Especial.

As secretarias de alguns colegiados registram em ata as ausências temporárias ou ocasionais dos ministros durante as sessões. Em outros, o registro é menos rigoroso. Dos 31 ministros em atuação atualmente — duas cadeiras estão vagas —, apenas seis (19,3%) não perderam nenhuma sessão no primeiro semestre. Os outros 25 somaram um total de 70 ausências, todas justificadas, ainda que internamente apenas.

O que poderia minimizar os problemas seria o aumento do rol de processos passíveis de julgamento virtual. Nesse caso, as sessões são abertas pelo relator e duram sete dias, período no qual os demais integrantes podem analisar a matéria e se posicionar. O Pleno do STJ, que reúne todos os seus membros, vai decidir se isso é possível e necessário.

REsp 1.795.982

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Natureza jurídica do uso do Tio Patinhas: cessão de direito autoral ou cessão de marca?

Quem não conhece o Tio Patinhas? Originalmente ”Scrooge McDuck”, é considerado o pato mais rico do mundo. E o mais “pão-duro”, mantendo grande parte de sua riqueza em uma enorme caixa-forte na cidade de Patópolis.

A imagem do Tio Patinhas, assim como de outros personagens de desenhos animados da Walt Disney Company, não raramente são utilizadas para fomentar vendas de roupas ou vestimentas.

Mais precisamente, determinadas indústrias têxteis costumam estampar esses clássicos personagens dos conhecidos desenhos na produção de seus vestuários. E como não poderia deixar de ser, o uso dessas imagens não é livre e gratuito, mas sim regulado e oneroso.

Para utilização das imagens, as indústrias brasileiras valem-se de contratos de licenciamento na forma de cessão de direito autoral, regidos pela Lei nº 9.610/98, os quais são celebrados com as pessoas jurídicas titulares do direito de uso dos personagens, as licenciadoras, que normalmente estão domiciliadas no exterior.

Na prática, tais empresas licenciadoras, embora já detentoras dos direitos inerentes aos autores das obras cujo uso é cedido, também acabam registrando os personagens no Instituto Nacional de Propriedade Intelectual (INPI) como “marcas”, na forma prevista na Lei nº 9.279/96.

A dúvida que se coloca, portanto, é a seguinte: qual a natureza dos royalties pagos pelo uso da imagem do Tio Patinhas pelas indústrias têxteis? De cessão de direitos autorais ou de uso de marca?

Contornos do litígio levado ao Carf

Os litígios levados ao Carf têm como ponto nevrálgico justamente essa dúvida, sendo que os contribuintes defendem que o Tio Patinhas é direito autoral, enquanto o Fisco entende que deve ser remunerado como uso de marca.

Essa discussão — cujos detalhes da legislação que conceitua as figuras em questão já foram muitíssimo bem explorados nessa coluna anteriormente [1] — possui reflexos tributários relevantes, uma vez que a dedutibilidade de pagamentos a título de remuneração de direitos autorais está sujeito “apenas” ao cumprimento dos requisitos de necessidade e normalidade previstos no artigo 311 do RIR/18, ao passo que dispêndios com royalties pelo “uso de marca”, para serem deduzidos do Lucro Real, estão sujeitos ao registro dos respectivos contratos no INPI e Banco Central (Bacen).

Nesse contexto, e considerando que o citado requisito quanto ao registro dos contratos no INPI e Bacen nem sempre é atendido pelas partes, a Receita Federal do Brasil já formulou autos de infração fundados na glosa de dedução das despesas correspondentes, justamente por entender que o registro do Tio Patinhas (e demais personagens, afinal o rico pato tem muitos amigos, bem como concorrentes nos cartoons) como marca determina a relação jurídica como cessão pelo uso de marca, e não cessão de direito autoral.

Os registros no INPI e no Bacen fazem diferença?

E nesse ponto percebe-se que a segunda questão nodal que é enfrentada pela jurisprudência administrativa é se o fato de uma imagem ter sido registrada junto ao INPI e/ou Bacen faz com que, inevitavelmente, esse registro dite o destino da tributação do direito, independentemente do contrato firmado entre as partes para o seu uso.

No Acórdão nº 1201-001.248, por exemplo, reconheceu-se a natureza contratual de cessão de direitos autorais. O voto vencedor destaca que a operação “efetivamente se realizou sob o manto dos direitos autorais”, não sendo possível “imaginar que o escopo e a razão de ser de tais acordos tenha qualquer vinculação com o conceito de marca, até porque os produtos resultantes em nada reverberam a imagem, nome ou negócio dos titulares no exterior, mas apenas a de criações artísticas (personagens) a eles pertencentes”.

Nesse mesmo sentido caminhou o Acórdão nº 1402-002.741, o qual, sob a premissa de que “os artigos têxteis produzidos, estampados com imagens de personagens, trazem, em sua essência, traços próprios de seus mais variados autores, formas, cores e intelectualidade própria de cada desenhista, protegidas pelo direito autoral, não se confundindo com uma marca”, concluiu “que as despesas com royalties, pagas em razão dos contratos de licenciamento de direito autoral, são dedutíveis”.

Já no Acórdão nº 1302-003.001 — caso que julgou autuação emitida contra o mesmo contribuinte do processo julgado por meio do Acórdão nº 1402-002.741, referido acima —, saiu vitoriosa a tese fazendária de que “o aproveitamento comercial das ideias contidas em obras artísticas não é objeto de proteção a título de direito autoral, mormente quando se trata de figuras de personagens já registrados como marca no Instituto Nacional de Propriedade Industrial INPI. Os valores pagos a esse título ao licenciador consubstanciam royalties pela exploração de marcas comerciais, e sua dedutibilidade sujeita-se às condições estatuídas na legislação”.

Solução da controvérsia pela CSRF

Considerando essa divergência jurisprudencial, a 1ª Turma da Câmara Superior de Recursos Fiscais (CSRF) foi instada a se manifestar sobre a matéria, o que ocorreu por intermédio do Acórdão nº 9101-006.889, precedente no qual, por unanimidade de votos, restou decidido que “o valor pago pela utilização comercial de desenhos artísticos de personagens, em conformidade com os contratos de licenciamento de direitos autorais que foram firmados, constitui despesa operacional (dedutível, portanto) independente de registro no INPI. O fato das licenciadoras registrarem tais desenhos como marca não desnatura a relação firmada entre as partes, que se deu, à luz da legislação de regência, sob a tutela da proteção de direitos autorais”.

O racional do voto condutor do acórdão citado parte da premissa de que os vestuários são produzidos pela contribuinte utilizando imagens de personagens que possuem características únicas, criadas por seus respectivos autores, os quais são contratados e protegidos pelos direitos autorais, independentemente de haver ou não registro como marca. Por isso é que, diferentemente do que foi sugerido na decisão contestada perante a CSRF, não se trata de uma exploração comercial das ideias contidas nas obras, o que comprometeria a proteção dos direitos autorais conforme o artigo 8º da Lei nº 9.610/98. O que ocorre, na verdade, é a cessão do uso do próprio desenho artístico, protegido pela lei de direitos autorais, o qual é transferido às licenciadoras, que, por sua vez, autorizaram contratualmente a sua reprodução nas roupas produzidas em troca de uma remuneração.

Segue o acórdão no sentido de que o simples registro de uma marca no INPI não invalida a qualificação do uso autorizado dos personagens como uma cessão de direitos autorais, os quais podem ser legalmente transferidos pelo autor. Em outras palavras, o fato de as licenciadoras registrarem os personagens como marca não as transforma automaticamente nisso, especialmente em uma relação na qual o titular dos direitos autorais registrados como tal autorizou o uso da obra em questão, um personagem de desenho animado específico, para ser estampado em produtos têxteis comercializados sob outra marca (aquela da empresa autuada).

No caso analisado pela CSRF, registre-se, as partes demonstraram que se trata de uma remuneração legítima pela cessão de um direito expressamente previsto na Lei de Direitos Autorais.

Decidiu-se, então, no Acórdão nº 9101-006.889, que esses desenhos infantis não caracterizam marcas na relação jurídica analisada. Ao contrário. Entendeu a CSRF que eles representam, isto sim, verdadeiros direitos autorais que constituem parte do custo de produção, com o objetivo de impulsionar a venda dos produtos têxteis comercializados pela contribuinte sob sua própria marca. Assim, o registro da marca, no caso concreto, tem a função precípua de proteger os licenciadores contra o uso indevido do desenho, obra ou ideia por terceiros não autorizados.

Como se vê, prevaleceu na CSRF o entendimento de que, considerando que o sistema jurídico qualifica os desenhos dos personagens como obra intelectual protegida pelos direitos autorais, podendo esses serem cedidos para empresas licenciadoras, não caberia ao Fisco desqualificar a natureza do contrato. Daí o afastamento da glosa ante a operacionalidade das despesas incorridas com os pagamentos pela cessão dos direitos autoriais em questão.

Então, ainda que o Tio Patinhas tenha sido registrado como marca — registro esse que, na verdade, é feito pela licenciadora para proteger seus direitos em face do uso não autorizado por terceiros —, a natureza remuneratória estabelecida no contrato de cessão de direito autoral não resta prejudicada. Por conseguinte, fica garantida a dedutibilidade dos gastos relacionados aos pagamentos como contraprestação pelo uso do direito autoral na apuração do lucro real, mediante simplesmente o cumprimento do requisito de necessidade e normalidade da referida despesa (artigo 311 do RIR/18). Patópolis está segura sobre sua natureza jurídica e tratamento tributário agora.


[1] https://www.conjur.com.br/2023-mar-15/direto-carf-limitacao-dedutibilidade-royalties-direitos-autorais/

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Contribuição ao INSS incide sobre descontos de coparticipação do trabalhador

Relator, ministro Herman Benjamin aplicou jurisprudência do STJ sobre o tema – Lucas Pricken/STJ

As parcelas relativas a benefícios, ao imposto de renda retido na fonte (IRFF) e a contribuição ao INSS descontadas na folha de pagamento do trabalhador compõem a base de cálculo da contribuição previdenciária patronal e outros encargos.

A conclusão é da 1ª Seção do Superior Tribunal de Justiça, que fixou tese vinculante sobre o tema, em julgamento por unanimidade de votos realizado na quarta-feira (14/8).

O resultado apenas confirmou a jurisprudência pacificada na corte. Por esse motivo, o ministro Herman Benjamin, relator dos recursos, não leu o voto se restringiu a anunciar a tese.

Tese aprovada:

As parcelas relativas ao vale transporte, vale refeição/alimentação, plano de assistência à saúde ao imposto de renda retido na fonte dos empregados e a contribuição previdenciária dos empregados descontadas na folha de pagamento do trabalhador constituem simples técnica de arrecadação ou de garantia para recebimento do credor e não modificam conceito de salário ou de salário-contribuição e, portanto, não modificam a base de cálculo da contribuição previdenciária patronal, do SAT e da contribuição de terceiro.

Reunião de temas

O julgamento reuniu dos assuntos que eram abordados de maneira separada no STJ. Um deles diz respeito aos valores que são descontados do trabalhador relativos a benefícios como vale-trasnporte, vale-refeição e outros.

O outro assunto é o da exclusão de valores relativos ao Imposto de Renda Retido na Fonte (IRRF).

Segundo Tatiana Del Giudice Cappa Chiaradia, sócia do Candido Martins Advogados, a posição fixada cria uma inconsistência, já que os tribunais superiores sempre entenderam que tais benefícios não têm a natureza jurídica de remuneração.

“Agora fica a questão – não analisada no julgamento de ontem – se o benefício, como um todo, é uma indenização e não pode ser tributado, por que quando ele é parcialmente arcado pelo funcionário ela passa a ser? Não faz o menor sentido”, disse.

“Ainda precisamos aguardar a publicação do acórdão para compreender melhor o racional do decidido e definir a estratégia que os contribuintes irão agora seguir para conseguir reverter essa dura decisão que não podemos deixar que prevaleça”, concluiu a tributarista.

REsp 2.005.029
REsp 2.005.087
REsp 2.005.289
REsp 2.005.567
REsp 2.023.016
REsp 2.027.411
REsp 2.027.413

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MPs descumprem prazos da LAI, impedem recursos e têm sistemas eletrônicos inoperantes

Entre 28 MPs, 46% não cumprem prazos, 77% não permitem recursos e 21% têm e-SICs inoperantes – Dollar Photo Club

Os Ministérios Públicos brasileiros falham em cumprir previsões básicas da Lei de Acesso à Informação (LAI). De acordo com um levantamento feito pela revista eletrônica Consultor Jurídico no Ministério Público Federal, nos 26 MPs estaduais e no MP do Distrito Federal, 46% deles não seguem os prazos da LAI, 68% não possibilitam recursos e 21% sequer têm sistemas eletrônicos de informações ao cidadão (e-SICs) plenamente operantes.

O cenário é ainda pior do que o do Poder Judiciário. Outro levantamento feito pela ConJur nos 27 Tribunais de Justiça, nos seis Tribunais Regionais Federais, no Superior Tribunal de Justiça e no Supremo Tribunal Federal já havia mostrado o descumprimento reiterado da LAI por parte das cortes.

A impossibilidade de recurso foi constatada em uma taxa até maior nos tribunais (77,1% deles), mas os MPs descumpriram prazos em um índice bem superior aos 25,7% das cortes. Além disso, no levantamento do Judiciário, todos os e-SICs testados funcionaram, o que não ocorreu com os MPs.

Conforme determina o artigo 11 da LAI, um pedido de informação deve ser respondido pelo órgão público em, no máximo, 30 dias. Já o artigo 15 prevê que o cidadão tem o direito de interpor recurso, cujo prazo para nova resposta é de cinco dias. Por fim, o artigo 10º exige que os órgãos permitam o encaminhamento dos pedidos de acesso à informação em seus sites oficiais.

Mesmo assim, entre os 28 MPs testados pela ConJur, seis deles (21,4% do total) apresentaram erros que impediram o registro dos pedidos nos respectivos e-SICs.

Outros sete MPs não responderam dentro do prazo de 30 dias. Se considerados também os MPs sem e-SICs operantes (nos quais os prazos sequer foram iniciados), verifica-se o descumprimento dos prazos da LAI em 46,4% dos casos.

Já a possibilidade de recurso é ignorada por 13 MPs com sistemas operantes — que, somados àqueles com sistemas inoperantes (nos quais sequer havia algo do que recorrer), representam 67,9% dos órgãos testados. Essa conta inclui tanto os MPs que seguiram os prazos quanto aqueles que os descumpriram.

Clareza do pedido

ConJur testou o acesso à informação nos e-SICs dos 28 MPs por meio de pedidos (ou tentativas) disparados na primeira quinzena de junho. Foram solicitados dados sobre o volume de ações ajuizadas por cada MP entre 2018 e 2023 conforme o ramo do Direito (entre 13 áreas), com especificação do total a cada ano

Caso o MP não tivesse ajuizado nenhuma ação em determinado ramo nesse período, foi solicitado que o órgão indicasse apenas o número “zero”.

ConJur pediu que as informações fossem detalhadas obedecendo a seguinte divisão: Direitos Penal, Administrativo, Civil, Processual, Ambiental, Tributário, Empresarial, Previdenciário, Família e Sucessões, Propriedade Intelectual, Digital, Consumidor e Constitucional.

Também foi pedido que as respostas viessem em formato aberto, ou seja, em planilhas (o formato PDF não é aberto). Apesar da recomendação, nenhum documento foi enviado em formato aberto — com exceção do MP da Paraíba, que somente enviou um link para que o solicitante fizesse sua própria pesquisa no banco de dados da instituição.

Ao menos 15 MPs responderam dentro do prazo, mas apenas os Ministérios Públicos do Maranhão e do Rio Grande do Sul efetivamente forneceram os dados solicitados, o que corresponde a apenas 7,1% do total.

A maioria das respostas negativas alegou a necessidade de trabalho adicional para compilação ou análise de dados e impossibilidade técnica.

Nelas, não foram informados detalhes como a quantidade de servidores que seria necessário alocar para responder o pedido, o total de horas de trabalho necessárias para a resposta ou o volume aproximado de informações, muito menos a possibilidade de recorrer da negativa.

O MP de Mato Grosso do Sul afirmou que o requerimento não identificou os critérios de busca das informações solicitadas — em referência aos ramos do Direito em que as ações se enquadrariam.

“Os sistemas de processamento eletrônico desta instituição ministerial utilizam a taxonomia prevista no Sistema de Gestão de Tabelas Processuais Unificadas do Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP), cujas pesquisas quantitativas nos bancos de dados devem observar a referida taxonomia como filtro dos campos necessários para a obtenção das informações solicitadas”, diz trecho do documento enviado à ConJur.

O MP-MS também alegou que o pedido demandaria um extenso volume de trabalho por parte da equipe técnica da Secretaria de Tecnologia da Informação, o que impossibilitaria o atendimento ao pedido. Não havia possibilidade de recurso.

As justificativas de impossibilidade técnica, em geral, citaram a falta de correspondência entre os ramos do Direito compilados pela ConJur e a “tabela taxonômica” do CNMP. De acordo com o MPF, por exemplo, “não há dados estruturados que possibilitem a extração automatizada de informações sobre o ajuizamento de ações por ramo do Direito”.

Em certos casos, esses mesmos argumentos foram apresentados pelos MPs em pedidos de complemento à solicitação da reportagem, apesar da sua alta especificidade. O MP do Espírito Santo chegou a solicitar que a ConJur justificasse seu pedido.

Obstáculos da transparência

De modo geral, a ConJur esbarrou em algumas dificuldades primárias para solicitar informações, por causa de problemas técnicos, descumprimento de prazos ou alegações vagas sobre a necessidade do detalhamento dos pedidos.

Os sistemas eletrônicos dos MPs de Acre, Alagoas, Goiás, Pará, Rio de Janeiro e Santa Catarina estavam fora do ar nas datas em que a ConJur tentou enviar formulários requisitando informações.

Já os Ministérios Públicos de Amapá, Ceará, Distrito Federal, Espírito Santo, Mato Grosso, Sergipe e Tocantins não cumpriram o prazo de 30 dias estipulado pela LAI.

O MP de Mato Grosso, por exemplo, respondeu somente em agosto, informando que o órgão não conseguiria levantar os dados pedidos. “Isso porque os filtros por área de atuação constantes em nosso sistema não coincidem com os ramos de Direito solicitados, o que exigiria análise adicional e consolidação de dados”, diz o documento enviado. Não havia como recorrer para contestar tal justificativa.

Já o Ministério Público do DF chegou a informar a prorrogação do prazo das informações requisitadas (por mais dez dias além dos 20 iniciais, como permite a LAI), mas não se manifestou posteriormente sobre o andamento do processo.

A opção de recurso aparecia apenas nos e-SICs do MPF e dos MPs de Amapá, Amazonas, Bahia, Distrito Federal, Maranhão, Paraíba, Rondônia e São Paulo.

Lei mal aplicada

O advogado Bruno Morassutti — diretor de advocacy da Fiquem Sabendo (organização sem fins lucrativos especializada em transparência e acesso à informação) e membro do Conselho de Transparência da Controladoria-Geral da União — aponta que os órgãos do sistema de Justiça brasileiro têm “problemas bem semelhantes” de transparência pública.

Os tribunais e os MPs, segundo ele, não estão acostumados a receber demandas relacionadas à LAI ou mesmo a considerar que precisam prestar o serviço público de fornecimento de acesso à informação. Devido ao “pouco controle” sobre suas atividades, esses órgãos “se sentem menos pressionados a atender à LAI”.

Também não há ainda no Brasil “uma reflexão muito grande sobre a necessidade de uniformizar entendimentos no que diz respeito ao tratamento de demandas de acesso à informação judicial”.

Para o advogado, o descumprimento da LAI é maior no MP porque o sistema de controle é pior. De acordo com ele, o CNMP é “uma instituição menos efetiva” do que o Conselho Nacional de Justiça para fiscalizar o cumprimento da lei — embora o CNJ também deixe a desejar nesse quesito.

Morassutti defende o investimento na “adoção de procedimentos mais uniformes, sistematizados e periódicos de acompanhamento da execução da LAI”.

Assim como os tribunais, cada MP tem uma autoridade interna de monitoramento da LAI, que “deveria questionar as autoridades responsáveis quando verificasse respostas atrasadas, por exemplo”. Mas isso “ainda não é uma prática”.

Outra área importante que carece de investimento é a de tecnologia. Os MPs não têm “sistemas bons para protocolo de demandas de acesso à informação”. Em alguns casos, os protocolos dos sites “nada mais são do que um um sistema de disparo de e-mails”, sem um “controle centralizado sobre prazos”.

O advogado lembra que o Executivo federal, o Congresso e o Tribunal de Contas da União melhoraram muito sua transparência e seu atendimento de demandas quando aprimoraram seus sistemas.

Os investimentos também precisam ser voltados à formação dos servidores. Morassutti indica que muitos deles não conhecem bem o processo e o sistema de atendimento de acesso à informação, não sabem qual é a autoridade responsável por analisar recursos e não informam o cidadão sobre seu direito de recorrer.

Por fim, ele ressalta a necessidade de revisão de “alguns entendimentos que infelizmente são muito equivocados em matéria de transparência, como a aplicação da Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (LGPD) pelo MP para restringir acesso a informações sobre remuneração dos agentes”.

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Direito intertemporal e cautelar de indisponibilidade de bens nas ações de improbidade

A Lei nº 14.230/2021 alterou diversos dispositivos da LIA (Lei de Improbidade Administrativa). Entre eles, os requisitos para decretação da indisponibilidade de bens — alterando-se a natureza da medida para qualificá-la como tutela provisória de urgência — e a previsão expressa de que a indisponibilidade será limitada ao valor necessário para a reparação ao dano ao erário — excluídos a multa civil e os valores decorrentes de atividade lícita (artigo 16, §§ 3º e 10).

Afrânio Vilela 2024 – Gustavo Lima/STJ

Em maio de 2024, a 1ª Seção do STJ (Superior Tribunal de Justiça) afetou o assunto à sistemática do julgamento de recursos repetitivos o Tema nº 1257, sob relatoria do ministro Afrânio Vilela, para “definir a possibilidade ou não de aplicação da nova lei de improbidade administrativa (Lei 14.230/2021) a processos em curso, iniciados na vigência da Lei 8.429/1992, para regular o procedimento da tutela provisória de indisponibilidade de bens, inclusive a previsão de se incluir, nessa medida, o valor de eventual multa civil”.

Ao afetar o Tema Repetitivo nº 1257, a 1ª Seção determinou a suspensão de todos os processos que versem sobre a mesma matéria nos quais tenha sido interposto recurso especial ou agravo em recurso especial, ou que estejam em trâmite no STJ. Também foi decidido que a suspensão dos processos não afetaria o curso dos prazos prescricionais.

Como representativos da controvérsia, foram selecionados os Recursos Especiais nº 2074601/MG, 2076137/MG, 2076911/SP, 2078360/MG e 2089767/MG. Dos cinco recursos, somente o REsp 2076911 de São Paulo (sigiloso) foi interposto por pessoa física. Todos os demais os recursos especiais selecionados foram interpostos pelo Ministério Público do Estado de Minas Gerais.

 

Em análise às teses discutidas nos recursos especiais afetados, destacam-se os três principais assuntos que deverão ser enfrentados pelo STJ para o julgamento do tema.

Primeiro, e mais evidente, é a definição das regras de direito intertemporal que serão aplicáveis para reger a alteração normativa. Afinal, a Lei nº 14.230/2021 não trouxe regras de transição ou sobre a aplicabilidade retroativa da norma.

Normas sobre indisponibilidade de bens

Para decidir sobre o direito intertemporal, será preciso definir a natureza das normas que versam sobre indisponibilidade de bens; isto é, se possuem natureza processual, material ou mista.

Se for considerada uma norma processual, o STJ terá a oportunidade de se pronunciar sobre o postulado “tempus regit actum” e a teoria do isolamento dos atos processuais no contexto de decisões interlocutórias que possuem natureza precária e modificável a qualquer tempo (artigo 296 do Código de Processo Civil — CPC) e cujo conteúdo ainda não precluiu. Logo, não poderiam ser consideradas ‘ato jurídico perfeito’ ou ‘direito adquirido processual’ para efeitos do artigo 5º, XXXVI da Constituição, artigo 14 do CPC e artigo 6º da Lindb.

Por outro lado, se as normas sobre indisponibilidade de bens forem classificadas como normas materiais ou mistas, a discussão envolverá a aplicabilidade ou não do princípio da retroatividade da norma mais benéfica ao réu, previsto no artigo 5º, XL, da Constituição, ao sistema de direito administrativo sancionador.

Em segundo lugar, deverá ser decidida pelo STJ a aplicabilidade aos processos em curso da nova redação do artigo 16, caput e § 10, da LIA, que hoje exclui o valor da multa civil dos valores que poderão ser alcançados pela medida de indisponibilidade de bens.

Direito de defesa impactado

A importância dessa questão vai além da simples diminuição da parcela de patrimônio do réu exposta ao risco de constrição. Impacta o direito de defesa, sobretudo nas ações em que a petição inicial não especificou o valor do dano ao erário e o valor estimado da multa civil. O não conhecimento sobre esses valores impossibilita que a cautelar de indisponibilidade seja decretada sem violação ao direito de defesa do réu, em especial quanto aos eventuais valores excedentes.

Em terceiro lugar, o julgamento do Tema 1257 deve ensejar a revisão do Tema Repetitivo nº 701, que estabeleceu a natureza de tutela de evidência para a indisponibilidade de bens no contexto da redação anterior da LIA. E, o Tema nº 1055, pois trata da inclusão do valor da multa civil nos valores acautelados por indisponibilidade.

Por fim, considerando o interesse geral na formação desse importante precedente, é notável que a União teve deferido seu pedido de ingresso nos recursos afetados como amicus curie. De outro lado, até a publicação do presente artigo, não há pedidos de ingressos de terceiros a favor da aplicabilidade da Lei nº 14.230/2021.

Em suma, a afetação do Tema Repetitivo nº 1257 veio em boa hora para trazer mais segurança jurídica e pacificar o entendimento da jurisprudência nacional sobre as tutelas provisórias nos processos de improbidade após as alterações da Lei nº 14.230/2021 e revisitar temas repetitivos proferidos na vigência da redação antiga da lei e ainda não expressamente revogados pelo STJ.

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PEC 65/2023: BC como empresa pública e lawfare

Tramita no Senado a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 65/2023 [1], com o objetivo de transformar o BC (Banco Central) em empresa pública. Recentemente, a LC (Lei Complementar) 179/2021 o transformou em autarquia de natureza especial, aproximando-o do regime jurídico de maior autonomia das agências reguladoras federais. Na justificação, os autores da PEC alegam que o BC não possui autonomia orçamentária e financeira para garantir a plena execução de suas atividades; e que a recente autonomia formal, concedida em 2021, não é possível de ser materializada sem uma alteração da Constituição que traga uma previsão constitucional de sua autonomia orçamentária e financeira.

Banco Central sede

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Também defendem que o orçamento da autarquia deve ter tratamento distinto do Orçamento Geral da União, uma vez que a execução das funções de autoridade monetária não poderia se sujeitar ao mesmo tratamento e às mesmas restrições aplicáveis à execução das demais despesas do OGU. Além disso, a proposta inova ao prever o uso de receitas de senhoriagem para pagar suas despesas. Senhoriagem é a prática dos antigos reis que, para cunhar moedas de prata e ouro, cobravam um percentual que ficava em seus cofres.

Naquela época, ainda havia lastro em metais preciosos. Porém, no caso atual, a senhoriagem se refere ao fato de reservar parte do papel-moeda impresso pelo banco central para se autofinanciar. É criação de moeda pura. Nesse caso, a atividade de custeio do aparato administrativo se apoia não mais nos limites da tributação e na vinculação ao orçamento público, que dá sustentação ao regime monetário em uma economia de produção.

Aqui, já se pode tecer uma crítica: o viés inflacionário da proposta. Em uma economia monetária de produção, a moeda precisa ser neutra. Nesse sentido, os gastos da administração pública devem decorrer de um rígido controle fiscal, que é um dos pilares da manutenção do valor do Real. Não à toa o BC e seu próprio presidente defendem a necessidade de se garantir equilíbrio de gastos a partir da receita dos tributos, cumprindo as metas fiscais, como um dos pilares do próprio regime monetário doméstico.

Propor o financiamento do BC a partir da simples criação de moeda, desvinculada da produção econômica e da respectiva tributação e custeio do setor público, desvirtua a construção do regime fiscal-monetário do país, que se baseia em parte do valor gerado em riquezas no país para sustentar os gastos públicos. Não há, mais, criação de moeda para pagar despesas públicas, um descontrole que ocorria no país até os anos 1980, e que explica, em grande medida, o processo inflacionário histórico da economia brasileira.

No caso, a proposta envolve um custeio alto do BC, em torno de R$ 4 bilhões. Alternativamente, poder-se-ia pensar em separar uma parte das receitas do orçamento federal diretamente ao BC, constituindo uma exceção à inclusão das despesas de custeio do BC no OGU. Porém, sob a ótica do Direito Financeiro, a opção também contraria o princípio da unicidade orçamentária, insculpido no artigo 165, § 5º, da CF, e que segue uma tradição já posta na Lei 4.320/1964.

Em se tratando de proposição legislativa, é preciso, preliminarmente, questionar a problemática e a realidade subjacente à alteração almejada, que se trata de mudança constitucional sobre matéria relevante para a administração pública federal.

Por um lado, questionamos se há, de facto, um problema a ser equacionado pela PEC e qual sua real natureza. Parte-se da percepção de que o BC, pós-LC 179/2021, já dispõe atualmente de autonomia suficiente para o cumprimento adequado de suas atribuições, com manutenção de suas atividades sem restrições relevantes. A discussão também envolve avaliar se a função do BC justifica o proposto tratamento fiscal privilegiado, e quais as implicações para a administração pública federal.

Restrições fiscais da União e orçamento dual da autarquia

As únicas restrições orçamentárias e financeiras enfrentadas pelo BC se referem a despesas de pessoal e custeio administrativo e investimentos. Tais restrições podem, efetivamente, criar algumas dificuldades para a instituição, como limitações para a contratação de pessoal, restrições na fixação da remuneração dos servidores da instituição, como, de resto, todo o serviço público. No entanto, não se pode sustentar que sejam tão expressivas, ainda mais quando a entidade se encontra em fase de processo seletivo para contratação de mais 300 analistas com salário inicial de quase R$ 21 mil – as provas ocorreram no dia 4 de agosto de 2024.

As restrições orçamentárias do BC são as mesmas de outras autarquias como a CVM e as agências reguladoras, e demais órgãos públicos, que observam a rigidez e controle de gastos da máquina pública federal, de modo consolidado. Trata-se de uma preocupação premente para a União, que se encontra em situação fiscal deteriorada desde 2015, e está atualmente em contingenciamento fiscal. Tais restrições apenas refletem as limitações fiscais da União, bem como a necessidade de alcançar as metas fiscais, como sempre ressaltado em pronunciamentos públicos pelo presidente do BC.

De todo modo, as restrições fiscais são apenas parciais para o BC. Há uma lógica dual do orçamento do BC, que se divide em orçamento administrativo e orçamento de autoridade monetária. O orçamento administrativo engloba os gastos da autarquia que entram na LOA e nos gastos primários da União, e que alcançaram R$ 3,8 bilhões em 2023. Isso segue o estipulado pelo artigo 5º, § 6º, da LC 101/2000, a Lei de Responsabilidade Fiscal, que determina a inclusão do orçamento administrativo do BC no OGU.

Já o orçamento de autoridade monetária, que é aquele referente a receitas e despesas ligadas às políticas monetária e cambial, é aprovado pelo CMN, nos termos da Lei 4.595/1964. Este está, portanto, fora da LOA, que já é uma das grandes críticas à política de juros do país, cujos gastos oscilam em torno de 5% do PIB sem restrição ou contingenciamento fiscal algum. Ou seja, independe de qualquer meta fiscal, e mesmo de aprovação pelos parlamentares, além de não enfrentar qualquer restrição de gastos. O arcabouço legal garante, inclusive, cobertura pelo Tesouro Nacional de resultados negativos do BC, nos termos da Lei 13.820/2019. O controle público ocorre apenas por prestação de contas a posteriori ao Congresso, algo de natureza apenas protocolar.

Isso já aponta que a justificação quanto a suposto impedimento de funcionamento do BC e de suas atribuições é pouco aderente à realidade fática.

Problema de facto a ser equacionado pela PEC

A transformação do BC em empresa pública implica a sua não sujeição aos limites de gastos impostos a todos os órgãos da administração pública, nem ao teto de salários no serviço público, com regras de contratação de pessoal e aquisição de bens e serviços mais flexíveis. Isso permite maior autonomia na contratação de pessoal, fixação dos salários de servidores e diretores, e realização de outras despesas de custeio e investimento de forma mais flexível, sem observar as regras de controle da administração federal, que são mais rígidas do que para instituições públicas de direito privado, como os Correios, por exemplo.

Em nossa visão, isso servirá para majorar os salários de membros da diretoria colegiada do BC, que têm remuneração considerada inferior à de diretores de instituições financeiras do setor privado e mesmo de instituições financeiras públicas, como Caixa Econômica Federal, Banco do Brasil e BNDES. Isso tem especial relevância para aqueles diretores (e presidente) que vêm do setor privado.

Questões relevantes

A matéria suscita uma série de questionamentos. O primeiro é se é possível transformar autarquia em empresa pública? A resposta é positiva, apesar de não ser comum, até pela natureza jurídica muito distinta entre os dois regimes. Há o registro da conversão da Casa da Moeda de autarquia em empresa pública pela Lei 5.895, de 19 de junho de 1973. A peculiaridade, entretanto, é que não há função de Estado envolvida, mas efetivamente uma empresa que produz papel-moeda, produto que pode ser, inclusive, exportado para outros países.

1. Precedente para outras agências reguladoras e órgãos da administração pública

A criação de exceção ao princípio da unidade orçamentária significa um precedente para outras autarquias reivindicarem autonomia semelhante, visando a mesma prerrogativa de financiar suas despesas permanentes a partir de receitas próprias. Isso inclui: CVM, Previc, Susep, Aneel, Anatel, ANP, Anvisa, ANS, ANA, Ancine, ANTT, Antaq e Anac.

Também significa potencial risco de demandas de outros órgãos da administração direta do Poder Executivo (como universidades públicas) e do próprio Poder Judiciário, que tem elevado potencial de obter receitas próprias. Tanto os incentivos para aumento de despesas permanentes como para expansão de receitas podem ser substanciais, com a cobrança de taxas diretamente pela prestação de serviços e que não entrariam mais no caixa único da União.

Isso fortalece também a pauta de outros setores como os militares, que buscam a garantia constitucional de 2% do PIB para seus gastos (atualmente, em 1,4% do PIB, ou R$ 123 bilhões). Pode-se deduzir que o resultado esperado seja a perda de controle sobre o orçamento da União, com a sua fragmentação em várias partes autônomas, com aumento das despesas públicas, sem preocupações com a eficiência e economicidade desses gastos como um todo. Pode-se até sugerir que esse tipo de agenda favoreça, basicamente, grupos seletos de funcionários públicos.

2. As atribuições do BC são compatíveis com a natureza de empresa pública?

BC não exerce especificamente uma atividade econômica, mas presta atividade estatal fundamental. Trata-se de atividade típica de Estado. O BC é executor de políticas públicas delineadas nas Leis 4.595/1964 e LC 179/2021. Em nosso ordenamento jurídico, as atividades típicas de Estado são desempenhadas sob regime de direito público, pela administração direta ou pelas autarquias, neste caso se for recomendada gestão administrativa descentralizada para seu melhor funcionamento.

Além disso, diferentemente de empresas privadas ou mesmo públicas, o BC não objetiva lucro. O BC não explora atividade econômica, como faz, por exemplo, na área financeira, os bancos públicos Caixa Econômica Federal, Banco do Brasil e BNDES, e que justifica um regime jurídico de direito privado para essas instituições financeiras. Não é o caso da autoridade monetária.

Empresas públicas, sociedades de economia mista e suas subsidiárias são instituições estatais caracterizadas pela exploração de atividade econômica de produção ou comercialização de bens ou de prestação de serviços (artigo 173 da CF). Esses bens ou serviços produzidos geram as receitas que irão pagar suas despesas. O artigo 5º do Decreto-lei 200/1967 delineia claramente a diferença de natureza entre os dois regimes jurídicos. Nesse sentido, pode-se concluir por uma incompatibilidade entre o modelo de empresa pública e as atribuições típicas de Estado exercidas pelo BC.

3. Delegação de poder de polícia a pessoa jurídica de Direito Privado?

Juridicamente, o STF já entendeu a viabilidade de delegação administrativa do poder de polícia estatal a “pessoas jurídicas de direito privado integrantes da Administração Pública indireta de capital social majoritariamente público que prestem exclusivamente serviço público de atuação própria do Estado e em regime não concorrencial” (Recurso Extraordinário nº 633.782, do Relator Min. Luiz Fux). Todavia, a Suprema Corte deixou claro que não estava compreendido, nessa possibilidade, o exercício de capacidades normativas, que são essenciais para o BC.

A autarquia regula não apenas a moeda e o mercado de câmbio, mas o sistema financeiro como um todo. De fato, o BC exerce poder de polícia sobre o sistema financeiro nacional, atividade típica da Administração Pública. Isso inclui: regimes de autorização e de resolução, pelos quais a autarquia intervém diretamente na gestão de instituições privadas do sistema financeiro, e quanto ao direito sancionador, no exercício de supervisão prudencial.

4 Outros aspectos

É provável a judicialização pelos servidores do BC de demandas trabalhistas, diante da mudança de regime estatutário para CLT, o que envolverá valores bilionários. Com efeito, a PEC não está lidando com o impacto orçamentário-financeiro em termos previdenciários que derivarão da PEC em sendo aprovada, o que contraria o espírito de responsabilidade fiscal que se tem construído no país desde os anos 1990, nos termos do próprio artigo 113 do ADCT.

Outra crítica é que não há estipulação de teto remuneratório aos novos servidores. O Substitutivo apresentado pelo relator na CCJ prevê apenas um teto global para crescimento de despesas de pessoal e custeio, a ser futuramente definido por LC. Isso significa dizer que haverá limite global para as despesas, mas os diretores e funcionários da empresa pública BC não estarão limitados individualmente ao teto dos servidores públicos.

Conclusão

Como se procurou mostrar, o arcabouço jurídico de sustentação orçamentária e financeira às políticas monetárias e cambial não impõe restrição que justifique a alteração constitucional. O BC não possui constrangimentos para execução de política monetária e cambial, o que contesta a necessidade de transformação da autarquia em empresa pública.

As restrições que observa são apenas aquelas típicas do serviço público. Nesse sentido, a PEC consiste em uma “jabuticaba” que desvirtua a natureza jurídica do BC, que decorre de sua atividade estatal e que não é de empresa. Além disso, constitui perigoso precedente para aprovar novas proposições em desmonte ao regime fiscal federal.

A proposta é clara no sentido de enfraquecer o regime fiscal do país, em benefício dos dirigentes do BC, mas não da administração pública. Rompe-se a unicidade orçamentária e a eficiência da alocação de recursos federais. Além de desnecessária, identifica-se um desacoplamento da justificação com a realidade fática, apontando para uma problemática muito pontual, para aumentar salários dos dirigentes, que sugere constituir caso de lawfare. Há a instrumentalização do Direito sem correspondência com a promoção de eficiência da administração pública ou de outro parâmetro coletivo que aprimore a atuação estatal.


[1] https://www25.senado.leg.br/web/atividade/materias/-/materia/161269. Acesso em: 4 ago. 2024.

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Direito Administrativo da organização e as relações organizativas

A organização administrativa brasileira exige para o seu estudo mapas e roteiros: conhecimento das estruturas organizacionais e, igualmente, ciência do modo de interação entre os órgãos e as entidades públicas.

As estruturas de organização típicas aparecem no mapa da administração e facilitam identificar a individualidade organizatória, os traços presumidos de determinada entidade ou órgão (sempre sujeitos a confirmação ou transformação ao longo do tempo). As relações organizativas informam, por outro lado, o modo efetivo de funcionamento das estruturas organizacionais e o seu grau de independência ou subordinação, isolamento ou integração, em face das demais unidades do aparato administrativo.

Surpreendentemente, as relações organizativas são amplamente subestimadas, objeto de abusos e incompreensões, manejadas por atos secundários ou individuais pouco transparentes da autoridade pública. Essa situação cria insegurança jurídica para indivíduos, empresas e para os próprios gestores, pois a indeterminação das fronteiras da atuação legítima de autoridades públicas prejudica a agilidade e a estabilidade das decisões administrativas. Sem roteiros claros quanto ao tráfego real das competências ou do exercício das competências a informação caminha enviesada na intimidade da organização e a decisão é adiada ao máximo, atitude defensiva de gestores que compromete a produtividade das estruturas públicas.

Relações organizativas ou atos de organização?

Hierarquia, autonomia, supervisão, coordenação, cooperação e controle — para referir apenas as mais usuais — não são atos ou fatos administrativos e sim relações organizativas densificadas por atos administrativos. É equívoco ainda as definir como um “estado natural” ou “uma relação entre indivíduos/autoridades”, desconsiderando relações interorgânicas e interadministrativas dentro da complexa pluralidade das estruturas públicas.

O direito administrativo da organização não é exclusivamente um direito de sujeitos administrativos, mas igualmente um direito de relações organizativas. E por sujeitos administrativos não se alude necessariamente a pessoas, pois há sujeitos administrativos que não são pessoas jurídicas (por exemplo, os órgãos, que são unidades de atuação despersonalizadas e ao mesmo tempo sujeitos administrativos na medida em que a lei lhes atribua identidade organizatória, direitos-função e sejam centros individualizados de imputação jurídica) [1].

As normas de organização podem ser primárias (legais e constitucionais) e secundárias (regulamentares ou derivadas), mas é grave quando relações de organização e prorrogativas derivadas não encontram balizas claras em normas antecipadamente estabelecidas. O jogo mais perigoso é o jogo sem regras. Há necessidade de o legislador voltar os olhos com maior atenção para as relações organizativas como elemento essencial à garantia dos cidadãos, pois a distribuição de tarefas e encargos, competências e prerrogativas, no interior da administração não deve ser imprevisível. Este não é um problema de determinado governo, ou do governo do momento, mas do Estado brasileiro.

A determinação da competência como problema organizatório

A Constituição e as leis criam as competências públicas. E não pode ser de outro modo: “ninguém pode ser obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei” (CF, artigo 5, II). No entanto, a distribuição concreta das competências legais, a sua abrangência prática e o grau de sua definitividade no âmbito público dependem de relações mantidas na intimidade da organização dos poderes. E assim também ocorre na organização administrativa.

A  transferência de competências de um para outro órgão na administração direta, possível de realizar-se por simples decretos de organização (CF, artigo 84, VI, a);  a decisão de recursos hierárquicos e de recursos hierárquicos impróprios (em verdade, recursos de supervisão), no segundo caso quando isto seja expressamente admitido por lei (CF, artigo 37 XIX e XIX); a arbitragem administrativa de conflitos interorgânicos ou conflitos de competência; medidas de desconcentração de competências na intimidade de uma mesma pessoa administrativa ou de descentralização de competências de uma pessoa administrativa para outra, inclusive em termos interfederativos (CF, artigo 241), são algumas hipóteses que evidenciam a distância que separa a dinâmica da organização do quadro geral estático das formas de organização.

A exigência de autorização legal para o exercício da competência material pelos órgãos e entidades públicas indiscutivelmente é garantia fundamental de liberdade, mas é insuficiente: ela oferece segurança apenas quando há regras que definem antecipadamente o como, o quando e a extensão possível relativamente às transferências de competências (ou de exercício de competência) na intimidade da organização administrativa. Essas regras devem ser flexíveis, permitir o manejo seguro e facilitado de encargos e prerrogativas no interior da organização, mas devem existir com precisão e serem conhecidas de todos, para a segurança dos próprios gestores.

Por exemplo, hoje não há regras para definir claramente as prerrogativas decorrentes do artigo 84, VI, a, da Constituição. Pode o presidente, por decreto de organização, esvaziar amplamente as competências de órgãos públicos, sem extingui-los, transferindo-as para outros órgãos? Pode invocar a previsão do artigo 84, VI, a (“dispor sobre a organização e o funcionamento da administração federal”), combinada com prerrogativa constante do artigo 84, II, fine (“exercer a direção superior da administração federal”) para transferir competências inseridas na esfera de pessoas descentralizadas ou apenas manejar e redistribuir competências de órgão da administração direta? Se não pode, com decreto de organização, aumentar despesa, criar ou extinguir órgãos públicos, pode inviabilizar o exercício dessas mesmas competências com a omissão, sem limite, do ato de nomear dirigentes ou integrantes de órgãos colegiados essenciais ao funcionamento desses órgãos ou de entidades supervisionadas? Pode reduzir despesas, e a liberação financeira de recursos orçamentários, suprimir ou transferir todo o pessoal de determinado órgão sem que essas ações sejam consideradas “extinção de órgão”? Pode fundir órgãos subordinados, preservadas todas as competências materiais estabelecidas pelo legislador, para evitar a duplicidade de estruturas organizativas? Em outras palavras, a proibição de extinção de órgãos por decreto de organização é material ou formal? Órgãos devem ser considerados extintos quando a previsão orçamentária aprovada não se converter em liberação financeira efetiva em termos relevantes e substanciais?

Na supervisão ministerial, por igual, permanecem incertos os limites dos recursos de supervisão. Cabem para atos normativos ou apenas para atos administrativos concretos? Podem ser consideradas implícitas na competência do artigo 84, II, fine (“exercer a direção superior da administração federal”) ou exigem lei expressa autorizativa, dada a natureza da entidade supervisionada de possuir personalidade autônoma, destacada da administração direta por decisão do legislador (CF, artigo 37, XIX e XX)? O legislador pode afastar completamente os poderes de tutela quando adotadas decisões finais em diretoria colegiada, como parece ter fixado o artigo 3º, da Lei 13.848/2019? Quais os limites da supervisão ministerial em termos de “adequação das entidades às políticas públicas”? Como assegurar a efetiva ampliação de autonomia gerencial, orçamentária e financeira de órgãos e entidades que assinarem contratos de desempenho, na forma do artigo 37, §8º, da Constituição, sem que os compromissos assumidos sejam comprometidos por contingenciamentos ou lentidão na liberação financeira?

Na relação de hierarquia, do mesmo modo, há limites pouco explorados. Além dos órgãos constitucionais autônomos (Ministério Público, Defensoria, Tribunais de Contas), mesmo na intimidade dos órgãos exclusivamente administrativos da administração direta há alguns que não podem, pela natureza das funções, subordinarem estas a determinações hierárquicas. É o caso dos colegiados consultivos, com frequência não remunerados e de representação social; os colegiados deliberativos, presididos pela autoridade máxima do órgão, mas que deliberam em votação e discussão as matérias a seu cargo; os órgãos periciais e policiais na matéria pertinente às investigações e perícias a serem produzidas.

Por óbvio, para várias dessas perguntas professores de direito oferecem diferentes respostas. Respostas com frequência polêmicas, que dividem e apaixonam correntes de entendimento, suscitam questionamentos, repercutem no Poder Judiciário e deixam inseguros os próprios gestores.  Se desejamos uma administração pública mais eficiente e menos vacilante, mais econômica e menos redundante, socialmente mais efetiva e menos questionada em cada passo, devemos cuidar de disciplinar com maior clareza e precisão as suas normas de organização como tarefa urgente e estruturante do Estado, sobretudo as normas dedicadas às relações organizativas [2].

Comissão de Revisão do DL 200/67

No âmbito dessa missão de Estado, de complexidade indiscutível, o governo federal recentemente instituiu Comissão de Especialistas destinada a sugerir a revisão global do Decreto Lei 200/1967, editado em pleno período autoritário, ainda hoje considerado norma referencial em matéria de organização administrativa.

Embora amplamente superado pela legislação superveniente, o Decreto-Lei 200 segue sendo norma que suscita incompreensões e oculta lacunas relevantes da disciplina da organização administrativa no Brasil. Nessa missão de revisão, a Comissão dividiu os seus trabalhos em cinco eixos temáticos:

1) Eixo A – Estrutura Organizacional: Administração direta e supervisão ministerial; Autarquias, fundações e novas figuras; ⚬ Governança de estatais;

2) Eixo B – Governança, planejamento e orçamento: Ciclo de política pública; Tomada de decisão e sistemas de governança; Coordenação entre planejamento e orçamento; Metodologias e instrumentos para planejamento e acompanhamento da execução orçamentária; Monitoramento e avaliação;

3) Eixo C – Parcerias em políticas públicas: Articulação e atuação interfederativa; Parcerias com a sociedade civil ⚬ Participação social;

4) Eixo D – Inovação e controle: Inovação na gestão e em políticas públicas; Transformação digital na administração pública; Integridade e transparência; Sistema de controle; Relação entre gestão, inovação e controle.

Os eixos revelam a abrangência do trabalho, que pretende seguir metodologia participativa: realização de eventos em diversas capitais para debate ampliado dos tópicos referidos, oitiva de instituições interessadas e elaboração de relatórios propositivos para cada eixo antes da consolidação dos resultados dos debates em anteprojeto normativo a ser apresentado ao presidente da República. Trata-se de percurso mais demorado do que a simples elaboração de uma proposta normativa direta, porém uma escolha que pode render frutos e sugestões enriquecedoras.

Tendo sido convidado a integrar a Comissão, desta vez formada não apenas por professores de direito e integrada também por administradores e cientistas políticos, pretendo nos próximos meses – e colunas – abordar tópicos relacionados à organização administrativa brasileira e possíveis respostas para o seu desenvolvimento.

Há reformas administrativas que dispensam emendas constitucionais, proclamações solenes, balas de prata, enunciados eloquentes. A reforma da organização federal, que nos formatos organizacionais de direito privado aplica-se a todos os entes da Federação, pode eventualmente oferecer soluções para uma administração mais eficaz, eficiente e socialmente justa e sintonizada com o nosso tempo. Para a atender a esses fins ela deve cuidar com atenção especial, além das formas de organização, das relações organizativas que movimentam e articulam as decisões na intimidade da administração pública.


[1] Sobre o tópico dos órgãos como sujeitos administrativos, e a dissociação entre os conceitos de sujeito de direito e personalidade jurídica (presente também no direito privado), cf. MODESTO, Paulo. Legalidade e autovinculação da Administração Pública: pressupostos conceituais do contrato de autonomia no anteprojeto da nova lei de organização administrativa. In: Modesto, Paulo (org.) Nova Organização Administrativa: estudos sobre a proposta da Comissão de Especialistas constituída pelo governo federal para reforma da organização administrativa brasileira. Belo Horizonte: Ed. Fórum, 2009; 2ed, 2011. Na internet, disponível no endereço: https://www.academia.edu/45494341 Sobre o conceito de direito-função, direito à própria função, reconhecido aos órgãos inclusive para a defesa judicial de atos contrários a suas prerrogativas institucionais, há inúmeros precedentes (entre muitos, STF, MS 21.239, rel. min. Sepúlveda Pertence, Tribunal Pleno, julgamento 05/06/1991, DJ 23-04-1993; ADI 1557, rel. min. Ellen Gracie, Tribunal Pleno, DJ 18.06.2004; RE 595176 AgR, rel. Min. Joaquim Barbosa, 2ª Turma, julg. 31/08/2010, DJe-235, 03-12-2010; ADI 5.275, rel.  Alexandre De Moraes, Tribunal Pleno, julg. 11/10/2018, DJe-230, 26-10-2018). A doutrina administrativa repete como mantra que os órgãos não são pessoas, embora possam gozar de “personalidade judiciária, podendo demanda em juízo e defender os seus direitos institucionais” (STJ, Súmula 525). Mas não é isto que está em causa no plano interno da organização administrativa. Neste domínio, os órgãos possuem subjetividade organizatória, desde que a lei assim o estabeleça, seja diretamente (assegurando independência) seja indiretamente (fixando competências materiais incompatíveis com o exercício desimpedido de poderes hierárquicos). O direito real não está submetido a mantras.

[2] Sobre a tentativa anterior, na Gestão Lula I, de reforma da organização administrativa, conferir: MODESTO, Paulo. Anteprojeto de novas lei de lei de organização administrativa: síntese e contexto. REDE, n. 27, 2011. Disponível em https://www.academia.edu/7789782 ou http://www.direitodoestado.com.br/artigo/paulo-modesto/anteprojeto-de-nova-lei-de-organizacao-administrativa-sintese-e-contexto

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Senadores apresentam PEC para garantir sustentação oral em todo o processo

Um grupo de 27 senadores apresentou uma Proposta de Emenda à Constituição (PEC) para que o direito de advogados à sustentação oral em qualquer etapa processual esteja assegurado pela Carta Magna.

A PEC 30/2024, protocolada na última quarta-feira (7/8), prevê o acréscimo de um parágrafo único ao artigo 133 da Constituição Federal, que versa sobre o caráter indispensável da advocacia à administração da Justiça.

advogado advocacia sustentação oral
Sustentação oral tem sido motivo de embates entre OAB e STF desde o ano passado

“Ao advogado é assegurado o direito de sustentação oral em qualquer sessão de julgamento, perante tribunais de qualquer natureza, sob pena de nulidade do julgamento”, diz o texto que a PEC pretende levar à Constituição.

Garantia vilipendiada

Na justificativa da proposta, o senador Castellar Neto (PP-MG), que lidera a iniciativa, argumenta que a garantia da sustentação oral pelos advogados, o que expressa o direito ao contraditório, “vem sendo vilipendiada por diversos órgãos judiciais, inclusive no âmbito do Supremo Tribunal Federal e de outros Tribunais Superiores”.

Em abril, o Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) havia levado ao Senado uma proposta semelhante, após episódios recorrentes de embate com o STF em relação ao tema.

Em diferentes ocasiões, o ministro Alexandre de Moraes negou a sustentação oral em agravo regimental tanto no STF quanto no Tribunal Superior Eleitoral, quando ainda presidia este último, ao se valer do regimento interno de ambos. A OAB diz, contudo, que a Lei 14.365 regulou a matéria de forma diferente.

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Evidenciação dos resultados financeiros possíveis em sociedades cooperativas

A contabilidade de cooperativas deve atender às especificidades originadas a partir da natureza jurídica própria dessas sociedades. Fazendo um pequeno recorte, mostra-se que, contabilmente, há nove possibilidades de se apresentar o conjunto informacional dos resultados financeiros líquidos decorrentes das operações de sociedades cooperativas ao final de cada período, diferentemente de todos as demais formas de apresentação de resultados para sociedades de qualquer natureza, o que enseja técnica contábil específica a esse modelo societário.

Ou seja, o exercício contábil e os instrumentos de demonstrações contábeis e financeiras para evidenciação de resultados apurados são únicos para as sociedades cooperativas, não se prestando para nenhum outro tipo societário à luz da legislação brasileira, e a técnica contábil a ser aplicada deve estar alinhada a tanto, como por diante se vê.

Marcelo Camargo/Agência Brasil

 

Definições, resultados, sobras e perdas

O sistema cooperativista de produção tem natureza jurídica própria, fundado originariamente, para fins desta pesquisa, na Lei 5.764, de 1971, recepcionada pela CF de 1988. A Lei 5.764/1971, artigo 4º, aponta que “as cooperativas são sociedades de pessoas, com forma e natureza jurídica próprias, de natureza civil, não sujeitas a falência, constituídas para prestar serviços aos associados, distinguindo-se das demais sociedades com características próprias, entre elas, inc. VII, artigo 4º:

“VII – retorno das sobras líquidas do exercício, proporcionalmente às operações realizadas pelo associado, salvo deliberação em contrário da Assembleia Geral;”

O Código Civil, artigo 1.094, inciso VII, estabelece que a sociedade cooperativa se caracteriza, entre outros, pela distribuição dos resultados, proporcionalmente ao valor das operações efetuadas pelo sócio com a sociedade;

A Lei 5.764, artigo 21, inciso IV, aduz que o estatuto da cooperativa deverá indicar a forma de devolução das sobras registradas aos cooperados e ou do rateio das perdas apuradas da sociedade. Já no seu artigo 44, letra “c”, inciso II, determina que a Assembleia Geral Ordinária deve deliberar pela destinação das sobras apuradas ou rateio das perdas do exercício.

Ou seja, o resultado financeiro do exercício reconhecido como sobras está sempre e integralmente à disposição dos cooperados, seja para destinação direta na proporção da fruição dos serviços de cada um no período, seja por deliberação assemblear ou, ainda, pelo ditame estatutário, uma vez que a assembleia geral é conformada pelo corpo associativo e delibera soberanamente sobre, sendo pelo interesse manifestado eventualmente ou perpetuado no estatuto social da cooperativa, que ela própria aprova, em dado momento.

Convém frisar que está se achegando entre nós o conceito jurídico das “perdas” neste entendimento ora em formação. Consequentemente, tem-se, já, então, sobras e perdas legalmente instituídas e, aqui, evidenciadas.

Tratamento tributário, ato cooperativo e participação de terceiros

A CF/1988 fixa o adequado tratamento tributário ao ato cooperativo praticado pelas sociedades cooperativas, destacando-o e lhe garantindo a especificidade no ambiente jurídico brasileiro:

“Art. 146. Cabe à lei complementar:

c) adequado tratamento tributário ao ato cooperativo praticado pelas sociedades cooperativas, inclusive em relação aos tributos previstos nos arts. 156-A e 195, V”

A Lei 5.764/1971, artigo 79, § único, define os atos cooperativos como sendo aqueles praticados entre as cooperativas e seus cooperados, entre estes e aquelas e pelas cooperativas entre si quando associadas, para a consecução dos objetivos sociais, não implicando tais atos como sendo operação de mercado, nem contrato de compra e venda de produto ou mercadoria.

A Lei 5.764/171, artigos 85, 86 e 111, prevê o exercício dos atos não cooperativos para as cooperativas, que são exatamente aqueles em que há a participação direta de terceiros, não cooperados, na formação da riqueza ou na produção, o que é possível frente a necessidades específicas para consecução dos objetivos sociais de cada entidade, a considerar a equação complexa conformada pelas ofertas e demandas de mercado e limitações de cada sociedade cooperativa.

Significa dizer que as cooperativas, por vezes, poderão ou necessitarão, para garantir o cumprimento de seus objetivos sociais, lançar mão de terceiros, não sócios, nas feituras da sua linha produtiva, de negócios ou de serviços dispostos e atendidos pelos seus sócios, em razão de uma série de fatores circunstanciais. E a lei 5.764/1971 assim permite:

“Art. 85. As cooperativas agropecuárias e de pesca poderão adquirir produtos de não associados, agricultores, pecuaristas ou pescadores, para completar lotes destinados ao cumprimento de contratos ou suprir capacidade ociosa de instalações industriais das cooperativas que as possuem.”

“Art. 86. As cooperativas poderão fornecer bens e serviços a não associados, desde que tal faculdade atenda aos objetivos sociais e estejam de conformidade com a presente lei.”

“Art. 88. Poderão as cooperativas participar de sociedades não cooperativas para melhor atendimento dos próprios objetivos e de outros de caráter acessório ou complementar.”

Porém, a mesma lei, artigos 87 e 111, ao fixar os atos não cooperativos como tributáveis, determina que haja tratamento contábil, tributário e financeiro diferenciado sobre esses atos praticados e sobre seus resultados em relação ao tratamento deferido aos atos cooperativos justamente por serem atos jurídicos tidos como atos de comércio, como também desenha a doutrina do Direito Cooperativo (BECHO, 2019).

“Art. 87. Os resultados das operações das cooperativas com não associados, mencionados nos artigos 85 e 86, serão levados à conta do “Fundo de Assistência Técnica, Educacional e Social” e serão contabilizados em separado, de molde a permitir cálculo para incidência de tributos.”

“Art. 111. Serão considerados como renda tributável os resultados positivos obtidos pelas cooperativas nas operações de que tratam os artigos 85, 86 e 88 desta Lei. (Lei 5.764/1971).”

O Decreto 9.580/2018 (RIR/2018) aduz:

“Art. 193. As sociedades cooperativas que obedecerem ao disposto na legislação específica não terão incidência do imposto sobre suas atividades econômicas, de proveito comum, sem objetivo de lucro.”

A Instrução Normativa RFB nº 1.700/2017 determina:

“Art. 23. Não incidirá IRPJ sobre as atividades econômicas de proveito comum, sem objetivo de lucro, desenvolvidas por sociedades cooperativas que obedecerem ao disposto na legislação específica.

§1º. As sociedades cooperativas de que trata o caput ficam isentas da CSLL relativamente aos atos cooperativos praticados a partir de 1º de janeiro de 2005.”

Segregação dos atos cooperativos

Consequentemente, a legislação tributária brasileira, harmoniosamente, a partir da carta magna, reconhece que o exercício dos atos cooperativos produz ou, melhor, pode produzir resultados econômicos e financeiros que não são lucros e nem prejuízos, e que esses resultados, se positivos são reconhecidos como sobras e, se negativos, como perdas. E, para eles, há tratamento tributário, fiscal, contábil e financeiro específico, consequentemente.

A ITG 2004 – Entidade Cooperativa, norma da contabilidade que estabelece critérios e procedimentos específicos para mensuração e controle patrimonial para as cooperativas, determina:

“3. Entidade cooperativa é aquela que exerce as atividades na forma de lei específica, por meio de atos cooperativos, que se traduzem na prestação de serviços aos seus associados, sem objetivo de lucro, para obterem em comum melhores resultados para cada um deles em particular.

5. As seguintes expressões usadas nesta interpretação têm os significados: Movimentação econômico-financeira decorrente de ato cooperativo é definida contabilmente como ingressos (receitas por conta de cooperados) e dispêndios (custos e despesas por conta de cooperados) e aquela originada de ato não cooperativo corresponde a receitas, custos e despesas.

Ato cooperativo é aquele de interesse econômico do cooperado conforme definido em legislação própria.”

Ou seja, a norma contábil (ITG 2004) evidencia o ato cooperativo e a ele determina tratamento específico, exigindo-lhe segregação dos atos não cooperativos para fins de reconhecimento de resultados, tratamento tributário e destinações:

“6. A escrituração contábil é obrigatória e deve ser realizada de forma segregada em ato cooperativo e não cooperativo, por atividade, produto ou serviço.”

A perfectibilidade das demonstrações contábeis está na precisão da apresentação das variações patrimoniais e dos fluxos financeiros ocorridos na sociedade cooperativa no período, apresentação essa que deve evidenciar segregadamente os resultados decorrentes dos atos cooperativos e dos atos não cooperativos para fins do seu próprio reconhecimento, do montante tributável e suas destinações, como já dito e embasado.

Possibilidades

Por isso, a cooperativa deve apresentar contabilmente os resultados decorrentes dos atos cooperativos, com reconhecimento das sobras, das perdas ou do resultado zerado, o que equivale para os resultados decorrentes dos atos não cooperativos, como lucros, prejuízos ou resultado zerado, ao final do exercício, no encerramento do balanço.

Portanto, são três as possibilidades de resultados líquidos na mensuração para os resultados auferidos pela sociedade cooperativa, decorrentes de cada ato jurídico por ela praticado, frisando-se os juridicamente viáveis: o ato cooperativo e o ato não cooperativo.

Dos atos cooperativos, podem ser evidenciados como resultados apurados no final do exercício: sobras, perdas ou resultado zero, decorrentes do cálculo da diferença obtida entre os montantes de ingressos e dispêndios.

E dos atos não cooperativos, lucros, prejuízos ou resultado zero, decorrentes do cálculo da diferença obtida entre os montantes das receitas, custos e despesas.

Por conta disso, o quadro demonstrativo contábil poderá ser evidenciado das seguintes formas, já deduzidas as destinações compulsórias e estatutárias, à exceção do resultado líquido decorrente dos atos não cooperativos, que devem ser integralmente destinados ao Fates/Rates nos termos da lei.

 

1. Primeira hipótese: Resultados positivos dos atos cooperativos e dos atos não cooperativos.

(Sobras e Lucros).

CONTAS Ano-Calendário 31.12.20XX
Ato Cooperativo

 

(Sobras)

Ato Não Cooperativo

 

(Lucros)

Total
SOBRAS à disposição da AGO R$ 10.000,00 R$ 5.000,00 R$ 15.000,00

 

2. Segunda hipótese: Resultado positivo dos atos cooperativos e negativo dos atos não cooperativos.

(Sobras e Prejuízos).

CONTAS Ano-Calendário 31.12.20XX
Ato Cooperativo

 

(Sobras)

Ato Não Cooperativo

 

(Lucros)

Total
SOBRAS à disposição da AGO R$ 10.000,00 (R$ 5.000,00) R$ 5.000,00

 

3. Terceira hipótese: Resultado positivo dos atos cooperativos e Resultado zero dos atos não cooperativos.

(Sobras e Resultado zero decorrente dos Atos não Cooperativos).

CONTAS Ano-Calendário 31.12.20XX
Ato Cooperativo

 

(Sobras)

Ato Não Cooperativo

 

(Lucros)

Total
SOBRAS à disposição da AGO R$ 10.000,00 R$ 0,00 R$ 10.000,00

 

4. Quarta hipótese: Resultado negativo dos atos cooperativos e positivo dos atos não cooperativos.

(Perdas e Lucros).

CONTAS Ano-Calendário 31.12.20XX
Ato Cooperativo

 

(Sobras)

Ato Não Cooperativo

 

(Lucros)

Total
SOBRAS à disposição da AGO  (R$ 10.000,00) R$ 5.000,00 (R$ 5.000,00)

 

5. Quinta hipótese: Resultado negativo dos atos cooperativos e negativo dos atos não cooperativos.

(Perdas e Prejuízos).

CONTAS Ano-Calendário 31.12.20XX
Ato Cooperativo

 

(Sobras)

Ato Não Cooperativo

 

(Lucros)

Total
SOBRAS à disposição da AGO (R$ 10.000,00) (R$ 10.000,00) (R$ 20.000,00)

 

6. Sexta hipótese: Resultado negativo dos atos cooperativos e Resultado zero dos atos não cooperativos

(Perdas e Resultado zero decorrente dos Atos não Cooperativos).

CONTAS Ano-Calendário 31.12.20XX
Ato Cooperativo

 

(Sobras)

Ato Não Cooperativo

 

(Lucros)

Total
SOBRAS à disposição da AGO (R$ 10.000,00) R$ 0,00 (R$ 10.000,00)

 

7. Sétima hipótese: Resultado zero decorrente dos atos cooperativos e positivo dos atos não cooperativos

(Resultado zero decorrente dos Atos Cooperativos e Lucros).

CONTAS Ano-Calendário 31.12.20XX
Ato Cooperativo

 

(Sobras)

Ato Não Cooperativo

 

(Lucros)

Total
SOBRAS à disposição da AGO R$ 0,00 R$ 5.000,00 R$ 5.000,00

 

8. Oitava hipótese: Resultado zero dos atos cooperativos e negativo dos atos não cooperativos

(Resultado zero decorrente dos Atos Cooperativos e Prejuízos).

CONTAS Ano-Calendário 31.12.20XX
Ato Cooperativo

 

(Sobras)

Ato Não Cooperativo

 

(Lucros)

Total
SOBRAS à disposição da AGO R$ 0,00 (R$ 5.000,00) (R$ 5.000,00)

 

9. Nona hipótese: Resultado zero dos atos cooperativos e zero dos atos não cooperativos

(Resultado zero decorrente dos Atos Cooperativos e zero decorrente dos Atos não Cooperativos).

CONTAS Ano-Calendário 31.12.20XX
Ato Cooperativo

 

(Sobras)

Ato Não Cooperativo

 

(Lucros)

Total
SOBRAS à disposição da AGO R$ 0,00 R$ 0,00 R$ 0.000,00

Conclusões

Tecnicamente, a adequada apresentação das demonstrações contábeis das sociedades cooperativas em cada exercício demanda o reconhecimento de resultados segregados pelos atos jurídicos por ela praticada com seus sócios e com terceiros, atos cooperativos e atos não cooperativos, respectivamente, em cumprimento ao cabedal legal e normativo incidente e aplicável sobre o sistema cooperativista de produção, negócios e serviços.

Para tanto, a contabilização dos atos jurídicos praticados pelas cooperativas exige performance técnica específica, prevista e orquestrada pelo Direito Cooperativo e Tributário, em especial.

Os resultados devem ser evidenciados segregadamente como dito, porém lado a lado, simultaneamente para que as suas destinações ocorram também assim no encerramento do balanço em cada exercício, não sendo viável acúmulos de resultados para exercícios futuros, diferentemente do que ocorre em outros tipos societários.

Dada a especificidade, quando se observa o conjunto formado por resultados originariamente distintos entre si, decorrentes dos atos cooperativos e dos atos não cooperativos, a contabilidade pode apresentar nove (09) hipóteses de resultados no conjunto a demonstrar, em razão das possibilidades dos resultados diferentes sendo apresentados simultaneamente no encerramento do balanço.

Dos resultados dos atos cooperativos, é possível evidenciar sobras, perdas ou resultado zero. Dos resultados decorrentes dos atos não cooperativos, lucros, prejuízos ou resultado zero.

Portanto, o quadro resumo com os resultados, conjuntamente dados, simultâneos e possíveis de ocorrer viabilizam a possibilidade de apresentação de nove (09) demonstrativos diferentes a saber:

Quadro Resultados dos Atos Cooperativos   Resultados dos Atos Não Cooperativos
1 Sobra e Lucro
2 Sobra e Prejuízo
3 Sobra e

 

 

Resultados do Ato não Cooperativo: zero
4 Perda e Lucro
5 Perda e Prejuízo
6 Perda  

 

e

Resultados do Ato não Cooperativo: zero
7 Resultados do Ato Cooperativo: zero e Lucro
8 Resultados do Ato Cooperativo: zero e Prejuízo
9 Resultados do Ato Cooperativo: zero e

 

 

Resultados do Ato não Cooperativo: zero

Como dito inicialmente, o exercício contábil necessário, com os demonstrativos de resultados econômico-financeiros apurados aplicáveis às sociedades cooperativas são específicos, ímpares, em nada se confundindo com outros destinados e ou utilizáveis para outros tipos societários, de acordo com a legislação, latu sensu, brasileira.

Se, por um lado, fica evidente que o aproveitamento do molde de práticas, técnicas e demonstrações contábeis exigíveis para controlar o patrimônio de cooperativas, em plenitude, não é possível para utilização em outro modelo societário, por outro, na contramão, as sociedades cooperativas também não podem se aproveitar plenamente de modelos outros que não os próprios.

O reconhecimento da unicidade modelar contábil, seja na aplicação da técnica ou na exposição de resultados, está dado no momento em que se vê o fato de que somente sociedades cooperativas podem e devem declarar e apresentar nove (09) retratos possíveis com seus resultados financeiros em cada período.

 


Referências

BRASILConstituição Federal de 1988.

_____. Lei nº 5.764, de 16 de dezembro de 1971.

_____. Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002.

_____. Decreto nº 9.580, de 22 de novembro de 2018.

_____. Instrução Normativa RFB nº 1.700, de 14 de março de 2017.

_____. ITG 2004 – Entidade Cooperativa – Normas Brasileiras de Contabilidade – Conselho Federal de Contabilidade – 29 de novembro de 2017.

BECHO; Renato Lopes. Tributação das Cooperativas. 4ª Edição. Revista, atualizada e ampliada. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2019.

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Restrição do STJ à judicialização do Carf valoriza tribunal administrativo

Ao restringir o uso da ação popular para atacar acórdãos do Conselho de Administração de Recursos Fiscais (Carf), o Superior Tribunal de Justiça valoriza a função exercida pelo órgão dentro da administração tributária.

Acórdão do Carf foi atacado por ação popular ajuizada por auditor fiscal inconformado com resultado pró-contribuinte – André Corrêa/Agência Senado

 

A conclusão é de advogados consultados pela revista eletrônica Consultor Jurídico, em relação ao julgamento da 1ª Turma do STJ, concluído na terça-feira (6/8).

O colegiado definiu que a ação popular só serve para contestar acórdãos do Carf se as posições assumidas forem ilegais, contrárias a precedentes sedimentados ou maculadas por abuso de poder.

Presidente do Conselho entre 2022 e 2023 e conselheiro de 2012 a 2018, Carlos Henrique de Oliveira, sócio do Mannrich e Vasconcelos Advogados, avalia que a posição do STJ é pertinente, por demonstrar uma visão sistêmica.

Embora o Carf faça parte da administração tributária, é um tribunal administrativo de composição paritária — metade composto por representantes da Receita, metade por indicados por entidades empresariais — que se pauta pelo respeito ao equilíbrio entre o Fisco e os contribuintes.

“O Carf só tem relevância pública se efetivamente pacificar os litígios tributários. Se ele não tiver essa função pacificadora, não adianta. Aí vai tudo pro Judiciário. E ele exerce essa função proferindo decisões justas”, disse o advogado.

“A visão do STJ valoriza o tribunal administrativo, permitindo que suas decisões sejam atacadas desde que eivadas de ilegalidade”, afirmou.

A ex-conselheira Mírian Lavocat, sócia do Lavocat Advogados, também elogiou a posição do STJ, ao destacar que as decisões pró-contribuinte do Carf passam por um processo amplo, com contraditório e ampla defesa respeitado para ambas as partes.

“É bom que o STJ uniformize essa questão, no sentido de que a ação popular não pode ser diminuída para combater vícios inexistentes. Não se pode diminuir o objeto de uma ação popular.”

Respeitem o Carf

A posição do STJ é benéfica para os contribuintes porque a ação popular, regulada pela Lei 4.717/1965, é o meio à disposição de qualquer cidadão para invalidar atos que considere lesivos ao patrimônio público.

Quando usadas contra o Carf, elas apontam que esse prejuízo seria causado pelas posições contrárias ao Fisco tomadas pelo conselho, ao entender não serem devidos os créditos tributários alegados pela Receita Federal.

Esse uso da ação popular, portanto, será sempre contrário às pretensões do contribuinte. Até porque as empresas que são derrotadas administrativamente não têm qualquer restrição ao ajuizamento de ações para discutir judicialmente as mesmas questões tributárias.

O recurso julgado partiu de uma entre centenas de ações populares ajuizadas por um único auditor fiscal contra o Carf. Só no STJ há mais de 200 recursos especiais e agravos, segundo a ministra Regina Helena Costa.

Esse grau de litigiosidade decorre de uma opção pessoal do auditor fiscal e não reflete uma visão institucional. Ainda assim, um procurador da Receita Federal fez sustentação oral na 1ª Turma para defender o uso da ação popular, invadindo o mérito da discussão.

Esse fator não passou despercebido e gerou críticas. A ministra Regina Helena Costa disse que nota uma cruzada contra o Carf em andamento e que a própria União, por vezes, não o reconhece como um órgão de sua própria estrutura.

“Se não for assim, que se extinga o Carf. Se não se aceita que um órgão de composição paritária possa julgar favoravelmente ao contribuinte, então para que existe esse órgão?”, provocou a relatora.

Bronca propícia

Para Carlos Henrique de Oliveira, a bronca chama atenção para o fato de que Carf, Fisco e Procuradoria-Geral da Receita Federal estão do mesmo lado e em pé de igualdade. “Se o Carf faz parte da administração tributária, não faz sentido a procuradoria se insurgir.”

“Pena que, nesses casos de ação popular, não existe sucumbência”, disse Mirian Lavocat. “Em situações como essa, de litígio despropositado, mereceria uma sucumbência inclusive recursal no STJ.”

Ela avalia que, desde 2015, após a “operação zelotes”, há uma tentativa de diminuir e desmoralizar o Carf, órgão que é prolator de decisões citadas nas jurisprudências de STJ e do Supremo Tribunal Federal.

A investigação citada envolveu denúncia de redução e anulação de créditos tributários de grandes empresas, mediante suposto pagamento de propina a conselheiros.

Ela gerou auditoria do Tribunal de Contas da União, que concluiu que o Carf tinha risco de conflito de interesse no sistema de escolha dos conselheiros, além de problemas de transparência, gestão da ética, processo de responsabilização e morosidade dos julgamentos.

“Acredito que essa postura busca desacreditar o tribunal administrativo e consequentemente, diminuir as garantias constitucionais dos contribuintes, eis que a composição do Carf é paritária, ou seja, composto por representantes da Receita Federal e dos contribuintes”, opinou a advogada.

REsp 1.608.161

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