A execução de contratos administrativos entre empenhos e precatórios

Este texto tem como fio condutor a seguinte questão: a existência de empenho afasta a necessidade de expedição de precatório nos casos submetidos ao Poder Judiciário ou a tribunais arbitrais? Caso a resposta seja positiva em quais situações isso ocorre? Qual a interpretação do artigo 100, CF, à luz do exposto?

Segurança jurídica é uma das principais funções do ordenamento jurídico. O orçamento é a lei que dá segurança jurídica no âmbito financeiro para as partes envolvidas em contratos administrativos (poder público e empresas), ao assegurar reserva de valor para a realização do pagamento e garantindo a previsibilidade da execução orçamentária. Isso decorre de diferentes modos de programação orçamentária para que as despesas sejam inseridas no orçamento.

Para atender à segurança jurídica no âmbito financeiro é necessário melhor compreender a programação orçamentária destes dois institutos (empenho e precatório), a fim de distinguir situações que gerarão implicações diversas na execução dos valores, interpretando o artigo 100, CF, que regula a execução das obrigações de pagar transitadas em julgado contra o poder público.

Nos contratos em que existe empenho, há reserva de valor no orçamento corrente, isto é, aquele está sendo executado, decorrente de programação orçamentária anterior.

Não havendo empenho, é necessário realizar programação orçamentária para que o valor seja inserido em Lei Orçamentária futura, a fim de que haja previsibilidade financeira para a realização do pagamento e haja segurança jurídica para as partes envolvidas.

Exigir a expedição de precatórios quando há empenho que garanta os recursos públicos necessários para o pagamento do que foi contratado é um bis in idem, que ignora as diferenças de programação orçamentária e os mecanismos financeiros para dar segurança jurídica e previsibilidade às partes envolvidas.

Em síntese: havendo recursos financeiros garantidos no orçamento corrente através do sistema de empenho, é desnecessário realizar nova programação financeira para sua inserção em orçamento futuro, o que ocorre através do sistema de precatórios.

1. A garantia do empenho de despesas nos contratos administrativos

Nos contratos firmados com o poder público é imprescindível que seja reservado no orçamento o valor correspondente aos gastos contratados, o que é realizado por meio de empenho, característico das contratações envolvendo o setor público. Isso decorre da Lei 4.320/64, que estatui normas gerais de Direito Financeiro para elaboração e controle dos orçamentos e balanços da União e dos estados, dos municípios e do Distrito Federal. O artigo 58 não deixa margem para dúvidas.

caput do artigo 60 da Lei 4.320/64 menciona que o empenho deve ser prévio, ou seja, deve ser realizado por ocasião da firmatura do contrato, e não posteriormente, o que reforça seu caráter garantidor das obrigações contraídas.

A lógica subjacente a essas vetustas normas é a de dar garantia aos contratantes de que o poder público reservou recursos suficientes para fazer frente às obrigações contratuais, e, por conseguinte, lhes dar segurança jurídica e previsibilidade financeira. Por meio do empenho de despesas são reservados fundos financeiros no orçamento para pagar o que tiver sido contratado, criando obrigação de pagamento.

Existem três tipos de empenho de despesas: ordinário, por estimativa global.

empenho ordinário é usado para compras de bens ou serviços unitários, cujo contrato se esgota com a singela entrega do bem contratado, como a compra de uma impressora ou de um computador – o preço será determinado e o pagamento ocorrerá na forma contratada, devendo o empenho da despesa refletir o exato montante da transação e as condições das obrigações assumidas.

empenho por estimativa é usual nas contratações de bens ou serviços cujo montante não seja possível determinar no momento da contratação, estimando-se o montante a ser gasto, que será reservado no orçamento e “baixado” na contabilidade pública na medida em que se determina o exato valor a ser pago. Se o efetivo valor gasto for superior, complementa-se o empenho; caso inferior, o saldo deve retornar como disponibilidade aos cofres públicos. É o usual nos órgãos públicos para empenho de despesas como pagamento do consumo de água, de energia elétrica etc. O exato montante consumido só será identificado quando a conta for apresentada, motivo pelo qual, antecipadamente, o empenho é realizado por estimativa. O artigo 60 da Lei 4.320/64 dispõe sobre esse tipo de empenho: “§2º – Será feito por estimativa o empenho cujo montante não se possa determinar”.

Um terceiro tipo é o empenho global de despesas contratuais, quando sujeitas a parcelamento, igualmente previsto no artigo 60 da Lei 4.320/64: “§3º – É permitido o empenho global de despesas contratuais e outras, sujeitas a parcelamento”. Neste caso, o pagamento ocorrerá parceladamente na medida em que o objeto contratado vier a ser entregue. Um exemplo: uma escola pública adquire 900 carteiras para serem entregues parceladamente, 300 em janeiro, 300 em fevereiro e as 300 finais em março, para pagamento contra a entrega de cada lote. O empenho deverá refletir esse parcelamento de forma atrelada ao cronograma de entrega previsto no contrato.

Pode ocorrer que o valor a ser pago passe de um ano para outro, o que nos leva a duas situações distintas: (1) havendo parcelas a serem pagas relativamente a serviços que foram prestados ou a bens entregues em um ano para pagamento no posterior, o saldo será registrado e incluído em restos a pagar, mencionando que se trata de compromisso assumido pelo poder público com aquele contrato; e (2) havendo ainda serviços ou bens a serem entregues ao longo do período, fruto do tipo contratual de longo prazo, como ocorre em obras públicas, é feito novo empenho no exercício seguinte, pelo saldo, conforme estabelecido pelo §1º, do artigo 30, do Decreto 93.872/86.

No caso de contratação de obras públicas com a utilização de empenho por preço global com reajuste, a característica é que ele fixa um preço global para o projeto, mas permite ajustes periódicos com base em índices de inflação ou outros fatores econômicos. Isso ajuda a mitigar os impactos das variações nos custos, como a inflação, ao longo do período de execução do contrato.

O empenho garante a obrigação contratual firmada, porém apenas a liquidação gera direito adquirido ao contratante ao recebimento dos valores, sendo a matéria regida artigo 63 da Lei 4.320/64.

Liquidação, que gera direito adquirido ao contratante, requer a apuração (§1º, artigo 63, Lei 4.320/64): (1) da origem e do objeto do que se deve pagar; (2) da importância exata a ser paga; (3) de apurar a quem se deve pagar a importância, para extinguir a obrigação.

Tal procedimento de apuração da liquidação da despesa terá por base (§2º, artigo 63, Lei 4.320/64): (1) o contrato, ajuste ou acordo respectivo; (2) a nota de empenho (que pode ser dispensada em alguns casos, conforme §1º, artigo 60, Lei 4.320/64), que é o documento que indicará o nome do credor, a especificação e a importância da despesa, bem como a dedução desta do saldo da dotação própria (artigo 61, Lei 4.320/64), não sendo essencial nos contratos, pois apenas reflete o que deve constar do empenho, este sim, imprescindível para a firmatura dos contratos; e (3) os comprovantes da entrega do material ou da prestação efetiva do serviço.

Na prática, a liquidação ocorre por meio de despacho mencionando que o bem foi entregue conforme contratado, o que pode ocorrer de forma simples, por certificação de um único servidor público, ou de forma complexa, mais usual em obras públicas.

O artigo 63 da Lei 4.320/64 expressamente declara que a liquidação gera direito adquirido ao credor. A dicção normativa bem reflete a realidade jurídica aplicável à situação: não se trata mais de um direito a ser exercido pelo contratante, mas de um direito que foi adquirido pelo contratante, que se torna credor do poder público. Com a liquidação o contratante se transforma em credor, e possui direito adquirido ao recebimento do que foi contratado.

O que era uma garantia (empenho = reserva de valor no orçamento), com a liquidação gera direito adquirido ao pagamento (artigos 64 e 65, Lei 4.320/64), o qual, uma vez ocorrendo, extingue a obrigação contratual.

Retorna-se à figura do restos a pagar, considerando a hipótese dos contratos cuja execução transcende o ano civil (janeiro a dezembro).

Se a execução do contrato já tiver sido liquidada, porém não paga, o valor constante do empenho é inscrito na contabilidade pública como restos a pagar processados, isto é, liquidados e não pagos, o que deverá ocorrer logo após a virada do ano. Ocorrendo o pagamento, o empenho da despesa é “baixado” na contabilidade pública e liberado do orçamento, pois os recursos foram utilizados para quitação da obrigação contratual assumida.

Por outro lado, se ainda não tiver ocorrido a liquidação, o saldo do empenho da despesa é inscrito como restos a pagar não processados, e os recursos permanecem bloqueados no orçamento, até que ocorra a liquidação. Quando esta ocorrer, será processado o pagamento, e o empenho da despesa será liberado no orçamento.

Estas duas situações são relevantes nos casos de obras contratadas por meio de empenho global, que financeiramente segue por dois caminhos paralelos: (1) Como se trata de contratação para serviços plurianuaiso montante do empenho global que remanesce de um ano para outro será novamente empenhado no exercício seguinte pelo saldo, conforme estabelecido pelo artigo 103 da Lei 4.320/64 e pelo §1º, do artigo 30, do Decreto 93.872/86; (2) Se houver alguma parcela não paga referente ao exercício findo relativamente àquele contrato empenhado globalmente, ela será inscrita como restos a pagar, processados ou não, e paga conforme mencionado.

O empenho pode vir a ser anulado (artigo 59, Lei 4.320/64) ou cancelado, devendo o contratado ser formalmente comunicado desse fato, a fim de que adote as medidas administrativas e judiciais que entender adequadas ao caso, para resguardo de seus direitos.

O cancelamento do empenho é um ato unilateral da administração pública, mas sujeito ao contraditório e à ampla defesa, e à exposição da motivação e de justificação dos atos proferidos, o que é determinado pelo artigo 21 da Lei 4.657/42 (Lei de Introdução ao Direito Brasileiro) e pelo artigo 50 da Lei 9.785/99 (Lei do Processo Administrativo Federal). De certa forma isso dará ao ato publicidade e permitirá transparência, ensejando também a possibilidade de controle da moralidade.

Existem disposições legais que enquadram o cancelamento de empenho de forma injustificada como uma conduta que gera improbidade administrativa, podendo ser punida com perda da função pública, suspensão dos direitos políticos e pagamento de multa.

Situação semelhante, porém diversa, ocorre quando há anulação do empenho por vício jurídico (forma incorreta, elaboração por autoridade incompetente, valores inexistentes etc.), sendo que, mesmo nesse caso, deve haver o exercício do contraditório e da ampla defesa, a fim de permitir que o ato ocorra com publicidade e transparência, e possibilitar o controle da moralidade administrativa.

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TJ-SP derruba ISS progressivo para sociedades uniprofissionais

O Órgão Especial do Tribunal de Justiça de São Paulo declarou inconstitucional o artigo 13 da Lei 17.719 do município de São Paulo. A norma anulada previa a fixação de alíquota progressiva do Imposto sobre Serviços de Qualquer Natureza (ISS) para sociedades uniprofissionais, com cálculo baseado no número de profissionais habilitados.

tribunal de justiça de são paulo tj-sp

 

 

 

 

 

 

 

 

A decisão se deu nos termos do voto do relator da matéria, desembargador Figueiredo Gonçalves, que entendeu que o dispositivo violava os princípios da isonomia e da capacidade contributiva, previstos nos artigos 5º e 145 da Constituição Federal.

O magistrado explicou que o dispositivo que prevê a incidência da alíquota de ISS com base no número de profissionais e no faturamento das sociedades adota critério que só seria cabível a sociedades empresariais.

A decisão foi provocada por mandado de segurança apresentado por uma empresa que já havia obtido liminar para suspender o recolhimento de ISS por meio de alíquota progressiva.

 

Entendimento do STF

O juízo de primeira instância concedeu liminar aplicando o entendimento do Supremo Tribunal Federal no julgamento do Tema 918, que estabeleceu que é inconstitucional a lei municipal que determina impeditivos à submissão de sociedades profissionais de advogados ao regime de tributação fixa em bases anuais na forma estabelecida por lei nacional.

A prefeitura da capital paulista, então, apresentou recurso e a 15ª Câmara de Direito Público do TJ-SP manteve a decisão, mas sem aplicar o Tema 918. Diante disso, o caso foi levado ao Órgão Especial.

Ao analisar o incidente de arguição de inconstitucionalidade cível, o relator apontou que o caso concreto apresenta distinções que dificultam a aplicação do entendimento do STF no Tema 918, já que não havia, como no processo julgado pelo Supremo, a criação de condições legais que dificultam o ingresso ou permanência das sociedades uniprofissionais no regime especial de tributação fixa.

No caso da lei municipal, segundo o relator, o que existe é “o estabelecimento de faixas discrepantes de presunção de receita bruta para o cálculo do ISS, em violação aos artigos 144, 160, § 1º, 163, inciso II, da Constituição Estadual, e aos artigos 145, § 1º, 146 inciso III, alínea ‘a’, e 150, inciso II, da Constituição Federal”.

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Processo 0003242-64.2023.8.26.0000

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O impacto da tributação no motor econômico do país

O agronegócio brasileiro, essencial para o crescimento econômico e a balança comercial, contribui significativamente para o PIB, representando mais de 24% desse indicador. O setor é impulsionado por inovações tecnológicas e expansão territorial, apesar das adversidades climáticas e econômicas. Ele possui um efeito multiplicador, fortalecendo setores conectados e a economia tanto interna quanto global.


Wenderson Araujo/Trilux/CNA

 

Os incentivos fiscais e subsídios são cruciais, mas adicionam complexidade ao regime tributário, exigindo vigilância constante dos operadores do Direito. Tributariamente, o agro lida com tributos federais importantes, como IRPJ e CSLL, além de contribuições como PIS/Pasep e Cofins. Os estados utilizam benefícios fiscais relacionados ao ICMS para atrair investimentos, enquanto os municípios administram o ISS e o ITR, incentivando práticas sustentáveis.

A complexidade aumenta com as frequentes mudanças na legislação que regula esses incentivos, o que impõe uma necessidade de compreensão aprofundada das normas para orientação eficaz. A reforma tributária proposta, visando substituir vários tributos por um Imposto sobre Bens e Serviços (IBS), promete simplificar o sistema, mas traz desafios como a possível elevação da carga tributária devido à uniformização de alíquotas e incertezas na transição.

O cenário para 2024 sugere que variações climáticas e um ambiente macroeconômico global volátil poderão impactar a demanda por commodities agrícolas e a rentabilidade do setor. Além disso, o avanço tecnológico e a digitalização aumentam a necessidade de os profissionais de Direito Tributário e consultores agrícolas se manterem atualizados para navegar nesse ambiente dinâmico e competitivo.

Dinâmicas de mercado e transbordamentos setoriais

O agro está intrinsecamente ligado a vários setores, como insumos agrícolas, máquinas agrícolas e serviços logísticos, com demanda influenciada por condições de mercado e fatores econômicos internos e externos. As variações na produção agrícola podem afetar significativamente a economia local, desde emprego até o PIB de regiões dependentes da agricultura.

As flutuações nos preços internacionais das commodities e as barreiras comerciais podem alterar profundamente a rentabilidade do setor. Ademais, variações nos mercados agrícolas podem gerar incertezas que afetam as políticas monetárias e fiscais, influenciando desde a inflação até as receitas de exportação.

O setor de agroindústria depende da oferta de matérias-primas para definir preços dos alimentos e estratégias de exportação. A demanda crescente por equipamentos agrícolas modernos é impulsionada por incentivos fiscais e créditos para modernização.

No setor de serviços, há uma conexão profunda com o agronegócio, com produtos financeiros especializados e seguros agrícolas respondendo à necessidade de mitigação de riscos. A eficiência logística, crítica para a competitividade do agro, é influenciada por políticas tributárias que afetam os custos logísticos.

 

Regime tributário do agro: entre incentivos e obrigações

O setor agropecuário se beneficia de diversos incentivos fiscais, como abatimentos, créditos e reduções tributárias, que visam fomentar o uso de tecnologias sustentáveis e expansão produtiva. Os créditos de ICMS para a compra de insumos essenciais, como fertilizantes e sementes, permitem que os produtores recuperem parte dos impostos pagos, incentivando a sustentabilidade e a inovação.

Subsídios diretos estabilizam os preços internos e garantem renda aos agricultores em anos de produção baixa ou preços internacionais desfavoráveis, apoiando a estabilidade econômica regional e a segurança alimentar. Além disso, regimes especiais de ICMS facilitam a comercialização e exportação de produtos agrícolas, enquanto o Programa de Subvenção ao Prêmio do Seguro Rural (PSR) oferece suporte financeiro para seguros contra perdas climáticas.

Medidas adicionais, como isenções de PIS/Cofins na aquisição de insumos e o Regime Especial de Incentivos para o Desenvolvimento da Infraestrutura (Reidi), diminuem os custos de produção e melhoram a competitividade internacional. Contudo, a aplicação desses incentivos pode variar significativamente entre regiões e tipos de produção, e a frequente alteração das leis tributárias requer vigilância e compreensão profundas por parte dos advogados para oferecer orientação precisa.

 

Impacto da reforma no agro: detalhamento da PEC 45/2019

A PEC 45/2019, que propõe a substituição de cinco tributos por um único Imposto sobre Bens e Serviços (IBS), busca simplificar o sistema tributário brasileiro, aumentando sua transparência. Esse novo regime promete reduzir a complexidade administrativa para os produtores, permitindo uma maior alocação de recursos para investimentos. Contudo, a neutralidade fiscal do IBS pode aumentar a carga tributária efetiva ao remover incentivos específicos anteriormente disponíveis, impactando a competitividade do agronegócio.

Além disso, a reforma pode afetar o financiamento para infraestrutura rural devido a uma distribuição mais equânime das receitas do IBS entre os entes federativos, exigindo adaptações nas políticas de desenvolvimento regional. A transição para o IBS demandará uma adaptação substancial das empresas agrícolas, possivelmente aumentando a carga tributária sobre insumos e produtos com tratamento fiscal anteriormente favorecido e criando um período de incerteza fiscal que pode influenciar decisões de longo prazo.

 

Tributação e comercialização no agro: um estudo detalhado

A receita é primordialmente derivada da comercialização de commodities como soja, milho, café e carne, tanto no mercado interno quanto externo. Flutuações de preços dessas commodities globalmente podem impactar diretamente a receita e, consequentemente, as contribuições tributárias do setor. Impostos federais são vitais para financiar políticas públicas, enquanto o ICMS se destaca como uma importante fonte de receita estadual, crucial nas operações de venda de produtos agrícolas.

Os incentivos fiscais ao agro, incluindo isenções e reduções de ICMS na aquisição de insumos, impactam diretamente a receita tributária, sendo essenciais para a competitividade do setor, mas necessitam de equilíbrio com as demandas fiscais nacionais.

Grandes empresas do setor possuem capacidade significativa de influenciar mercados e políticas, necessitando de estruturas robustas de compliance e gestão fiscal avançada para otimizar obrigações fiscais e gerenciar riscos. Empresas médias, ágeis e adaptáveis, enfrentam desafios para acessar créditos tributários e incentivos essenciais para inovação e expansão.

Para pequenas empresas e produtores rurais, o cenário tributário pode ser oneroso, com simplificações como o Simples Nacional sendo cruciais para sua viabilidade. Todas as empresas do setor precisam adaptar-se continuamente às mudanças nas políticas fiscais, sendo a reforma tributária proposta um potencial nivelador do campo de jogo ao simplificar e prever o sistema tributário.

A gestão tributária enfrenta o desafio de conciliar incentivos fiscais com a sustentabilidade das receitas públicas, com oportunidades crescentes para usar tecnologias avançadas na administração de tributos para aumentar a transparência e reduzir a evasão fiscal.

Já as diferenças regionais no agro, com distintos padrões de cultivo e produção influenciados por fatores naturais e políticas regionais, resultam em variação significativa na tributação e arrecadação de impostos como ICMS e ISS. Estratégias fiscais estaduais e municipais variadas incentivam o desenvolvimento agrícola regionalmente, com benefícios fiscais e programas de apoio que alteram o ambiente tributário.

A variação das políticas fiscais impacta profundamente a distribuição geográfica das atividades agrícolas, influenciando decisões sobre localização e expansão de operações. A complexidade e a variabilidade da tributação estadual apresentam desafios significativos de conformidade para empresas do setor, exigindo que advogados tributários tenham conhecimento atualizado e aprofundado das legislações fiscais de múltiplos estados para prestar aconselhamento eficaz e evitar litígios fiscais.

 

Desafios e perspectivas futuras para o agro brasileiro

O agro enfrenta desafios decorrentes de sua vulnerabilidade a variações climáticas extremas, impactando a produção e os mercados globais. Investimentos em tecnologia, como agricultura de precisão e biotecnologia, são essenciais para aumentar a produtividade e a sustentabilidade. Diversificar as culturas e fortalecer o mercado interno pode reduzir a dependência das exportações e estabilizar as receitas.

Para apoiar efetivamente o agro, políticas públicas robustas são necessárias, incluindo subsídios direcionados, incentivos fiscais para práticas sustentáveis, e ampliação do financiamento para pesquisa. As estratégias tributárias devem ser adaptadas para refletir as necessidades específicas do setor, facilitando a conformidade e incentivando investimentos críticos, ao mesmo tempo em que fornecem recursos governamentais necessários para o suporte ao setor.

 

Propostas de ação e política pública

Estratégias e políticas públicas para fortalecimento do setor agropecuário:

  1. Incentivos fiscais direcionados: Propõe-se a criação de incentivos fiscais alinhados às necessidades do Agro, como deduções para investimentos em tecnologias sustentáveis e créditos fiscais para práticas conservacionistas. Tais incentivos visam promover práticas agrícolas responsáveis e estimular a inovação e competitividade no setor.
  2. Subsídios para pesquisa e desenvolvimento: É crucial fortalecer o financiamento para pesquisa, especialmente em biotecnologia e manejo de recursos naturais. Investir em ciência é fundamental para a sustentabilidade e eficiência do agronegócio a longo prazo.
  3. Infraestrutura e logística: Melhorias na infraestrutura de transporte são essenciais para reduzir custos de produção e ampliar o acesso a mercados. Projetos de melhorias em rodovias, ferrovias e portos devem ser priorizados, juntamente com a adoção de tecnologias logísticas avançadas.

Promoção da sustentabilidade e resiliência:

  1. Regulamentações ambientais equilibradas: Desenvolver regulamentações que conciliem proteção ambiental com crescimento econômico, incentivando práticas sustentáveis e penalizando a degradação ambiental de forma justa.
  2. Programas de educação e capacitação: Expandir a educação para agricultores sobre práticas sustentáveis e gestão de negócios é vital para a transformação do setor.

Desenvolvimento de políticas públicas integradas:

  1. Planejamento integrado de políticas: Implementar políticas que considerem as interdependências entre o agro e outros setores críticos, como água e energia, é crucial para o desenvolvimento sustentável.
  2. Diálogo com stakeholders: Estabelecer canais de diálogo contínuos entre governo, agricultores, cientistas e indústria para assegurar que as políticas sejam eficazes e bem aceitas.

Fundamentos para a integração:

  1. Alinhamento de incentivos fiscais com objetivos de desenvolvimento rural: Os incentivos fiscais devem ser especificamente projetados para apoiar a sustentabilidade e o desenvolvimento econômico rural.
  2. Simplificação tributária para pequenos produtores: Simplificar a tributação para pequenos agricultores pode facilitar a conformidade fiscal e incentivar a formalização de negócios rurais.

Estratégias práticas de implementação:

  1. Zonas de incentivo agropecuário: Criar zonas com políticas fiscais favoráveis pode estimular o desenvolvimento em áreas menos desenvolvidas, incentivando investimentos em agroindústrias e infraestrutura.
  2. Programas de crédito fiscal para pesquisa e desenvolvimento: Implementar créditos fiscais para investimentos em pesquisa e desenvolvimento pode acelerar inovações sustentáveis e adaptativas no setor agrícola.

Impacto das políticas integradas:

  1. Aumento da produtividade agrícola: Políticas alinhadas com o desenvolvimento rural podem significativamente aumentar a produtividade agrícola, beneficiando a economia e elevando o padrão de vida rural.
  2. Sustentabilidade e conservação ambiental: Incentivos fiscais que promovem práticas de conservação podem impactar positivamente o meio ambiente, garantindo a sustentabilidade de recursos para o futuro.

 

Análise final

O agronegócio é vital para a economia do Brasil, integrado ao sistema tributário e influente na formulação de políticas econômicas e desenvolvimento sustentável. É essencial que o governo realize avaliações regulares das políticas tributárias do setor para garantir sua eficácia e alinhamento com os objetivos de desenvolvimento sustentável. Isso pode envolver ajustes nas alíquotas, revisão de subsídios e incentivos, e simplificação do sistema tributário para reduzir custos administrativos e melhorar a conformidade.

O investimento em pesquisa e desenvolvimento no setor agrícola deve ser intensificado, apoiado por incentivos fiscais para projetos que promovam inovação tecnológica e práticas sustentáveis. A colaboração com universidades e institutos de pesquisa é crucial para a transferência de tecnologia e desenvolvimento de novas soluções.

As empresas do agro devem adotar estratégias de planejamento tributário para maximizar a eficiência fiscal, utilizando créditos fiscais e reestruturando operações para aproveitar regimes fiscais vantajosos. A precisão nas práticas contábeis é fundamental para minimizar passivos fiscais.

É importante que as empresas se mantenham atualizadas com as mudanças na legislação tributária e prontas para adaptar-se a novas regulamentações, a fim de evitar penalidades e aproveitar novos incentivos ou subsídios.

Organizações da sociedade civil, incluindo associações de agricultores e grupos ambientais, devem participar ativamente das discussões sobre políticas tributárias e defender práticas agrícolas sustentáveis e equitativas. Promover educação e conscientização sobre as implicações fiscais e econômicas das políticas agropecuárias é crucial para um entendimento mais amplo e uma participação efetiva no processo político.

As estratégias recomendadas visam orientar os stakeholders do agro para navegar em um ambiente econômico complexo e dinâmico, reforçando a posição do setor como um pilar central da economia nacional, e assegurando que suas práticas promovam o desenvolvimento econômico e a sustentabilidade ambiental do país.

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Natureza e materialidade constitucional do ‘Imposto Seletivo’

Sobre a natureza do ‘Imposto Seletivo’

Um dos temas da Emenda Constitucional nº 132 (EC 132) que tem gerado grandes discussões é a instituição do dito “Imposto Seletivo”, previsto neste inciso VIII do artigo 153 da Constituição.

Por mais que tenha se tornado comum a referência a este novo tributo como “Imposto Seletivo”, parece-nos que a nomenclatura talvez não seja a melhor.

Na experiência brasileira, a seletividade tem sido utilizada como uma técnica legislativa dos tributos sobre o consumo que procura diferenciar a incidência sobre contribuintes com base no tipo de consumo, mais ou menos essencial.

Diante da dificuldade que esses tributos apresentam para a utilização da capacidade contributiva como critério de diferenciação e alocação da carga tributária, a essencialidade é usada como método de diferenciação. [1]

O imposto incluído no inciso VIII do artigo 153 não é seletivo nesse sentido, até porque a seletividade é um critério comparativo entre consumos em função de sua essencialidade, e o novo imposto tem como referência não a essencialidade, mas o caráter prejudicial à saúde ou ao meio ambiente.

É possível, inclusive, que se tenha um consumo essencial que seja, ao mesmo tempo, prejudicial ao meio ambiente, por exemplo.

Em tese, seria possível cogitar de uma seletividade baseada não na essencialidade do consumo, mas nas externalidades negativas dos bens ou serviços. Contudo, ainda assim, parece-nos estranho pensar em um imposto em si seletivo, já que, como apontamos, vemos a seletividade como um critério de diferenciação dentro do tributo.

Em manifestação anterior, [2] sustentamos que estaríamos, em verdade, diante de um Imposto Extrafiscal, de finalidade indutora, cujo objetivo seria utilizar a tributação de forma regulatória, com foco em bens e serviços prejudiciais à saúde e ao meio ambiente.

Durante a tramitação da Proposta de Emenda Constitucional nº 45 (PEC 45) no Senado chegou-se a incluir, explicitamente, no texto do § 6º do artigo 153, que este imposto seria extrafiscal. Contudo, esta parte acabou sendo excluída e não consta na EC 132.

Surge, então, a questão: este imposto pode ser utilizado com finalidades arrecadatórias, ou sua cobrança estaria restrita a fins extrafiscais relacionados às situações previstas no inciso VIII do artigo 153?

Ora, como temos sustentado, arrecadar recursos para os cofres públicos é função inerente a qualquer imposto, mesmo aqueles que têm objetivos extrafiscais. Um imposto que não arrecada é uma contradição de termos.

Consequentemente, não vemos qualquer problema em que o “Imposto Seletivo” venha a ser utilizado “para fins arrecadatórios”, como se diz no discurso público. Como já defendemos, analisando o IPI:

“Com isso, queremos dizer que o IPI e o Imposto de Renda não são diferentes entre si no que se refere ao seu papel fiscal. Não há nada na Constituição Federal que estabeleça que o IPI deva ser utilizado, principalmente, para fins extrafiscais, ou que ele tenha um papel arrecadatório secundário. A Lei Maior apenas estabeleceu um regime específico — para o IPI, o II, o IE e o IOF — que permite que sejam utilizados também para outros fins. Contudo, esse fato não lhes retira a função fiscal — nem mesmo significa que haja — de uma perspectiva constitucional — uma primazia de sua função extrafiscal.” [3]

Após maior reflexão sobre o imposto previsto no inciso VIII do artigo 153, parece-nos que ele não pode ser caracterizado como um tributo predominantemente extrafiscal, sendo prioritariamente arrecadatório tanto quanto o Imposto de Renda ou o próprio Imposto sobre Bens e Serviços (IBS).

Uma das grandes novidades da EC 132 foi a previsão expressa do princípio da justiça tributária no § 3º do artigo 145 da Constituição.

Como já apontamos, a questão central da justiça tributária é estabelecer critérios para a distribuição da carga dos tributos, [4] sendo que o seu subprincípio mais relevante é o princípio da capacidade contributiva.

A EC 132 também elevou a defesa do meio ambiente à categoria de princípio do Sistema Tributário Nacional.

O “Imposto Seletivo”, em sua feição final, parece-nos, portanto, ser um imposto de finalidade prioritariamente fiscal — arrecadatória — cuja instituição e incidência estão limitadas à produção, extração, comercialização ou importação de bens e serviços prejudiciais à saúde ou ao meio ambiente, devendo, segundo o princípio da justiça tributária, sempre que possível, ser pessoal e considerar a capacidade econômica dos contribuintes.

Consequentemente, o controle da constitucionalidade e legitimidade da lei complementar que o instituir dependerá não de uma justificativa indutora/regulatória, mas sim da sua congruência com a materialidade prevista no inciso VIII do artigo 153.

Em linha com essa evolução da natureza do “Imposto Seletivo”, inicialmente ele teria o mesmo regime constitucional dos demais impostos que têm viés extrafiscal — II, IE, IPI e IOF. Contudo, durante a tramitação da PEC 45 os dispositivos que previam que o novo imposto teria uma legalidade mitigada e seria uma exceção à regra da anterioridade foram excluídos.

Assim sendo, da maneira como o debate sobre o “Imposto Seletivo” evoluiu, está claro que ele tem propósito arrecadatório. Naturalmente, como ocorre com qualquer imposto, ele pode ser utilizado para fins extrafiscais. Entretanto, parece-nos um equívoco caracterizá-lo como um imposto extrafiscal ou predominantemente extrafiscal.

A própria previsão da incidência do “Imposto Seletivo” sobre atividades extrativas nos parece confirmar nossa posição.

Afinal, não cremos ser possível defender que a incidência deste imposto sobre atividades econômicas absolutamente essenciais para a economia brasileira tenha por objetivo desincentivá-las, ainda mais se levarmos em conta que não raro tais setores são predominantemente exportadores.

Não há outra explicação para esta incidência, segundo vemos, que não a finalidade de arrecadar recursos para os cofres públicos.

Este debate não é meramente teórico, tendo relevantes consequências concretas, especialmente quando se considera a legitimidade da instituição do imposto.

Com efeito, para aqueles que pretendem que o “Imposto Seletivo” seja um tributo regulatório, a sua instituição se legitima na medida em que se verifica uma indução, necessária e adequada, para a redução de externalidades negativas à saúde e ao meio ambiente.

Não se identificando uma relação de causa e efeito entre a tributação e a proteção do meio ambiente ou da saúde o imposto provavelmente seria considerado inconstitucional.

Não é esta a posição que defendemos. Não nos parece que a legitimidade do “Imposto Seletivo” dependa da existência de uma pretensão regulatória/indutora.

Para a sua incidência basta que se esteja diante de um bem prejudicial à saúde ou ao meio ambiente, mesmo que a cobrança do novo imposto federal — ou a aplicação dos recursos arrecadados por meio dele — não tenham por consequência atenuar os efeitos nocivos do bem ou serviço sobre a saúde ou o meio ambiente.

Pode-se dizer que a competência para a instituição do “Imposto Seletivo” é muito ampla e, de fato, ela o é. Contudo, esta foi a decisão do legislador constitucional derivado brasileiro.

Temos insistido que, com a entrada em vigor da Emenda Constitucional nº 132 devemos interpretar o novo Sistema Tributário Nacional a partir do texto aprovado pelo Congresso, e não segundo experiências estrangeiras e as intenções daqueles que participaram do processo de elaboração das proposições que resultaram na emenda constitucional.

A materialidade constitucional do ‘Imposto Seletivo’

Uma das características da EC 132 é que ao mesmo tempo em que ela aumentou, de forma bastante significativa, o número de dispositivos tributários na Constituição, ela delegou à lei complementar muito da competência para delimitar o alcance de tais dispositivos.

No caso do “Imposto Seletivo”, como vimos, ela estabeleceu a competência da União Federal para instituir um imposto sobre a “produção, extração, comercialização ou importação de bens e serviços prejudiciais à saúde ou ao meio ambiente, nos termos de lei complementar”. (destaque nosso)

As questões, cujo desenvolvimento teremos que acompanhar, conforme o inciso VIII do artigo 153 for interpretado pelos diversos atores, são as seguintes: o legislador complementar terá ampla liberdade de conformação para definir o que é produção, extração, comercialização e importação? Poderá a lei complementar definir, da maneira como entender mais adequado, o que são bens e serviços? Da mesma maneira, como será delimitado o que é prejudicial à saúde e ao meio ambiente?

A tradição conceitualista do Direito Tributário brasileiro tende a sustentar que todos esses termos veiculariam conceitos constitucionais, aos quais o legislador complementar estaria vinculado. Sendo este o caso, a depender do texto da lei complementar, poderemos ter os primeiros litígios pós-reforma tributária.

Veja-se que a própria redação do inciso VIII não é a ideal, já que fala da produção, extração, comercialização e importação de serviços, por exemplo.

Se, de um lado, certamente podemos ter importação de serviços — embora esta não seja uma expressão com definição unívoca — é muito difícil pensar que serviços sejam produzidos, extraídos ou comercializados. Pelo menos esses não são verbos usualmente relacionados às atividades de serviços.

De outra parte, enquanto em relação ao do IBS, a EC 132 deixou claro que a competência prevista na Constituição incluía “bens materiais ou imateriais, inclusive direitos” (artigo 156-A, § 1º, I), no caso do “Imposto Seletivo” a menção foi feita apenas a bens e serviços.

Consequentemente, devemos ter as velhas discussões a respeito da existência de conceitos constitucionais de bens e serviços, os quais pautariam e limitariam a competência do legislador complementar na instituição do imposto. Custa acreditar, mas a EC 132 conseguiu dar sobrevida às incansáveis discussões sobre o conceito constitucional de serviços.

Em todo o caso, os bens e serviços cuja produção, extração, comercialização e importação podem ser tributadas pelo “Imposto Seletivo” são apenas aqueles prejudiciais à saúde ou ao meio ambiente.

A questão aqui é que é difícil imaginar bens e serviços que não tenham alguma externalidade negativa à saúde e ao meio ambiente. Trata-se mais de uma questão de grau do que propriamente de uma questão binária, “prejudicial” versus “não prejudicial”.

Por outro lado, e esta é uma questão importante: o Imposto Seletivo pode incidir sobre bens e serviços prejudiciais à saúde e ao meio ambiente, em outras palavras, o que deve ser prejudicial é o próprio bem ou serviço, e não o seu processo de produção, extração, comercialização ou importação.

A EC 132 não previu a possibilidade de instituição de um imposto sobre “processos de produção, extração, comercialização e importação” prejudiciais à saúde e ao meio ambiente.

Esta afirmação está alinhada com a própria origem do imposto. Com efeito, a PEC 45, em sua versão original, tinha como premissa uma neutralidade plena da tributação de bens — inclusive intangíveis — e serviços, os quais seriam, todos, sujeitos à mesma incidência, sem exceções ou benefícios fiscais.

No contexto desse modelo de neutralidade absoluta, o Imposto Seletivo tinha um papel. Pode ser, inclusive, que venha daí sua denominação de Imposto Seletivo.

Afinal, ele serviria para estabelecer alguma diferenciação no âmbito do próprio IBS que, em sua proposta inicial, seria completamente neutro.

Em outras palavras, o papel deste imposto era funcionar como um adicional tributário incidente sobre certos consumos.

Sobreveio a Proposta de Emenda Constitucional nº 110 (PEC 110) e a neutralidade do IBS sofreu a sua primeira mitigação, com a previsão de tratamento diferenciado para alguns setores como, por exemplo, alimentos, saúde e educação.

A PEC 45, na forma aprovada pelo Congresso, implodiu a neutralidade pretendida para o IBS, com a criação de diversas exceções e possibilidades de regimes diferenciados favorecidos.

De toda maneira, nota-se que a lógica do “Imposto Seletivo” não é ser um imposto que grave certos processos de produção, extração, comercialização e importação.

Conclusão

Neste momento, aguardamos a apresentação dos projetos de lei complementar de regulamentação da reforma tributária pelo governo. Em breve, teremos uma percepção mais clara da extensão que a União  pretende dar à competência prevista no inciso VIII do artigo 153 da Constituição.

É verdade que mesmo que se estabeleça, em em sua lei complementar inaugural, que o “Imposto Seletivo” teria uma função predominantemente extrafiscal — como parecer ter sido o caso do Projeto de Lei Complementar nº 29/2024, do deputado Federal Luiz Philippe de Orleans e Bragança —, isso certamente não significará que tal competência não poderia ser exercida de forma mais ampla adiante. Dessa maneira, ainda travaremos debates sobre a natureza e a materialidade do “Imposto Seletivo” por muitos anos.

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[1] Como apontava Ricardo Lobo Torres, “a seletividade se subordina ao princípio maior da capacidade contributiva e significa que o tributo deve incidir progressivamente na razão inversa da essencialidade dos produtos: quanto menor a essencialidade do produto maior deverá ser a alíquota, e vice-versa” (TORRES, Ricardo Lobo. Tratado de Direito Constitucional Financeiro e Tributário: Os Tributos na Constituição. Rio de Janeiro: Renovar, 2005. 2007. v. IV. p. 178).

[2] ROCHA, Sergio André. Tributação, finanças públicas e desenvolvimento (Ensaios). Belo Horizonte: Casa do Direito, 2023. p. 178-185.

[3] ROCHA, Sergio André. Fundamentos do Direito Tributário Brasileiro. 2 ed. Belo Horizonte: Casa do Direito, 2022. p. 114-115.

[4] ROCHA, Sergio André. Tributação, finanças públicas e desenvolvimento (Ensaios). Belo Horizonte: Casa do Direito, 2023. p. 39-40.

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Escritórios de advocacia não devem pagar guias judiciais dos clientes?

Nos últimos tempos, os Tribunais Regionais do Trabalho (TRTs) de todo o país têm proferido decisões no sentido de não conhecer de recursos interpostos pelas partes caso seja constatado que o recolhimento de custas e/ou depósito recursal tenha sido feito por um terceiro estranho ao processo.

Mas o que isso representa dizer na prática?

De acordo com essas decisões regionais, o pagamento só poderá ser efetuado pela própria parte litigante no processo judicial (reclamante ou reclamada), excluindo-se, por exemplo, o próprio escritório e/ou profissional da advocacia quem inclusive patrocina os interesses da causa, mesmo que fosse para antecipar o pagamento de tais despesas processuais mediante futuro reembolso, ainda que devidamente autorizado para tanto.

No entanto, tais decisões se olvidam que, por exemplo, no caso de custas judiciais, a guia GRU trabalhista é emitida pelo Banco do Brasil ou pela Caixa Econômica Federal, de sorte que somente os correntistas dessas instituições financeiras conseguem efetuar o pagamento via internet ou aplicativos. Do contrário, a parte precisa comparecer fisicamente em alguma agência bancária e efetuar o pagamento em espécie, presencialmente.

Legislação especializada

Do ponto de vista normativo, de um lado a CLT dispõe, no artigo 899 [2] e seus parágrafos, que em caso de recurso, a peça de irresignação deverá ser acompanhada do respectivo depósito recursal, sendo que na falta de recolhimento, o apelo não será apreciado pelo juízo. Lado outro, o artigo 789 [3] e seus incisos, no tocante à regulamentação das custas processuais, impõe a obrigação formal de que sejam elas recolhidas em guias específicas.

Nesse diapasão, para além da própria intenção de recorrer de uma decisão que a parte entenda lhe ser desfavorável, faz-se necessário o correto recolhimento do preparo recursal, sendo tal obrigação legal tida como um pressuposto recursal imperativo e intrínseco ao conhecimento do recurso.

Lição de especialista

A respeito da temática, oportunos são os ensinamentos do Advogado e Professor, Doutor Marcelo Braghini [4]:

“Ao tratarmos do preparo estamos por nos referir ao ônus processual de natureza tributária, segundo o qual o recorrente somente estará habilitado a recorrer após recolhimento das custas, compreende uma taxa, modalidade ligada a prestação de um serviço individualizado ao contribuinte (específico e divisível de acordo com o art. 145, inciso II, da CF), calculada á base de 2% (dois) por cento sobre o valor arbitrado na decisão como condenação (art. 789 da CLT), que poderá ocorrer uma única vez, ou todas as vezes que, diante da procedência de eventual recurso interposto, venha a ocorrer novo arbitramento que promova a majoração da condenação, exigindo o recolhimento da diferença para efeito do conhecimento do recurso subsequente.

Como uma característica inerente ao Processo do Trabalho, o conceito de preparo abrange não apenas custas, mas, igualmente, a exigência ao reclamado do depósito recursal em conformidade com o art. 899, § 1º, da CLT (…).”

Decisões contrárias dos TRTs ao recolhimento feito por terceiros

É sabido que existem notícias de decisões proferidas por diversos TRTs no sentido de que o pagamento de custas processuais e/ou do depósito recursal realizado por terceiros estranhos à lide caracteriza irregularidade processual, e, portanto, justifica a deserção do recurso interposto [5].

Aliás, em casos totalmente inusitados, os recursos não têm sido conhecidos pelo Poder Judiciário Trabalhista, mesmo em situações que o recolhimento do preparo recursal tenha sido feito pelo(a) advogado(a) do(a) cliente ou pelo escritório de advocacia que patrocina a causa, como ocorreu num certo processo cuja decisão foi proferida pelo TRT da 21ª Região [6].

No mesmo sentido, o TRT/SP da 2ª Região proferiu uma decisão destacando também que o preparo não pode ser realizado por empresas sejam integrantes do mesmo grupo econômico, devendo o ato ser feito apenas e exclusivamente pela parte que figura no polo passivo da ação [7].

Decisões favoráveis dos TRTs ao recolhimento feito por terceiros

Entrementes, no TRT-GO da 18ª Região, foi suscitada a instauração do denominado incidente de resolução de demandas repetitivas (IRDR), para que fosse dirimida exatamente essa problemática, haja vista que no Estado de Goiás foram identificadas decisões colegiadas divergentes em diversos processos, sendo, ao final, firmada a seguinte tese jurídica:

TESE JURÍDICA: PREPARO. GUIAS DE RECOLHIMENTO GERADAS EM NOME DA RECORRENTE, COM A DEVIDA INDICAÇÃO DOS DADOS DO PROCESSO. PAGAMENTO REALIZADO POR PESSOA ESTRANHA À LIDE. VALIDADE. “Deve ser considerado válido o preparo quando as guias de recolhimento das custas e do depósito recursal hajam sido geradas em nome do recorrente, com a devida indicação dos dados do processo, independentemente do pagamento final haver sido realizado por pessoa estranha à lide, porquanto o contribuinte/recorrente/sacado é a figura central na efetivação do preparo.” [8]

Ora, de acordo com a referida tese, prevaleceu o entendimento de que, se o recolhimento do preparo recursal foi realmente feito em nome da parte litigante, cuja guia traz todas as informações relativas ao processo, em especial com a identificação do contribuinte/recorrente/sacado, não existe nenhum impedimento para que o pagamento seja feito por pessoa estranha ao processo, inclusive na pessoa física do(a) advogado(a) ou escritório de advocacia que antecipa e gerencia os recursos financeiros do(a) cliente.

Nesse mesmo diapasão, o TRT da 11ª Região já decidiu pela validade do ato de recolhimento das custas processuais feito por terceiro, notadamente pela impossibilidade de a parte litigante não possuir conta bancária na Caixa Econômica Federal ou no Banco do Brasil, pressuposto esse para que tal finalidade seja cumprida pelo sistema bancário digital [9].

Visão do TST

De acordo com a Súmula nº 128, item I, do TST, “é ônus da parte recorrente efetuar o depósito legal, integralmente, em relação a cada novo recurso interposto, sob pena de deserção”. E, sobre a temática, a Corte Superior Trabalhista tem se inclinado a afastar a deserção na defesa pelo conhecimento do recurso quando os elementos existentes no processo possibilitam apurar a realização do preparo recursal, a tempo e modo [10].

Nessa perspectiva, o TST também já foi provocado a emitir juízo de valor sobre o assunto, de modo que já há decisão pela inaplicabilidade da deserção quando é possível identificar na guia o nome da parte recorrente, o número do processo e o valor recolhido a título de depósito recursal [11].

Em seu voto, o ministro relator ponderou o seguinte:

“(…). Insta salientar a necessária observância dos princípios da razoabilidade, da instrumentalidade e da finalidade dos atos processuais que impede o excesso de rigor e formalismo para a prática do ato processual, se a lei assim não dispõe e se foi atingida a finalidade do ato.

Assim, existindo elementos que vinculem os valores recolhidos a título de depósito recursal à demanda, ainda que efetuado por empresa que não consta do polo passivo, mas pertencente ao mesmo grupo econômico, não há que se falar em deserção do recurso ordinário.”

Em outra situação semelhante, o TST também decidiu que, uma vez alcançada a finalidade essencial do ato processual, e, claro, desde que viabilize a identificação do recolhimento do documento de arrecadação de receitas federais, não há que se falar em deserção recursal por ter sido o pagamento feito por terceiro estranho à lide [12].

Contudo, é importante destacar que, em sentido contrário, existem algumas decisões da Corte Superior que entendem pela aplicação literal do item I da Súmula nº 128, de sorte que se o preparo, v.g., for feito por empresa integrante de grupo econômico, terceira estranha, portanto, à lide trabalhista, o recurso não será conhecido por deserção [13], devendo o ato de recolhimento bancário ser efetivado pela parte que figura no polo passivo da ação [14].

Conclusão

Impende destacar que, com os avanços tecnológicos, é bastante comum hoje pessoas físicas ou jurídicas optarem por bancos digitais. Ora, como o pagamento de guias judiciais, a exemplo da guia GRU de custas processuais, não pode ser realizado frente a qualquer banco, s.m.j., não se mostra minimamente razoável a prematura deserção do recurso quando seja possível verificar na guia os elementos essenciais que identificam o processo.

Entendimento em sentido contrário, em arremate, reafirma uma nefasta prática que fora conhecida como “jurisprudência defensiva”, cuja antiga visão panprocessualista do processo cede lugar à moderna e atual instrumentalidade. Até porque é por demais desarrazoado exigir que a parte, que não tenha conta nos chamados bancos públicos, carregue em mãos e pelas ruas dinheiro em espécie, na busca de uma agência bancária física que, a propósito, também está cada dia mais difícil de encontrar após a pandemia.

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[1] Se você deseja que algum tema em especial seja objeto de análise pela coluna Prática Trabalhista, entre em contato diretamente com os colunistas e traga sua sugestão para a próxima semana.

[2] Art. 899. Os recursos serão interpostos por simples petição e terão efeito meramente devolutivo, salvo as exceções previstas neste Título, permitida a execução provisória até a penhora. (…).

[3]Art. 789.  Nos dissídios individuais e nos dissídios coletivos do trabalho, nas ações e procedimentos de competência da Justiça do Trabalho, bem como nas demandas propostas perante a Justiça Estadual, no exercício da jurisdição trabalhista, as custas relativas ao processo de conhecimento incidirão à base de 2% (dois por cento), observado o mínimo de R$ 10,64 (dez reais e sessenta e quatro centavos) e o máximo de quatro vezes o limite máximo dos benefícios do Regime Geral de Previdência Social, e serão calculadas: (…)”.

[4] Direito do trabalho e processo do trabalho em volume único – 2ª ed. – Leme-SP:  Mizuno, 2022.

[5] TRT-8 – ROT: 00000066420225080106, Relator: ALDA MARIA DE PINHO COUTO, 4ª Turma, Data de Publicação: 27/06/2023.

[6] TRT-21 – RORSum: 0000275-94.2023.5.21.0013, Relator: RONALDO MEDEIROS DE SOUZA, Segunda Turma de JulgamentoGabinete do Desembargador Ronaldo Medeiros de Souza.

[7] TRT-2 – ROT: 1001146-88.2021.5.02.0019, Relator: CINTIA TAFFARI, 12ª Turma.

[8] Disponível em https://www.trt18.jus.br/portal/arquivos/2024/03/IRDR-0011549-78.2023.5.18.0000.pdf. Acesso em 15.4.2024.

[9] TRT-11 00014787620185110003, Relator: FRANCISCA RITA ALENCAR ALBUQUERQUE, 1ª Turma

[10] ARR-1000298-87.2017.5.02.0069, 7ª Turma, Relator – Ministro Alexandre de Souza Agra Belmonte, DEJT 12/05/2023.

[11] TST – RR: 00014695520155200008, Relator: Douglas Alencar Rodrigues, Data de Julgamento: 22/03/2017, 7ª Turma, Data de Publicação: 31/03/2017.

[12] TST- Ag-AIRR-54100-48.2012.5.21.0009, Relator Ministro Luiz Philippe Vieira de Mello Filho, 7ª Turma, DEJT 12/08/2016.

[13] RR-11802-64.2019.5.15.0073, 4ª Turma , Relator Ministro Alexandre Luiz Ramos, DEJT 8/4/2022.

[14] AIRR – 258-55.2012.5.03.0042, Relator Ministro: Cláudio Mascarenhas Brandão, Data de Julgamento: 24/2/2016, 7ª Turma , Data de Publicação: DEJT 4/3/2016.

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Terceiro adquirente, obrigação propter rem e coisa julgada

A estrutura formal do processo judicial pressupõe sempre a existência de duas partes contrapostas. É famosa a máxima medieval, cuja paternidade é atribuída a Bulgarus: “iudicium est actus trium personarum, iudicis, actoris et rei”. Assim como ocorre com os elementos objetivos da demanda (causa petendi e petitum), que permanecem em regra inalterados até a sentença, as partes que se encontram presentes no início da ação conduzirão o processo até o seu final.

É possível, no entanto, haver modificação superveniente do elemento subjetivo da demanda durante a tramitação do processo, quando uma das partes falece ou, então, tratando-se de pessoa jurídica, é ela sucedida ou incorporada por outra.

Nestes casos, havendo sucessão a título universal, aplicam-se as disposições dos artigos 110, 313 e 687 do Código de Processo Civil, procedendo-se à substituição da parte pelo seu sucessor legal, a quem são transferidas todas as posições jurídicas atinentes ao objeto da sucessão, inclusive as de natureza processual.

Note-se que, depois de exaurida a prestação jurisdicional, ultimada com o julgamento do recurso especial, o Superior Tribunal de Justiça orienta-se no sentido de inadmitir o pleito de substituição da parte, decorrente de sucessão universal, devendo ser ele apreciado ao ensejo da execução, perante o juízo para esta competente (AgReg. no REsp. n. 174.201-SP, 6ª T., relator ministro Fernando Gonçalves).

Adquirente como substituto

Regrando, por outro lado, as repercussões processuais da sucessão inter vivos, preceitua o artigo 109 do Código de Processo Civil que: “A alienação da coisa ou do direito litigioso por ato entre vivos, a título particular, não altera a legitimidade das partes”. Infere-se que a pendência do processo não é óbice — e nem poderia ser — à fluência normal do comércio jurídico, inclusive no que concerne ao bem ou ao direito litigioso.

O adquirente poderá ingressar no processo e substituir a autor ou o réu, dependendo de quem tenha sido o transmitente, desde que a parte contrária manifeste o seu consentimento (artigo 109, parágrafo 1º). Extrometida a parte substituída ou figurando apenas como assistente simples, o sucessor, passando a atuar como parte, fica obviamente sujeito à coisa julgada.

O adquirente ou cessionário também poderá intervir no processo, assumindo a posição de “parte” e não de assistente litisconsorcial do alienante ou cedente (artigo 109, parágrafo 2º).

Todavia, não ocorrendo qualquer destas hipóteses, consoante os termos do parágrafo 3º do artigo 109: “Estendem-se os efeitos da sentença proferida entre as partes originárias ao adquirente ou cessionário”.

E, em tal senso, de fato, a 4ª Turma do Superior Tribunal de Justiça, ao ensejo do julgamento do Recurso Especial nº 1.421.034-RS, da relatoria do ministro Luis Felipe Salomão, decidiu que:

“No Código de Processo Civil de 1973, os limites subjetivos da coisa julgada encontravam-se, expressamente, insertos no artigo 472, segundo o qual ‘a sentença faz coisa julgada às partes entre as quais é dada, não beneficiando, nem prejudicando terceiros’. Nada obstante, além de alcançar quem efetivamente figura como parte em uma dada relação jurídica processual, a autoridade da coisa julgada também se estende ao seu sucessor, ‘porque todo fenômeno de sucessão importa sub-rogação em situações jurídicas e aquele é sempre um prolongamento do sucedido como centro de imputação de direitos, poderes, obrigações, faculdades, ônus, deveres e sujeição’ (Dinamarco, Cândido Rangel. Fundamentos do processo civil moderno, t. 2, 6ª ed. São Paulo, Malheiros, 2010, p. 1.145-1.146)…”.

Visão da doutrina sobre a vinculação do adquirente

Assim, tendo havido alienação da coisa ou do direito litigioso, se o processo continuar entre as partes originárias, qual seria o fundamento jurídico da vinculação do adquirente à autoridade da coisa julgada?

Desde há muito esse tema tem ocupado a atenção da doutrina.

Pela ampla possibilidade de o adquirente intervir no processo e assumir, a partir do negócio celebrado com o transmitente, a posição de parte, a moderna doutrina italiana sustenta ser mais favorável a posição do sucessor no direito italiano, do que nos sistemas alemão e brasileiro, que condicionam o ingresso do adquirente no processo à aquiescência da parte contrária (Luiso, Principio del contraddittorio ed efficacia della sentenza verso terzi, Milano, Giuffrè, 1981, pág. 53).

Dispõe a alínea 2ª do parágrafo 265 do Código de Processo Civil alemão (ZPO): “A alienação ou a cessão [da coisa litigiosa] não influi no processo. O sucessor não está autorizado, sem o consentimento da parte contrária, a assumir o processo como parte principal em lugar do substituído ou a promover uma intervenção principal…”).

Para Sergio Menchini, na esfera do direito italiano, a comunicação da imutabilidade do comando da sentença ao sucessor não fere o princípio constitucional do devido processo legal por duas diferentes razões, a saber: a) é resguardada a possibilidade de o sucessor intervir no processo e participar efetivamente do contraditório (ainda que posticipato), devendo para tanto ter ciência do litígio; e b) a vitória da parte estranha à transmissão não pode ser frustrada, de sorte a constrangê-la, se demandante, a repropor a ação em face do sucessor; ou, se demandada, expor-se a uma nova ação, ajuizada pelo sucessor, sobre o mesmo objeto (Regiudicata civile, Digesto delle discipline privatistiche, vol. 16, Torino, Utet, 1997, pág. 458).

Doutrina processual brasileira

No entanto, no âmbito do nosso direito processual, a situação em que o adquirente fica à margem do processo é que gera toda a problemática sobre a qual muito se discute. Entendo que, para a solução dessa relevante questão, a melhor doutrina, em perfeita simetria com a regra do artigo 18 do Código de Processo Civil, é a que reconhece o transmitente legitimado extraordinário, que atua como substituto processual do adquirente ou cessionário, estranho do processo. E por essa razão — repita-se — o sucessor não escapa da “zona” de eficácia direta da sentença e da autoridade da coisa julgada.

Quanto ao transmitente, suportará ele, consequentemente, como parte formal, apenas os efeitos processuais da sentença.

Esclareça-se, ainda, que se impõe, como pressuposto da extensão da coisa julgada ao sucessor, o conhecimento da litispendência.

Na doutrina brasileira coube a Carlos Alberto Alvaro de Oliveira demonstrar que existem situações nas quais o direito material ressalva a boa-fé do terceiro adquirente, podendo este furtar-se à eficácia da sentença por meio de remédio processual próprio.

Sim, porque se escusável o não conhecimento da litispendência, fica o adquirente, em consequência, obstado a participar do processo. Nesse caso, não se afigura admissível sujeitá-lo à autoridade da coisa julgada, sob pena de ferir a garantia do devido processo legal. (Alienação da coisa litigiosa, 2ª ed., Rio de Janeiro, Forense, 1984, pág. 244 ss).

Mas, “quando tudo se passa de maneira clara: tanto o alienante quanto o adquirente praticam conscientemente negócio sobre o bem que sabem constituir objeto de disputa judicial”, a comunicação da coisa julgada material ao sucessor é inegável (cf. Humberto Theodoro Júnior, Curso de direito processual civil, vol. 1, 58ª ed., p. 1.168).

Examinando a alienação feita pelo réu no curso de ação reivindicatória e, portanto, em fraude à execução, pondera Arruda Alvim que a coisa julgada é oponível ao adquirente de boa-fé, porque este, tendo adquirido a non domino, é, na verdade, adquirente de nada, e somente lhe remanesce, diante da eficácia da sentença contra o réu-“transmitente”, que, igualmente, nada lhe transferiu, o direito de deduzir a sua boa-fé, para pleitear perdas e danos (O terceiro adquirente de bem imóvel do réu, pendente ação reivindicatória não inscrita no registro de imóveis, e a eficácia da sentença em relação a esse terceiro, no direito brasileiro, Libro homenaje a Jaime Guasp, Granada, Colmares, 1984, pág. 153.)

Jurisprudência do STJ

E, de fato, era exatamente essa a orientação que iluminava a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, no sentido de que “a penhora de unidade condominial não pode ser autorizada em prejuízo de quem não tenha sido parte na ação de cobrança na qual se formou o título executivo. Necessária a vinculação entre o polo passivo da ação de conhecimento e o polo passivo da ação de execução” (4ª T., min. Marco Buzzi, REsp nº 1.955.545/SP).

Todavia, por paradoxal que possa parecer, mais recentemente, a 3ª Turma do Superior Tribunal de Justiça acabou superando esse entendimento, a partir da análise da natureza das obrigações propter rem, para estender a eficácia da coisa julgada ao terceiro adquirente, ainda que ele não tenha participado e nem mesmo tido ciência do processo em que formado o título executivo judicial.

Assim, alterando então o antigo posicionamento, o leading case, salvo engano, que acabou por aperfeiçoar a nova orientação, já revelada no precedente julgamento do Recurso Especial nº 1.683.419/RJ, provém do julgamento do Agravo Interno no Recurso Especial nº 1.851.742/PR, com voto condutor da ministra Nancy Andrighi, lastreado em consistentes fundamentos, textual:

“… Com efeito, diversamente do sustentado pela agravante, a atual jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça orienta no sentido de que a obrigação de pagamento das taxas condominiais possui natureza propter rem, razão pela qual deve ser exigida de quem consta na matrícula do imóvel como seu proprietário.

Entende-se, deveras, que a obrigação dos condôminos de contribuir para a conservação da coisa comum é dotada de ambulatoriedade, extraída do artigo 1.345 do Código Civil de 2002, segundo o qual ‘o adquirente de unidade responde pelos débitos do alienante, em relação ao condomínio, inclusive multa e juros moratórios’.

Conforme se depreende desse dispositivo legal, a transmissão da obrigação ocorre automaticamente, isto é, ainda que não seja essa a intenção do alienante e mesmo que o adquirente não queira assumi-la. Com efeito, ‘a responsabilidade pelo pagamento das despesas condominiais acompanha a pessoa do adquirente, que não pode eximir-se com alegação de que os encargos foram gerados anteriormente à aquisição do imóvel” (LOPES, João Batista. Condomínio, 8ª ed. São Paulo: Editora RT, 2003, pág. 98).

O sentido dessa norma, consoante destacado no Recurso Especial n.  1.683.419/RJ (3ª Turma, DJe 26/02/2020) é intuitivo: fazer prevalecer o interesse da coletividade dos condôminos, permitindo que o condomínio receba, a despeito da transferência de titularidade do direito real sobre o imóvel, as despesas indispensáveis e inadiáveis à manutenção da coisa comum, impondo ao adquirente, para tanto, a responsabilidade, inclusive pelas cotas condominiais vencidas em período anterior à aquisição.

Outrossim, no plano processual, partindo-se da premissa de que o próprio imóvel gerador das despesas constitui garantia ao pagamento da dívida, prevalece o entendimento de que o proprietário do imóvel pode ter seu bem penhorado no bojo de ação de cobrança, já em fase de cumprimento de sentença, mesmo que não tenha figurado no polo passivo da fase de conhecimento.

Aliás, no que concerne à coisa julgada, não se olvida de que, nos termos do artigo 506 do CPC/15, os respectivos efeitos, como regra, apenas se operam inter partes, não beneficiando nem prejudicando estranhos à relação processual em que se formou.

No entanto, referida regra não é absoluta e comporta exceções. Em determinadas hipóteses, a coisa julgada pode atingir, além das partes, terceiros que não participaram de sua formação.

É o que ocorre, exatamente, na hipótese de alienação da coisa ou do direito litigioso.

A respeito, o artigo 109, parágrafo 3º, do CPC/15 dispõe expressamente que ‘estendem-se os efeitos da sentença proferida entre as partes originárias ao adquirente ou cessionário’.

Trata-se de previsão legal que, verdadeiramente, faz irradiar a terceiros os efeitos da coisa julgada, em virtude da modificação da situação jurídica da coisa ou bem litigioso.

Nessa toada, na hipótese em julgamento, a conclusão que se alcança é que, sendo a agravante responsável pelo pagamento das despesas condominiais pela aquisição da propriedade do imóvel, não há necessidade de o condomínio promover nova ação contra ela, na medida em que a sentença prolatada na fase de conhecimento lhe é eficaz…”.

Conclui-se, portanto, que, acerca desta questão, o Superior Tribunal de Justiça superou antigo posicionamento, passando a admitir que o terceiro adquirente se sujeita à coisa julgada material, uma vez que, a teor do artigo 109 do Código de Processo Civil, o alienante que permanece no processo, continuando como legitimado, age em nome próprio na defesa do direito do adquirente, ainda que este desconheça demanda pendente sobre o bem adquirido.

Ressalvando a minha opinião pessoal, já exposta no meu livro (Limites Subjetivos da Eficácia da Sentença e da Coisa Julgada, 2ª ed., São Paulo, Marcial Pons, 2020, pág. 165), como advogado do contencioso civil, não posso deixar de compartilhar com os meus colegas operadores do direito, essa importante alteração pretoriana, sobre questão de grande interesse prático, que inclusive já foi recentemente secundada pela 4ª Turma do Superior Tribunal de Justiça, no julgamento do Agravo Interno no Recurso Especial nº 1.819.441/SP, relatado pelo ministro Marco Buzzi.

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Aplicabilidade do CDC e a inversão do ônus da prova nas ações judiciais de seguro agro

O seguro agrícola, ou, como popularmente conhecido, o seguro agro, é um ramo promissor no mercado securitário. Com o excepcional crescimento de 15,1% em 2023, o agronegócio foi o setor que mais contribuiu para o Produto Interno Bruto (PIB) do país naquele ano, que aumentou 2,9% em relação ao ano de 2022 [1]. Deste aumento, incríveis 1,3% correspondem apenas à agropecuária [2].

Assim como a arte pode imitar a vida (ou vice-versa), o direito reflete as dinâmicas da sociedade em que vivemos. Neste contexto, temos observado um amadurecimento do judiciário no enfrentamento de questões ligadas ao direito agrário e ao direito dos seguros. Esse ponto é especialmente evidente em casos relacionados ao seguro agrícola e à (in)aplicabilidade do Código de Defesa do Consumidor, bem como à inversão do ônus da prova, temas que abordaremos neste artigo, sem a pretensão de esgotar a discussão.

1. Há relação de consumo no Direito Securitário Agrário?

A Lei nº 8.078, de 1990, que dispõe sobre a proteção ao consumidor, foi paradigmática para reestabelecer a Justiça e a equidade nas chamadas relações de consumo [3], uma vez que representou uma significativa conquista no âmbito legislativo brasileiro, estabelecendo bases fundamentais para a proteção dos direitos dos consumidores, tais como

“[a] vedação às cláusulas abusivas, resolução unilateral de contratos, o estabelecimento da inversão do ônus da prova, entre outros instrumentos, [que] foram e, até hoje, são essenciais à promoção de equilíbrio contratual no seio dessas chamadas relações jurídicas caracterizadas pela hipossuficiência de seus partícipes” [4].

No que concerne às relações de natureza securitária, como regra geral, atualmente aplica-se o Código de Defesa do Consumidor, desde que a relação em análise se caracterize também como uma relação de consumo.

Para que se configure uma relação de consumo, deve haver a presença de um fornecedor de produtos ou serviços e do destinatário final. De acordo com o artigo 2º do Código Consumerista, “consumidor é toda pessoa física ou jurídica que adquire ou utiliza produto ou serviço comodestinatário final. Já o fornecedor “(…) é toda pessoa física ou jurídica, pública ou privada, nacional ou estrangeira, bem como os entes despersonalizados, que desenvolvem atividade de (…) prestação de serviços”. O serviço, por sua vez, é contemplado como uma atividade fornecida no mercado, mediante remuneração, entre elas, as de natureza securitária.

Além disso, requisito fundamental para se estabelecer a relação de consumo é a vulnerabilidade do consumidor, na forma do artigo 4º, inciso I do CDC. Este requisito é um pilar da teoria finalista, segundo a qual o conceito de consumidor deve ser submetido a uma interpretação restritiva, “calcada na sua vulnerabilidade presumida, limitando a proteção legal a quem retira o produto ou o serviço do mercado para uso não profissional, ou seja, para satisfação de necessidades próprias ou de sua família” [5]. Nesse sentido,

“(…) contanto que haja um consumidor, assim entendido, um não profissional, que atue sem finalidade lucrativa, como destinatário final da garantia prestada pelo segurador, o seguro torna-se contrato de consumo, atraindo a incidência do regime protetivo do Código de Defesa do Consumidor. (Destacado no original)” [6].

Claudia Lima Marques, do mesmo modo, entende que

“Destinatário final é aquele destinatário fático e econômico do bem ou serviço, seja ele pessoa jurídica ou física. Logo, segundo esta interpretação teleológica não basta ser destinatário fático do produto e retirá-lo da cadeia de produção, e levá-lo para o escritório ou residência, é necessário ser destinatário final econômico do bem, não adquiri-lo para revenda, não adquiri-lo para uso profissional, pois o bem seria novamente um instrumento de produção cujo preço será incluído no preço final do profissional que o adquiriu” [7].

Importa mencionar, nessa seara, que atualmente o Superior Tribunal de Justiça adota o entendimento da teoria finalista mitigada nas relações de consumo, ao reconhecer “a existência das relações de consumo mesmo em face de consumidores que fazem um uso profissional do produto ou do serviço, mas exige para tanto a caracterização da sua vulnerabilidade técnica, jurídica ou econômica” [8].

Desse modo, insta questionar: na relação entre uma seguradora e um segurado que contrata seguro agrícola para sua produção haverá relação de consumo? A resposta é: depende. Caso o segurado seja um pequeno e vulnerável agricultor, que realiza a plantação para a própria subsistência e a de sua família, por exemplo, então seria possível caracterizar a relação consumerista, com base na teoria finalista mitigada. Mas pense no caso em que o segurado é um agricultor que realiza cultivo em larga escala para comercialização. O cenário permaneceria o mesmo?

Alguns autores, como Juliano Ferrer e Maria Izabel Indrusiak Pereira, defendem que sequer haveria espaço para a aplicação da teoria finalista mitigada nas demandas envolvendo produtores rurais, e que o mais correto seria a aplicação da teoria finalista nesses casos. Segundo eles, “[o] objetivo do Código de Defesa do Consumidor é tutelar de maneira especial um grupo da sociedade que é efetivamente mais vulnerável. Não é o caso, especialmente neste particular, do produtor rural” [9].

2. Análise jurisprudencial da aplicação do CDC e inversão do ônus da prova no seguro agrícola

Com o objetivo de investigar o que tem ocorrido nas demandas judiciais envolvendo o seguro agrícola e o produtor rural, foi realizada pesquisa no site de buscas jurisprudenciais do Tribunal de Justiça do Paraná, estado com grande representatividade no setor do agronegócio do Brasil. Foram aplicados os seguintes os parâmetros: “CDC”, “seguro” e “agrícola”, entre o início de setembro de 2023 e o início de janeiro de 2024. De 31 julgados selecionados, 24 aplicaram o CDC e a inversão do ônus da prova, enquanto apenas um deixou de aplicá-los [10]. Dos julgados restantes, 1 se absteve da análise por carência de interesse recursal e cinco não se aplicavam à pesquisa.

Em vez de corroborar o caminho a ser seguido, os números dispostos acima são rechaçáveis. Data maxima venia, nos parece necessário um aprofundamento na análise dessa temática, afinal, os agricultores muitas vezes produzem em larga escala e o fazem de forma organizada e com o intuito de obter lucro. Ou seja, constituem verdadeiramente uma empresa agrícola. A contratação dos seguros por estes produtores, empresários do agronegócio, representam uma fonte de segurança para que sua operação comercial seja bem-sucedida. Nesse diapasão, o seguro é contratado como insumo à produção, e os segurados, a toda evidência, não poderiam ser qualificados como destinatários finais dos serviços prestados pela seguradora.

Essa mesma linha de raciocínio é adotada pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ), que entendeu, em demanda de seguro agrícola, que o “Código de Defesa do Consumidor não se aplica no caso em que o produto ou serviço é contratado para implementação de atividade econômica, já que não estaria configurado o destinatário final da relação de consumo (teoria finalista ou subjetiva)” [11]. A Corte Superior de Justiça firmou o entendimento de que admite o abrandamento da regra apenas “quando ficar demonstrada a condição de hipossuficiência técnica, jurídica ou econômica da pessoa jurídica, autorizando, excepcionalmente, a aplicação das normas do CDC (teoria finalista mitigada)” [12]. Assim também é o entendimento do STJ, em regra, para outras demandas envolvendo contratos de seguros empresariais [13].

Ou seja, diferente do que vem ocorrendo na prática – salvo alguns excelentes precedentes – [14] a aplicabilidade do diploma consumerista nas demandas de seguro agrícola, usualmente, deveria ser afastada, sendo admitida apenas quando se comprovar a hipossuficiência do segurado, em circunstâncias excepcionais. Nas ações judiciais relativas ao seguro agrícola, portanto, denota-se que a hipossuficiência das partes não deveria ser presumida, mas comprovada e analisada caso a caso.

3. Uma análise relativa à vulnerabilidade dos produtores rurais

Com base na pesquisa realizada como uma amostra do que vem ocorrendo no judiciário, a vulnerabilidade dos produtores rurais segurados, na grande maioria dos casos, ainda tem sido reconhecida de forma presumida, sem que haja a necessária comprovação de sua hipossuficiência. É certo que as vulnerabilidades, sejam elas técnica, jurídica, econômica ou informacional – esta última que tem se agregado às três hipóteses tradicionais [15] – devem ser analisadas em conformidade com as circunstâncias particulares de cada caso. Todavia, discorreremos de forma breve sobre o porquê da hipossuficiência não se aplicar aos empresários do agronegócio nos casos de contratação de seguro agrícola.

Em primeiro lugar, conforme esclarecido pela doutrina: “[a] vulnerabilidade técnica caracteriza-se quando o contratante não detém ou detém reduzido conhecimento específico sobre a natureza do contrato ou objeto da contratação, sujeitando-se ao poder técnico da outra parte” [16]. Este não é o caso dos empresários rurais, que, além de contar com corretoras especializadas em seguro agrícola, que os representam e negociam melhores condições com as seguradoras, possuem todo um aparato técnico, com equipes de assessoria agrônoma, jurídica e contábil, por exemplo.

Em relação à vulnerabilidade econômica, ela se verifica “quando o contratante se sujeita ao poder econômico ostensivamente superior da contraparte na imposição da contratação em si ou das suas condições” [17]. Isto muitas vezes também não ocorre com os segurados em questão, sendo certo que alguns deles possuem situação econômica semelhante ou até mesmo superior à das seguradoras. Mesmo que em alguns casos possam vir a apresentar poder econômico inferior ao das seguradoras, essa diferença não é significativa à ponto de configurar vulnerabilidade.

“A vulnerabilidade jurídica, por sua vez, caracteriza-se quando o contratante carece de conhecimentos relativos ao exercício dos seus próprios direitos na relação jurídica que se estabelece” [18], o que também não sucede com os empresários do ramo agrícola, sendo certo que não se tem notícia de quaisquer dificuldades no ajuizamento da ação e no exercício do próprio direito pelos segurados, que possuem o aparato jurídico necessário para auxiliá-los e por vezes são procurados por advogados após um evento climático adverso.

Podemos mencionar, ainda, a “vulnerabilidade informacional, caracterizada pelo fato de o contratante possuir ‘dados insuficientes sobre o produto ou serviço capazes de influenciar no processo decisório de compra’” [19]. Mais uma vez, percebe-se que este não é o caso, pois os empresários do agronegócio estão acostumados à natureza das transações securitárias e dos termos adotados no seguro agrícola.

Nesse sentido, quando o segurado, empreendedor do ramo do agronegócio, trata das informações técnicas do plantio objeto do seguro, não nos parece que o Código de Defesa do Consumidor seja aplicável. E, ainda que se entenda o contrário, é necessário que o Juízo responsável pelo julgamento da demanda verifique se deverá ser aplicada a inversão do ônus da prova, medida autorizada pelo artigo 6º, inciso VIII, do CDC, que excepcionaliza a regra tradicional do artigo 373, caput, do Código de Processo Civil.

É correto afirmar, então, que a inversão do onus probandi não ocorre de maneira automática à aplicação do CDC, uma vez que possui natureza excepcional, podendo ser aplicada apenas quando o juiz constatar a verossimilhança das alegações autorais e a hipossuficiência do consumidor. Essa análise se mostra importante, pois, como mencionado anteriormente, não raras vezes o segurado/empresário não possui qualquer vulnerabilidade, e ainda conta com um corpo de engenheiros agrônomos e aparato técnico necessário para que o cultivo lhe proporcione o lucro almejado.

4. Conclusões

Diante desse cenário, o que mais importa às partes litigantes, que acionam o judiciário buscando a tutela de seus direitos, é que a aplicação da lei seja a mais adequada possível, pois os regramentos trazidos pelo Código de Defesa do Consumidor ou qualquer outra lei não se prestam a propiciar proteção desmedida a uma das partes, relegando à parte adversa a certeza do insucesso. A finalidade do ordenamento jurídico repousa na paridade de armas e no equilíbrio processual, observadas as características próprias das partes envolvidas, para o regular desenvolvimento do processo que produzirá um resultado que atenda aos anseios sociais nos termos da legislação vigente.

Em conclusão, a questão da (in)aplicabilidade do Código de Defesa do Consumidor e da inversão do ônus da prova em ações judiciais de seguros agrícolas é complexa e necessita de uma análise cuidadosa das circunstâncias específicas de cada caso. A jurisprudência dos tribunais estaduais demonstra uma tendência à proteção do segurado, porém, como visto, nem sempre a sua figura se enquadra na definição tradicional de consumidor, especialmente no contexto do agronegócio, onde muitas vezes a produção é em larga escala e com finalidades comerciais.

Assim, a distinção entre o segurado consumidor e o segurado empresário se faz crucial para determinar a aplicabilidade do CDC e a possibilidade de inversão do ônus da prova. É fundamental que o judiciário equilibre a proteção ao consumidor com a necessidade de não presumir a vulnerabilidade de forma automática, garantindo, assim, a justiça e a equidade nas relações contratuais securitárias, respeitando as particularidades do setor agrícola e contribuindo para o desenvolvimento sustentável e econômico do país.


[1] Disponível em https://agenciadenoticias.ibge.gov.br/agencia-sala-de-imprensa/2013-agencia-de-noticias/releases/39303-pib-cresce-2-9-em-2023-e-fecha-o-ano-em-r-10-9-trilhoes#:~:text=Em%202023%2C%20o%20PIB%20(Produto,Servi%C3%A7os%20(2%2C4%25).&text=O%20PIB%20totalizou%20R%24%2010%2C9%20trilh%C3%B5es%20em%202023. Acesso em 02/03/2022.

[2] Disponível em https://globorural.globo.com/economia/noticia/2024/03/agro-nao-deve-contribuir-tanto-com-o-pib-em-2024-dizem-especialistas.ghtml. Acesso em 02/03/2024.

[3] Goldberg, Ilan. Há vulnerabilidade nos contratos de seguro D&O? Conjur. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2023-mar-16/seguros-contemporaneos-debate-vulnerabilidade-contratos-seguro/. Acesso em 12/03/2024.

[4] Idem.

[5] SCHREIBER, Anderson. Manual de direito civil contemporâneo, 2. Ed. São Paulo: Saraiva Educação, 2019, p. 679.

[6] MIRAGEM, Bruno; PETERSEN, Luiza. Direito dos seguros, 2. Ed. Rio de Janeiro: Forense, 2024, p. 75.

[7] MARQUES, Cláudia Lima, Contratos no Código de Defesa do Consumidor: O novo regime das relações contratuais, São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004, p. 253-254.

[8] SCHREIBER, Anderson. Ibid. p. 680.

[9] FERRER, Juliano; PEREIRA, Maria Izabel Indrusiak. Uma análise da obrigação legal e contratual que deve ser observada pelo segurado, como elemento essencial à quantificação e aceitação de risco. In: Seguros em artigos de acadêmicos – Acervo de Cátedras da ANSP. São Paulo, 2022.

[10] TJ-PR; Agravo de Instrumento nº 0038737-51.2023.8.16.0000, Des.ª Themis de Almeida Furquim, 8ª Câmara de Direito Privado; j. 22/09/2023.

[11] STJ; AgInt no AREsp nº 1.973.453/RS; Relator Ministro Luis Felipe Salomão; Quarta Turma; j. 11/04/2022; p. 19/04/2022.

[12] Idem.

[13] Nesse sentido, confira-se: STJ, REsp nº 1.926.477/SP, relator Ministro Marco Aurélio Bellizze, Terceira Turma, j.18/10/2022, p. 27/10/2022; STJ, AgInt no AREsp nº 1.096.881/SP, relator Ministro Luis Felipe Salomão, Quarta Turma, j. 15/03/2018, p. 20/03/2018; STJ, AgInt no AgInt nos EDcl no AgInt no AREsp nº 1.326.846/RS, relator Ministro Luis Felipe Salomão, Quarta Turma, j. 30/05/2022, p. 01/06/2022.

[14] Por exemplo: TJ-RS, Agravo de Instrumento nº 5228355- 09.2021.8.21.7000, Quinta Câmara Cível, Rel. Desembargador Jorge André Pereira Gailhard, j. 05/12/2022; TJSP, Apelação Cível nº 1001173-54.2018.8.26.0279, relatora Mary Grün, 32ª Câmara de Direito Privado, j. 12/05/2022, p. 13/05/2022; TJMT, Agravo de Instrumento nº 1017352-39.2021.8.11.0000, relator João Ferreira Filho, Primeira Câmara de Direito Privado, j. 08/02/2022, p. 14/02/2022.

[15] Schreiber, Anderson. Ibid. p. 680.

[16] Idem. (Destacado no original).

[17] Idem.

[18] Idem. (Destacado no original).

[19] Idem. (Destacado no original).

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Questão central no Tema 1.156: dano anímico ou dano extrapatrimonial presumido?

Após um pedido de vista da ministra Nancy Andrighi, a 2ª Seção do Superior Tribunal de Justiça (STJ) deverá retomar no dia 18/4/2024 o julgamento do Recurso Especial (REsp) 1.962.275/GO, afetado ao rito dos recursos repetitivos sob o Tema 1.156, cuja relatoria é do ministro Villas Bôas Cueva.

De acordo com os autos, a 2ª Seção vai definir “se a demora na prestação de serviços bancários superior ao tempo previsto em legislação específica gera dano moral individual in re ipsa apto a ensejar indenização ao consumidor”, diante da divergência de entendimentos existente entre tribunais de segunda instância, bem como entre as próprias Turmas especializadas em Direito Privado da Corte Superior

Todavia, sob a perspectiva defendida pelo Instituto Brasileiro de Política e Direito do Consumidor (Brasilcon) em sua manifestação como amicus curiae, a questão central que o STJ precisará dirimir neste julgamento é que, no Brasil, os danos extrapatrimoniais são tradicionalmente chamados de “danos morais” [1] e com eles são confundidos. Isso se soma ao fato de que, numa parcela da doutrina e em grande parte da jurisprudência, ainda persiste o entendimento bastante ultrapassado de que o dano moral configura-se somente com a dor, o sofrimento, o abalo psicológico da pessoa. [2].

Lições da doutrina

Em face dessa controvérsia, Anderson Schreiber [3] leciona que “a definição do dano moral não pode depender do sofrimento, [da] dor ou [de] qualquer outra repercussão sentimental do fato sobre a vítima, cuja efetiva aferição, além de moralmente questionável, é faticamente impossível”. Para o autor, a definição hodierna do dano moral deve centrar-se no “objeto atingido (o interesse lesado)”, e não nas “consequências emocionais, subjetivas e eventuais da lesão”.

Adicionalmente, Fernando Noronha [4] afirma que, no Brasil, existe uma “tradicional confusão entre danos extrapatrimoniais e morais […] presente em praticamente todos os autores justamente reputados como clássicos nesta matéria, desde Aguiar Dias até Carlos Alberto Bittar e Yussef S. Cahali”. Buscando superar esse problema, Noronha propõe que os danos extrapatrimoniais sejam chamados de “danos morais em sentido amplo”, e que os danos anímicos sejam chamados de “danos morais em sentido estrito”.

Na atualidade, juristas de escol como Francisco Amaral (2018) e o próprio Noronha (2013) convergem no entendimento de que o dano moral em sentido estrito, enquanto espécie de dano extrapatrimonial, pode ser definido como o prejuízo não econômico que resulta da lesão à integridade psicofísica da pessoa, ao passo que o dano moral em sentido amplo, enquanto gênero que corresponde ao dano extrapatrimonial, conceitua-se como o prejuízo não econômico que decorre da lesão a bem extrapatrimonial juridicamente tutelado [5] – onde a Teoria do Desvio Produtivo inseriu o “tempo do consumidor” [6].

Teoria do Desvio Produtivo

Contudo a prática judicial brasileira revela uma grande dificuldade no reconhecimento de novas categorias de danos extrapatrimoniais para além da esfera anímica da pessoa, o que vem contribuindo para a manutenção de uma jurisprudência anacrônica baseada no argumento do “mero aborrecimento” [7].

Com efeito, a Teoria do Desvio Produtivo, ao identificar e valorizar pioneiramente o “tempo do consumidor” (em sua dimensão estática) como um bem jurídico, demonstra que não se sustenta a compreensão jurisprudencial de que a “peregrinação” a que o consumidor é submetido, diante de um problema de consumo criado e imposto pelo próprio fornecedor, representaria “mero dissabor ou aborrecimento” normal na vida do consumidor [8].

Partindo da noção de que dano é o prejuízo decorrente da lesão a um bem jurídico, material ou imaterial [9], a Teoria sustenta que, em situações como as esperas excessivas por atendimento bancário, o bem jurídico imediatamente violado é o “tempo do consumidor”, e não a sua “integridade psicofísica”. Por esse motivo é descabido cogitar se tais esperas excessivas geram sentimentos negativos – como “dissabores ou aborrecimentos” –, pequenos (“meros”) ou grandes (“mega”).

De fato, o consumidor que passa – ou melhor, que perde – uma, duas, três horas aguardando por atendimento bancário não sofre dano anímico (ou moral em sentido estrito), mas sim dano extrapatrimonial de natureza existencial (ou moral em sentido amplo), em razão da lesão ao seu tempo vital e a consequente alteração prejudicial e indesejada do seu cotidiano ou planejamento de vida.

Afinal o tempo, enquanto bem personalíssimo, é o suporte implícito da vida, que dura certo tempo e nele se desenvolve, e a vida, enquanto direito fundamental, constitui-se das próprias atividades existenciais que cada um escolhe nela realizar [10]. Logo um evento de desvio produtivo traz como resultado um dano que, mais do que temporal, é existencial pela alteração prejudicial do cotidiano ou do projeto de vida do consumidor [11].

Presunção do dano existencial

Outra questão central que o STJ também precisará dirimir, neste julgamento, refere-se à presunção do dano existencial (ou moral em sentido amplo) que se verifica nas situações de esperas excessivas por atendimento bancário. Nos termos da referida Teoria, o dano extrapatrimonial de natureza existencial resultante de um evento de desvio produtivo é necessariamente presumido, porque o prejuízo existencial é deduzido de dois postulados que representam fatos notórios, a saber: 1°) em sua dimensão estática, o tempo é um recurso produtivo limitado, que não pode ser acumulado nem recuperado ao longo da vida das pessoas; e 2°) ninguém pode realizar, ao mesmo tempo, duas ou mais atividades de natureza incompatível ou fisicamente excludentes, do que resulta que uma atividade preterida/adiada no presente, em regra, só poderá ser realizada no futuro deslocando-se no tempo outra atividade [12].

Conforme bem observou Alexandre Freitas Câmara [13], não se trata aqui de aplicação da presunção legal (absoluta ou relativa), mas sim da praesumptio hominis – também denominada presunção simples ou judicial.

Leonard Ziesemer Schmitz [14] explica a diferença entre os dois institutos: “Na presunção legal, o legislador antecipa efeitos probatórios a certos fatos, que se têm por demonstrados até prova em contrário; na judicial [,] essa eficácia probatória só ocorre por conta da demonstração específica de relação entre fatos. Nas presunções legais há um deslocamento do ônus de prova […]; nas inferências judiciais o que ocorre é uma circunstância específica, que autoriza a suficiência da produção de uma prova não relacionada diretamente ao fato que se quer conhecer”.

De acordo com Schmitz [15], a presunção “não é exatamente um meio de prova – embora o Código Civil assim o trate, no artigo 212, IV –, mas sim um processo de compreensão para que se dê por provado um fato. O que resulta da presunção não é de forma alguma um fato provado, mas o instrumento da presunção atribui a esse fato a mesma eficácia dos fatos provados – aliás, é essa a utilidade do raciocínio presuntivo: dispensar prova do fato e mesmo assim tê-lo por demonstrado”.

Schmitz [16] ensina que as presunções simples ou judiciais “são inferências probatórias que independem de juízos prévios legislativos, e tradicionalmente se apoiam naquilo que ordinariamente acontece (art. 375, do CPC)”. O autor acrescenta que, “em certa medida[,] se poderá dizer que o fato notório, cujo conhecimento é indispensável para que sirva de fato instrumental a uma presunção, […] serve, mesmo que indiretamente, à demonstração daquilo que compõe o objeto de prova”.

Mas Schmitz [17] distingue as regras de experiência dos fatos notórios. As regras de experiência “são juízos universais a respeito daquilo que ordinariamente acontece” e “servem para determinar o modo de ocorrência de fatos cujo inteiro conhecimento por provas diretas não é possível”, enquanto os fatos notórios “são constatações de fatos concretos, ainda que tenham impacto generalizado sobre uma determinada comunidade ou população”.

O autor acrescenta que pode existir certa confusão entre regras de experiência e fatos notórios, visto que “a doutrina é firme na ideia de que as regras da experiência devem surgir como generalizações notórias em si mesmas, no sentido de que sua veracidade ou pertinência não precise ser justificada”. Porém Schmitz esclarece que o que acontece aí é uma confusão sobre “a verdadeira função do art. 374, I, [do CPC,] que se presta apenas a dispensar prova de determinados fatos” [18].

Portanto, na questão controvertida ora em análise, a presunção simples, judicial ou hominis permite ao juiz, com base nas regras de experiência, desenvolver um raciocínio probatório por inferência observando aquilo que ordinariamente acontece – no caso, o modo de ocorrência dos dois postulados existenciais anteriormente enunciados (fato-base notório) –, relacionando-o a outro fato que se quer conhecer – no caso, o prejuízo existencial (fato presumido) que ordinariamente resulta de um evento provado de desvio produtivo –, para que ele, juiz, possa concluir e assim reconhecer que o dano extrapatrimonial ou moral em sentido amplo está demonstrado no caso concreto (presunção em si).

Considerações finais

Diante do que foi exposto e, ainda, com respaldo na Teoria do Desvio Produtivo do Consumidor, é possível então se chegar às seguintes conclusões:

1º) Que a demora na prestação de serviços bancários, em tempo superior ao estipulado na legislação específica, caracteriza vício de qualidade do serviço por “não atender as normas regulamentares de prestabilidade”, conforme prevê o art. 20, § 2º, do CDC;

2º) Que a prestação de serviços bancários em desacordo com tais normas, sempre que verificada de modo reiterado ou excessivo, caracteriza a omissão ou recusa do fornecedor quanto à sua responsabilidade de sanar o vício, representando prática abusiva vedada pelo CDC;

3º) Que o tempo perdido pelo consumidor em esperas excessivas por atendimento bancário, somada à alteração indesejada do seu cotidiano ou projeto de vida, caracteriza a lesão danosa à sua autodeterminação temporal e existencial;

4º) Que uma vez provada a lesão ao tempo do consumidor, presume-se o prejuízo existencial dela decorrente – sendo tal prejuízo inferido pelo juiz com base no que ordinariamente acontece a partir daqueles dois postulados, que são fatos notórios;

5º) Que o tempo vital e as atividades existenciais do consumidor são bem e interesses jurídicos personalíssimos; logo sua lesão atinge o consumidor enquanto indivíduo, legitimando-o a mover ação em nome próprio – paralelamente à legitimação das entidades que podem promover ação coletiva.

Consequentemente o Instituto Brasilcon, sob nosso patrocínio, pediu ao STJ que negue provimento ao REsp 1.962.275/GO e, no mérito, que fixe a tese assim proposta: a demora reiterada ou excessiva na prestação de serviços bancários, em tempo superior ao previsto na legislação específica, caracteriza vício de qualidade do serviço por não atender às normas regulamentares de prestabilidade, o que gera dano extrapatrimonial de natureza existencial presumido (ou seja, dano moral lato sensu in re ipsa) pela lesão ao tempo e às atividades existenciais personalíssimos do consumidor, ensejando sua reparação tanto em ação individual quanto em tutela coletiva.


[1] SANSEVERINO, Paulo de Tarso V. Princípio da reparação integral: indenização no código civil. 1. ed., 2. tir. São Paulo: Saraiva, 2011. p. 189.

[2] Veja-se, por todos, CAVALIERI FILHO, Sergio. Programa de responsabilidade civil. 8. ed. rev. e ampl. 3. reimpr. São Paulo: Atlas, 2009. p. 83-84, e STJ, REsp 844736/DF, j. 27-10-2009, rel. Min. Luis Felipe Salomão, rel. p/ acórdão Min. conv. Honildo Amaral de Mello Castro.

[3] SCHREIBER, Anderson. Direitos da personalidade. São Paulo: Atlas, 2011. p. 17.

[4] NORONHA, Fernando. Direito das obrigações. 4. ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2013. p. 591.

[5] DESSAUNE, Marcos. Teoria ampliada do desvio produtivo do consumidor, do cidadão-usuário e do empregado. 3. ed. rev., modif. e ampl. Vitória: Edição Especial do Autor, 2022. p. 135.

[6] DESSAUNE, 2022, p. 172-173.

[7] DESSAUNE, Marcos. A superação do argumento do “mero aborrecimento” promovida pela Teoria do Desvio Produtivo do Consumidor na jurisprudência brasileira. Revista IBERC, Belo Horizonte, v. 6, n. 3, p. 113-132, set./dez. 2023. passim.

[8] DESSAUNE, 2022, p. 305.

[9] AMARAL, Francisco. Direito civil: introdução. 10. ed. rev. e modif. São Paulo: Saraiva, 2018. p. 954.

[10] DESSAUNE, 2022, p. 367.

[11] SOARES, Flaviana Rampazzo. Responsabilidade civil por dano existencial. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2009. p. 42-46, passim.

[12] DESSAUNE, 2022, p. 363-364.

[13] CÂMARA, Alexandre Freitas. Debate sobre o PL 2856/22 do Senado que positiva a Teoria do desvio produtivo do consumidor, realizado com DESSAUNE, Marcos em 01-09-2023, no auditório da OAB/RJ no Rio de Janeiro/RJ.

[14] SCHMITZ, Leonard Ziesemer. Raciocínio probatório por inferências: critérios para o uso e controle das presunções judiciais (Tese de doutorado). PUC-SP: São Paulo, 2018. p. 186.

[15] SCHMITZ, 2018, p. 183.

[16] SCHMITZ, 2018, p. 193 e 195-196.

[17] SCHMITZ, 2018, p. 206 e 234.

[18] SCHMITZ, 2018, p. 234.

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Prevenção contra o assédio moral: uma questão de tipificação?

Muito se tem debatido a respeito da tipificação do assédio moral. Há quem sustente que a criação de um crime específico seria o único meio efetivo para sua prevenção. Por outro lado, muitos argumentam que a criminalização de mais uma conduta não seria a bala de prata para solucionar o crescente número de casos desse tipo que têm permeado o ambiente corporativo brasileiro.

O Projeto de Lei mais recente sobre o tema (PL 1.521/2019) está em trâmite no Senado Federal e tem por objetivo tipificar a conduta de “ofender reiteradamente a dignidade de alguém causando-lhe dano ou sofrimento físico ou mental, no exercício de emprego, cargo ou função”, com pena de detenção de um a dois anos e multa, além da pena correspondente à violência.

Não há ainda definição legal de assédio moral na esfera trabalhista, sendo que, de forma geral, a doutrina e jurisprudência têm considerado assédio moral qualquer situação humilhante e constrangedora, repetitiva e prolongada, durante o trabalho e no exercício de funções profissionais, com o objetivo de desestabilizar a pessoa emocionalmente. Com base nesse conceito, a Justiça Trabalhista tem reconhecido a prática do assédio moral e indenizado as vítimas.

Na esfera criminal, a despeito de ainda não ter sido tipificado, esse tipo de comportamento pode configurar crimes já previstos no Código Penal, como Perseguição e Violência Psicológica contra a mulher (artigo 147-A e B), Difamação (artigo 139), Injúria (artigo 140), Calúnia (artigo 138), Ameaça (artigo 147) e até mesmo os recentes crimes de Intimidação Sistemática (artigo 146-A).

Não se questiona o fato de se tratar de comportamento que mereça ser reprimido e punido, diante da gravidade, seriedade e complexidade da conduta, mas sim se, assim como em outras situações, a criminalização será suficiente para seu combate e prevenção.

Isso porque, sob uma perspectiva preventiva (e até mesmo repressiva), os últimos anos têm mostrado que investimentos em mudança de cultura, políticas e procedimentos corporativos podem trazer muito mais impacto e resultados.

A corrupção, por exemplo, é considerada crime no Brasil já há vários anos e não foi o risco de responsabilidade criminal que desestimulou sua prática, ou que incentivou as empresas no Brasil a valorizarem e se engajarem em programas de integridade.

Ambientes seguros

A Lei Anticorrupção (Lei nº 12.846/2013), que prevê a responsabilização administrativa e civil das pessoas jurídicas, bem como a pressão dasautoridades e do mercado em relação à implementação de programas de integridade trouxe um impacto e mudanças muito significativas no ambiente corporativo brasileiro, no qual, até então, muito pouco se ouvia a palavra “compliance”.

Da mesma forma, o compliance também pode ser um grande agente de mudança no combate ao assédio moral, possivelmente muito mais eficaz, a curto prazo, do que a tipificação de uma conduta específica.

Tamanha é a relevância do tema para o mundo corporativo que, na reunião conjunta realizada entre B20 [1] e G20 [2], no começo deste ano, para definir a agenda anual e as prioridades para promover o crescimento sustentável dos países pertencentes ao grupo, ficou definido que serão prioridades, entre outros temas, a garantia dos direitos humanos e o cuidado com a saúde mental dos funcionários, visando à promoção de ambientes livres de assédios [3].

A discussão desse tema entre as empresas e o mercado e a conscientização de sua relevância é essencial, para que percebam e reconheçam a importância de se investir em medidas robustas de compliance, capazes de prevenir que esse tipo de situação venha a ocorrer e, caso ocorra, seja prontamente reportada e coibida pela própria empresa (além de, é claro, eventuais outras medidas cíveis e criminais, quando cabíveis).

Para isso, é fundamental que as empresas invistam em políticas claras contra o assédio moral, que elucidem no que consiste tal comportamento, bem como estabeleçam, de forma transparente, as consequências para os eventuais infratores (sejam elas disciplinares sejam legais).

Nesse mesmo sentido, devem ser ministrados treinamentos periódicos a seus funcionários, com exemplos práticos, visando a conscientizá-los a respeito das condutas que caracterizam o assédio moral, para que saibam identificar quando estejam agindo em desacordo com as políticas da empresa ou, para que possam identificar e relatar quando sejam vítimas desse tipo de comportamento.

Canais de denúncias

Igualmente importante, as empresas devem implementar canais de denúncias acessíveis e confidenciais, para que seus funcionários se sintam confortáveis, protegidos e acolhidos, ao relatar esse tipo de conduta. E que os funcionários responsáveis por tais canais sejam especialmente treinados sobre práticas antidiscriminatórias, aptos a resolver demandas que envolvam questões de gênero, raça, etnia, religião e pessoas com deficiência.

Não menos importante, as empresas devem promover uma cultura organizacional que valorize o respeito, a diversidade e o diálogo, por meio da realização de campanhas e eventos de conscientização.

Os benefícios da prevenção ao assédio e de um programa de compliance bem implementado são diversos e rapidamente sentidos pela empresa, como um ambiente de trabalho mais positivo e saudável, redução de faltas, licenças médicas e rotatividade de pessoal. Além, é claro, da mitigação da exposição da companhia a contingências oriundas de processos judiciais, que podem gerar vultosos passivos trabalhistas e uma gestão de crise com potenciais danos à imagem empresarial.

É certo, portanto, que todas essas medidas – preventivas, informativas e de compliance – certamente trarão um retorno muito mais imediato e efetivo, na busca das empresas por um ambiente íntegro e psicologicamente saudável.


[1] O Business 20 (B20) é o fórum oficial de diálogo do G20 com a comunidade empresarial global. Este ano está sendo sediado no Brasil e organizado pela Confederação Nacional da Indústria (CNI). O grupo possui sete forças-tarefa e um conselho de ação, dedicados a áreas específicas que ressoam o lema “Crescimento Inclusivo para um Futuro Sustentável”. Disponível em: https://www.g20.org/pt-br/g20-social/business. Acesso em 5.4.2024.

[2] “Grupo dos Vinte (G20) é o principal fórum de cooperação econômica internacional. Desempenha um papel importante na definição e no reforço da arquitetura e da governança mundiais em todas as grandes questões econômicas internacionais.” Disponível em: https://www.g20.org/pt-br/sobre-o-g20. Acesso em 5.4.2024.

[3]     Disponível em: https://b20brasil.org/w/b20-brazil-integrity-compliance-task-force-meets-with-g20-anti-corruption-work-group. Acesso em 5.4.2024.

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PLDO/2025 repetirá ditaduras se pautar quebra dos pisos sociais

governo federal enviou o projeto de lei de diretrizes orçamentárias para 2025 (PLDO/2025) ao Congresso nesta segunda (15/4).

Diante das metas fiscais projetadas e das restrições impostas pela Lei Complementar 200/2023 (vulgarmente chamada de “Novo Arcabouço Fiscal”), a agenda que se avizinha para o período posterior às eleições municipais deste ano e, em especial, para o próximo exercício financeiro é a de revisão das despesas obrigatórias.

Aparentemente o que se busca é dar continuidade à pauta da PEC 188/2019 alcunhada de DDD Fiscal (porque destinada a desobrigar, desvincular e desindexar), notadamente por meio da desindexação do piso dos benefícios assistenciais e previdenciários em relação ao salário mínimo; da revogação do abono salarial; bem como retirada da relação de proporcionalidade com a arrecadação estatal dos deveres de gasto mínimo em saúde e educação.

Desde a promulgação da Emenda 95, de 15 de dezembro de 2016, ou seja, há oito anos, a agenda de revisão dos pisos em saúde e educação como proporção da receita governamental passou a ser, formal e declaradamente, assumida como uma pauta de reforma fiscal, muito embora ela já fosse defendida como estratégia de austeridade fiscal desde os primórdios do Plano Real. Tais vinculações constitucionais protetivas dos principais direitos sociais são tratadas como antípoda da estabilidade macroeconômica, porque supostamente agravariam os ciclos de crise fiscal e engessariam o orçamento público com deveres de gasto mínimo atrelados ao comportamento oscilante da arrecadação estatal.

A Proposta de Emenda à Constituição 241/2016, que deu origem à Emenda 95, ajustou os pisos em saúde e educação, congelando-os em termos reais ao montante aplicado em 2017 e garantindo-lhes apenas a correção inflacionária medida pelo Índice de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA), durante o período de vigência do teto de despesas primárias. Eis, portanto, o contexto em que emergiu o artigo 110 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias.

Durante a tramitação da PEC 241/2016, tive a honra de escreve artigo em coautoria com os grandes mestres Fábio Konder Comparato, Heleno Taveira Torres e Ingo Wolfgang Sarlet, alertando que as garantias constitucionais de custeio da saúde e da educação são mínimos inegociáveis. Naquela ocasião, suscitamos fortemente que:

“Há um aprendizado histórico digno de nota na vivência da Constituição de 1988 pela sociedade brasileira: a prioridade do nosso pacto fundante reside na promoção democrática dos direitos fundamentais, com destaque para os direitos sociais, garantes de uma cidadania inclusiva e ativa. Justamente nesse contexto, o regime de vinculação de recursos obrigatórios para ações e serviços públicos de saúde e manutenção e desenvolvimento do ensino tem sido o mais exitoso instrumento de efetividade de tais direitos, ademais de evidenciar a posição preferencial ocupada pela educação e pela saúde na arquitetura constitucional.

No que concerne ao direito fundamental à educação, somente períodos ditatoriais ousaram rever o compromisso social assumido desde a Constituição Republicana de 1934 de financiamento governamental em patamares mínimos nesse setor. Ou seja, há mais de 80 anos a nação brasileira reconhece na educação pública o caminho decisivo para a progressiva e inadiável superação da dependência tecnológica, ainda que sejam lentos e complexos os esforços de associar dever de gasto mínimo a qualidade no ensino.

Os retrocessos causados pelas Constituições de 1937 e 1967/1969 certamente adiaram esse histórico processo cumulativo de buscar universalizar o acesso à escola para todos os cidadãos, com o dever de ensino de qualidade. A despeito de tais retrocessos autoritários e desde a Emenda Calmon de 1983, a sociedade brasileira parecia caminhar para horizonte civilizatório basilar, como rota progressiva de materialização da dignidade humana sob os comandos legitimamente construídos e fixados em nossa Constituição Cidadã e no Plano Nacional de Educação (Lei 13.005/2014).

Do ponto de vista do direito fundamental à saúde, havia, desde a redação originária da Carta de 1988, dispositivo que assegurava proporcionalidade mínima do custeio desse setor no bojo do Orçamento da Seguridade Social (OSS). Isso porque o artigo 55 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT) previa a necessidade de resguardar, no mínimo, 30% desse orçamento especial para a política pública de saúde. Se tivéssemos mantido, ao longo do tempo, tal proporção dada transitoriamente pelo Constituinte Originário, o Sistema Único de Saúde contaria atualmente com disponibilidade de custeio quase 2,5 vezes maior que a dotação prevista para o exercício de 2016.

Em 2000, para remediar a expressiva e histórica instabilidade fiscal na promoção do direito fundamental à saúde pelo Estado, foi promulgada a Emenda Constitucional 29, instituindo a proteção de custeio mínimo em ações e serviços públicos de saúde, em moldes análogos ao piso da manutenção e desenvolvimento do ensino.

[…] Por óbvio, reconhecemos que é preciso avançar e corrigir distorções, desvios e abusos. Há mesmo elevado grau de correlação entre a corrupção, a má-gestão e a baixa qualidade dos gastos mínimos em saúde e educação. Mas, para enfrentá-la, não nos parece ser resposta adequada a ampliação irrestrita da discricionariedade orçamentária, com prejuízo dos esforços em favor da educação básica obrigatória dos 4 aos 17 anos de idade e no Sistema Único de Saúde, de cobertura pública integral e universal.

Tal inversão de piso para teto desprega a despesa do comportamento da receita e faz perecer as noções de proporcionalidade e progressividade no financiamento desses direitos fundamentais. Assim, o risco é de que sejam frustradas a prevenção, a promoção e a recuperação da saúde de mais de 200 milhões de brasileiros. Ou de que seja mitigado o dever de incluir os cerca de 2,7 milhões de crianças e adolescentes, de 4 a 17 anos, que ainda hoje se encontram fora da educação básica obrigatória.

[…] Estamos em pleno processo pedagógico e civilizatório de educar e salvaguardar a saúde de nossos cidadãos, o que não pode ser obstado ou preterido por razões controvertidas de crise fiscal. Nada há de mais prioritário nos orçamentos públicos que tal desiderato constitucional, sob pena de frustração da própria razão de ser do Estado e do pacto social que ele encerra.”

Desde julho de 2016, quando o artigo acima foi publicado, até agora, o cenário fiscal brasileiro se agravou. A bem da verdade, o teto foi redesenhado sucessivas vezes ao longo dos seus seis anos de vigência, tendo sido impactado – direta ou indiretamente – pelas Emendas 102, 106, 108, 113, 114 e 123, que até a Emenda 126/2022 (conjuntamente com a LC 200/2023), enfim, revogou a Emenda 95/2016. Sob um contexto política e economicamente turbulento, o teto de despesas primárias foi sucedido pelo “Novo Arcabouço Fiscal”.

Prática de ditaduras

Em 2024, o piso educacional chega ao simbólico aniversário de 90 anos, uma vez que foi instituído pela democraticamente alvissareira, mas breve Constituição de 1934. Desde então e ao longo dessas nove décadas, o piso em educação apenas foi desconstruído pelas Constituições autoritárias de 1937 e 1967/1969. Somente as ditaduras ousaram mitigar a progressividade do financiamento educacional, algo que o PLDO/2025 pode vir a pautar inadvertidamente como pressão fiscal para uma agenda de reforma do texto permanente da Constituição de 1988. Enquanto isso, a política educacional tem diante de si desafios colossais na efetividade do aludido direito, a exemplo dos impasses que se seguem:

  1. déficit de 2,5 milhões de vagas na oferta de creches;
  2. descumprimento da meta de expansão do horário integral (meta 6 do PNE), que deveria atender a 25% dos estudantes da educação básica em 2024, mas só contempla 15%;
  3. falseamento do piso do magistério e falta de valorização dos profissionais da educação;
  4. existência de 1 milhão de crianças e adolescentes fora da escola na educação básica, precisamente na faixa etária dos 4 aos 17 anos, em que tal ausência é constitucionalmente inadmissível.

Iniquidade na saúde

Na política pública de saúde, por sua vez, o Sistema Único de Saúde (SUS) provou seu valor durante a pandemia da Covid-19, protegendo mais de 200 milhões de brasileiros em todo o território nacional, apesar das severas desigualdades assistenciais e das inúmeras fragilidades operacionais que o acometem.

A maior iniquidade que perpassa a política pública de saúde, porém, reside no fato de que o gasto público no setor representa apenas 4% do PIB para atender a todos os brasileiros, sendo que 3/4 da população é exclusivamente dependente do SUS. Já o gasto privado alcança 5,7% do PIB, para atender tão somente a 1/4 da população do nosso país.

Vale lembrar que a assistência privada à saúde no Brasil é beneficiada por consideráveis gastos tributários que correspondem, em termos comparativos, a um montante equivalente a cerca de 40% do orçamento destinado ao Ministério da Saúde, algo bem circunstanciado nos estudos de Carlos Octávio Ocké-Reis (a exemplo do disponível aqui). Enquanto a saúde pública tem sido alvo de propostas de ajuste que, direta ou indiretamente, visam desfinanciá-la, a saúde privada é fomentada por meio de crescentes renúncias fiscais. Nelson Rodrigues dos Santos denuncia há muitos anos ser essa uma deliberada agenda de entregar um “SUS pobre para os pobres”.

Mitigação deliberada

A despeito da evidente precariedade na prestação de tais serviços públicos essenciais e em face dos limites fiscais inscritos no PLDO/2025, parece ser iminente a pretensão da União de desacelerar e, com isso, deliberadamente mitigar a progressividade de custeio garantida constitucionalmente para os direitos fundamentais à saúde e à educação, mediante alteração do texto permanente da Constituição que buscará rever os respectivos pisos a que estão obrigados os três níveis da federação.

Todavia é preciso lembrar que a consecução das ações e serviços públicos de saúde no âmbito do SUS e a oferta estatal da educação básica obrigatória são deveres materialmente inalienáveis, sendo responsabilidade solidária de todos os entes federados a consecução tempestiva e plena dos respectivos instrumentos de planejamento setorial. Uma boa síntese do caráter indisponível do financiamento dos direitos sociais reside no seguinte excerto do magistral voto da ministra Rosa Weber nos autos da ADI 5.595, relativo à vedação de retrocesso no piso federal em saúde, mas obviamente extensível – analogicamente – ao direito à educação:

“é possível extrair da cláusula de universalização do acesso à saúde, imposta pelo art. 196 como dever do Estado, diretriz normativa que veda o abandono dos avanços sociais nessa área uma vez que tenham sido incorporados.

Exorbitaria, nessa ordem de ideias, do poder de emenda, a definição de conteúdos que, ao redefinirem o quadro de financiamento da dimensão prestacional do direito fundamental à saúde, cria situação de afastamento do Estado brasileiro em relação ao ditame de universalização do acesso a esse direito.

Para os fins de observância do disposto no art. 60, § 4°, IV, da CF, redução substancial do montante direcionado ao financiamento da saúde, ainda que transitória, somente se justificaria, a teor dos arts. 6º e 196 da Carta, diante de uma eventual redução do custo de assegurar esse direito (uma situação hipotética em que ocorra significativa queda no custo do fornecimento das ações e serviços de saúde, de tal modo que o nível atual de prestação dos serviços, ou a sua expansão, não se faça acompanhar por incremento do custo. Um exemplo seria uma revolução tecnológica que viesse a reduzir significativamente o custo de medicamentos ou equipamentos de saúde).

Todavia, enquanto os indicadores sociais revelarem que a satisfação do direito à saúde permanece, no país, abaixo de níveis excelência, qualquer redução no seu financiamento afronta o compromisso da Carta Política com a prevalência do direito fundamental à saúde.”

Aliado à reforma tributária que altera estruturalmente grande parte da base de cálculo dos pisos, um rearranjo dessa envergadura tende a se configurar como guinada copernicana no regime jurídico dos deveres de gasto mínimo em saúde e educação. Trata-se, como já dito, de proposta que visa à redução proporcional dos pisos de forma federativamente generalizada, sem que as obrigações materiais que resguardam os respectivos direitos fundamentais tenham sido equivalentemente rebaixadas.

A tendência, no médio prazo, é de explosão das demandas judiciais em busca da efetividade de ambos os direitos, isso porque a desaceleração da disponibilidade financeiro-orçamentária para o custeio vinculado dos direitos à saúde e à educação provavelmente será acompanhada da postergação e/ou do descumprimento total ou parcial das metas dos planejamentos sanitário e educacional.

Ora, é iníquo alterar o texto permanente da Constituição para rebaixar o piso da proteção social (quiçá passemos a falar em subsolo da saúde e porão da educação), em caráter definitivo e com efeitos nacionais, enquanto sequer é proposta uma correlata reflexão acerca da ilimitada e opaca pressão exercida pelas despesas financeiras sobre a dívida pública ou, ainda, enquanto persistem tantas renúncias fiscais mal monitoradas em suas finalidades precípuas. Daí se explica porque é controverso o conflito distributivo entre saúde e educação (despesas obrigatórias com controle de fluxo de pagamento), de um lado, e as despesas discricionárias que amparam as demais políticas públicas, de outro.

Nem se diga que aqui estamos a defender a imutabilidade dos pisos, porque o seu aprimoramento é medida desejável de justiça fiscal e eficiência alocativa. Reconhecemos a necessidade de superar a estrita dimensão quantitativo-formal de pisos e tetos, porque o desafio mais complexo que a sociedade brasileira tem diante de si é o da ordenação legítima de prioridades.

É preciso aprender a alocar os recursos públicos à luz da tríade inscrita no artigo 70 da Constituição: legitimidade, economicidade e legalidade, sem reducionismos maniqueístas. A grande reforma ausente na agenda governamental do país é a da qualidade e efetividade dos serviços públicos.

Debates que precisamos travar

Para quem almeja, de fato, melhores saúde e educação públicas, o ponto de partida para tanto é resgatar e enfrentar seus gargalos operacionais sistêmicos. No âmbito do SUS, o desafio é efetivamente resguardar a resolutividade da atenção primária à saúde de 80% a 90% dos problemas mais comuns de saúde da população (a esse respeito, vide estudo da Rede de Pesquisa em Atenção Primária à Saúde e da Associação Brasileira de Saúde Coletiva). No financiamento da educação, nenhum impasse é mais crônico do que a falta de regulamentação do custo aluno qualidade, a que se refere o artigo 211, §7º da CF/1988, tal como Salomão Ximenes e esta articulista escrevemos aqui.

Eis uma agenda de debates que precisamos travar, com consistência teórica e compromisso institucional, sob pena de a constitucionalização permanente e federativamente generalizada do subsolo da saúde e do porão da educação abrirem espaço fiscal para ainda maior iniquidade na consecução dos principais direitos sociais inscritos em nosso ordenamento.

Não deixa de ser irônica e bastante contraditória, aliás, a hipótese recentemente aventada na imprensa de que o governo federal poderia apoiar um piso de 2% do PIB em prol de despesas militares, ao mesmo tempo em que defende a redução proporcional das vinculações orçamentárias que amparam saúde e educação.

O retrocesso dessa pauta implícita no PLDO/2025 somente é equiparável à regressividade alocativa empreendida pelas ditaduras que outorgaram as Constituições de 1937 e de 1967/1969 e desconstruíram a garantia nonagenária de piso educacional atrelado à arrecadação estatal.

Mais cedo ou mais tarde, seremos chamados a fixar estruturalmente sobre o que é, afinal, prioridade alocativa dos orçamentos públicos, sob a égide da Constituição Cidadã de 1988.

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