Inércia em excluir rede social clonada viola honra objetiva de pessoa jurídica

Criminoso passou a fazer uso de perfil clonado para aplicar golpes em nome da empresa

A inércia de uma rede social em excluir conta clonada, mesmo diante de denúncias da empresa que detinha o perfil original, configura violação da honra objetiva, o que justifica o reconhecimento de dano extrapatrimonial.

Com esse entendimento, a juíza Elbia Rosane Sousa de Araújo, da 2ª Vara do Sistema dos Juizados Especiais da Comarca de Camaçari (BA), condenou o Facebook a pagar R$ 4 mil a uma empresa a título de danos morais.

A empresa teve uma conta no Instagram, que pertence ao Facebook, clonada por um criminoso, que passou a fazer uso dela para tentar aplicar golpes. Ela enviou mensagem à rede social pedindo a exclusão do perfil, mas não foi atendida.

A magistrada decidiu que o caso deveria ser solucionado sob o prisma do Código de Defesa do Consumidor e, por conta disso, inverteu o ônus da prova.

Ela também entendeu, ao aplicar à controvérsia a Teoria do Risco Criado, haver responsabilidade objetiva da rede social, o que independente de demonstração de culpa. O Facebook não conseguiu provar no processo, também de acordo com a juíza, que se movimentou para excluir a conta clonada após as denúncias.

“Quanto ao dano moral pleiteado, sabe-se que a pessoa jurídica pode ser vítima de dano extrapatrimonial, nos termos da Súmula 227 do STJ. Para isso, contudo, é necessária violação de sua honra objetiva, ou seja, de sua imagem e boa fama, o que se vislumbra no caso ora em análise”, escreveu a magistrada.

Além da indenização, a juíza determinou a suspensão, pelo Facebook, da conta clonada no prazo de 15 dias, sob pena de multa diária de R$ 200. O não pagamento da condenação no período, diz a decisão, resultará em acréscimo de 10% da multa.

Atuou na causa o advogado Iran dos Santos D’el-Rei.

Clique aqui para ler a decisão
Processo 0016420-45.2023.8.05.0039

O post Inércia em excluir rede social clonada viola honra objetiva de pessoa jurídica apareceu primeiro em Consultor Jurídico.

Vinculação do Carf na reforma tributária: perigo iminente e eminente

vinculação, enquanto mecanismo de garantia da isonomia e da segurança jurídica, apresenta-se de diversas formas no Direito. Temos a vinculação dos juízes e tribunais aos precedentes qualificados dos tribunais superiores (cf. artigo 927 do Código de Processo Civil). Nessa mesma toada, temos a vinculação do Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf) aos precedentes exarados pelo STJ e pelo STF (cf. artigo 98 do Regimento Interno do Carf). Já no âmbito da legislação infralegal, temos a vinculação das Delegacias de Julgamento da Receita Federal (DRJs) aos atos normativos expedidos pela Receita Federal do Brasil (RFB). Não faltam exemplos nesse sentido.

E no meio do furacão da reforma tributária que temos vivido nos últimos meses, parecem estar passando despercebidos mais dois exemplos de vinculação que se pretende trazer ao contencioso administrativo tributário, no contexto de divergências possíveis em relação ao Imposto sobre bens e serviços (IBS) e à Contribuição sobre Bens e Serviços (CBS).

Apercebamo-lospois as alterações propostas são importantes e se aproximam com celeridade à realidade do contencioso administrativo.

A reforma tributária e um novo contencioso administrativo para o IBS/CBS

Reformado o sistema tributário pela Emenda Constitucional nº 132/2023 (EC 132), já é consabida a profunda mudança da tributação sobre o consumo que viveremos nos próximos anos, que, como regra geral, sofrerá a incidência do chamado “IVA-dual”, representado pelo IBS (imposto cuja arrecadação será direcionada aos estados e municípios por intermédio do Comitê Gestor) e pela CBS (contribuição destinada aos cofres da União). Fala-se em “IVA-dual” porque os dois tributos serão regidos pelas mesmas regras, com relação ao fato gerador, contribuintes, não cumulatividade, princípio do destino, neutralidade, entre todos os outros elementos trazidos pelo PLP nº 68/2024 para disciplinar, conjuntamente, o IBS e a CBS.

Esse é o cenário do direito material, que com razão busca as melhores práticas da experiência internacional nos IVAs modernos (e.g. Nova Zelândia, Austrália, Canadá e África do Sul).

No que tange ao direito processual administrativo fiscal – enquanto conjunto de normas aplicável às lides tributárias deduzidas perante a administração pública, para apaziguar as lides tributárias — com base no nosso novo sistema de mesmas regras para o “IVA-dual”, parece claro que o ideal seria que tivéssemos um contencioso único, integrado e coeso, para o julgamento tanto do IBS como da CBS, conforme permissão trazida pela EC 132, a o artigo 156-B, §8º da CF. A simplicidade, agora alçada como princípio norteador do Sistema Tributário Nacional (cf. artigo 145, §3º da CF), que teríamos em sendo uma única administração e um único contencioso do “IVA-dual” é inquestionável.

Todavia, sem adentrar nas questões políticas que entornam uma reforma tributária, embora seja tentador tratar a nova tributação sobre o consumo como “um único imposto”, não foi essa a escolha do constituinte. O 149-B da CF serve para determinar que as normas gerais do IBS e da CSB sejam idênticas, mas isso não faz com que os dois tributos se tornem um só. São gêmeos univitelinos, mas não são siameses, em razão das origens do federalismo em que se funda a nossa ordem constitucional.

Nesse contexto foi que o contencioso administrativo único, para o IBS e a CBS, não aconteceu.

Contencioso do IBS x Contencioso da CBS x Divergências interpretativas

Assim, de forma não ideal, mas certamente não inconstitucional, o PLP nº 108 de 2024 (PLP 108/2024) cria o contencioso administrativo do IBS, conforme determinação dos artigo 156-A, §5º, VII e 156-B, III da CF.

Ali está bastante clara a inspiração do texto em alguns aspectos do Decreto 70.235/72, outros tantos da Lei nº 9.784/1999, e ainda outros do Ricarf, no que tange à garantia ao contraditório e ampla defesa, sistema paritário de representação de julgadores, duas instâncias de julgamento e uma de uniformização de jurisprudência (artigo 99), subordinação à precedentes qualificados (artigo 92), enfim, inspirações oriundas do Processo Administrativo Fiscal Federal. Há diferenças importantes, mas há muitas semelhanças.

De outro lado, conforme recentemente noticiado [1], o presidente do Carf revelou que os litígios entre contribuintes e União a respeito da CBS serão julgados pela 3ª Seção do Carf. A atribuição de competência é bastante intuitiva, dentro do sistema do contencioso administrativo federal ora vigente. Afinal, é à 3ª Seção do Carf que cabe o julgamento do PIS e da Cofins, que serão exterminadas com o advento definitivo da CBS. É uma competência de julgamento “por sucessão causa mortis” tributária.

Em sendo essa a realidade, de contenciosos administrativos diferentes para o IBS e para a CBS, evidentemente que será possível que exsurjam divergências de interpretação entre o contencioso administrativo federal (Carf) e o contencioso administrativo do IBS. Mas não é só. Pode ser que haja divergência interpretativa fora do contencioso propriamente dito, em nível de edição de atos normativos/interpretativos infralegais, entre a União e o sistema em torno do Comitê Gestor do IBS.

Por isso, há necessidade de dois níveis de harmonização de interpretação do IBS/CBS: o contencioso e o normativo. Vejamos como ambos aparecem nas propostas legislativas em trâmite.

Desde a primeira versão do PLP 108/2024, havia uma promessa, pouco trabalhada nos dispositivos legais do projeto, de que o Comitê de Harmonização das Administrações Tributárias e o Fórum de Harmonização Jurídica das Procuradorias fariam esse papel, especialmente em relação à harmonização em nível de atos normativos infralegais [2].

Os detalhes sobre a composição e as atribuições desses órgãos encontravam-se no PLP 68/2024, cujo artigo 317, inciso I determina que o comitê será formado por quatro representantes da RFB e 4 representantes do Comitê Gestor; e o artigo 319 afirma que compete ao comitê: 1) uniformizar a regulamentação e a interpretação da legislação relativa ao IBS e à CBS em relação às matérias comuns; 2) prevenir litígios relativos às normas comuns aplicáveis ao IBS e à CBS; e 3) deliberar sobre obrigações acessórias e procedimentos comuns relativos ao IBS e à CBS. Ao fórum fica a função de, além de analisar relevantes e disseminadas controvérsias do IVA-dual, atuar como órgão consultivo do comitê.

Em 8 de julho de 2024 tivemos a apresentação, do pelo grupo de trabalho (GT) da regulamentação da reforma tributária, do substitutivo ao texto do PLP 108/2024.

O artigo 111 do substitutivo deixa claro que o órgão que servirá para a solucionar divergências interpretativas em nível de julgamento, vale dizer, de jurisprudência administrativa, é o comitê. Ato contínuo, o artigo 112 determina que as decisões do comitê terão caráter vinculante:

“Art. 111. A uniformização da jurisprudência administrativa do IBS e da CBS será realizada pelo Comitê de Harmonização das Administrações Tributárias relativas ao IBS e à CBS por encaminhamento pelas seguintes autoridades:

I – o Presidente do Comitê Gestor do IBS; e

II – a autoridade máxima do Ministério da Fazenda.”

“Art. 112. As decisões tomadas pelo Comitê de Harmonização das Administrações Tributárias terão caráter de provimento vinculante a partir de sua publicação no Diário Oficial da União.”

A dúvida que aparece é sobre os destinatários dessa vinculação. Quais seriam? É aqui que se requer atenção, com itálicos, negritos e sublinhados oportunos.

Depois de apresentar as três instâncias de julgamento administrativo do IBS, o artigo 100 do Substitutivo do PLP 108 coloca que:

“Art. 100. A harmonização do IBS e da CBS será garantida pelo Comitê de Harmonização das Administrações Tributárias de que trata a Lei Complementar que institui o IBS e a CBS, cujas decisões terão caráter de provimento vinculante para os órgãos julgadores administrativos.

Parágrafo único. No exercício da atividade de harmonização de que trata o caput, o Comitê de Harmonização das Administrações Tributárias ouvirá obrigatoriamente o Fórum de Harmonização Jurídica das Procuradorias, que participará necessariamente das reuniões do Comitê de Harmonização das Administrações Tributárias.”

Paralelamente, o artigo 319, parágrafo único e o artigo 321 do PLP 68/2024 determinam:

“Art. 309. Compete ao Comitê de Harmonização das Administrações Tributárias: (…)

Parágrafo único. As resoluções aprovadas pelo Comitê de Harmonização das Administrações Tributárias, a partir de sua publicação no Diário Oficial da União, vincularão as administrações tributárias da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios.”

“Art. 311. Ato conjunto do Comitê de Harmonização das Administrações Tributárias e do Fórum de Harmonização Jurídica das Procuradorias deverá ser observado, a partir de sua publicação no Diário Oficial da União, nos atos administrativos, normativos e decisórios praticados pelas administrações tributárias da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios e nos atos da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional e das Procuradorias dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios.”

Aí estão as novas hipóteses de vinculação que se propõe sejam adotadas no âmbito do contencioso tributário: que as decisões do comitê e do fórum, sobre dúvidas interpretativas a respeito de qualquer questão que seja comum ao IBS e à CBS, sejam de observância obrigatória pelos órgãos julgadores das matérias, vale dizer, o Carf [3] e quaisquer das instâncias de julgamento do IBS!

Críticas à vinculação do contencioso ao comitê de harmonização

Pois bem. Do ponto de vista de harmonização da jurisprudência, a regra causa profundo espanto. As decisões proferidas pela Câmara Superior de Recursos Fiscais do Carf não são vinculantes para as turmas ordinárias do mesmo tribunal. Por que então as decisões dessa “instância de uniformização”, exclusivamente quanto à jurisprudência da CBS, seriam vinculantes à 3ª Seção do Carf? Difícil escrever obviedades, mas o Carf julga e julgará tributos diferentes da CBS, que não terão qualquer limitação vinculativa desse jaez, de modo que a previsão do artigo 100 do PLP 108, quando aplicada na prática, torna o Carf um tribunal com regras processuais diversas a depender das matérias sob julgamento, o que não faz sentido, nunca aconteceu, e não tem razão de ser.

Não fosse o bastante, a composição do comitê e do fórum exclusivamente por representes da RFB, da Procuradoria e do Comitê Gestor faz todo o sistema de paridade do julgamento administrativo cair por terra. Do que adianta prever um contencioso administrativo no qual as instâncias de julgamento contam com representantes dos contribuintes, se a decisão final sobre uma matéria será tomada sem a participação desses? Quando do advento do substitutivo, pensamos por um momento que a inclusão de representantes dos contribuintes na Câmara Superior do IBS (cf. artigo 110, §1º, III do PLP 108/2024) demonstrava uma sensibilidade com a questão, mas agora está claro que isso não aconteceu de forma suficiente, permanecendo o problema da falta de credibilidade e coerência no ápice do sistema.

E agora do ponto de vista da harmonização de entendimento por atos normativos infralegais — cuja vinculação aos dizeres do comitê está posta no PLP 68/2024 – trata-se proposta legal que tolhe profundamente a consolidada competência cognitiva que o Carf possui, bem como faz natimorta essa mesma competência no âmbito do contencioso do IBS. Com feito, o Carf e todas as instâncias do contencioso do IBS, ficam com a sua capacidade de verticalização do julgamento prejudicada. Afinal, sabe-se que o Carf está impedido de promover o controle de constitucionalidade das normas que aplica às lides que lhe são dirigidas (cf. Súmula Carf nº 2 e artigo 26-A do Decreto 70.235/72), mas tradicionalmente sempre foi instância com o poder/dever, inclusive dentro do contexto de controle interno dos atos administrativos (cf. artigo 53 da Lei nº 9.78/1999), de afastar atos normativos ilegais. Assim, se aplicada a literalidade do artigo 100 do PLP 108, enquanto vinculação do contencioso administrativo à legislação tributária, parte do Carf (a 3ª Seção de Julgamento) não poderá, como pode hoje em dia, julgar conforme a lei, entendendo que determinado ato normativo é ilegal. Afinal, no que tange à CBS, estará “vinculado” ao que o Comitê diz que é que interpretação adequada.

Para além da necessidade do interesse da própria administração pública na citada autotutela da legalidade dos seus atos, mediante processo administrativo competente, a submissão do contencioso administrativo em sua inteireza aos atos interpretativos exarados pelo comitê vai na contramão do princípio da legalidade, que, até onde essa colunista pode depreender, não foi revogado pela EC 132/2023.

Por fim, vê-se que a proposta é cega ao fato que os contribuintes, se restarem vencidos no âmbito administrativo, sempre podem se socorrer ao Poder Judiciário, pelo princípio da inafastabilidade da jurisdição [4]. Quer dizer que autuações fiscais feitas com base em legislação tributária desconforme à lei em sentido estrito, invariavelmente levará às Fazendas Públicas a um litígio judicial, o que gerará sucumbência contra o poder público. Certamente não é esse o melhor cenário para a sociedade como um todo.

De tudo isso, vê-se que temos uma reforma do processo administrativo tributário que merece muito mais atenção nos seus detalhes, como o apresentado no presente texto. As novas hipóteses de vinculação, trazidas pelo PLP 108 e pelo PLP 68 podem significar problemas estrondosos para o contencioso administrativo fiscal como um todo. Esperamos que exista tempo de resolvê-los ante da finalização do trâmite legislativo, inclusive tendo a oportunidade de observar bons exemplos de diálogo na relação entre Fisco e contribuinte, sempre no intuito de zelar pelo interesse público, como temos na Sejan (Câmara de Promoção de Segurança Jurídica no Ambiente de Negócios) no âmbito da AGU. O trabalho de harmonização de interpretação entre RFB e Procuradoria da Fazenda Nacional, com a participação da sociedade civil, é de fato inspirador, podendo trazer novos ares para a tão necessária necessidade de harmonização que teremos com a vigência do IBS e da CBS.


[1] https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/coluna-barbara-mengardo/processos-sobre-cbs-serao-analisados-pela-3a-secao-do-carf-03072024

[2] https://valor.globo.com/legislacao/noticia/2024/07/01/reforma-preve-mecanismos-para-evitar-litigios-sobre-novos-tributos.ghtml

[3] Também à DRJ, evidentemente.

[4] Onde o problema da uniformização também existirá, haja vista, em princípio, a competência para a Justiça Estadual julgar o IBS e a Justiça Federal a CBS, o que também tem sido objeto de muito debate. Aqui, a função uniformizadora ficaria sob responsabilidade dos Tribunais Superiores (STJ e STF), mas não sem antes perdurar decisões divergentes entre as citadas Justiças Estadual e Federal.

O post Vinculação do Carf na reforma tributária: perigo iminente e eminente apareceu primeiro em Consultor Jurídico.

As reviravoltas do regime de ex-tarifário

O regime de Ex-tarifário é, quiçá, o mais utilizado incentivo de importação. Trata-se de instrumento de redução do imposto de importação para bens de capital (BK) e bens de informática (BIT) em que haja comprovadamente a ausência de produção nacional de similar.

De acordo com informações do próprio governo federal, a importância do regime de Ex-tarifário para a economia nacional – que não à toa é tema alocado sob a agenda de competitividade industrial – se concentra em três pontos fundamentais: (1) viabiliza aumento de investimentos em BK e BIT que não possuam produção equivalente no Brasil; (2) possibilita aumento da inovação por parte de empresas de diferentes segmentos, com a incorporação de novas tecnologias inexistentes no Brasil, e com reflexos na produtividade e competitividade do setor produtivo; e (3) produz um efeito multiplicador de emprego e renda sobre segmentos diferenciados da economia nacional [1].

Origem e aspectos normativos

A base legal para essas reduções advém, inicialmente, da Lei nº 3.244/57, que traz em seu artigo 4º dispositivo autorização para isenção ou redução do imposto de importação quando constatado que “não houver produção nacional de matéria-prima e de qualquer produto de base, ou a produção nacional desses bens for insuficiente para atender ao consumo interno”.

Posteriormente, com o advento do Mercosul e da concentração das competências para tratar desses temas em nível intergovernamental, coube ao Conselho do Mercado Comum (CMC) tratar da matéria. Inicialmente, convencionou-se que esse tipo de incentivo seria aplicado unilateralmente por cada um dos membros do bloco, mas por tempo limitado. Todavia, o que se verifica é uma contínua renovação das autorizações, que, para o Brasil, são atualmente válidas até 31 de dezembro de 2028, conforme consta da Decisão CMC nº 08/2021.

Com base nesta premissa, os membros do Mercosul estabelecem, por meio de normas internas, seus próprios requisitos e processos de concessão do regime de Ex-tarifário.

No caso do Brasil, verifica-se que a última década foi marcada por mudanças bruscas no direcionamento do instrumento, em que o tema foi regulamentado, sucessivamente, pelas seguintes normas: Resolução Camex nº 66/2014, Portaria ME nº 309/2019 e Portaria ME nº 324/2019 e Resolução Gecex nº 515/2023.

Antes de adentrar nos critérios e processos de concessão designados pelas normas supracitadas e de tecer considerações sobre estes, cabe ressaltar que o Ex-tarifário, na condição de benefício ou incentivo fiscal [2] – não nos importa diferenciar ou discutir qual das expressões seria mais acertada – é uma liberalidade governamental. Portanto, natural que a cada mudança de gestão haja ajustes e modificações que reflitam as políticas e premissas que se pretende ver aplicadas.

Isto, a nosso ver, não é apenas legítimo, mas esperado. O problema reside nos momentos em que a legalidade e a segurança jurídica são sacrificadas para que tais objetivos políticos sejam atingidos de forma açodada e sem fundamento legal. Assim, a análise e as provocações aqui propostas não dizem respeito ao que deve ser objeto do regime e quais os critérios corretos ou equivocados que são ou foram aplicados, mas à necessidade de transparência e legalidade, independente do conteúdo material dessas regras e das diretrizes políticas que as amparam.

Velhas polêmicas

Com as diversas atualizações do marco normativo do regime de Ex-tarifário, também foram modificados os critérios de concessão e as etapas do processo de análise.

Em que pese o rito sempre ter sido amparado, em linhas gerais, pela exigência de pleito formal ao Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior (MDIC), em análise prévia para averiguar a existência de todos os elementos técnicos e descritivos do produto, em consulta pública que permitisse à indústria nacional se manifestar sobre a existência de similar nacional e na formulação de parecer técnico com recomendação de deferimento ou indeferimento do pleito para decisão da Câmara de Comércio Exterior (Camex), observa-se que algumas mudanças pontuais tiveram grande impacto da aplicação do regime ao longo dos últimos anos.

A primeira – e grande – polêmica se deu com a Portaria ME nº 309/2019 que removeu a Receita Federal do processo de concessão. Isto porque, até então a autoridade fiscal era responsável por se manifestar, em prazo pré-fixado, a respeito da classificação fiscal e da descrição da mercadoria sugeridas pelo pleiteante [3].

Esta etapa, por sua vez, acabava por trazer certa limitação a futuras autuações em sede de revisão aduaneira quando a equipe de fiscais da ponta discordava do tratamento concedido à mercadoria no curso de análise do pleito de Ex-tarifário.

Inclusive, tem-se diversos precedentes judiciais e do Carf de casos em de afastamento de autuações fiscais quando comprovado que o importador teria sido o próprio pleiteante do ex-tarifário e que, portanto, a classificação adotada teria sido validada, tácita ou expressamente, pela RFB em momento prévio [4].

Posteriormente, com a exclusão da RFB do processo de concessão, acabou-se por aumentar o espaço para fiscalização no curso e/ou após o despacho aduaneiro, o que vem favorecendo um número maior de lançamentos e discussões sobre classificação fiscal e descrição de mercadorias, com consequente reflexo na carga tributária da importação.

Ainda que este seja aqui tratado como um problema “antigo”, não se pode negar que suas implicações são ainda muito presentes nos dias atuais, em que se verifica com frequência os desafios que empresas pleiteantes de ex-tarifários enfrentam ao buscar desembaraçar máquinas e equipamentos importados cujas próprias informações serviram para a concessão do benefício – situação que não deveria ocorrer, já que, independentemente da classificação, a redução é concedida para um determinado e específico produto cuja ausência de similar nacional foi devidamente comprovada.

Trata-se de situação problemática e sensível, que talvez merecesse um artigo específico. Todavia, como não há espaço suficiente aqui para tratar da questão com a devida profundidade, vale apenas registrar a ressalva de que a situação acima – e nossa preocupação – diz respeito apenas aos casos em que o importador seja o real pleiteante do Ex-tarifário, não se confundindo com os casos de importadores que apenas usufruem de redução tarifária já em vigor, os chamadas free riders.

Novas polêmicas e desafios

A segunda polêmica que precisa ser endereçada e que possui contornos bem mais recentes diz respeito às regras não escritas que vêm dificultando o processo de obtenção de Ex-tarifários.

Com a mudança de governo e, consequentemente, da direção das políticas públicas e comerciais, houve também ajustes nas regras do regime de Ex-tarifário. Em linhas gerais, buscou-se um modelo mais próximo àquele vigente antes de 2019, afastando-se assim a possibilidade de redução tarifária sob o fundamento de preço ou prazo de entrega quando existente produção nacional.

Essas mudanças, bastante razoáveis e coerentes, foram refletidas na Resolução Gecex nº 512 de 16 de agosto de 2023, que passou a regulamentar o processo. O dilema, contudo, não se deu pelo novo marco jurídico publicado, mas pelas ações políticas que o seguiram.

Primeiramente, verificou-se, entre o final de 2023 e início de 2024, uma enxurrada de revogações de Ex-tarifários até então vigentes. Ainda que todas as revogações tenham sido realizadas por meio de processos formalizados, as decisões da Camex sobre elas se deram de forma coletiva, fazendo com que fossem formalizadas mais de 4.600 revogações em cerca de cinco reuniões [5].

Ora, o que se vê é que a Camex, apesar de ser a autoridade com competência para decidir processual e materialmente sobre a concessão das reduções sob o amparo de relatórios técnicos, vem cegamente ratificando as recomendações recebidas da Secretaria de Desenvolvimento e Competitividade Industrial (SDIC/MDIC).

Não bastasse a preocupante supressão de instância decisória, a situação torna-se ainda mais frágil quando verificado que o alto número de pleitos recebidos e de revogações realizadas e em andamento é administrado por uma equipe que não parece ter muito mais do que uma dezena de técnicos.

Por melhor e mais qualificada que a equipe seja – e de termos motivos concretos para acreditar nisso –, parece humanamente impossível garantir que todas as revogações tenham sido individualmente avaliadas e consideradas em toda a sua complexidade, haja vista o excesso de trabalho e prazos impostos de modo a garantir que o contraditório e a ampla defesa, além da correta aplicação dos critérios do regime, tenham sido exaustivamente cumpridos.

Passada a fase das massivas revogações, a maior parte dos beneficiários anteriormente contemplados com Ex-tarifários e que se sentiu injustiçada diante da real ausência de oferta de produto similar nacional, se viu diante de duas opções: (1) apresentar pedido de reconsideração à Camex; ou (2) entrar com um novo pleito e buscar demonstrar, novamente, que faz jus ao benefício.

Os que optaram pelo pedido de reconsideração foram surpreendidos com respostas genéricas e a afirmação de que as revogações de Ex-tarifários não comportam recurso administrativo já que as decisões do Gecex sobre o tema “não teriam natureza sancionatória” tendo como escudo parecer formulado pela Advocacia Geral da União nesse sentido (Parecer nº 00137/2023/ConJur-MDIC/CGU/AGU).

Em nossa visão, tem-se aqui uma situação bastante temerária. Isso porque a Lei n. 9.784/99 não distingue os tipos de processo ao tratar do direito dos administrados em formular recursos em face de razões de legalidade e de mérito. Além disso, se considerado que os membros da Camex validaram as revogações em lista e sequer avaliaram os processos individuais, tem-se, na prática, uma decisão formulada por autoridade única e, em certo nível, incompetente.

Em adição, sequer poderia ser utilizado argumento de que o Ex-tarifário não teria “dono” como razão para afastar a possibilidade de recurso, uma vez que a referida lei do processo administrativo garante o direito não só ao titular do direito, mas também àqueles cujos direitos ou interesses forem indiretamente afetados pela decisão recorrida [6].

Existem alternativas?

A judicialização do tema, ainda que cabível, não parece ser encarada pela maioria das empresas como uma saída inteligente ou adequada, em parte pela morosidade e pela dificuldade de discussão técnica aprofundada, e em outra pelo fato de que, em se tratando de benefício fiscal, ainda que o Judiciário garantisse o direito ao processamento do recurso, não há muito o que ser feito quanto ao conteúdo discricionário da decisão.

Diante disso, as empresas se veem diante de uma última alternativa: recomeçar do zero o pleito de concessão do regime.

Ocorre que as surpresas não terminam por aqui e aqueles que recentemente protocolaram pedidos de ex-tarifário sabem do que estamos falando. A despeito da existência de norma publicada e formal que trata dos requisitos e critérios necessários, a SDIC vem impondo critérios adicionais à análise e ao recebimento de pleitos.

Antes mesmo de aceitar os pleitos recebidos e os encaminhar para a consulta pública, a autoridade passou a dar novo tratamento ao projeto de investimento, requisito contido no inciso III do art. 4º da Resolução Camex nº 512/2023.

Segundo relatos de diversos setores e informações oficiais obtidas, as novas exigências visam impedir os pleitos de produtos destinados à revenda, independentemente do tipo de equipamento e da existência de exigências regulatórias de manuseio, certificação e assistência técnica. Com efeito, criou-se uma limitação não escrita de que o pleiteante deve, obrigatoriamente, ser o usuário final do produto, sob pena de arquivamento do pleito.

Além das óbvias preocupações de legalidade e segurança jurídica, o que chama a atenção é a discriminação que será instaurada a partir de agora. Isto porque, seguindo a regra de o Ex-tarifário não tem “dono” e pode ser utilizado por qualquer importador cujo produto se enquadre na classificação e descrição em vigor, estamos em vias de criar regras conflitantes e completamente ilegais.

Pode haver discriminação entre revendedor e usuário? Nenhum revendedor pode ser pleiteante de ex-tarifário, mas caso este venha a ser pleiteado por usuário final e seja deferido, não deveria poder ser livremente utilizado por todo e qualquer interessado? Revendedor não é pleiteante mas pode ser importador? Haverá controle de uso e destino de importações sob ex-tarifário? Essas restrições não afetam a liberdade empresarial das empresas e suas escolhas em termos operacionais? Essa são algumas das inúmeras dúvidas e provocações que derivam da situação atual…

Considerações finais

Toda matéria que envolve benefícios fiscais, principalmente na importação, traz consigo complexidades e pressões que não facilmente dirimíveis. Portanto, não se pode querer simplificar e condenar as políticas atuais como se não tivessem, ao menos em parte, interesses e responsabilidades legítimas por trás.

A nosso ver, o ponto central reside em garantir que, independentemente do rumo adotado para as políticas de Ex-tarifário, a legalidade e a transparência não sejam maculadas.

Por ser um regime discricionário, cabe ao governo federal fazer as regras, sejam elas liberais ou protecionistas, destinadas a inúmeros usuários ou apenas algumas dezenas. Não importa. A questão não é política, é jurídica.

Sabemos que unanimidade não é um objetivo palpável. Qualquer que seja a regra, irá desagradar uma parcela do mercado. Ainda assim, existe unanimidade na exigência de que, satisfeitos ou insatisfeitos, todos os administrados sejam publicamente informados sobre as regras a que estão sujeitos e que tenham seu direito limitado tão somente nos casos taxativamente previstos em lei. Do contrário, não é um segmento ou outro do mercado que sofre, mas o próprio Estado Democrático de Direito.


[1] MDIC. Portal do Ex-tarifário. Disponível em <https://www.gov.br/mdic/pt-br/assuntos/competitividade-industrial/ex-tarifario>. Acesso em 15 jul 2024.

[2] Sobre os aspectos conceituais referentes ao tema “benefício fiscal”, sugere-se a leitura do artigo do colega Rosaldo Trevisan publicado nesta coluna em 18/6/2024, disponível aqui.

[3] Vide art. 4º da Resolução Camex nº 66/2014.

[4] A título de exemplo, cita-se o Acórdão Carf nº 3401-008.402 de 22/10/2020.

[5] Conforme consta nas atas publicadas no site da Camex referentes às deliberações das reuniões 205, 206, 210, 211 e 212 do Gecex, corridas entre julho de 2023 e março de 2024.

[6] Arts. 56 e 58, II da Lei nº 9.784/99.

O post As reviravoltas do regime de ex-tarifário apareceu primeiro em Consultor Jurídico.

Projeto estabelece prisão após segunda instância e fim da audiência de custódia

O deputado federal General Pazuello (PL-RJ) apresentou projeto de lei (PL 619/2024) que estabelece a prisão após condenação em segunda instância e acaba com a audiência de custódia. Atualmente, a Constituição Federal e o Código de Processo Penal só admitem a prisão após o trânsito em julgado da sentença condenatória, salvo flagrante delito.

A proposta também dispensa a autoridade de informar à família, em um primeiro momento, ou outra pessoa indicada pelo preso sobre a prisão. Apenas o Ministério Público e advogado (ou Defensoria Pública) deverão ser avisados. Só após 24 horas da prisão, a família será contatada.

Segundo o deputado General Pazuello (PL-RJ), autor do projeto, o objetivo é eliminar lacunas interpretativas que possam gerar nulidades desnecessárias nos processos criminais. “A insegurança jurídica resultante de interpretações divergentes pode conduzir a decisões contraditórias e à soltura de indivíduos perigosos para a ordem social”, disse.

Decisão do STF

Em fevereiro de 2016, o Supremo Tribunal Federal mudou de entendimento e passou a permitir a execução da pena após condenação em segundo grau. A decisão foi muito elogiada pelo ex-juiz Sergio Moro e pelos demais integrantes da força-tarefa da operação “lava jato”, mas severamente criticada por constitucionalistas e criminalistas.

Em 2019, porém, a corte resgatou o entendimento firmado em 2009 e declarou a constitucionalidade do artigo 283 do Código de Processo Penal, proibindo a execução provisória da pena.

Logo em seguida surgiram propostas para alterar a Constituição ou o CPP para voltar a permitir a prisão após condenação em segundo grau, como a apresentada agora por Pazuello.

São ideias que estão nas mesas de debate há algum tempo. Mas só poderão sair do papel se for feita uma nova Constituição. Na atual, o inciso LVII do artigo 5º diz que ninguém pode ser considerado culpado antes do trânsito em julgado de sentença penal condenatória. É o princípio da presunção de inocência, que não pode ser relativizado por nenhuma lei, afirmaram constitucionalistas consultados pela ConJur.

Prisão preventiva

A proposta também permite que seja decretada prisão preventiva para evitar prática de novas infrações, diferente do que estabelece o CPP atualmente. O projeto revoga a necessidade de justificar a prisão preventiva e a possibilidade de ela ser revogada.

Atualmente, esse tipo de prisão é prevista em caso de crimes dolosos punidos com pena de mais de quatro anos de cárcere.

A proposta amplia a possibilidade de preventiva para casos em que houver indícios de o acusado praticar infrações penais constantemente. Além disso, também serão objeto de prisão preventiva crimes com violência, grave ameaça, porte ilegal de arma, racismo, tortura, tráfico de drogas, terrorismo, quadrilha, crimes hediondos ou cometidos contra o Estado Democrático de Direito.

A regra vale inclusive para a presa gestante, mãe ou responsável por criança ou pessoa com deficiência. A lei atual garante prisão domiciliar para essas mulheres.

Revogações

O texto revoga as disposições sobre o juiz das garantias, função prevista no CPP para salvaguardar os direitos individuais dos investigados e a legalidade da investigação criminal durante o inquérito policial.

O projeto também revoga o acordo de não persecução penal, ajuste jurídico antes do processo fechado entre o Ministério Público e o investigado, acompanhado por seu defensor. Nele, as partes negociam cláusulas a serem cumpridas pelo acusado, que, ao final, é favorecido pela extinção da pena.

Também é revogada a cadeia de custódia  conjunto de todos os procedimentos utilizados para manter e documentar a história cronológica do vestígio coletado em locais ou em vítimas de crimes, para rastrear sua posse e manuseio a partir de seu reconhecimento até o descarte. Com informações da Agência Câmara.

O post Projeto estabelece prisão após segunda instância e fim da audiência de custódia apareceu primeiro em Consultor Jurídico.

CGU diz que não irá criar novo índice de corrupção, mas levantar dados já existentes

A Controladoria-Geral da União publicou na segunda-feira (8/7) edital que prevê a contratação de estudo para mapear e analisar indicadores envolvendo corrupção, integridade pública, boa governança e transparência pública.

Na segunda, a revista eletrônico Consultor Jurídico divulgou que o objetivo do órgão era criar seu próprio índice sobre corrupção. A CGU, no entanto, informou que o edital tem como propósito contratar estudo para mapear e analisar indicadores já existentes.

“Este trabalho contribuirá para a missão da CGU de formular e difundir diretrizes para a implementação de políticas e programas de integridade e compliance em instituições brasileiras. Espera-se que tal estudo auxilie a CGU na formulação e avaliação de tais programas e políticas”, disse o órgão em nota.

“O processo de contratação faz parte de um acordo de cooperação com a Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco), seguindo as diretrizes estabelecidas pelo organismo internacional”, concluiu a CGU.

“Ranking”

A pesquisa encomendada pela CGU deverá ficar pronta em 90 dias. O resultado tende a confrontar o Índice de Percepção da Corrupção (IPC), divulgado pela organização privada Transparência Internacional (TI).

Seis meses atrás, houve uma polêmica entre CGU e Transparência Internacional quando foi revelado o IPC de 2023. O indicador apontou que o Brasil caiu dez posições no ranking global da corrupção em relação a 2022. Integrantes da TI aproveitaram o resultado para sugerir que governo federal atual estaria “falhando” no controle da corrupção.

A entidade usou como argumento uma suposta interferência indevida do governo em indicações para vagas no Supremo Tribunal Federal e na Procuradoria-Geral da República. E aproveitou ainda para criticar decisões do STF que limitaram acordos de leniência promovidos no âmbito da finada “lava jato”.

Mais tarde ficou claro que a interpretação não tinha relação com a realidade e a Transparência Internacional apenas usava o IPC para manipular a opinião pública. A entidade é alvo de uma investigação sobre as relações de seus dirigentes com integrantes da “lava jato” em um possível conluio para o desvio e a apropriação de recursos dos acordos de leniência.

Hoje se sabe que o IPC é um índice precário e incapaz de refletir o impacto de políticas públicas no controle da corrupção. Em essência, o IPC é apenas uma pesquisa de opinião com um grupo seleto de empresários. Trata-se de uma metodologia tendenciosa e de baixa credibilidade, principalmente em cenários políticos instáveis.

Não bastassem esses problemas, a pesquisa ainda usa dados velhos. Logo, seria impossível o IPC refletir acontecimentos recentes, como indicações e decisões do STF. Ou seja, a interpretação do resultado do IPC oferecida pela Transparência Internacional foi manipulada para defender as opiniões de seus integrantes, sem haver base fática para tal.

O ministro da CGU, Vinícius de Carvalho, publicou no início do ano um artigo denunciando essas falhas e apontando outras limitações do IPC. “Especialistas documentam, há mais de década, problemas com essa forma de medir a temperatura da corrupção. No mínimo, é preciso muito cuidado ao comparar notas do IPC”, afirmou ele.

O post CGU diz que não irá criar novo índice de corrupção, mas levantar dados já existentes apareceu primeiro em Consultor Jurídico.

Ação coletiva de ESG é avanço para programas de compliance

As ações coletivas de ESG (“governança ambiental, social e corporativa”, na sigla em inglês) entre grandes empresas de um mesmo setor representam um avanço para os programas de compliance, ao reforçar o comprometimento com os direitos humanos e o combate à corrupção, além de garantir maior competitividade no mercado global.

Essa avaliação é do advogado José Marcelo Martins Proença, diretor de compliance da JBS, além de professor da Universidade de São Paulo (USP) e da Fundação Getulio Vargas (FGV). Ele tratou do assunto em entrevista à série Grandes Temas, Grandes Nomes do Direito. Nela, a revista eletrônica Consultor Jurídico conversa com alguns dos nomes mais importantes do Direito, da política e da economia sobre os temas mais relevantes da atualidade.

“Costumo defender (a ação coletiva) como um segundo degrau para um programa de compliance. A partir do momento em que tem seu programa de integridade, você verifica que é mais importante ter todo o setor muito bem organizado e comprometido com regras de respeito a direitos humanos, a Direito Ambiental, a anticorrupção. Então você coloca todo um setor dentro de um sistema extremamente interessante”, afirmou Proença.

A JBS integra a Ação Coletiva Anticorrupção da Agroindústria, coordenada pela Rede Brasil do Pacto Global das Nações Unidas para propor o enfrentamento a casos de corrupção e o reforço dos compromissos sociais e ambientais. No mês passado, a iniciativa foi premiada com o Outstanding Achievement Award (“Prêmio de Realização Extraordinária”, em tradução livre), do Instituto de Governança de Basel, na Suíça.

“Foi uma surpresa imensa, adoramos ter recebido o prêmio e vamos caminhar muito trabalhando com essa ação coletiva”, comentou o advogado.

Recuperação de empresas

Doutor em Direito Comercial, Proença tem também atuação consolidada em recuperação judicial de empresas. Sobre o tema, ele afirma que a legislação atual não carece de grandes alterações, mas de uma melhor implementação dos objetivos de reforma normativa previstos na Lei 11.101, de 2005.

“Não vejo relevância para grandes alterações na nossa lei de recuperação de empresas atualmente, inclusive essa que está aí em discussão. É aquela lei de 2005 que precisa ser bem implementada pelo brasileiro. A lei, em 2005, falava: proteção de credores, atuação ativa dos credores em um plano de recuperação, supervalorização, otimização dos valores do falido, dos ativos do falido, para atender melhor aos anseios dos credores.”

Em janeiro, o governo de Luiz Inácio Lula da Silva (PT) enviou ao Congresso, em regime de urgência constitucional, um projeto de lei para alterar o processo falimentar previsto na Lei 11.101/2005. Ele foi aprovado na Câmara dos Deputados em março e, desde então, aguarda tramitação no Senado Federal, a partir do PL 3/2024.

“A gente verifica que, nos planos de recuperação judicial de empresas superdistintas, a petição inicial de uma recuperação judicial e o plano são idênticos, ou seja, não têm o menor sentido para a nossa lei”, disse o advogado.

“Nós temos o artigo 50, que estabelece a necessidade de constar em um plano de recuperação como se recupera aquele agente econômico, para ele atingir a sua função social. Se todos os planos acabam dizendo a mesma coisa, que é só reduzir o valor do débito e dar um prazo imenso para o pagamento do restante, não está se tratando do motivo que gerou aquela crise, para que, afastada aquela crise, a empresa seja recuperável. Sem isso, não acho que a gente tenha qualquer implementação boa da nossa legislação.”

O post Ação coletiva de ESG é avanço para programas de <i>compliance</i>, diz advogado apareceu primeiro em Consultor Jurídico.

Nova lei padroniza correção de dívidas civis e abre portas para juros zero

Quando não forem previstos contratualmente, os juros referentes a uma obrigação serão calculados pela aplicação da Taxa Selic, deduzido do IPCA (índice de atualização monetária). Se esse valor for negativo, os juros serão considerados zerados para o período.

Essa é a nova fórmula para correção de dívidas civis, prevista pela Lei 14.905/2024. Ela alterou o artigo 406 do Código Civil para resolver uma questão que é alvo de disputa no Judiciário há pelo menos uma década.

Método para calcular os juros só vale quando não forem previstos contratualmente – Freepik

 

A lei foi sancionada pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) em 28 de junho. A alteração partiu do Projeto de Lei 6.233/2023, do ministro da Fazenda, Fernando Haddad, e do então ministro da Justiça e Segurança Pública, Flávio Dino.

A ideia inicial era mais complexa, mas acabou simplificada pelo Congresso Nacional. Até então, o artigo 406 do Código Civil se limitava a dizer que os juros seriam calculados pela taxa que estiver em vigor para a mora do pagamento de impostos devidos à Fazenda Nacional.

Não havia dúvidas de que essa taxa é a Selic. Ainda assim, nunca houve consenso se seria esse o melhor método para atualização das dívidas civis. O tema está em discussão na Corte Especial do Superior Tribunal de Justiça.

Os críticos desse método entendem que vincular os juros à Selic é um problema porque ela é um instrumento de política monetária para o combate à inflação. Isso faz com que esteja sujeita a uma “variação anárquica” que impacta credor e devedor aleatoriamente.

Fato é que tribunais por todo o país simplesmente não utilizam esse método. A alternativa mais aceita é a de impor juros de 1% ao mês e correção monetária por algum dos índices de medição da inflação. A comissão de juristas que propôs esse ano um projeto para atualização do Código Civil adotou essa saída.

Nesse ponto, a Lei 14.905/2024 oferece um alento, ao uniformizar a questão. Um fator de preocupação, no entanto, é ela abrir as portas para a ocorrência de juros zero.

Juros zero

Se a função dos juros é remunerar o credor pelo tempo em que ele indevidamente esteve privado de determinado valor, admitir que ele seja zerado é um grande problema. Isso aconteceria toda vez que a variação da Selic for menor que a do IPCA.

A Selic é definida pelo Comitê de Política Monetária (Copom) do Banco Central e serve para controlar a inflação. Se ela sobe, o crédito fica mais caro e há um desestímulo ao consumo, com o objetivo de controlar a pressão inflacionária.

Essa tem sido historicamente a situação brasileira. Para a Selic baixar muito, seria preciso um cenário para estimular o consumo — por exemplo, por conta da baixa inflação ou até mesmo da deflação. Isso já aconteceu recentemente.

De maio a maio, entre 2020 e 2021, o Copom manteve a Selic bem baixa, por conta da crise sanitária decorrente da Covid-19. A variação foi de 2,13% no período. Já o IPCA, calculado pelo IBGE, somou 7,65%.

Isso significa que, pelo atual método de cálculo de juros previsto no Código Civil, uma dívida de maio de 2020 passaria o próximo ano inteiro sem a incidência de quaisquer juros.

Esse método vale para todas as situações contratuais em que não há a previsão de um índice específico para juros. E afeta principalmente os casos de responsabilidade extracontratual — como aquelas de dano moral.

Se uma pessoa sofre um acidente de trânsito e o responsável é condenado a pagar indenização, por exemplo, os juros serão calculados conforme diz o artigo 406 do Código Civil.

Dever compensa

Essa é exatamente a situação em julgamento na Corte Especial. O recurso trata de uma mulher que sofreu um acidente de trânsito em março de 2013. A empresa de ônibus foi condenada a pagar indenização de R$ 20 mil e ainda não cumpriu a obrigação.

Esse valor será acrescido de juros, calculados a partir do evento danoso (março de 2013) e de correção monetária, a partir da sentença (outubro de 2016).

O advogado Leonardo Amarante, que representa a mulher na ação, está há anos defendendo o afastamento da Selic para a correção do valor. Para ele, o critério estabelecido pela Lei 14.905/2024 não é bom.

“O legislador de 2024 está permitindo que o titular de um direito, após longo período de entraves judiciais para fazer valer sua pretensão, fique no chamado ‘zero a zero’, em que não perde capital, mas também não ganha, muito embora tenha ficado anos sem dele dispor.”

Ele aponta inconstitucionalidade da norma, por violar o princípio da justa indenização. “O grande devedor é estimulado a se manter inadimplente, levando à conjuntura de maciço descumprimento de obrigações no país.”

Luiz Fernando Pereira, que atua pelo Conselho Federal da OAB como amicus curiae (amigo da corte) na ação no STJ, também classificou o novo critério do artigo 406 do Código Civil como “muito ruim” por vincular a penalidade do devedor à situação monetária do país.

“Juro é sanção decorrente do atraso no pagamento. Em todos os lugares, esse atraso gera ônus para quem está devendo. No Brasil, embora no primeiro momento a Selic esteja alta, quando a economia der bons sinais e ela baixar, teríamos um cenário de eventualmente pena zero para o devedor.”

“É um grande estímulo aos grandes e piores devedores. Nenhum país do mundo autoriza tramitação de processos sem ônus. Para um devedor que tem um processo em andamento, tem que haver a construção de uma política de incentivo ao adimplemento”, avalia.

Ambos os advogados acreditam que o novo método de atualização das dívidas civis só poderá ser aplicado para casos futuros. Ele não incidiria naquele julgamento da Corte Especial do STJ, que ainda aguarda definição de Questão de Ordem para ser finalizado.

Critério razoável

Já Leonardo Roesler, do RMS Advogados, avalia que o cenário de juros zero é possível, mas altamente improvável. E prevê que, se isso um dia acontecer, vai haver judicialização do tema por parte dos credores.

Em sua análise, enquanto a economia brasileira enfrentar desafios relacionados à inflação, vincular os juros à diferença da Selic para com o IPCA é algo bastante razoável, evitando uma sobreposição de correções que poderia onerar indevidamente o devedor.

“A combinação da Selic com o IPCA busca equilibrar dois fatores cruciais: a remuneração adequada do credor pelo atraso no cumprimento da obrigação e a proteção do devedor contra uma cobrança excessiva e desproporcional”, diz.

O advogado ainda explica que a Selic, sendo a taxa básica de juros da economia brasileira, reflete as condições macroeconômicas do país e, portanto, ajusta-se dinamicamente às flutuações econômicas.

“Este aspecto torna-a um índice robusto para a atualização de valores devidos, garantindo que o montante reflita a realidade econômica vigente, o que é essencial para a preservação do valor real do crédito concedido. Ao mesmo tempo, o IPCA, por ser um índice de inflação amplamente reconhecido e utilizado, oferece um ajuste preciso e confiável do poder de compra da moeda.”

REsp 1.795.982

O post Nova lei padroniza correção de dívidas civis e abre portas para juros zero apareceu primeiro em Consultor Jurídico.

Aplicação do princípio da relativização dos elementos informáticos

Recentemente, a 5ª Turma do Superior Tribunal de Justiça (AgRg no Habeas Corpus nº 828.054 — RN — 2023/0189615-0) [1], por unanimidade, decidiu que são inadmissíveis no processo penal as provas obtidas de celular quando não forem adotados procedimentos para assegurar a idoneidade e a integridade dos dados extraídos. Isso ocorre porque, segundo o colegiado, as provas digitais podem ser facilmente alteradas, inclusive de maneira imperceptível, demandando, portanto, mais atenção e cuidado na custódia e no tratamento, sob pena de terem seu grau de confiabilidade diminuído ou até mesmo anulado.

Joel Ilan Paciornik 2024
O ministro Joel Ilan Paciornik – Gustavo Lima/STJ

 

O relator, ministro Joel Ilan Paciornik, pontuou que é “indispensável que todas as fases do processo de obtenção das provas digitais sejam documentadas, cabendo à polícia, além da adequação de metodologias tecnológicas que garantam a integridade dos elementos extraídos, o devido registro das etapas da cadeia de custódia, de modo que sejam asseguradas a autenticidade e a integralidade dos dados”.

Segundo ele, “o material digital de interesse da persecução penal deve ser tratado mediante critérios bem definidos, com indicação de quem foi responsável pelas fases de reconhecimento, coleta, acondicionamento, transporte e processamento, tudo formalizado em laudo produzido por perito, com esclarecimento sobre metodologia empregada e ferramentas eventualmente utilizadas”.

Princípio da relativização dos elementos informáticos

Trata-se da aplicação do princípio da relativização dos elementos informáticos, desenvolvido em 2015 no Curso de Direito Penal Informático [2] pelo professor dr. Spencer Sydow, conhecido não apenas pela criação do ramo do Direito Penal Informático no Brasil, mas também por sua atuação profissional e acadêmica profícua em prol do desenvolvimento dessa ciência.

 

O referido princípio preceitua que os elementos informáticos são inerentemente voláteis, dinâmicos e podem ser facilmente manipulados ou alterados. Dessa forma, considerando-se que o meio digital permite a manipulabilidade ideológica (modificação indevida do conteúdo representado em um elemento informático verdadeiro) e formal (modificação do próprio elemento, independentemente de conter elementos ideologicamente verdadeiros) de seus documentos, o princípio em questão busca garantir que a evidência informática seja tratada com cuidado no processo legal.

Cita-se, como exemplo disso, a criação de logs de transações com criptoativos falsificados para criar transações inexistentes, prints de carteiras digitais com saldos manipulados para enganar investidores ou parceiros comerciais, uso de VPNs e IP spoofing para mascarar a localização e identidade dos usuários, e contratos inteligentes falsos contendo código malicioso para desviar fundos ou manipular resultados. Na medida em que essas possibilidades são identificadas, deve-se, necessariamente, aplicar o princípio da relativização dos elementos informáticos até que as hipóteses de manipulação sejam afastadas.

Trata-se de exemplos que ressaltam a necessidade de se criar rigorosos protocolos de verificação para assegurar a integridade e autenticidade dos elementos probatórios em processos legais. Por esse motivo, Sydow defende que faz-se necessária a criação de um novo paradigma de precaução probatória para que sejam adotados procedimentos pertinentes para salvaguardar a integridade e a autenticidade dos elementos probatórios que estão sendo analisados. Isso se dá porque as bases de investigação e julgamento partem de pressupostos muitas vezes incorretos, não raro incorrendo em análises enviesadas de realidades informáticas, graças à ausência de cuidados elementares nessa esfera [3].

Essa situação se torna ainda mais premente em face do profundo e generalizado desconhecimento de boa parte dos atores processuais (advogados, juízes, promotores, delegados etc.) acerca de diversos elementos informáticos — questão que, no nosso entendimento, é ainda mais crítica ao se tratar de criptoativos e de tecnologia blockchain. Seja por falta de preparo, inexperiência, negligência ou, ainda, simplesmente por falta de conhecimento técnico, percebe-se na prática jurídica atual que questões fundamentais básicas sobre esses temas são tratadas de maneira grosseira, superficial ou simplesmente errônea, situação que compromete gravemente a eficácia do processo penal e, consequentemente, do sistema jurídico nacional.

Não se olvida que a informatização dos meios de vida, a criação imaterial de elementos e a desmaterialização do processo judicial de papel tornaram mais fácil a vida ao mesmo tempo que tornou os negócios mais velozes e mais amplos. Contudo, deve-se lembrar que os métodos informáticos de geração de elementos juridicamente relevantes também trouxeram um lado de questionamento possível dada a ampliação dos mecanismos de manipulação e modificação desses mesmos elementos [4].

Por isso, é de grande relevância que todos os elementos informáticos levado a um procedimento parta do pressuposto da existência de métodos de manipulação e adulteração para que possam ser considerados idôneos. Caso contrário, admitir-se-á o risco de condenações de acusados baseadas em elementos que não foram devidamente analisados, violando-se regras constitucionais basilares.

_____________________________________

[1] Disponível em https://processo.stj.jus.br/processo/julgamento/eletronico/documento/mediado/?documento_tipo=integra&documento_sequencial=242041837&registro_numero=202301896150&peticao_numero=202300906480&publicacao_data=20240429&formato=PDF

[2] https://www.lexml.gov.br/urn/urn:lex:br:rede.virtual.bibliotecas:livro:2020;001178860

[3] SYDOW, Spencer Toth. Curso de Direito Penal Informático – Partes Geral e Especial. São Paulo: Editora JusPodvim, 2023. p. 131

[4] SYDOW, Spencer Toth. Curso de Direito Penal Informático – Partes Geral e Especial. São Paulo: Editora JusPodvim, 2023. p. 139

O post Aplicação do princípio da relativização dos elementos informáticos apareceu primeiro em Consultor Jurídico.

Se não é possível desistir de ADI, por que seria em Reclamação?

De como nasceu a Reclamação Constitucional: a clarividência do ministro 

Vão seria o poder, outorgado ao Supremo Tribunal Federal de julgar em recurso extraordinário as causas decididas por outros tribunais, se lhe não fora possível fazer prevalecer os seus próprios pronunciamentos, acaso desatendidos pelas justiças locais. A criação dum remédio de direito para vindicar o cumprimento fiel das suas sentenças, está na vocação do Supremo Tribunal Federal e na amplitude constitucional e natural de seus poderes. Necessária e legitima é assim a admissão do processo de Reclamação, como o Supremo Tribunal tem feito.

Com essas palavras, no longínquo ano de 1952, o ministro Rocha Lagoa, do STF, sustentava a importância da Reclamação, a partir da clássica teoria dos poderes implícitos, nos casos em que a justiça local deixasse de atender à decisão do Supremo Tribunal Federal.

Desde seu surgimento pretoriano, passando pela inclusão no regimento interno, até sua incorporação no texto da Constituição de 1988, muito já se escreveu sobre esse relevante mecanismo de jurisdição constitucional, destinado à preservação da competência da Corte e, sobretudo, à garantia da autoridade de suas decisões (artigo 102, I, l, CR), em especial de seus provimentos vinculantes (artigo 988, III, CPC).

Trata-se, como já afirmamos nos Comentários à Constituição do Brasil, de uma medida jurisdicional cuja própria evolução ao longo dos últimos anos demonstra haver se tornado uma ação constitucional voltada à proteção da totalidade da ordem constitucional.

Ou seja, atualmente, a Reclamação Constitucional é um instrumento fundamental para garantir própria a eficácia das decisões do guardião da Constituição. Uma espécie de mater actio, isto é, aquela que garante as ações e os recursos constitucionais. Ou melhor: a Reclamação é a ação das ações constitucionais. Afinal, ela tem a função de  guardar a eficácia — também a efetividade! — das demais ações.

Dito de outro modo, a Reclamação não se destina diretamente à tutela de direitos subjetivos do reclamante, mas sim a garantir a própria jurisdição do tribunal, visto que o seu correto e adequado manejo assegura a fiscalização do cumprimento dos provimentos da Suprema Corte.

A Reclamação como a ação de controle que faz o controle do controle

Como se isso não bastasse, não se pode perder de vista que a reclamação também possui uma dimensão relacionada ao controle das decisões exaradas em controle abstrato de constitucionalidade. Veja-se: a reclamação possibilita controle-do-controle. Ou melhor: o controle-sobre-o-resultado-do-controle.

Nesse sentido, o ministro Edson Fachin já explicitou que, desde a Rcl 4.374, o Supremo Tribunal Federal, “ao julgar reclamações, redefiniu o alcance e o sentido de suas próprias decisões apontadas como parâmetros da reclamação”, visto que, sabidamente, “a abertura hermenêutica da jurisdição constitucional exige a utilização da reclamação com todas suas potencialidades instrumentais”.

A Reclamação é disponível? Como poderia, se a ADI não o é?

A questão teórica a ser enfrentada pela dogmática constitucional, nesse contexto, é a seguinte: se a Reclamação é dotada de tão importante papel no exercício da jurisdição constitucional, a ela poderia ser aplicado, sem reservas, o instituto processual da desistência? Ou ainda: seria admissível a disponibilidade da reclamação, cuja renúncia dependeria de simples ato privativo do proponente sucedido de mera homologação pelo juízo competente?

Penso que a resposta é — e tem de ser — negativa, por conta da inevitável expansão do interesse de agir — não mais particular, porém público — após a proposição da reclamação constitucional. Em outras palavras: a Reclamação não pertence ao proponente; ela não tem donos; ela não pertence nem mesmo à Suprema Corte; ela é de interesse público, porque seu conhecimento e julgamento transcende.

Ora, a Reclamação não é uma ação comum ou qualquer (artigo 485, §5º, CPC). Aliás, a restrição à desistência pode ser facilmente encontrada no ordenamento jurídico em outras ações notadamente marcadas por seu caráter público: ação penal incondicionada (artigo 42, CPP) e ação civil pública (artigo 5º, §3º, Lei 7.347/85), por exemplo.

E, a meu ver, esse mesmo raciocínio se estende — naturalmente e por razões óbvias — às ações de controle de constitucionalidade, tanto concentrado quanto difuso. Como se sabe, segundo dispõe a Lei 9.868, uma vez proposta a ação direta, não se admitirá desistência (artigo 5º). Aplica-se o mesmo, por analogia, à arguição de descumprimento de preceito fundamental (ADPF 572, Rel. Min. Edson Fachin); e, ainda, aos recursos extraordinários, após o reconhecimento da repercussão geral (RE 693.456 RG), visto que uma tese há de ser fixada sobre a questão constitucional, “independentemente do interesse subjetivo que esteja em jogo”; ou, ainda, nos incidentes de resolução de demandas repetitivas, por força de lei (artigo 976, §1º, CPC).

Repito: a palavra-chave é transcendência. E esse me parece o ponto central. Se nas ações e recursos envolvendo controle de constitucionalidade não se admite a desistência, então o que dizer da reclamação destinada a verificar a eficácia — leia-se, observância e cumprimento — do controle de constitucionalidade?

Tudo indica, por corolário lógico, que ninguém pode dispor da reclamação pelo mesmo motivo que ninguém pode dispor da ação direta de inconstitucionalidade. Qualquer entendimento contrário incorreria em inevitável paroxismo. Imagine-se, a reclamação — ação que controla o resultado do controle de constitucionalidade — assumiria uma conotação privatista, o que seria inconcebível em uma democracia constitucional, em que a teoria constitucional e a teoria do processo não podem mais ser confundidas com uma espécie da teoria geral do processo, tal qual ocorria antes do fenômeno da constitucionalização do Direito (e do processo!).

Minha conclusão, portanto, caminha na seguinte direção: toda Reclamação com fundamento na garantia da autoridade das decisões da Suprema Corte deve, obrigatoriamente, ser conhecida e processada até seu julgamento final, por conta do interesse público que lhe subjaz, salvo se o relator entender pela negativa de seguimento, na forma regimental.

O caráter eminentemente público da Reclamação e a necessidade de superação da timidez jurisprudencial atual sobre o tema

Quando alguém provoca o Supremo, todos queremos saber o que a Corte pensa a respeito. Isso porque o interesse é público.

Há, entretanto, uma timidez da jurisprudência sobre a matéria: (1) inadmissibilidade da desistência de reclamação cujo mérito já tenha sido decidido (por todas, Rcl 66.885, Rel. Min. Cristiano Zanin; Rcl 66.866, Rel. Min. Carmen Lúcia); (2) inadmissibilidade da desistência de reclamação cujo julgamento já tenha sido iniciado (por todas, Rcl 1.503-QO, Rel. Min. Ricardo Lewandowski; Rcl 60.811, Rel. Min. André Mendonça).

Nada que não possa ser corrigido e adaptado. Em nome do interesse público. É um easy case. Portanto, avancemos. E, com isso, não me refiro a nenhum overruling, nem distinguishing, mas apenas a necessidade de expandir a ratio decidendi que tem orientado a Corte, dando mais um passo na defesa da jurisdição constitucional, tal qual feito em 1952, quando a reclamação foi gerida pelo próprio Tribunal.

E os fundamentos, além de fortes, são precisos. Para isso, trago à colação uma coisa nova no âmbito da interpretação-aplicação do Direito. Falo da hermenêutica da função. Ela está presente no clássico exemplo de Recaséns Siches sobre os “cães na plataforma do trem”. Se uma lei proíbe a entrada de cães na estação, não precisamos colocar uma nota de rodapé ou uma infinidade de parágrafos para dizer que “estão proibidos também ursos e quaisquer animais perigosos”. Tampouco não é necessário que o legislador explicite que, ao proibir cães, não se está a proibir o cão-guia do cego.

E por que é assim? Simples, porque há uma função. E a hermenêutica da função traz a lume o implícito. Desse modo, o velado, o não-dito, exsurge claramente; ele aparece na função. A hermenêutica da função vem desenvolvida indiretamente por  Wittgenstein, , assim como por Lon Fuller e, em especial, por Alasdair MacIntyre, no livro After Virtue. Vejamos seu argumento: das premissas que dispõem, por exemplo, que (a) “o relógio não marca as horas corretamente” e (b) “o fazendeiro teve um índice de produção maior do que todos os outros”; seguem-se, logicamente, as conclusões: (aa) “o relógio é ruim” e (bb) “o fazendeiro é bom”.

Isso ocorre porque, explica MacIntyre, “o conceito de relógio não pode ser definido independentemente do conceito de um bom relógio e o conceito de fazendeiro independentemente do bom fazendeiro”.

Voltando ao exemplo dos cães na plataforma, retira-se da descrição “proibido cães na plataforma” a obviedade de que o cão-guia do cego não está proibido. E que, sim, ursos estão vetados. Isso se deve à existência de uma hermenêutica da função, da coisa, do objeto, da lei. Há uma questão implícita que, se interpretada a contrario sensu, conspurcaria o sentido originário da norma, como ocorreria se afirmássemos que, por estarem proibidos apenas cães, ursos seriam permitidos. Qual sentido teria isso?

Numa palavra: sendo a reclamação uma ação de controle das ações de controle de constitucionalidade, é da sua própria função a indisponibilidade. Afinal, as discussões submetidas ao crivo da jurisdição constitucional sempre ultrapassam a esfera dos meros interesses subjetivos das partes. O que está em jogo, nesse caso, são direitos e garantias constitucionais. Públicos e indisponíveis, pois.

O post Se não é possível desistir de ADI, por que seria em Reclamação? apareceu primeiro em Consultor Jurídico.

Em dez anos, produção de relatórios do Coaf a pedido de MP e delegados cresce 1.300%

Em dez anos, o Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf) aumentou em 1.339,4% o número de relatórios de inteligência financeira (RIFs) produzidos por iniciativa das Polícias Civil e Federal e do Ministério Público.

Dados do Coaf mostram que, em 2014, foram produzidos 1.035 RIFs a partir de comunicações feitas por essas instituições. Em 2023, a produção chegou a 13.863, um recorde.

Advocacia, advogado, sustentação oral, documento
Relatórios fornecidos pelo Coaf servem para abastecer investigação criminal – Pedro França/STJ

 

Isso significa que, no ano passado, o Coaf produziu e entregou aos órgãos de persecução penal 38 relatórios por dia. E sem a necessidade de qualquer controle judicial prévio.

boom de interesse de delegados de polícia e membros do Ministério Público ocorre no momento em que o Poder Judiciário ainda discute os limites para o compartilhamento dessas informações.

Em 2019, o Supremo Tribunal Federal julgou constitucional o compartilhamento, de ofício, de informações sigilosas pelos órgãos de inteligência (Coaf) e fiscalização (Receita Federal) para fins penais, sem autorização judicial prévia.

Ao interpretar as teses do STF, o Superior Tribunal de Justiça inicialmente entendeu que, quando a informação é obtida pelo caminho inverso — por iniciativa do órgão de investigação —, é necessário passar pelo crivo do juiz antes.

Essa interpretação foi derrubada pela 1ª Turma do STF neste ano. O relator do caso, ministro Cristiano Zanin, entendeu que, de ofício ou a pedido do investigador, o Coaf pode compartilhar os relatórios sem autorização judicial prévia. A 2ª Turma e o Plenário da corte não se posicionaram ainda.

O STJ, então, fez uma adequação e, recentemente, avançou na discussão ao estabelecer que esse compartilhamento só é válido se já houver inquérito instaurado — antes disso, na fase da análise de notícia de fato pelo MP ou da verificação preliminar pela polícia, não cabe a medida.

ConJur

 Mapa de calor

As informações que o Coaf fornece à investigação criminal indicam apenas uma coisa: que há em sua base de dados movimentações suspeitas praticadas pelas pessoas ou empresas alvos da investigação.

Movimentações suspeitas não são necessariamente ilícitas: são aquelas que fogem dos padrões ou que ultrapassam determinados limites de valor. Elas são informadas ao Coaf por bancos e setores obrigados por lei — em regra, aqueles mais propensos a serem usados para lavagem de dinheiro.

O relatório do Coaf, portanto, não gera prova. Ele apenas indica a delegados de polícia e membros do MP onde investigar. Em palestra recente, o diretor de supervisão do Coaf, Rafael Ximenes, classificou-os como “mapas de calor”.

MPs e polícias podem solicitar dados porque tanto a Lei de Lavagem de Dinheiro (Lei 9.613/1998) quanto o Estatuto do Coaf (Decreto 9.663/2019) autorizam o intercâmbio de informações de inteligência financeira. Também têm essa prerrogativa a Controladoria-Geral da União (CGU), órgãos do Poder Judiciário e Comissões Parlamentares de Inquérito (CPIs).

Para permitir esse contato, foi criado o Sistema Eletrônico de Intercâmbio (SEI-C), plataforma digital em que essas instituições registram dados sobre pessoas investigadas, ilícitos e modus operandi por elas utilizados.

Ao receber essas comunicações, o Coaf verifica nos dados que possui — aqueles já informados pelos setores obrigados a isso — se existem informações sobre os investigados. Se a resposta é positiva e há coerência entre a suspeita e as movimentações financeiras, um RIF é produzido e encaminhado.

Segundo o Coaf, os crimes que mais geraram produção de relatórios de inteligência financeira em 2023 foram tráfico de drogas, fraudes, corrupção e organização criminosa.

ConJur

 Encomenda ‘de ofício’

O Coaf rejeita o jargão “RIF por encomenda”. Isso porque o relatório de inteligência financeira é produzido apenas se houver correspondência em sua base de dados e acaba compartilhado “de ofício”.

Fato é que a imensa maioria dos RIFs produzidos pelo órgão segue esse modelo. Em 2023, o Coaf produziu 16.411 relatórios, sendo 14.816 (90,2%) decorrentes de comunicações feitas pelo SEI-C.

A maioria esmagadora desses RIFs partiu de iniciativa de delegados das Polícias Civil e Federal: foram 12.013 no ano passado, ou 73,2% do total produzido pelo Coaf.

A Polícia Civil é a que mais utiliza essa ferramenta. Em 2023, enviou incríveis 11.012 comunicações ao Coaf — 29 vezes mais do que em 2014, quando foram apenas 379. E recebeu 7.055 RIFs.

Já os Ministérios Públicos, incluindo a Procuradoria-Geral da República, motivaram 11% dos relatórios concluídos em 2023. Juntos, polícias e MPs representam 84,4% de todos os RIFs do ano passado — 13.863 ao todo.

O crescimento da produção de relatórios foi possível também porque há um aumento exponencial do número de comunicações feitas ao Coaf pelos setores obrigados. Em 2023, foram mais de 7,6 milhões. Há dez anos, não alcançavam nem 1,2 milhão.

Já o número de relatórios aumentou mais de cinco vezes na última década. Em 2023, foram 16.411, contra 3.178 em 2014.

 

 Fishing expedition

Para os advogados de defesa, o fato de delegados e MPs acessarem informações financeiras sigilosas de seus clientes sem passar pelo crivo do Judiciário é um enorme problema. A experiência mostra que os investigados só sabem que seus dados foram compartilhados quando são formalmente indiciados, denunciados ou se tornam alvos de diligências.

Antes disso, os RIFs passam por análises de setores técnicos e geram outras ações investigatórias. Diluídas e incorporadas, as informações financeiras se tornam parte de uma tese acusatória.

Quando essa tese é apresentada, cabe às defesas comprovar, entre outros tópicos, que as movimentações financeiras registradas pelo Coaf não são produtos do crime.

Para o advogado André Coura, sócio e fundador do escritório Coura e Silvério Neto, na prática há a inversão do ônus da prova. O MP apresenta uma acusação e um emaranhado de operações financeiras, e o réu que comprove que não há crime.

Ele classifica esse rito como “um convite à pesca probatória” (fishing expedition) porque a investigação migra dos fatos criminosos, que o Coaf não tem como comprovar, para a figura dos suspeitos, dos quais o órgão pode ter informações.

Além disso, há a captura da cognição do juiz. Quando a licitude do acesso aos dados do Coaf é avaliada pelo magistrado — que, até a implantação do juiz das garantias, é o mesmo que vai julgar o mérito da causa —, ele já absorveu o conteúdo e seus impactos.

“O relatório de inteligência financeira é uma ferramenta poderosa, que mereceria sindicância judicial prévia porque a investigação trabalha essas informações como melhor lhe aprouver, sem nenhum contraditório. Isso vai para o processo, instrui a denúncia e, só mais para frente, haverá controle judicial, mas para tratar do compartilhamento, não do mérito”, disse Coura.

O advogado define o Coaf como “uma verdadeira caixa preta bancária e financeira” à disposição da acusação. “É como dar a chave de acesso de um cofre com informações valiosas para o investigador.”

O caminho do dinheiro

Para a persecução penal, o relatório do Coaf é realmente um enorme aliado, especialmente em um mundo globalizado, com organizações criminosas estruturadas e com o amplo uso da tecnologia para disfarçar suas operações.

Por isso, os RIFs são apenas um ponto de partida. Eles são usados para decidir se vale a pena investigar, se há realmente indícios. E apontam o caminho do dinheiro, um dos critérios mais valiosos para a investigação.

Membro da Associação Nacional dos Delegados de Polícia Federal (ADPF), Márcio Gomes explica que seria um atraso o Coaf se limitar a dizer que existe movimentação atípica de determinada pessoa ou empresa.

“Não é que a polícia vá determinar que se faça algum tipo de relatório de inteligência financeira. O que há é saber se existe movimentação atípica referente a determinada situação. Não se escolhe ao léu algum CPF ou CNPJ para mandar o Coaf fazer uma busca minuciosa. Não é uma prospecção.”

Para o delegado da PF, o tema dos RIFs é pouco compreendido e precisa ser alvo de uma definição jurídica por parte dos tribunais. Ele nada mais é do que uma notícia de movimentação atípica, sem qualquer análise de mérito.

Por meio dessas movimentações, a investigação encontra caminhos para exercer uma das principais estratégias de desarticulação do crime organizado: a asfixia financeira.

“É preciso identificar para onde o dinheiro está vertendo, para que seja possível sequestrar bens e tornar essa atividade pouco interessante. Na medida em que você impede que a organização criminosa consiga seu fim último, que é o lucro pela compra de bens, negócios ou o que seja, você torna o crime uma atividade pouco atrativa.”

O post Em dez anos, produção de relatórios do Coaf a pedido de MP e delegados cresce 1.300% apareceu primeiro em Consultor Jurídico.