A política e a economia da agricultura e da segurança alimentar

No início da década de 1970 do século passado, a agricultura brasileira era considerada por uma parte de estudiosos — alguns vinculados à Cepal (Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe) — um setor atrasado, inoperante, não condizente com o desenvolvimento que se verificava no país. Não conseguia atender de forma adequada às necessidades de uma demanda interna crescente, que decorria da pressão demográfica e do aumento da renda.

A impressão que se passava era de que agricultores com pouca instrução, com informações escassas da própria atividade, sem assistência técnica, com créditos difíceis e dispondo apenas de instrumentos rudimentares de trabalho não tinham ânimo e nem condições de aumentar a produção e a produtividade no ritmo desejado. Ademais,  o mau funcionamento de um mercado dominado por oligopólios não permitia muitas vezes transferir para os produtores os ganhos de eventuais elevações de preços. E ainda mais, que a estrutura agrária inadequada era também uma inibidora do avanço.

A agricultura constituía, portanto, um fator autônomo de inflação, responsável pelos aumentos constantes do custo de alimentação. Mesmo o Plano de Ação Econômica do Governo de 1964/1966 introduzia alguma dúvida: “a excessiva disparidade entre as taxas setoriais de crescimento configura um caso em que a agricultura emerge como setor retardatário, ameaçando comprometer a expansão de todo o conjunto” (da economia).

A comparação que se fazia era com a indústria de transformação, cujo produto real, nos dez anos anteriores ao Plano incluindo a crise de 1964, havia crescido à taxa anual de 8,1%, enquanto, nesse mesmo período, na agricultura a taxa anual era de 3,6%.

Estudos realizados na Faculdade de Ciências Econômicas e Administrativas da Universidade de São Paulo contestavam essa visão. As evidências indicavam que:

1) o custo de alimentação na Guanabara e os preços industriais numa série longa, por exemplo de 1945 a 1964, cresciam à mesma velocidade. Na comparação entre dois anos, ou dentro do ano, preços agrícolas poderiam suplantar os preços industriais, mas esta diferença era decorrente de condições climáticas adversas que seriam corrigidas na safra seguinte;

2) a conjugação do aumento da população com a expansão da renda real per capita, adotando-se uma elasticidade-renda da demanda com intervalos estatísticos indicados pela pesquisa empírica, não permitia concluir que a oferta de longo prazo era inferior à demanda e,

3) pesquisas adicionais comprovavam que, na agricultura brasileira, a produção era limitada pela demanda e não pela rigidez da oferta. Comprovou-se que os produtores respondiam plenamente aos estímulos de preços. Portanto, havia mais potencial do que efetivamente se produzia.

Não é necessário enfatizar que o rápido desenvolvimento que se seguiu confirmou esse diagnóstico, revelando um setor altamente dinâmico, quando:

a) propiciaram-se condições adequadas para o agricultor intensificar a sua atividade, entre elas a garantia de financiamento de custeio, de comercialização e de investimento, assistência técnica para a utilização de insumos modernos, e ampliação de estradas vicinais para facilitar o escoamento da safra;

b) eliminou-se o viés antiexportação, cuja providência inicial foi a instituição do sistema de minidesvalorizações cambiais em 1968 e,

c) os produtores foram beneficiados, ao longo dos anos, pelos resultados altamente positivos das pesquisas centralizadas na Embrapa. O preparo de elevado número de pesquisadores, o orçamento adequado e o trabalho de coordenação frutificaram continuamente.  Esforços isolados feitos anteriormente, como o do Instituto Agronômico de Campinas em algodão, arroz e café, produziram grandes resultados, mas escapava-lhes a visão da necessidade conjunta de todo o país.

Em resumo, o desenvolvimento contínuo do setor reafirmou um fato simples: a política econômica bem executada, com objetivo claro e definido, produz os resultados almejados. O país tornou-se o maior exportador líquido de produtos agrícolas.

Demografia e segurança alimentar

O caminhar da população mundial nos últimos decênios tem-se caracterizado por:  a) queda da taxa de fertilidade; b) redução da taxa de mortalidade infantil; c) elevação da expectativa de vida ao nascer; d) intensa urbanização e diminuição relativa de pessoas subnutridas. Tem havido uma desaceleração do seu crescimento.

De acordo com a ONU, em 1950 a população mundial era de 2.546 milhões, sendo 29,1% de urbana; em 1975, atingia 4.077 milhões, 37,2% urbana; em 2010, chegava a 6.909, 50,5% de urbana; e em 2050, algo como 9.191, com 69,6% de urbana. Entre 1950 e 1975, a taxa anual de crescimento foi de 1,9%; entre 1975 e 2010, de 1,5%, e se projeta 0,7% de 2010 a 2050.

De qualquer maneira, um aumento de 2,3 bilhões de pessoas é um número assustador. Também começam a entrar em cena o envelhecimento e a redução da população em algumas economias, cujos efeitos ainda não podem ser inteiramente previstos.

Assim, a única certeza que existe é a necessidade de mais alimentos. Quanto mais? As projeções, que são exercícios sobre um futuro incerto, fornecem respostas tentativas. Nikos Alexandratos e Jelle Bruinsma 1 projetam as seguintes necessidades, incluindo os não utilizados diretamente como alimento, em taxas anuais e em quantidades para 2050 em milhões de toneladas: i) carnes 1,3%, 455; ii) açúcar 1,3%, 341; oleaginosas 1,5%, 282 em óleo equivalente; e cereais 0,9%, 3.009. O Relatório não faz referência ao pescado, uma fonte fundamental de alimento proteico. Em 2015, foram produzidos 167 milhões de toneladas, sendo 92 de captura oceânica, que vai perdendo  sua importância relativa por causa do esgotamento dos recursos em virtude do excesso de atividade, mais 75 de aquicultura. Adotada uma taxa anual de 1,3% para o pescado, serão 282 milhões de toneladas em 2050.

Produção e produtividade

De acordo com a FAO, a produção mundial de alimentos, deduzindo-se as sementes utilizadas, cresceu 2,5% ao ano no período de 1961 a 2014, e a per capita 0,7%. Melhorias nas sementes, técnicas de produção, utilização correta de fertilizantes químicos, inovações tecnológicas e mecanização foram as causas que produziram um contínuo aumento da produtividade da mão de obra e, principalmente, da terra.

Keith O. Fuglie  enfatiza que alguns países de grande presença na produção agrícola, como Brasil e China, têm acelerado a produtividade total de fatores nos últimos vinte anos, embora ela tenha crescido em todas as regiões. Entre 1991 e 2000, o Brasil registrou um aumento de 2,38% ao ano, China de 3,94%. Entre 2001 e 2012, o Brasil de 3,23%, e China de 3,09%. Em comparação com uma região desenvolvida, Estados Unidos e Canadá, em conjunto, tiveram uma expansão nesses mesmos períodos de 1,95% e 1,96%, respectivamente.

Nas últimas décadas, a produção agrícola global foi se deslocando de regiões de renda elevada e dos países em transição (antiga União Soviética e países socialistas que passaram a adotar economias de mercado) para regiões menos desenvolvidas, como mostram Julian M. Alston e Philip G. Pardey 3. A área que mais chama a atenção é a região da Ásia e Pacífico, que praticamente dobrou  sua participação nesse período.

De fato, em 1961 produziram 23,9% do total mundial e em 2005 chegaram a 44,7%. A América Latina e Caribe passaram de 9,2% em 1961 para 12,8%; a África Subsaariana de 5,6% para 6,2%; o Oriente Médio e Norte da África de 3,7% para 5,2%; os países de renda alta de 43,8% caíram para 24,6%; e os países em transição de 13,8% para 6,5%.

O que se pode esperar da agricultura numa perspectiva de longo prazo? Não existe escassez de terra arável nem de água em níveis globais para atender as necessidades da demanda. Pode haver uma dificuldade ou outra para combinar em proporção adequada terra e a água, que podem tornar-se escassas, com outros fatores de produção a nível regional.

A discutida questão das irregularidades climáticas não parece ser um impeditivo. As estatísticas históricas confirmam que o aumento da produtividade foi a principal causa que impulsionou a produção de alimentos. Provavelmente o futuro irá replicar o passado, talvez num ritmo um pouco mais lento. As possibilidades de inovação tecnológica são imensas, principalmente com o uso dos instrumentos da quarta revolução industrial que se encontra em marcha, a denominada “manufatura inteligente”.

Não há dúvida de que ela implicará em mudanças fundamentais no setor, difíceis de prever, mas que vai exigir uma maior e ampla qualificação da mão de obra.

Alguns desafios para o Brasil

O mundo acredita no desempenho da agricultura brasileira como importante fonte para atender a necessidade crescente de alimentos.  Isso coloca alguns desafios que a política econômica tem pela frente. Vamos listá-los tentativamente:

1) Aprofundar as pesquisas que aumentam a produtividade. Nesse particular a Embrapa tem enorme papel a desempenhar;

2) Propiciar aos pequenos agricultores melhor acesso à tecnologia, à assistência técnica, ao crédito, além de reduzir a vulnerabilidade às imperfeições do mercado. Elevar a qualidade e a produtividade de sua produção para que seja competitiva no mercado mundial;

3) Melhorar a competitividade dos produtos “fora da porteira”, sabidamente com inúmeros problemas atualmente. Eles têm causado a perda da produtividade conquistada da “porteira para dentro”. Muitas vezes implicam em uma tarifa efetiva negativa;

4) Reduzir a emissão líquida de CO2;

5) Estimular a implantação de sistemas de irrigação poupadores de água, que vai se tornando fator escasso em nível regional e;

6) Garantir financiamento condizente com as características do setor, além de um seguro que preserve a renda em períodos de clima adverso.

*agradeço a colaboração do professor Akihiro Ikeda na elaboração deste texto
**artigo publicado originalmente pela Embrapa (Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária)

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1. “World Agriculture Towards 2030/2050”, ESA Working Paper 120-03, jun/2012, Relatório FAO.

2. “Accounting for growth in global agriculture”, Bio-based and Applied Economics 4(3), 2015.

3. “Agriculture in the Global Economy”, Journal of Economic Perspectives, vol.28, no. 1, winter/2014.

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‘Não há o que não haja’: agora já há ‘revisão criminal’ pro societate

1. O inusitado acórdão do TJ-ES — querella nullitatis como revisão criminal pro societate — mais um ornitorrinco jurídico

O caso: O Tribunal de Justiça do Espírito Santo (processo 0004495-50.2022.8.08.0024), por maioria, deu provimento a ação de querella nullitatis ajuizada pelo MP-ES e desconstituiu coisa julgada alegadamente eivada de fraude. Anulou a sentença e mandou submeter o réu a novo júri.

Alegações do Ministério Público: Em primeiro grau o MP-ES foi derrotado. O júri havia absolvido o réu. Segundo o MP-ES, o suporte fático-probatório estaria sustentado em procedimentos investigatórios que, por meio de interceptações telefônicas autorizadas judicialmente, descobriram que a defensora do réu teria simulado mal-estar e, com isso, acabou conseguindo a dissolução do Conselho de Sentença. E, após novo júri, o réu acabou por ser absolvido.

Fundamentos do voto vencedor:

  1. a defesa do réu agiu de má-fé contrariando preceitos e princípios constitucionais e processuais penais ao, de forma fraudulenta, simular mal-estar, logo após a apresentação da acusação, para, assim, conseguir dissolução do Conselho de Sentença e uma nova data de julgamento;
  2. estaria, pois, configurado vício insanável e a nulidade dos atos processuais;
  3. violado o princípio do devido processo legal, que destina-se a todos aqueles que participam dos autos, e o princípio da íntima convicção dos jurados, pois a atitude da defesa no primeiro júri e a mudança dos argumentos no segundo júri, tendo em vista que tinha conhecimento fundamentações acusatórias, acabaram influenciando diretamente na decisão que absolveu o réu;
  4. também houve supressão da paridade de armas, pois a defesa por meio da fraude deu azo a dissolução do conselho de sentença depois que teve conhecimento de toda sua argumentação acusatória apresentada pelo promotor;
  5. assim, a defesa usou o tempo até o segundo julgamento para alterar suas teses defensivas e conseguir a absolvição do acusado;
  6. evidenciado, pois, prejuízo à acusação e presente a relativização da coisa julgada.

Fundamentos do voto divergente: i) a sentença recorrida entendeu que a questão da fraude se relaciona com a validade do ato, não com sua existência; ii) por isso, naquela ocasião, entendeu a magistrada pela inépcia da inicial da ação de querela nullitatis, visto que essa ação se presta a rescindir atos inexistentes, entendimento este, inclusive, respaldado pelo entendimento do STJ; iii) a fraude processual poderia tornar o julgamento existente nulo ou anulável, mas a rescisão das ações penais não é permitida pelo CPP em favor da acusação diante da vedação de revisão criminal pro societate; iv) a ação de querela nullitatis posposta pelo MP, embora procure lhe dar contornos diversos, assemelha-se à revisão criminal pro societate, situação que é vedada expressamente pela jurisprudência do STJ e STF.

2. E o TJ-ES errou — uma anamnese da decisão

Confusão conceitual

A decisão está equivocada. E abriria um perigoso precedente. Houve uma confusão acerca do conceito de coisa julgada e querella nullitatis. A decisão do TJ-ES viola diversos princípios constitucionais, sobretudo a soberania dos vereditos. Trata-se da criação de um novo tipo processual: a revisão criminal pro societate.

O que me chama a atenção, contudo, é o motivo pelo qual o TJ-ES não aplicou a teoria do prejuízo (tão aplicada em todos os tribunais — não há nulidade sem prejuízo). Se formos seguir essa lógica, qual teria sido o prejuízo da acusação se o júri foi efetivamente realizado meses depois? Esse acórdão subverte o processo penal constitucional, mas, para além disso, também ignora a jurisprudência que somente admite nulidade se há prejuízo. E, no caso concreto, muito mais grave. Tudo é usado contra o réu, não importando as circunstâncias de que lado estaria o “maior” prejuízo.

Perigosa distorção no processo penal: um ‘precedente’ inconstitucional

A decisão majoritária, para além de um simples ato decisório, configura uma perigosíssima distorção do processo penal. Não é o Ministério Público que é o sujeito hipossuficiente dessa relação. É o acusado. Por isso, as garantias constitucionais devem sempre ser lidas contra o Estado. A seguir lógica outra, imagine essa situação: como é normal em muitos municípios pequenos, o promotor de justiça costuma ser o responsável por mais de uma comarca. Digamos, então, que em dada ocasião, um juízo criminal realiza uma audiência sem a presença da acusação.

Colhem-se depoimentos das testemunhas arroladas na denúncia e o magistrado imediatamente passa a palavra para a defesa (já que o MP não se encontra presente) e essa, por sua vez, tece uma ou duas perguntas. O juiz, ao argumento de que estaria a complementar, produz a prova que seria incumbência do ausente promotor.

Qual é a resposta judicial adequada para esse hipotético caso? Por violação ao artigo 212 do Código de Processo Penal, assim como também pela ofensa ao devido processo legal, o ato seria nulo. O que é, entretanto, comum de se ver em tribunais pelo país afora: a violação do referido artigo demanda prejuízo. Para o acusado, ora, é implícito: qual seria o maior prejuízo do que ser condenado à margem da lei?

Por que não pode existir agir estratégico do Ministério Público

Onde quero chegar é: o que é prejuízo para a acusação? O argumento de que a defesa tomou conhecimento das teses acusatórias é improcedente. Não existe agir estratégico do Ministério Público. Desde o início da persecução penal, as suas teses devem estar plenamente dispostas de modo a conferir ao acusado a possibilidade de exercer o amplo direito de defesa.

Desvantagem do Ministério Público?

Mesmo que seja possível afirmar existir um “prejuízo à acusação” (que, lembremos, sequer precisa atender aos seus prazos, como o oferecimento de denúncia em 15 dias que dispõe o artigo 46 do CPP. Ou alguém já viu o MP perder o direito de impulsionar uma ação penal porque falhou com o prazo?), no caso do TJ-ES é impossível enxergar qualquer tipo de desvantagem. O júri ocorreu novamente. O conselho de sentença decidiu pela absolvição. O que mudaria se tivesse sido realizado meses antes? Simplesmente sentido algum há.

Por que o voto vencido está correto e bem fundamentado

Correto o voto vencido. Uma coisa é a existência do ato; outra é a sua validade. Mas nem seria necessário ingressar nessa discussão um tanto quanto criterialista. Basta que se tenha em mente a impossibilidade de se passar por cima da coisa julgada com base nesse tipo de argumento. Coisa julgada é matéria constitucional. Garantia contra tudo e contra todos. Não está à disposição do Estado. E nem do Judiciário.

Por que não existe hipótese de revisão criminal pro societate (assim como não existe in dubio pro societate)

E esse é o busílis: o cabimento ou não da ação pelo MP sequer merece uma discussão mais aprofundada. Promover uma revisão criminal pro societate simplesmente não comporta asilo na Constituição. E, para ser direto, nem mesmo o in dubio pro societate possui qualquer compatibilidade com a Carta Constitucional de 1988. Isso é (ou deveria ser) uma obviedade.

Mas equívocos dos votos vencedores

Os votos vencedores incidem ainda em outros equívocos, como que estaria violado o devido processo legal. Em que sentido? E por qual razão a íntima convicção estaria conspurcada? Por que o júri que foi cancelado por desmaio do advogado traria prejuízo à intima convicção dos jurados quando do segundo julgamento? O que uma coisa tem a ver com a outra? Absolutamente nada. O que existe, a bem da verdade, é um descontentamento com o resultado. Nada mais que isso.

Em síntese, se houve fraude por ocasião do cancelamento do julgamento inicial, no que isso macula o segundo julgamento? O segundo julgamento é que deveria estar em jogo no plano da discussão processual. Houve nulidades no segundo julgamento? Se sim, não seria em querella nulitattis. Seria no devido processo legal que isso deveria ser discutido.

3. Qual é o papel das garantias constitucionais? Por que insistimos em retroceder?

Portanto, uma sucessão de equívocos, que deverão ser corrigidos no STJ. Ou no próprio TJ-ES, em sede recursal própria (se ainda houver prazo).

Temos muito a aprender em termos de garantias processuais. Ainda estamos há centenas de anos atrasados. Não nos damos conta do que é isto — o Estado democrático de Direito. Há mais de uma década esta coluna é trincheira para esse empreendimento — a busca dessa resposta.

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STJ restringe uso de ação popular para atacar decisões do Carf

As decisões do Conselho de Administração de Recursos Fiscais (Carf) podem ser atacadas por meio de ação popular, mas apenas se forem ilegais, contrárias a precedentes sedimentados ou maculadas por abuso de poder.

A conclusão é da 1ª Turma do Superior Tribunal de Justiça. O colegiado restringiu a hipótese de ataque judicial aos acórdãos favoráveis ao contribuinte do Carf, última instância de julgamento de questões tributárias na administração federal.

Carf é a última instância de julgamento de questões tributárias na administração federal – André Corrêa/Agência Senado

 

Na terça-feira (6/8) os ministros julgaram improcedente o pedido de anulação de um acórdão da 3ª Turma, pertencente à 4ª Câmara do Carf, que reconheceu a decadência de créditos tributários devidos à Fazenda Nacional pela Fundação Armando Álvares Penteado (FAAP).

O caso foi alvo de ação popular ajuizada pelo auditor fiscal Luiz Cláudio de Lemos Tavares, sob a alegação de que o acórdão do Carf representa um ato lesivo ao patrimônio público por causar prejuízo ao erário, já que exime a FAAP de quitar os valores.

O resultado no STJ representa uma vitória relevante do contribuinte e do próprio Carf, uma vez que a Fazenda Nacional não ajuíza ações para contestar derrotas na seara administrativa — o mesmo não vale para as empresas brasileiras.

Apesar de ter composição paritária — suas turmas são divididas pela metade entre representantes da Receita e conselheiros indicados por entidades empresariais —, o Carf é um órgão da administração federal.

Por isso, o Fisco processar o Carf representaria um contrassenso: a União estaria litigando contra fato próprio. Segundo a jurisprudência do STJ, isso viola a boa-fé objetiva da administração pública federal para com os contribuintes.

A válvula de escape seria o uso da ação popular, que pode ser ajuizada por qualquer cidadão — até mesmo o auditor fiscal cuja autuação acabou derrubada pelo Carf. Para o STJ, esse uso é indevido e ilegal.

A votação foi unânime, conforme a posição da relatora, ministra Regina Helena Costa.

Cartada final

O caso que motivou o julgamento no Carf parte de ato cancelatório que afastou a imunidade da FAAP para pagamento de pagamento de contribuições sociais relacionada à Certificação de Entidades Beneficentes de Assistência Social na Área de Educação (Cebas).

A notificação fiscal lavrada em 2006 tratou de crédito tributário referente ao período entre janeiro de 1996 a dezembro de 1998. A FAAP levou o caso ao Carf para defender que a Fazenda havia perdido o direito de cobrar esses valores.

A decadência do crédito tributário foi reconhecida no órgão, já que a autuação foi feita mais de cinco anos após o fato gerador do tributo. Com a derrota administrativa, a Fazenda Nacional deu fim ao caso.

O auditor fiscal, no entanto, ajuizou a ação popular para postular que a decadência deve ser contada a partir do primeiro dia do exercício seguinte à data de expedição do ato formal de cancelamento da imunidade tributária.

Tanto a primeira instancia quanto o Tribunal Regional Federal da 4ª Região deram razão ao autor da ação. No STJ, o tema não chegou a ser analisado, já que o caso foi barrado na questão do uso indevido da ação popular.

200 recursos

Relatora, a ministra Regina Helena Costa apontou que não é qualquer acórdão do Carf que autoriza o manejo da ação popular.

Em sua análise, o controle judicial das conclusões do órgão administrativo deve considerar o papel exercido na estrutura da administração pública federal: o da interpretação da lei tributária.

Assim, só seria possível afastar as conclusões do Carf quando elas se mostrarem ilegais, contrárias a precedentes judiciais já sedimentados ou quando apresentarem indícios de desvio ou abuso de poder.

Entender diferente tornaria o papel do Carf supérfluo, já que todas as decisões da União favoráveis aos contribuintes estariam sujeitas a revisão por uma instância distinta — a instância judicial — independentemente de sua legalidade.

O caso concreto indica que essa ameaça, novamente, é real. Segundo a relatora, o auditor fiscal autor da ação tem, apenas no STJ, mais de 200 recursos especiais e agravos interpostos nos autos de ações populares de sua autoria.

Na petição inicial do caso julgado ele próprio indica que estava ajuizando diversas ações “para combater a farra do Cebas” em razão de entendimentos favoráveis ao contribuinte exarados por órgãos como o Carf.

A ministra Regina Helena classificou o grau de litigiosidade como chocante por mostrar insubordinação do auditor a entendimentos jurídicos de órgão hierarquicamente superior — em tese, conduta que representa infração ao dever de lealdade à instituição que serve.

Somos todos um

Não se discute que um auditor fiscal, enquanto cidadão, pode usar da ação popular. Admitir esse uso, de acordo com a relatora, subverteria a estrutura hierárquica da administração pública e permitiria ações como instrumento de vingança.

Para a ministra Regina Helena, isso abriria margem para uma avalanche de ações populares para invalidar posições de instância superior oposta a entendimento de servidores subordinados.

“Vejo, em muitas manifestações, não só judicialmente, mas também extrajudicialmente, uma insurgência, quase uma cruzada contra o papel do Carf. Ele é um órgão de composição paritária, mas é da União. E a própria União se manifesta, por vezes, como se ele fosse um aleijão (uma deficiência), como se fosse uma doença que devesse ser exterminada”, disse.

“Quando o Carf decide, é a administração pública federal decidindo em última instância que o contribuinte tem razão. O Carf não pode proferir decisões legítimas só quando forem favoráveis ao Fisco. Quando ele julga contra o Fisco, suas decisões são tão legítimas quanto”, continuou.

“A União não pode agir como se o Carf não fosse um órgão seu. É tão seu quanto os auditores, como a advocacia da União, quanto a Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional. Mas parece que, por vezes, isso não se reconhece”, afirmou.

“Se não for assim, que se extinga o Carf. Se não se aceita que um órgão de composição paritária possa julgar favoravelmente ao contribuinte, então para que existe esse órgão? Que se faça a propositura legislativa para que se revogue lei que instituiu o Carf. Se ele existe, suas decisões precisam ser respeitadas”, concluiu.

A votação foi unânime. O ministro Paulo Sérgio Domingues acrescentou que causou estranheza o fato de a Fazenda Nacional vir ao STJ defender uma posição pela anulação da decisão do Carf. “Não consigo ver coerência nisso.”

REsp 1.608.161

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Falsa antinomia: relação entre acordos para evitar dupla tributação e regime do Simples

Na Solução de Consulta Cosit nº 220, de 24 de julho de 2024, o contribuinte narra que presta serviços de treinamento e desenvolvimento gerencial a uma empresa sediada no Peru. Considerando o acordo para evitar a dupla tributação firmada pelo país com o governo do Peru, questiona sobre a dedução do imposto de renda e a contribuição social pagos alhures.

Receita Federal - Fachada - Brasília - Agência Brasil - Ministério da Fazenda - Superintendência -

A Receita Federal foi consultada sobre a possibilidade de aplicação de acordo para evitar a dupla tributação por contribuintes optantes pelo Simples Nacional.

 
 

Em situação fática semelhante, outro contribuinte, também optante pelo Simples Nacional, que indicou prestar serviços de engenharia para empresa domiciliada no Chile, com base em acordo para evitar a dupla tributação, consultou a RFB sobre a possibilidade de dedução do imposto de renda retido em favor do governo chileno pelo tomador dos serviços. A resposta consta da Solução de Consulta Cosit nº 219, de 24 de julho de 2024.

O entendimento da Receita refletido nas soluções de consulta é de que não seria possível a dedução dos tributos pagos. Ainda que reconheça que, em tese, a remuneração pelos serviços independentes comportaria a dupla tributação (nos termos do artigo 14, ‘a’, dos acordos) e que, portanto, seria aplicável o mecanismo de crédito (artigo 22, 2), viabilizando a dedução do tributo pago na apuração do imposto doméstico, ainda assim, haveria uma antinomia com a norma que trata do Simples Nacional (Lei Complementar nº 123/2006 — LC 123/2006).

Diante da suposta antinomia, a Receita sustenta a incompatibilidade da aplicação dos acordos para evitar a dupla tributação aos optantes pelo Simples Nacional com base em sete argumentos:

  • (1) a restrição da LC 123/2006 (artigo 18, §14) a redução da carga fiscal a determinados tributos (PIS, Cofins, IPI, ICMS e ISS) para receitas de exportação, não permitindo a redução relativamente ao imposto de renda;
  • (2) ausência de autorização da LC 123/2006 para que a União conceda isenção ou redução de percentual de imposto sobre a renda (artigo 18);
  • (3) a impossibilidade de compensação de créditos e débitos exceto se ambos fossem apurados dentro do regime do Simples Nacional (LC 123/2006, artigo 21, §9º);
  • (4) a impossibilidade de o contribuinte optante pelo Simples Nacional obter qualquer outro benefício fiscal não previsto na lei complementar de regência (LC 123/2006, artigo 24, §1º);
  • (5) o acordo para evitar a dupla tributação teria status de lei ordinária no sistema brasileiro e só prevaleceria sobre outras leis ordinárias diante da sua especialidade;
  • (6) a Constituição (artigo 146, §1º) exigiria lei complementar para regulação do Simples Nacional (reserva material) e, dada a natureza de lei ordinária aos acordos para evitar a dupla tributação, a LC 123/2006 prevaleceria; e
  • (7) a facultatividade do regime do Simples Nacional, o que impediria ao contribuinte fruir outros benefícios além dos expressamente previstos no regime da LC 123/2006.

Acordo para evitar dupla tributação

Não obstante os fundamentos apontados, chama-se atenção para o fato de que não há real antinomia para que se decida sobre a prevalência da lei complementar, quer em razão da reserva material, quer por razões de hierarquia. O acordo para evitar a dupla tributação não concede benefício fiscal, não dispõe sobre os critérios quantitativos da norma tributária ou institui, majora ou reduz tributo.

Atua em outro plano [1]. Diz com a possibilidade de o Estado tributar determinada renda (regras de alocação do poder de tributar) e, havendo direito de ambos estados contratantes de tributar, aponta qual o mecanismo adequado para aliviar a dupla tributação. Nos casos analisados, utiliza-se o do crédito, autorizando a dedução do tributo pago no Peru ou no Chile.

Não há, portanto, conflito para que se alegue a prevalência hierárquica da lei complementar ou a reserva material fixada pela Constituição. Reforça-se: não há antinomia notadamente porque os escopos dos diplomas normativos são distintos. A LC 123/2006 trata, dentre outras coisas, do regime tributário próprio ao Simples Nacional. Já os acordos para evitar a dupla tributação dizem respeito ao poder do Estado brasileiro de tributar determinadas categorias de renda e, havendo dupla tributação, como neutralizá-la.

As soluções de consulta não se sustentam, e outras razões poderiam ser invocadas. Para reforçar o ponto, vale a observação de que, para enquadramento no regime, a LC 123/2006 traz requisito a partir da receita bruta da empresa. Houve majoração do valor e hoje o limite está em R$ 4,8 milhões (LC 123/2006, art. 3º, II). Parcela importante dos contribuintes está submetida ao regime do Simples.

Prevalecendo o entendimento da Receita, bastaria ao governo majorar o regime ou criar regimes específicos com base em lei complementar para descumprir o que acordou com outros países. Violaria, assim, os compromissos internacionais assumidos, em comportamento que não respeita a boa-fé esperada.

 


[1] Cf. SCHOUERI, Luís Eduardo. Notas sobre os tratados internacionais sobre tributação. In AMARAL, Antonio Carlos Rodrigues do Amaral (coord.). Tratados internacionais na ordem jurídica brasileira – 2. ed. , rev., atual. e ampl. – São Paulo : Lex, 2014, p. 319.

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Auditoria de controles internos: passo adiante na prevenção de fraudes empresariais

E o auditor, onde estava? A cada novo escândalo financeiro, essa é a pergunta que corre na boca do povo, na imprensa e nos meios empresariais. Afinal, como é que o auditor não viu o que estava acontecendo, se a função do auditor independente é justamente “fiscalizar” os administradores das empresas?

É humano pensar assim, porque a nossa espécie lida especialmente mal com surpresas negativas. Sabemos que as incertezas da vida nos trazem ansiedades e aflições desagradáveis. Por isso, somos propensos a construir estados mentais que nos levam a crer que os acontecimentos da vida seguem padrões de racionalidade, a despeito de serem, em grande medida, aleatórios. Passado algum tempo, essa mesma ilusão nos faz acreditar que o evento imprevisto era, sim, previsível. E essa crença é tanto mais forte quanto mais drásticas tenham sido as consequências do acontecimento em questão [1].

Essa forma de pensar é compreensível, porque errar é humano. Sim, quem pensa que a auditoria independente existe para “fiscalizar” a empresa auditada está muitíssimo enganado. Pior ainda, nenhuma lição útil poderá ser aprendida com a experiência adquirida a cada nova fraude empresarial, se essa falsa premissa for a origem da indignação que usualmente acompanha a pergunta com que comecei este artigo.

Com efeito, quem busca a verdade deve, antes de tudo, aprender a fazer as perguntas certas. Causará espanto a grande parte das pessoas saber que, segundo as normas que regem a profissão, a finalidade do trabalho do auditor independente não é identificar erros ou fraudes contábeis. Como dispõe o item 3 da Norma Brasileira de Contabilidade, NBC-TA 200, editada pelo Conselho Federal de Contabilidade ao encampar as normas internacionais de auditoria, o objetivo da auditoria é “aumentar o grau de confiança nas demonstrações contábeis”, mediante a expressão de uma opinião quanto à existência de “segurança razoável” de que as demonstrações contábeis foram elaboradas, em todos os aspectos relevantes, com obediências às normas contábeis aplicáveis.

Segundo as mesmas normas, “segurança razoável” é um nível elevado de convicção de que as demonstrações contábeis estão livres de distorções “relevantes”, quer em decorrência de erros ou fraudes. Essa segurança, porém, não é absoluta, dado que, em razão de a auditoria ser realizada em base amostral e segundo critérios de materialidade, “há um risco inevitável de que algumas distorções relevantes das demonstrações contábeis não sejam detectadas, embora a auditoria seja adequadamente planejada e executada em conformidade com as normas de auditoria” (NBC-TA 200, item A.53).

A despeito de não ser sua a responsabilidade primária pela detecção de erros ou fraudes, o dever de ceticismo obriga o auditor supor, ao longo do seu trabalho, que as demonstrações financeiras possam conter distorções não identificadas, sejam elas decorrentes de erros ou fraudes. Ao planejar o trabalho, o profissional deve estruturar seus testes e verificações de modo adequado, para que esteja autorizado a concluir que é suficientemente baixo o risco da existência de distorções relevantes não identificadas nas demonstrações financeiras.

Risco baixo, porém não inexistente. São as normas profissionais que afirmam que “a descoberta posterior de uma distorção relevante das demonstrações contábeis, resultante de fraude ou erro, não indica por si só, uma falha na condução de uma auditoria em conformidade com as normas de auditoria”.

Se não é ao auditor, quem, então, será o real responsável pela obrigação de prevenir erros ou fraudes?

Segundo a lei e as normas de auditoria, não há a menor dúvida de que os maiores responsáveis por essa obrigação são os administradores das empresas, estejam elas sujeitas ou não a auditoria independente.

O dever de diligência dos administradores das companhias, conforme o artigo 153 da Lei das Sociedades Anônimas (Lei nº 6.404/1976), compreende três principais subdeveres: (i) o de informar-se, (ii) o de vigiar e (iii) o de investigar. De acordo com a jurisprudência da Comissão de Valores Mobiliários (CVM), não se afere a diligência do administrador pelos resultados obtidos com sua atuação.

A diligência se mede pela higidez dos “procedimentos” adotados para a tomada da decisão, no âmbito da chamada business judgement rule. Segundo essa regra, o “mérito” das decisões negociais não pode ser questionado pelo julgador, sempre que o administrador tiver adotado procedimentos apropriados para a tomada da decisão. Já os subdeveres de supervisão e fiscalização exigem do administrador que adote “medidas e controles que permitam o adequado acompanhamento dos negócios sociais”.

Em que pese, todavia, a business judgement rule impeça a discussão do mérito das decisões negociais tomadas de maneira “informada, refletida e desinteressada”, falhas no dever de monitoramento, por sua vez, não são passíveis de proteção pela regra [2]. Ou seja, as omissões da administração quanto ao exercício dos deveres de vigiar e de investigar estão sujeitas, pela lei, a um padrão de análise mais rigoroso do que o estabelecido para as decisões negociais, propriamente ditas.

As normas internacionais de auditoria independente não destoam dos critérios da lei. Assim, por exemplo, o item 4 da NBC TA 240 (R1), que dispõe sobre os deveres do auditor em relação a erros ou fraudes, afirma textualmente que a “principal responsabilidade pela prevenção e detecção da fraude é dos responsáveis pela governança da entidade e da sua administração”.

É igualmente da administração da empresa a responsabilidade pelo seu sistema de controles internos, que é planejado, implementado e mantido “pelos responsáveis pela governança, pela administração e por outros empregados para fornecer segurança razoável quanto ao alcance dos objetivos da entidade no que se refere à confiabilidade dos relatórios financeiros, à efetividade e eficiência das operações e à conformidade com leis e regulamentos aplicáveis”. (NBC TA 315 (R2), item 12, “m”).

Deveras, os controles internos são de suma importância para a consecução dos objetivos empresariais, da mesma forma que seu bom funcionamento é crucial para que as informações divulgadas pela empresa, com especial destaque para suas demonstrações financeiras, sejam fidedignas.

Poucos sabem, contudo, que, segundo as normas internacionais, a auditoria independente não inclui a emissão de opinião sobre os controles internos da entidade auditada. Assim, por exemplo, o item 21 da NBC TA 315 (R2) exige que o auditor obtenha um entendimento adequado sobre o ambiente de controles existente na entidade, para, com base nisso, planejar o trabalho de forma proporcional aos riscos que forem identificados.

Não obstante, no relatório final de auditoria, o auditor independente não manifesta opinião sobre a qualidade dos controles internos da entidade. Caso constate a existência de deficiências de controle interno, cabe ao profissional informar o fato à administração e aos responsáveis pela governança da entidade, consoante determina a NBC TA 265. Note-se que o auditor independente não tem liberdade para decidir o que deve ou não constar de sua opinião de auditoria. Tudo é detalhadamente regrado e pré-definido pela lei e pelas normas profissionais [3].

Tampouco se exige dos administradores das empresas que prestem informações específicas ao mercado sobre o desempenho de sua obrigação de fiscalizar os negócios sociais, testando os controles internos existentes, introduzindo aprimoramentos e criando novos mecanismos, para suprir deficiências, quando necessário.

A falta de um comprometimento mais explícito dos administradores das companhias foi considerada, nos Estados Unidos da América, como deficiência nos padrões de governança empresarial. Já em 2002, como reação ao escândalo da Enron, foi editada a Lei Sarbanes-Oxley, dentre cujos aprimoramentos passou a ser exigida dos administradores das companhias a prestação de informações específicas sobre os cuidados dispensados para assegurar efetividade aos controles internos. Criou-se ainda a exigência de que tais informações passassem a ser submetidas à auditoria independente, segundo regras pré-estabelecidas.

Nesse contexto, cabe aos auditores independentes aplicar testes e verificações sobre os controles, de modo atestar que o relato da administração reflete adequadamente as providências adotadas para a gestão dos controles internos.

Esse sistema tem a vantagem de gerar maior comprometimento dos administradores com a efetividade dos controles, provendo ao mercado informações mais detalhadas e de melhor qualidade sobre o cumprimento dos deveres de monitoramento e fiscalização por parte da administração.

Passados mais de 20 anos da edição da Sarbanes-Oxley, a legislação brasileira ainda não adotou a auditoria de controles internos visando a aprimorar a prevenção de fraudes empresariais. Um passo importante nessa direção foi dado com a aprovação do Projeto de Lei nº 2581/2023, do Senador Sergio Moro pela Comissão de Constituição e Justiça do Senado.

Embora, inicialmente, o projeto se limitasse a regras eminentemente de natureza penal, a CCJ acolheu a emenda proposta pelo Senador Izalci Lucas, para introduzir na Lei nº 6.385/1976 a exigência de divulgação, pelas companhias, de relatórios emitidos pela pessoa jurídica sobre os controles internos voltados à prevenção de erros ou fraudes contábeis, na mesma periodicidade aplicável à divulgação das demonstrações financeiras. Esses relatórios estarão sujeitos a auditoria independente, na forma das regras a serem editadas pela CVM.

Aprovado em caráter terminativo na CCJ, o projeto foi encaminhado à apreciação da Câmara dos Deputados, onde se espera que as novas regras sejam aprovadas e possam ser aprimoradas ainda mais. Por exemplo, deixaram de ser acolhidas no Senado propostas que visavam a (a) explicitar melhor a responsabilidade da administração sobre a implementação e o monitoramento de controles internos, (b) dar status legislativo à exigência de criação de comitês de auditoria em companhias abertas, assim como (c) instituir a obrigação de que essas entidades mantenham canais de denúncias em funcionamento.

Como se percebe, para quem deseja aprimorar a prevenção a fraudes empresariais, há muito ainda a fazer, em lugar de ficar, inutilmente, repetindo a pergunta: onde estava o auditor?

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[1] Sobre a notação de “viés retrospectivo”, vide Daniel Kahneman, “Thinking Fast and Slow”, p. 202/203.

[2] Vide, a propósito, o voto da relatoria do então Presidente da CVM, Marcelo Babosa, no processo nº 19957.009118/2019-41.

[3] Basta ver que os apêndices da NBC TA 700, traz exemplos de espécies de relatórios que podem ser emitidas pelo auditor independente. Embora não se trate de fórmulas inflexíveis, os títulos e os parágrafos “opinião” e “base para a opinião” devem ser redigidos conforme as normas preconizam. Vide NBC TA 700, item A 19.

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Rigor sobre gratuidade de Justiça deve se ater a má-fé e dúvida da parte contrária

A triagem mais rigorosa pelo Judiciário do pedido de gratuidade de Justiça, quando são exigidos documentos para além da mera declaração de hipossuficiência econômica, deve acontecer em casos de indícios de má-fé do requerente do benefício ou a partir de uma provocação da parte contrária, que tem o direito de levantar a dúvida.

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Comprovação deve atender o contraditório, mas sem restringir acesso à Justiça

 

 

 

A avaliação é de advogados consultados pela revista eletrônica Consultor Jurídico. Em São Paulo, por exemplo, a Justiça Estadual tem exigido diferentes documentos, e não só a declaração de hipossuficiência, a quem pleiteia a gratuidade de Justiça, que isenta taxas e outros pagamentos na ação — e não se confunde com a assistência judiciária gratuita, prevista constitucionalmente e prestada pela Defensoria Pública ou advogados conveniados.

O tema foi levantado pela desembargadora Débora Vanessa Caús Brandão, da 6ª Câmara de Direito Privado do Tribunal de Justiça de São Paulo. Ela falou sobre a Justiça gratuita durante o 1º Congresso de Assistência Judiciária da OAB-SP e afirmou que, do ponto de vista prático do cotidiano da magistratura, não basta apenas a comprovação de hipossuficiência para que seja concedido o benefício.

Previsão no CPC

A gratuidade de Justiça é prevista pelo artigo 98 do Código de Processo Civil. A controvérsia sobre o pedido, no entanto, mora no artigo 99, também do CPC, segundo avalia Francisco Jorge Andreotti Neto, que preside a Comissão da Assistência Judiciária da seccional paulista da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB-SP).

 

O § 3º do dispositivo estabelece que “presume-se verdadeira a alegação de insuficiência deduzida exclusivamente por pessoa natural”. Para o advogado, o TJ-SP tem afastado essa presunção ao julgar a gratuidade.

“O legislador infraconstitucional deixa evidente e cristalino o entendimento de que a simples alegação faz presumir hipossuficiência do declarante, consignado no § 4º do mesmo dispositivo, que ‘a assistência do requerente por advogado particular não impede a concessão de gratuidade de Justiça’. E o artigo 100 da lei processual concede o prazo de 15 dias para que a parte contrária ofereça impugnação ao deferimento da gratuidade”, diz.

“Todavia, tantos os juízes singulares quanto o Tribunal de Justiça de São Paulo têm entendido de forma contrária a norma infraconstitucional, afastando a presunção prevista no § 3º do artigo 99 do CPC e exigindo que o jurisdicionado anexe, juntamente com sua alegação de hipossuficiência financeira, inúmeros documentos, inclusive quebrando seu sigilo fiscal e bancário”, completa Andreotti Neto, que é também conselheiro estadual da OAB-SP.

Indícios de má-fé

A pesquisadora Fernanda Tereza Melo Bezerra, do Núcleo de Processo Civil da Escola da Magistratura do Estado do Rio de Janeiro (Nupepro/Emerj), e o professor Dierle Nunes, da Universidade Federal de Minas Gerais, concordam que, não havendo indícios de má-fé no processo, a mera declaração deveria bastar.

“Ao juiz, entendo que somente é possível determinar a juntada de documentos capazes de comprovar a insuficiência alegada quando existirem nos autos elementos que demonstrem a ausência dos pressupostos legais, hipótese prevista no § 2º, do art. 99, CPC, dispositivo este que, ao meu ver, deveria estar no lugar do § 3º, e vice-versa”, diz Bezerra, que é também assessora do Núcleo de Cooperação Judiciária do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro.

Nunes acrescenta: “O sistema delineado pelo CPC cria a possibilidade de que, se porventura a pessoa não fizer jus ao benefício, ocorreria uma impugnação nos moldes do artigo 100, que permitiria, inclusive, que a pessoa que tivesse feito o requerimento de má-fé fosse apenada pelo pagamento de dez vezes as custas não adimplidas. Então, essa exigência fora das hipóteses que a própria lei estabelece, de haver fortes indícios de que a pessoa não faz jus ao benefício, me parece desarrazoado.”

Exigência adequada

O também professor José Rogério Cruz e Tucci, livre-docente da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP), diverge de ambos, por entender que os tribunais têm razão em exigir prova documental complementar à declaração exigida pela lei, embora pondere haver dificuldade de se produzir prova negativa de estado de pobreza.

“Para provar essa necessidade bastaria a declaração mais a cópia das últimas declarações de renda do litigante que vai bater às portas da Justiça”, diz o docente, sócio da banca Tucci Advogados Associados.

“Entendo também que uma Certidão do Distribuidor Civil seria interessante para demonstrar que o interessado não é um litigante habitual, que não deseja arcar com as custas judiciais”, afirma.

A advogada Maria Cristine Lindoso, associada ao escritório Trench Rossi Watanabe e professora voluntária da Universidade de Brasília (UnB), concorda com Tucci que a declaração tem presunção relativa de veracidade e, idealmente, deveria ser acompanhada de comprovação da real necessidade da gratuidade de Justiça.

“Mas o mais importante é reconhecer que a parte contrária tem a possibilidade de questionar essa declaração e suscitar dúvida quanto à verdadeira hipossuficiência. A partir disso, o magistrado deve determinar à parte que pretende receber o benefício a comprovação da sua situação de vulnerabilidade, sendo, então, imprescindível alguma prova concreta da situação de hipossuficiência”, afirma a pesquisadora em Direito Civil.

Critérios objetivos

Andreotti Neto diz que a questão poderá ser pacificada a partir do julgamento pelo Superior Tribunal de Justiça do Tema 1.178, sob o rito dos recursos repetitivos,  que pretende “definir se é legitima a adoção de critérios objetivos para aferição da hipossuficiência na apreciação do pedido de gratuidade de Justiça formulado por pessoa natural, levando em conta as disposições dos arts. 98, 99, § 2º do Código de Processo Civil”.

“Enquanto o Superior Tribunal de Justiça não realizar o julgado desse tema, ainda teremos inúmeras decisões que conflitam a norma infraconstitucional”, afirma o conselheiro da OAB-SP.

Maria Cristine Lindoso contesta, no entanto, que a definição de critérios objetivos para reconhecer a hipossuficiência não é tarefa simples e pode ser prejudicial a grupos mais vulneráveis no acesso à gratuidade de Justiça.

“Uma mesma família pode apresentar o mesmo contracheque e ter situações de vulnerabilidade muito diferentes. Um homem solteiro que recebe dois salários mínimos vive em uma condição de vida. Uma mulher que recebe os mesmos dois salários mínimos e alimenta, além de si mesma, os filhos, os pais e um companheiro desempregado, vive em uma situação muito distinta. Por esses motivos, é difícil criar critérios tão objetivos”, explica.

Fernanda Tereza Melo Bezerra endossa: “Ao analisar a questão, não deve o magistrado voltar os olhos somente para os ganhos do requerente, mas também para os seus gastos, para o quanto ele precisa para manter as suas despesas. Muitas vezes, o requerente até recebe quantia considerável, mas não há como pagar as custas, as despesas processuais e honorários advocatícios, sem que isso traga prejuízo ao seu sustento.”

O professor Dierle Nunes alega que o escrutínio exagerado não pode igualmente causar prejuízos no acesso à Justiça aos mais vulneráveis, mesmo que sob o argumento de que a triagem pretende evitar prejuízos ao erário, uma vez que a maior parte do acervo do Judiciário vem de grandes litigantes, como o Poder Público.

“Tive situações no passado em que houve uma análise mais exigente desses requisitos, e isso acabou gerando um problema no que tange a concessão de uma medida provisória, em que a pessoa acabou perdendo a possibilidade de um determinado direito. Como nós temos um quadro grande de vulnerabilidade na sociedade brasileira, de pessoas que não têm uma orientação jurídica adequada, isso pode acabar criando embaraço”, afirma.

Lindoso pondera que a solução para esta discussão deve vir de fora dos tribunais. “Resolver esse problema como um todo é atribuição do Poder Legislativo e do governo federal. Isso porque o acesso à Justiça precisa ser pensado como política pública, criando-se possibilidades para baratear as custas em certos litígios, fortalecer a Defensoria Pública, melhor distribuir os ônus sucumbenciais e prestigiar o acesso de grupos mais vulneráveis. E isso vai muito além de criar definições objetivas de quais documentos comprovam a hipossuficiência.”

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IA no Direito: máquinas não podem tudo, mas podem muito

Sábado passado, enquanto relia, empolgado, o livro Inteligência Artificial & Data Science no Judiciário brasileiro, de Roberta Eggert Poll (Fundação Fênix aqui), fui indagado por Sofia (minha filha de 16 anos que, para minha alegria, gosta de filosofia, cognição, inteligência artificial e quejandos; Felipe, Artur e Caio gostam mais de futebol e jogos eletrônicos, embora sejam antenados) sobre o reducionismo de se chamar o que as máquinas fazem de “inteligência artificial”.

Sofia, então, perguntou-me: pai, quando eles falam de inteligência artificial, de que inteligência eles falam? Dialogamos sobre o momento histórico da nomeação do domínio (1956), dos achados da ciência contemporânea e de que as máquinas conseguem realizar inferências dedutivas e, no limite, indutivas, sem que a abdução seja viável, por enquanto. Nunca se sabe sobre o que poderá advir no futuro, até porque ela reconhece a possibilidade quanto à conexão máquina-humanos.

Finalizamos com a conclusão de que é injusto ler a expressão (inteligência artificial) fora do seu contexto de atribuição. Muitas vezes a crítica sequer entende do que se trata. Em seguida ela perguntou-me sobre a autora e o conteúdo do livro.

Respondi: então, Sofia, conheci Roberta Eggert Poll pelo mundo virtual, quando da defesa do seu trabalho de doutorado junto ao programa de doutorado da PUC-RS, sob orientação do colega Eugênio Facchini Neto. Calhou com o tema que pesquisamos porque os diálogos que travamos desde então sempre ocorreram pela rede, em poucos e proveitosos debates quanto aos limites e possibilidades da máquina em apoio à decisão humana, nunca em substituição.

Sofia me disse — e concordei — que existem diversos tipos de sentença e nem todas demandam atividade cognitiva, devendo-se separar o grau de exigência (por ser filha de mãe e o pai juízes, já viu modelos de extinção de execuções pelo pagamento, por exemplo). De fato, se houve pagamento e o credor concordou, não há controvérsia a ser dirimida por sentença que, então, poderia ser prolatada pela máquina sob supervisão humana.

No entanto, quando se tratar de decisão com inferências quanto à articulação entre premissas normativas e fáticas, a questão se modifica. Mesmo assim, a depender dos pontos controversos, por mais que a máquina não decida, poderá apoiar na organização do conteúdo, atualização de fontes (legislação, doutrina e jurisprudência), além de auxiliar na construção de modelo pessoal do julgador.

Aqui a máquina pode muito, como demonstrou Fábio Porto no recente livro sobre IA Generativa no Direitoaqui. Aliás, tenho construído e refinado os meus modelos e ficado impressionado com a acurácia das entregas (voltarei ao tema no futuro. Funcionam).

Perspectivas não excludentes

Eis o contexto digital que estamos inseridos, no qual as coordenadas que orientam a atuação jurídica exigem três perspectivas não excludentes: (a) continuidade; (b) ajuste; e/ou, (c) ruptura. Entretanto, para que tenhamos um debate minimamente honesto, além do “fla-flu” (rivalidade de posições: contra ou favorável), mostra-se necessário entender as possibilidades e os limites da inteligência artificial, com ênfase na generativa (GPT, Lhama, Claude, Gemini, Mistral etc.) porque depois, pelo menos, do uso de “tokens” e do “Transformers” (aos menos avisados não é o filme de carros-robôs), é revolucionária a capacidade de os modelos aprenderem contextos.

Aliás, o Lhama da Meta conta atualmente com três versões de 8, 70 e 405 bilhões de parâmetros, com alto potencial de uso porque “open source”. O ritmo das novidades é incompatível com o das discussões que se referem a modelos de inteligência artificial fora do atual “estado da arte”.

Fabiano Hartmann, Fernanda Lage, Isabella Ferrari, Dierle Nunes, Vinícius Mozetic, Alexandre José Mendes, Raimundo Teive e Diogo Cortiz, dentre outros, demostram a importância de revisão do contexto, evitando-se críticas a modelos ultrapassados. Em geral, a crítica jurídica é alheia ao que se discute no domínio da IA, valendo-se da falácia do espantalho (constrói uma caricatura fantasiosa do que não é).

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Nesse sentido, Roberta Poll escreveu um livro de modo direto e consistente sobre temas complexos, articulando a temática de modo a conferir o devido letramento do leitor. A continuidade está descrita no item 2.1 do livro, com o respeito às regras do jogo democrático. Entretanto, os ajustes precisam acontecer de modo honesto e aberto, por meio de discussões informadas para além da superfície de gente que sequer sabe o que significa “hagging face” (visite e se assuste, se puder entender, claro aqui).

Antes disso, porém, devemos situar a transformação digital no Direito. O impacto da leitura do trabalho cuidadoso demonstra a preocupação com os destinos assumidos pelo processo eletrônico, transformado inicialmente em mero sistema de gestão de documentos, sem a “integração”, para usar um termo “cringe”, das amplas possibilidades da inteligência artificial.

No ponto, chegou o momento de termos um único sistema nacional porque é impossível que advogados, partes, magistrados e interessados tenham que se submeter a sistemas fracassados que continuam por renitência dos decisores, exigindo-se a unificação nacional, quem sabe, com o Eproc do TRF-4 que, como gestor de documentos, em relação aos concorrentes, ganha com sobras.

Chega a ser covardia a diferença da experiência do usuário. Aliás, muito se fala sobre o tema, em geral, sem o domínio das categorias necessárias à compreensão do suporte técnico e dos limites do campo da IA aplicado à gestão de processos judiciais, com iniciativas de duvidosa legitimidade que se abraçam em modelos comerciais sem a transparência necessária exigida inclusive pelos atos normativos do CNJ (Conselho Nacional de Justiça).

A crítica formulada por Roberta passa pelo desconhecimento quanto ao funcionamento das máquinas, com demandas de impossível atendimento, justamente porque se confundem os registros. As máquinas não podem tudo, mas podem muito quanto se trata de processar imensos volumes de dados, realizar consultas, promover a interoperabilidade dos diversos bancos de dados disponíveis e que, em regra, não são trazidos aos autos.

A premissa liberal do processo, consistente em “o que não está nos autos, não está no mundo”, decorria do contexto analógico, com a atribuição às partes do ônus de obter e juntar a documentação e, por consequência, os dados relevantes à resolução do caso.

No entanto, diante dos interesses em jogo, especialmente de vulneráveis (consumidor, idosos, deficientes, crianças e adolescentes etc.) e do interesse público subjacente em decisões de melhor qualidade na esfera do Direito Público, chegou a hora de negar as aparências, disfarçando as evidências quanto ao impacto da invasão tecnológica (virada tecnológica, diz Dierle Nunes).

Qual o motivo para não termos uma base de dados nacional de jurisprudência, legislação, fornecedores, indicação de julgados similares e outras funcionalidades disponíveis às partes e ao julgador? Capacidade tecnológica não falta, como os eventos organizados por Ademir Piccoli indicam.

Parece-me que a ruptura com o modelo liberal de direito civil também precisa aportar no processo. Se os bancos de dados podem se conectar aos processos eletrônicos por meio da chave CPF, custa acreditar na resistência de muitos em nome de um processo do tempo do papel, certidões, carimbos e juntadas.

Se o contexto analógico ficou para trás (sobre contexto Onlife de Luciano Floridi aqui), então, a resistência irracional quanto às possibilidades do uso de máquinas em apoio à decisão, dentro de controles estatais, é ineficaz e ineficiente. Claro que máquinas não conseguem tudo, mas podem apoiar. Muito. Eu mesmo uso diversos recursos de apoio, embora fora dos sistemas oficiais, porque internamente o que temos são meros gestores de documentos, com uma ou outra funcionalidade, ainda que a Plataforma Digital do Poder Judiciário seja promissora.

A preocupação de Roberta vai no ponto certo. Reproduzo a sua preocupação:

“Uma teoria da decisão judicial sob uma perspectiva de IA precisa demonstrar como se deve dar o discurso argumentativo, a partir do qual será construída a decisão judicial e quais os papéis dos seus diversos atores. Deve, ainda, demonstrar quais as consequências do descumprimento daquilo que foi decidido ou estabelecido pelo sistema inteligente. Além disso, deverá ser capaz de lançar luzes sobre a possibilidade de controle da decisão judicial, ou seja, os critérios mínimos que limitem a utilização de algoritmos decisionais, considerando o estágio atual de evolução da IA no Direito.”

É um sintoma do que se passa com as novas coordenadas impostas que já chegaram e são utilizadas, como se verifica atualmente com as oportunidades e riscos do GPT 4, 5, Lhama, Claude etc. O futuro chegou, principalmente para quem usa errado (pergunta sobre fatos para modelos, p.ex.; construir prompts é uma necessidade). As máquinas não podem tudo. Mas podem muito, para quem sabe ler o contexto e integrar as oportunidades, mantida a preocupação com a “democraticidade” das decisões, para usar o termo de Rui Cunha Martins.

O futuro, também, será o lugar em que Sofia, Felipe, Artur, Caio e Lucca (filho da Roberta) irão viver. Muito do que vivenciarão depende da geração atual. Nesse sentido, recomendo a leitura do livro, na esperança de que possamos construir modelos democráticos de decisão judicial. Até porque, como demonstra Roberta, no atual estado de coisas, não é inteligente desprezar todo potencial existente. É irracional, como diz Richard Susskind, no livro “Advogados do Amanhã”, traduzido para o português, pela editora Emais (aqui):

“É, simplesmente inconcebível que a tecnologia alterará radicalmente todos os ângulos da economia e da sociedade e, ainda de alguma forma, os serviços jurídicos serão uma exceção a toda a mudança. […] Tecnologia digital não é uma mania passageira. […]. E, ainda assim, muitos advogados, ignorantes, ainda afirmam que essa questão da tecnologia é exagerada. Poucos ainda apontam para uma bolha do ponto com e alegam – baseado não se sabe em quem – que o impacto da tecnologia está diminuindo e que a recente conversa sobre IA no direito não passará de teoria. Isto é uma leitura grotescamente equivocada das tendências.” (2023, p. 34-35)

Por fim, somos filhos da geração antecedente. Roberta teve a sorte de poder dialogar em casa, assim como Lucca também terá. Quem não dispõe de um mentor privado, precisa de boas fontes. O livro de Roberta é uma delas. Sofia me pediu um exemplar. Ganhou o livro da Roberta e, também, do Richard Susskind. O mundo mudou.

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Sub-rogação legal prevista no artigo 786 do Código Civil

1. A delimitação do problema [1]

 O presente texto tem como objetivo enfrentar o seguinte problema: em caso de contrato de seguro celebrado como garantia de eventual descumprimento contratual, o artigo 786 do Código Civil [2] implica, por si, a eficácia direta de convenção de arbitragem relativa ao contrato segurado perante o segurador que, dela, não participou?

A resposta, parece-nos, é negativa.

São três os principais pontos que destacaremos: (1) a natureza, o fenômeno e o regime da sub-rogação legal, que não se confunde com a cessão de crédito; (2) a distinção entre essas duas operações contratuais; (3) a relatividade dos efeitos da convenção de arbitragem.

2. Sobre o pagamento com sub-rogação

 Em nosso sistema jurídico, a sub-rogação tem natureza mista: é meio de satisfação do crédito e é forma de transmissão de situação jurídica ativa, a título singular ou particular. Tem, portanto, simultaneamente, eficácias extintiva e translativa. Satisfeito o crédito, em razão do adimplemento feito pelo terceiro interessado, a relação originária extingue-se (total ou parcialmente); nada obstante, o crédito remanesce, deslocando-se, em seu polo ativo, para o terceiro que adimpliu [3].

ratio da norma é a garantia da operação subjacente ao pagamento pelo terceiro: é um reforço de reembolso, uma garantia de restituição para o terceiro que adimple [4]. A sub-rogação serve para substituir a posição de credor, do originário para aquele que pagou a dívida, justamente para impedir o enriquecimento ilícito do devedor, com o consequente empobrecimento de quem realmente adimpliu [5].

Por esse motivo, a sub-rogação é meio de proteção ao terceiro, o novo credor.

Em nosso sistema, a sub-rogação pode ser legal ou convencional.

É legal a sub-rogação que decorre da incidência do artigo 346 do Código Civil ou de outra previsão normativa específica, como no caso do artigo 786 do Código Civil, quando verificada uma das hipóteses fáticas previstas.

Nesses casos, a sub-rogação tem como causa o pagamento, um ato-fato jurídico, aquele cujo suporte fático “prevê uma situação de fato a qual, no entanto, somente pode materializar-se como resultante de uma conduta humana” [6]. O conteúdo da vontade é irrelevante nesse caso, já que não é ele que é apreendido pela norma [7].

O pagamento, como causa da sub-rogação, não é ato jurídico negocial; a vontade, aqui, é irrelevante para a apreensão do fato jurídico. E essa é uma das principais diferenças entre a sub-rogação e a cessão de crédito.

A sub-rogação legal não decorre de exteriorização de vontade das partes, não tem fonte negocial. Trata-se de efeito jurídico previsto na norma que incide com o pagamento. É nesse sentido que o artigo 346 do Código Civil diz que se opera a sub-rogação “de pleno direito”.

É convencional a sub-rogação quando a eficácia translativa do pagamento de terceiro é decorrente do exercício do autorregramento (artigo 347 do Código Civil [8]).  O artigo 348 do Código Civil dispõe que, “na hipótese do inciso I do artigo antecedente, vigorará o disposto quanto à cessão do crédito”. Cuida-se de disposição restrita à sub-rogação convencional; ela não se refere à sub-rogação legal.

A sub-rogação não se confunde com a cessão de crédito. Na cessão de crédito, o polo ativo altera-se em razão da exteriorização de vontade do credor originário (fonte negocial, portanto). Por outro lado, não há satisfação do credor originário (não há eficácia satisfativa/extintiva). Há apenas transmissão da titularidade da situação ativa, que se desloca de um patrimônio para outro, sem que se satisfaça o crédito.

A cessão de crédito tem como ratio possibilitar a circulação do crédito, como operação econômica própria e diversa daquela que originou o crédito cedido. A circulação do crédito em si não é finalidade imediata da sub-rogação, que, como visto, é meio de proteção do terceiro que paga. Por isso mesmo, ao sub-rogado só é devido o pagamento até a quantia desembolsada (artigo 350 do Código Civil [9]). A cessão de crédito, por seu turno, possui caráter especulativo; pode o cessionário cobrar a totalidade do crédito cedido (se cedido totalmente), ainda que o valor pago ao cedente tenha sido inferior ao valor total do crédito.

São institutos jurídicos distintos, que traduzem fatos jurídicos distintos, que irradiam ou abrangem efeitos próprios. Possuem, por isso, regimes jurídicos distintos.

A sub-rogação também não se confunde com a cessão de posição contratual (que também é negócio jurídico). O sub-rogado não se torna parte no contrato ou na relação contratual celebrado entre o credor originário e o devedor.

Em síntese, a hipótese do artigo 786 do Código Civil é de sub-rogação legal. Não há cessão de posição contratual: o segurador não passa a ser parte no contrato segurado. Em princípio, também não há cessão de crédito, nem sub-rogação convencional. O efeito da sub-rogação decorre da lei, em razão do pagamento, e não de vontade das partes.

3. A sub-rogação da seguradora que faz o pagamento em razão de contrato de seguro de dano

Aqui, há duas as operações contratuais: o contrato segurado e o contrato de seguro. O segurador não é, nem se torna, parte na operação contratual segurada. O segurador não é titular da obrigação decorrente do contrato segurado; ele obrigou-se a, garantindo o interesse contratual do beneficiário, arcar com os riscos e consequências do descumprimento do contrato segurado. Ao pagar, o segurador está cumprindo obrigação decorrente do contrato de seguro, e não do contrato segurado.

A sub-rogação irradiada tem como causa o pagamento (ato-fato jurídico). O pagamento é apreendido juridicamente pelas normas decorrentes dos artigos 786 e 346 do Código Civil, apreensão que, em princípio, não decorre de ato negocial, expresso ou concludente. Não se trata, assim, de sub-rogação convencional, mas, sim, de sub-rogação legal.

De outra parte, o contrato de seguro, em si, não pode ser qualificado como ato negocial suficiente para que a sub-rogação seja qualificada como convencional, nos termos do artigo 347, I, do Código Civil. O ato negocial referido no artigo 347, I, do Código Civil é aquele que tem como objeto em si o direito à sub-rogação. O contrato de seguro, em si, não significa o exercício do autorregramento sobre a sub-rogação.

4. O segurador é terceiro com relação à convenção de arbitragem

Dessa forma, o segurador não é nem se torna parte do contrato segurado, muito menos da convenção de arbitragem que lhe é relativa. Caracteriza-se, assim, como terceiro em relação à convenção de arbitragem, não titularizando o efeito próprio que lhe é decorrente.

A circunstância de ser terceiro interessado no cumprimento de uma das relações eficaciais decorrentes do contrato não o torna parte do contrato, nem da convenção de arbitragem. Terceiro interessado não é parte contratual; continua sendo qualificado como terceiro.

Por outro lado, inexiste norma do sistema que excepcione o princípio da relatividade dos efeitos contratuais (que se aplica, logicamente, e ainda com mais força, em razão das peculiaridades da jurisdição arbitral, às convenções de arbitragem). Ao contrário, o artigo 3o da Lei nº 9.307/1996 estabelece que as “partes interessadas podem submeter a solução de seus litígios ao juízo arbitral mediante convenção de arbitragem, assim entendida a cláusula compromissória e o compromisso arbitral”. Como bem se sabe, a autonomia da vontade é a fonte da jurisdição arbitral; aqui, com ainda maior razão, a convenção de arbitragem deve ser eficaz apenas em relação aos seus signatários ou a terceiros que tenham a ela aderido, expressamente ou por meio de comportamento concludente.

5. Conclusão: a ineficácia da cláusula compromissória perante o segurador que dela não é parte

Do teor do artigo 786 do Código Civil, não se faz possível extrair norma que vincule o segurador ao efeito direto da convenção arbitral, com a qual não concordou, expressa ou tacitamente.

Também do artigo 349 do Código Civil não se depreende tal regra. Ao contrário, o dispositivo prevê que a sub-rogação transfere, ao novo credor, juntamente com o crédito, todos os “direitos, ações, privilégios e garantias do primitivo, em relação à dívida, contra o devedor principal e os fiadores” (a ratio, vale lembrar, é justamente proteger o terceiro que paga a dívida). Não se fala em transmissão de cláusula compromissória, nem de negócios processuais celebrados pelo credor originário, o que seria incompatível com a ratio normativa.

Não nos parece possível considerar uma transmissão automática do efeito direto da cláusula compromissória, que, inclusive, é autônoma das demais disposições contratuais (artigo 8o, Lei nº 9.307/1996), em razão de uma sub-rogação legal, sem que tenha ocorrido qualquer exteriorização de vontade do segurador-terceiro, ainda que tácita.

Não bastasse tudo isso, e especificamente no que concerne ao regime jurídico da sub-rogação legal no âmbito do contrato de seguro de dano, o § 2o do artigo 786 do Código Civil assim prevê: “É ineficaz qualquer ato do segurado que diminua ou extinga, em prejuízo do segurador, os direitos a que se refere este artigo”.

Em síntese, não se pode extrair, dos textos normativos citados, qualquer norma que excepcione o princípio da relatividade dos efeitos negociais no caso de sub-rogação legal de segurador no âmbito de contrato de seguro de dano. É possível que, no caso concreto, o segurador tenha concordado ou aderido à convenção de arbitragem, mas aí a sua vinculação decorre do autorregramento, e não do efeito legal da sub-rogação.

Essa ratio, inclusive, é verificada em precedentes do Superior Tribunal de Justiça, ao enfrentar a questão da eficácia da cláusula de eleição de foro constante no contrato segurado com relação ao segurador sub-rogado. No julgamento do Recurso Especial nº 1.962.113/RJ, decidiu-se que “o instituto da sub-rogação transmite apenas a titularidade do direito material, isto é, a qualidade de credor da dívida, de modo que a cláusula de eleição de foro firmada apenas pela autora do dano e o segurado (credor originário) não é oponível à seguradora sub-rogada” (REsp nº 1.962.113/RJ, relatora ministra Nancy Andrighi, 3ª Turma, julgado em 22/3/2022, DJe de 25/3/2022) [10].

Com relação à eficácia da cláusula compromissória perante o segurador, a questão foi enfrentada no julgamento do Recurso Especial nº 1.988.894/SP (REsp nº 1.988.894/SP, relatora ministra Maria Isabel Gallotti, 4ª Turma, julgado em 9/5/2023, DJe de 15/5/2023). Em um primeiro momento, a construção da fundamentação do acórdão foi no sentido ora defendido, de não transmissibilidade automática da cláusula compromissória, inclusive com citações ao artigo de nossa autoria publicado na Revista de Direito Civil Contemporâneo.

Sucede que, na sequência, o acórdão considera que a ciência prévia da cláusula compromissória pelo segurador bastaria para a sua vinculação. A questão é analisada não sob a perspectiva de possível anuência tácita do segurador, mas como se, com a ciência da cláusula, ela passasse a ser objeto do risco segurado, o que, com todo respeito, não nos parece ser o caso. O risco segurado é o inadimplemento contratual; é sobre ele que se negocia no âmbito do contrato de seguro, abstratamente considerado.

De outra parte, não nos parece que apenas a ciência da cláusula compromissória, por si, seria suficiente para a configuração de uma exteriorização tácita de vontade. Sendo esse o raciocínio, haveria sempre a transferência automática da cláusula compromissória constante em contrato de seguro garantia – e, como demonstrado, não há tal regra em nosso sistema jurídico. Por meio do contrato de seguro em si, não se negocia sobre o conteúdo da sub-rogação.


[1] Escrevemos mais longamente sobre o tema em DIDIER JR., Fredie; BOMFIM, Daniela Santos. A sub-rogação prevista no art. 786 do Código Civil e a convenção de arbitragem celebrada pelo segurado. Revista de Direito Civil Contemporâneo. São Paulo: RT, 2020, v. 24, p. 95 e segs.

[2] “Art. 786. Paga a indenização, o segurador sub-roga-se, nos limites do valor respectivo, nos direitos e ações que competirem ao segurado contra o autor do dano.” Cuida-se de previsão normativa específica da sub-rogação legal, que está em consonância com a regra decorrente do art. 346, III, do Código Civil, segundo a qual “a sub-rogação opera-se, de pleno direito, em favor: III – do terceiro interessado, que paga a dívida pela qual era ou podia ser obrigado, no todo ou em parte.”

[3]  Cf. MIRANDA, Francisco Cavalcanti Pontes de. Tratado de Direito Privado, parte especial, Tomo XXIV. Editor Borsoi: Rio de Janeiro, 1971, p. 283; CORDEIRO, António Menezes. Tratado de direito civil português. Direito das Obrigações. Tomo IV:  cumprimento e não cumprimento, transmissão, modificação e extinção, garantias, cit., p. 233.

[4] Nesse sentido, também SIMÕES, Marcel Edvar. Transmissão em direito das obrigações: cessão de crédito, assunção de dívida e sub-rogação pessoal. Dissertação de Mestrado em Direito Civil apresentada à Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, 2011, p. 121.

[5] MARTINS-COSTA, Judith. Comentários ao novo Código Civil, volume V, tomo I: do direito das obrigações, do adimplemento e da extinção das obrigações / Judith Martins-Costa; Coordenador Sálvio de Figueiredo Teixeira. Rio de Janeiro: Forense, 2003, p. 432; PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Tratado de Direito Privado, parte especial. Tomo XXIV, cit., p. 285.

[6] MELLO, Marcos Bernardes de. Teoria do fato jurídico. Plano da existência. 12. ed. São Paulo: Saraiva, 2003, p. 130.

[7] MIRANDA, Francisco Cavalcanti Pontes de. Tratado de direito privado. Tomo I. 4. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1983, p. 83.

[8] “Art. 347. A sub-rogação é convencional: I – quando o credor recebe o pagamento de terceiro e expressamente lhe transfere todos os seus direitos; II – quando terceira pessoa empresta ao devedor a quantia precisa para solver a dívida, sob a condição expressa de ficar o mutuante sub-rogado nos direitos do credor satisfeito.

[9] “Art. 350. Na sub-rogação legal o sub-rogado não poderá exercer os direitos e as ações do credor, senão até à soma que tiver desembolsado para desobrigar o devedor.”

[10] No mesmo sentido, STJ, 3ª T., REsp n. 1.038.607/SP, rela. min. Massami Uyeda, j. em 20.5.2008, DJe de 5.8.2008.

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Possibilidade de prorrogação do contrato emergencial sob a nova Lei de Licitações

A regra geral da escolha de fornecedores para o poder público é a licitação, como se sabe.

No entanto, o ordenamento jurídico aplicado às licitações em geral já prevê hipóteses em que o procedimento licitatório é incompatível com os objetivos da administração, retirando seu caráter obrigatório sem que esta providência implique ilegalidade nas contratações que podem advir do procedimento de contratação direta.

De maneira simples, a realização de procedimento licitatório é a regra para a celebração de qualquer contratação feita pela administração pública. Mas essa regra admite exceções, em hipóteses taxativas ou conceituais, em que a contratação direta se mostra o veículo mais eficiente para o atingimento da finalidade perseguida com a contratação.

De fato, como se sabe, a Lei Federal n° 14.133/2021 (Nova Lei de Licitações) prevê expressamente o seguinte:

Art. 75. É dispensável a licitação:

(…)

VIII – nos casos de emergência ou de calamidade pública, quando caracterizada urgência de atendimento de situação que possa ocasionar prejuízo ou comprometer a continuidade dos serviços públicos ou a segurança das pessoas, obras, serviços, equipamentos e outros bens, públicos ou particulares, e somente para aquisição dos bens necessários ao atendimento da situação emergencial ou calamitosa e para as parcelas de obras e serviços que possam ser concluídas no prazo máximo de 1 (um) ano, contado da data de ocorrência da emergência ou da calamidade, vedadas a prorrogação dos respectivos contratos e a recontratação de empresa já contratada com base no disposto neste inciso.”

Ou seja: a lei possibilita a contratação direta em situações emergenciais para garantir a continuidade de serviços públicos, mas veda expressamente a recontratação de empresa já contratada com base na mesma justificativa.

Ocorre, no entanto, que na prática há certos casos em que se vislumbra a caracterização de hipótese que admite exceção a essa regra, ainda que, em tese, de forma contrária ao texto expresso da lei, em atenção ao interesse público e à continuidade do serviço público essencial.

E isso porque a estrita observância da lei, sem o sopesamento das possíveis consequências práticas dessa decisão, seria, na verdade, prejudicial ao interesse público, ensejando a instauração de uma situação verdadeiramente calamitosa ante a não prestação adequada de um serviço essencial.

Recontratação emergencial

De fato, em muitos casos, não se trata de uma recontratação emergencial do particular por uma emergência fabricada, mas de situação em que a administração pública, apesar dos esforços perpetrados, não foi capaz de encerrar uma nova licitação antes do encerramento do contrato emergencial então vigente, criando-se uma situação que, caso não haja a prorrogação do contrato/recontratação do mesmo particular e enquanto não celebrado um novo contrato, pode resultar (1) na assunção, pela administração pública, da prestação direta do serviço — o que demandaria equipamentos e pessoal muitas vezes não disponíveis; (2) na sua completa interrupção — aí, sim, causando prejuízo à administração e aos usuários do serviço público; ou, ainda, (3) na necessidade de uma outra contratação emergencial, de outra empresa não preparada para a assunção dos serviços, principalmente dentro de um prazo tão curto (que ainda se mobilizaria para assumir o serviço por tão pouco tempo).

E considerando que as opções cogitadas abstratamente nos itens ‘1’ e ‘2’ supra são dificilmente factíveis, e (2) é razoável se considerar que a opção do item ‘3’ não é economicamente/logisticamente interessante para qualquer empresa que não esteja já mobilizada (resultando, inclusive, em preços muito superiores ao da empresa que já está mobilizada), a prorrogação do contrato/recontratação do particular já contratado em caráter emergencial é a medida que se mostra mais razoável, permitindo uma relativização do texto expresso da lei em sua leitura isolada em prol da preservação do interesse público pela exegese sistêmica do conjunto normativo aplicável [1].

Necessário esclarecer, no entanto, que, caso haja a prorrogação do contrato/recontratação do particular nos termos acima discutidos, é recomendável que (1) sejam mantidas integralmente as condições já existentes de prestação dos serviços, sem acréscimo de valor ou escopo; (2) seja mantida a previsão expressa de cláusula resolutiva do contrato caso seja concluído o processo licitatório para nova contratação antes do termo contratual, sem qualquer ônus à administração; e (3) seja feita uma consulta prévia de eventuais interessados (e seus respectivos preços) na assunção dos serviços de forma emergencial, como forma de se evitar qualquer alegação de prejuízo ao erário.

Isso posto, o que se pode concluir é que, estando para se encerrar o prazo de vigência do contrato emergencial atual e não havendo ainda novo particular escolhido por licitação, a conclusão a que se chega é de que a solução mais proporcional e adequada ao interesse público é mesmo uma nova e excepcional prorrogação/recontratação, ainda que a legislação não preveja a possibilidade de um novo acréscimo de prazo — inclusive em consonância o artigo 22, § 1º, da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (norma geral com diretrizes fundamentais que orientam a aplicação e a interpretação das leis no Brasil), que prevê expressamente que “Art. 22. Na interpretação de normas sobre gestão pública, serão considerados os obstáculos e as dificuldades reais do gestor e as exigências das políticas públicas a seu cargo, sem prejuízo dos direitos dos administrados”.

Ou seja: ainda que haja norma expressa em sentido contrário, o fundamental é que as decisões tomadas tenham como foco a continuidade do serviço público e a efetividade das políticas públicas, assegurando o cumprimento das obrigações administrativas de maneira eficiente e em conformidade com os princípios legais e constitucionais, sem apego à formalidade excessiva em casos de obstáculos inesperados encontrados pelo gestor.


[1] Nesse sentido: (1) REZENDE OLIVEIRA, Rafael Carvalho. Licitações e Contratos Administrativos, Teoria e Prática. 12ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2023; (2) BITTENCOURT, Sidney. Contratando sem Licitação: Contratação Direta ou por Dispensa ou Inexigibilidade – Lei Nº 14.133, de 1º de Abril de 2021 – Nova Lei De Licitações – Lei Nº 13.303, De 30 De Junho De 2016 – Lei Das Estatais. São Paulo: Grupo Almedina, 2021. E-book. ISBN 9786556273822. Disponível em: https://integrada.minhabiblioteca.com.br/#/books/9786556273822/. Acesso em: 26 abr. 2024.

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11 tribunais incentivam prática de constelação familiar para resolver conflitos

Onze tribunais brasileiros incentivam a prática da constelação familiar nas resoluções de conflitos. A maior parte dos casos versa sobre questões de família, sucessões e matérias relacionadas, como violência doméstica e contra menores. Esses dados estão no relatório “Constelação Familiar como Política Pública?”, elaborado pelo Instituto Questão de Ciência (IQC).

A constelação familiar é chamada por seus adeptos de terapia — mesmo sem aval dos conselhos de Psicologia — e usa subjetividades espirituais e metafísicas para supostamente encontrar a razão e a solução dos conflitos. Seu uso não é regulamentado pelo Conselho Nacional de Justiça e os aplicadores são, normalmente, juízes entusiastas da prática espiritual. Seus apoiadores se sustentam em resoluções do CNJ que incentivam alternativas para mediação de conflitos, mas não citam questões religiosas ou espirituais.

A maior parte dos casos em que se encontra o uso da constelação tem relação mesmo com o Direito de Família. Há situações de violência doméstica em que o acusado é intimado a participar da prática e, quando a recusa, a negativa é citada em sentença para negar a apelação; argumentações metafísicas em casos de divórcio litigioso, ações de alimentos ou de guarda; “perícias” que têm como base a constelação familiar em casos de aposentadoria por invalidez; entre outros.

Segundo o documento do IQC, o Tribunal de Justiça de São Paulo, maior do país e um dos maiores do mundo, incentiva a prática. Além dele, os tribunais de Acre, Amapá, Distrito Federal, Maranhão, Pará, Paraíba, Piauí, Rio de Janeiro e Rondônia também dizem regulamentá-la. Em âmbito federal, o Tribunal Regional Federal da 3ª Região afirmou que utiliza a constelação. E esse número pode estar subdimensionado porque nove cortes não responderam às consultas.

Há casos ainda como o do Tribunal de Justiça de Santa Catarina, que afirmou que não incentiva a prática e não a regulamentou. O relatório constatou, no entanto, o uso do método em varas do estado, como em Balneário Camboriú, Blumenau e Florianópolis. Em janeiro deste ano, o TJ-SC divulgou resolução desaconselhando a prática em casos de violência doméstica.

“Em geral, a aplicação da constelação familiar no Poder Judiciário brasileiro ocorre por iniciativa dos magistrados responsáveis pela gestão de suas unidades, mediante alto grau de autonomia e discricionariedade, não necessariamente por orientações dos tribunais — embora não sejam tampouco desestimulados quanto à aplicação”, diz o relatório.

“Esses magistrados baseiam-se no incentivo à disponibilização de métodos alternativos de resolução de conflitos, suscitando argumentos como a existência da Resolução n. 125/2010 do CNJ e o suposto êxito do método, com suposta redução de novas demandas e suposta satisfação dos envolvidos, embora tais afirmações não tragam consigo o amparo em evidências científicas.”

Precursor não respondeu

O Tribunal de Justiça da Bahia, considerado o precursor no uso da constelação familiar no Judiciário brasileiro, está no bloco dos que não responderam aos questionamentos do IQC. A “vanguarda” do tribunal se deve ao juiz Sami Storch, um dos primeiros, se não o primeiro, magistrados do país a incentivar a prática — ele diz que começou a utilizar a constelação em 2006. Storch é juiz titular da 2ª Vara de Família da Comarca de Itabuna (BA).

Como mostrou a revista eletrônica Consultor Jurídico em outubro passado, o juiz registrou a patente do termo “Direito Sistêmico”, que é utilizado pelos apoiadores da constelação familiar como a “vertente” do Direito que trata desse tipo de mediação, ainda que esse não seja efetivamente um campo de estudos jurídicos e trate única e exclusivamente da constelação familiar. Storch registrou a patente no Instituto Nacional de Propriedade Intelectual (INPI) em 2017 e detém a marca até 2027.

O relatório faz ainda menção à Ordem dos Advogados do Brasil, que se tornou fiadora da prática quando passou a criar comissões de “Direito Sistêmico” em suas subseções. O documento revela que a prática também está sendo usada pelas Defensorias Públicas. Os pesquisadores sustentam que Defensorias de ao menos seis estados oferecem a possibilidade da constelação aos seus assistidos.

“A Ordem dos Advogados do Brasil tem desempenhado um papel significativo na adesão dos profissionais do Direito à prática. Seja através da criação de comissões de Direito Sistêmico, como nas seccionais do RJ e de SC, e de grupos de trabalho, como na seccional do RS; seja por meio da promoção de cursos, palestras, cartilhas e disponibilização de espaços para a divulgação da prática, como ocorre nas seccionais dos estados de AL, do AM, do ES, de MG, do MS, da PB, do PI, do PR, de RO, do SE e de RO, percebem-se setores da advocacia apoiando a expansão do que consideram uma nova área (ou mercado) de atuação chamada de advocacia sistêmica”, dizem os pesquisadores no documento.

“Outro exemplo é a abertura de espaços de escolas da magistratura, como ocorreu em palestras proferidas sobre o tema em 2018, uma por iniciativa da Escola Superior da Magistratura do Amazonas (Esmam), no auditório do Centro Administrativo Desembargador José Jesus Ferreira Lopes, prédio anexo à sede do TJ-AM, e outra por iniciativa da Escola Superior da Magistratura Tocantinense (Esmat), em evento com incentivo à aplicação da constelação por magistrados.”

CNJ deve restringir prática

O relatório cita propostas legislativas que tramitam para tentar regulamentar a prática. No caso do Judiciário, corre no Conselho Nacional de Justiça um pedido de providências, feito pela Associação Brasileira das Constelações Sistêmicas em março de 2019, para legalizar definitivamente o uso da constelação familiar nos tribunais. O pedido, no entanto, deve resultar em sua proibição, tendo em vista o teor dos debates no julgamento, que está parado desde o final do ano passado.

Na análise do pedido, o relator da matéria, juiz federal Marcio Luiz Freitas, hoje ex-conselheiro, não só entendeu que não há espaço para a regulamentação como votou para que a prática seja proibida em casos de violência doméstica de gênero ou contra crianças. Segundo ele, o uso desse método pode causar consequências graves, como a revitimização de mulheres.

À época, a ConJur apurou que cinco conselheiros acompanharam integralmente o voto do relator e uma conselheira o acompanhou parcialmente. O teor dos votos não é público porque, como o julgamento ainda não acabou, os julgadores podem alterar suas posições.

Freitas, em seu voto, disse que a prática é questionável do ponto de vista científico e que suas balizas são incompatíveis com o Judiciário brasileiro. Isso seria ainda mais grave com o respaldo do Estado, tendo em vista que a prática seria fomentada como política pública e financiada pelo contribuinte caso fosse regulamentada pelo CNJ.

“Isso é especialmente grave quando a gente pensa no encaminhamento de pessoas vítimas de crimes, especialmente mulheres vítimas de crime de gênero ou crianças”, argumentou Freitas. Segundo o conselheiro, o que ele busca com o voto é “dar um passo à frente” e evitar que as pessoas que tiveram seus direitos violados em crimes sejam novamente vitimizadas nos processos judiciais, como efeito comum da constelação familiar.

Clique aqui para ler o relatório

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