Após efetivação da tutela cautelar antecedente, como deve se contar prazo do pedido principal?

Por algum tempo, persistiu dentro do STJ a divergência sobre a forma de contagem do prazo para apresentação do pedido principal após a efetivação da tutela cautelar antecedente.

A 3ª Turma entendia que o prazo seria processual e deveria ser contado em dias úteis, enquanto a 1ª Turma entendia que o prazo seria decadencial e deveria ser contado em dias corridos.

Essa divergência foi elucidada pela corte especial do Superior Tribunal de Justiça, quando do julgamento dos Embargos de Divergência EREsp 2066868, de relatoria do ministro Sebastião Reis Junior, que pacificou o entendimento que o prazo de 30 dias para se formular o pedido principal, após a efetivação da tutela cautelar incidental, tem natureza processual.

Por essa razão, devem ser aplicados em conjunto os artigos 308 do Código de Processo Civil e o artigo 219 do mesmo diploma, definindo-se que a contagem dos prazos de efetivará em dias uteis.

Em seu voto, o ministro relator exterioriza seu entendimento sobre as profundas e relevantes mudanças que a tutela cautelar antecedente sofreu entre a regulação dos CPC de 1973 e o vigente CPC de 2015. Dentre essas mudanças, concedeu especial destaque à forma como a provocação para concessão de tutela cautelar passou a ser efetivada, já que deixou de ser apresentada em ação autônoma e passou a integrar o mesmo processo do pedido principal.

Dessa maneira, quando o CPC/2015 estabelece que o pedido principal deve ser formulado nos mesmos autos em que foi requerida a tutela cautelar antecedente, resta extinta a autonomia do processo cautelar. Visto que o prazo de 30 dias não está mais relacionado ao ajuizamento de uma nova ação para perseguir o direito resguardado pela tutela cautelar antecedente. Sendo, sob essa nova ótica, o pedido principal a formulação de um pedido de tutela definitiva no processo já existente. Ou seja, o pedido principal é um ato processual, que produz efeitos no processo que já está em curso.

Sendo de grande aproveitamento em relação ao tema as lições do professor Fernando Gajardoni, na obra “Comentários ao Código de Processo Civil” (Forense, 2021, páginas 439/440), quando comenta que: “Achamos mais adequado classificá-lo como mero prazo preclusivo (interno ao processo), considerando que a formulação do pedido se faz na mesma relação jurídica processual já inaugurada com o pleito de tutela cautelar antecedente (tratando-se, pois, de prazo para a prática de ato processual)”.

Tutela cautelar antecedente

Observando o voto do ministro relator, fica fácil constatar a interpretação, com a qual particularmente concordamos, que com o CPC vigente existe apenas um processo. Sendo a tutela cautelar antecedente à etapa inicial, que será seguida de uma etapa posterior de apresentação do pedido principal, possibilitando assim uma maior abrangência da ação.

Fica claro na análise da manifestação do ministro Sebastião Reis Junior, quando do seu voto que a formulação do pedido principal dentro de 30 dias, é ponto obrigatório para manutenção da eficácia da tutela cautelar antecedente, inteligência do artigo 309, inciso II do CPC de 2015, sob pena de extinção do feito sem julgamento do mérito. Uma vez que a extinção se opera por força de Lei, cabendo ao magistrado apenas declarar a extinção e pôr fim ao processo sem a resolução de mérito, considerando a não observância obrigatória da parte em apresentar o pedido principal dentro de no máximo 30 dias úteis. Restando resguardado o direito material, já que com a extinção sem mérito a parte poderá propor o principal em outra demanda, mesmo com a perda da eficácia da tutela cautelar antecedente.

Acerta o STJ quando acaba com a divergência, concedendo segurança jurídica ao tema em questão, tornando ineficaz qualquer discussão sobre o tema em todos os tribunais do Brasil. E acerta, também, quando define o formato de contagem dos prazos em dias uteis, já que privilegia o texto da lei e de diversas outras decisões sobre o tema “contagem de prazos” de artigos distintos do CPC.

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Créditos de PIS/Cofins, industrialização por encomenda e o take or pay

Em face da escassez de recursos e das oscilações dos preços, as empresas aperfeiçoam feixes contratuais de execução continuada ou diferida com a finalidade de estabilizar a atividade produtiva e reduzir os custos de transação [1].

Um exemplo recorrente no agronegócio para minguar as despesas é o contrato de industrialização por encomenda, estipulado por razões de demanda, logística e especialidade [2].

Dentre as vantagens competitivas desse tipo contratual há a desnecessidade de um alto investimento inicial em máquinas fabris e a oportunidade de gerar uma estratégia fiscal e contábil previsível, afastando o cenário de uma elevada produção que ficará estocada devido à diminuição da procura pelo ativo.

No que tange aos efeitos fiscais relacionados ao PIS e a Cofins, há posicionamento da Receita Federal no sentido de que os valores despendidos a título de industrialização por encomenda são insumos na produção de bens e, por isso, geram créditos ao contribuinte, tal como se observa na Solução de Consulta Cosit nº 631/2017:

“EMENTA: CRÉDITO. INSUMO. INDUSTRIALIZAÇÃO POR ENCOMENDA. A pessoa jurídica encomendante pode descontar crédito da Contribuição para o PIS/Pasep em relação aos valores pagos a título de serviços de industrialização por encomenda, pois esses são considerados insumos na produção/fabricação de bens ou produtos destinados à venda. DISPOSITIVOS LEGAIS: Lei nº 10.637, de 2002, com alterações, art. 3º, II. ASSUNTO: CONTRIBUIÇÃO PARA O FINANCIAMENTO DA SEGURIDADE SOCIAL – COFINS EMENTA: CRÉDITO. INSUMO. INDUSTRIALIZAÇÃO POR ENCOMENDA. A pessoa jurídica encomendante pode descontar crédito da Cofins em relação aos valores pagos a título de serviços de industrialização por encomenda, pois esses são considerados insumos na produção/fabricação de bens ou produtos destinados à venda. DISPOSITIVOS LEGAIS: Lei nº 10.833, de 2003, com alterações, art. 3º, II.”

Cláusula de take or pay

Todavia, a análise tributária do creditamento é mais complexa em um cenário de contrato de industrialização por encomenda com cláusula de take or pay, a qual é utilizada com frequência nos mercados de fornecimento de insumos [3] e de serviços essenciais em algumas cadeias de produção, tal como na industrialização de fertilizantes.

A princípio [4], a cláusula de take or pay estabelece um cenário no qual o comprador terá que pagar (“pay”)  pelo bem ou serviço independentemente de utilizá-lo (“take”).

Consiste em uma cláusula tipicamente social de ambientes de alto investimento inicial, como construção de oleodutos, rodovias, usinas de energia elétrica e estrutura logística para fornecimento de insumos.

Promove-se uma assunção dos riscos, visto que de um lado o fornecedor terá um fluxo de caixa estável que amortizará o alto investimento inicial e resguardará uma previsibilidade futura [5] e, de outro, o comprador terá garantido o seu bem ou serviço por um valor pré-fixado, não sujeito às oscilações dos preços conforme aumentos sazonais da demanda.

Como é típica de ambientes de alto investimento inicial, o fluxo de caixa estável normalmente é requerido pelos credores no momento de realização de empréstimos para consecução da obra.

De modo exemplificativo, podemos imaginar uma empresa de logística que estabelece um contrato de take or pay com tradings companies que realizam a exportação de grãos.

De um lado, a transportadora necessita realizar um alto investimento inicial para criar uma rede ferroviária para viabilizar o translado dos grãos.

Do outro, as tradings companies dificilmente conseguem prever qual a quantidade de grãos que serão exportados.

Isso ocorre porque, como sabemos, o mercado de exportação de grãos é extremamente volátil devido à dependência do clima, dos preços dos insumos utilizados no cultivo e outros fatores como previsão da safra em outros países e estabilidade da geopolítica.

Nesse contexto, o aperfeiçoamento de um contrato de take or pay promove uma assunção dos riscos nas operações de ambas as partes.

A transportadora terá um fluxo de caixa estável diante do comprometimento do pagamento fixo das tradings companies independente do uso do transporte.

Com esse fluxo de caixa estabilizado, possivelmente a transportadora de grãos conseguirá linhas de crédito mais atrativas para consecução das suas obras com elevado investimento inicial.

Já as tradings, por sua vez, terão um espaço assegurado nos vagões a um preço pré-estabelecido, ou seja, o valor do transporte não estará sujeito às oscilações sazonais da demanda.

E essa finalidade de retorno mínimo resguardada pelo fluxo de caixa estável é normalmente requerida pelos credores de um Project Finance [6] e já foi observada pelo Poder Judiciário:

“A cláusula de take or pay, assim como a cláusula ship or pay e a cláusula make-up gas, é comum ao mercado de compra e venda de gás natural, o qual, por envolver atividade negocial de grande risco, exige que seja assegurado um retorno mínimo de investimento aos fornecedores de gás” [7].

Ademais, do ponto de vista legal, o artigo 1º, §4º, da Lei 10.312/2001 [8] positiva que:

“Entende-se por cláusula take or pay a disposição contratual segundo a qual a pessoa jurídica vendedora compromete-se a fornecer, e o comprador compromete-se a adquirir, uma quantidade determinada de gás natural canalizado, sendo este obrigado a pagar pela quantidade de gás que se compromete a adquirir, mesmo que não a utilize”.

Take or pay no agro

Sendo assim, a cláusula de take or pay está presente de modo significativo no setor do agronegócio e, apesar de ser um contrato atípico, já possui algumas positivações legais.

Do ponto de vista fiscal, como visto, a Receita Federal autoriza o contribuinte a apurar créditos de PIS/Cofins em relação às receitas derivadas de contratos de industrialização por encomenda.

Surge a dúvida então se ocorreria a manutenção desse posicionamento nas hipóteses que a fabricação por encomenda é regida por meio de uma cláusula de take or pay.

Isso porque para um bem ou serviço utilizado como insumo, o crédito no regime não-cumulativo se consubstancia no momento de sua aquisição, isto é, quando consumada a transferência de titularidade.

Precedentes

Nesse sentido, há diversos precedentes das instâncias ordinárias do Carf, tais como os proferidos nos acórdãos

“CONTRIBUIÇÃO PARA O FINANCIAMENTO DA SEGURIDADE SOCIAL (COFINS) Período de apuração: 01/10/2011 a 31/12/2011 INSUMOS. AQUISIÇÕES PARA ENTREGA FUTURA. CRÉDITOS. IMPOSSIBILIDADE. Os custos incorridos com aquisições de insumos para entrega futura não geram créditos da contribuição na data de emissão da nota fiscal de simples faturamento e sim no mês da emissão da nota fiscal da efetiva entrega dos produtos no estabelecimento do contribuinte, quando, de fato, ocorre o fato gerador da contribuição” [9]

“MOMENTO DO CREDITAMENTO. O cálculo do crédito de PIS e de COFINS deverá levar em conta as aquisições de bens, serviços e insumos ocorridas no mês, sendo que o termo “aquisição” exige o recebimento e contabilização do bem pelo destinatário. crédito não aproveitado em determinado mês poderá sê-lo nos meses subseqüentes” [10].

Na mesma linha, a CSRF se posicionou no Acórdãos 9303-012.971 (16/3/2022) e 9303-­007.630 (20/11/2018) no sentido de que o crédito a ser descontado se efetiva quando da entrega da matéria prima no momento em que há a transferência da propriedade e, consequentemente, a efetiva aquisição da mercadoria.

Nas razões de decidir de ambos os acórdãos, justificaram esse posicionamento à luz do art. 1.267 do Código Civil de 2002, o qual dispõe que a transferência da propriedade da mercadoria adquirida se efetiva no momento da tradição, isto é, quando a mercadoria é entregue ao adquirente.

Dessa forma, na hipótese da fabricante produzir toda a encomenda prevista contratualmente e transferir para a sua cliente, deve-se manter a possibilidade de creditamento em relação à industrialização por encomenda, haja vista que a presença da cláusula nada altera a relevância e essencialidade da industrialização por encomenda e, ainda, o próprio fisco reconheceu a natureza de receita da operação regida pelo take or pay:

“Solução de Consulta nº 311 – Cosit Data 4 de novembro de 2014 ASSUNTO: CONTRIBUIÇÃO PARA O FINANCIAMENTO DA SEGURIDADE SOCIAL – COFINS NÃO CUMULATIVIDADE. INCIDÊNCIA. VENDA. GÁS NATURAL. CLÁUSULA TAKE OR PAY. Os ganhos registrados em favor de distribuidora de gás natural, em um dado período de apuração da Cofins, decorrentes de vendas efetuadas em cumprimento da cláusula Take or Pay, sem a correspondente entrega do produto ao comprador, no transcurso do aludido período de apuração, devem ser reconhecidos como receitas abrangidas no âmbito de incidência dessa contribuição: (a) no momento em que se der a entrega posterior do produto (na hipótese em que o gás não demandado pelo comprador configura crédito em seu favor, a ser utilizado em momento futuro); ou (b) no momento em que registrado o ganho, independentemente do implemento de condição futura (na hipótese em que o gás não demandado pelo comprador não configura crédito em seu favor, para utilização futura). Dispositivos Legais: Lei nº 10.833, de 2003, art. 1º.” (grifou-se).

Por outro lado, em uma situação na qual a empresa pagará (“pay”) para a fabricante, mas não necessitará da encomenda (“take”), nota-se que, apesar do adimplemento da obrigação de pagar quantia, não ocorrerá uma transferência da titularidade do bem.

Em outras palavras, nem sempre o pagamento terá conexão com uma efetiva industrialização por encomenda.

Nesse caso, pertinente analisar o artigo 3º, §13 da Lei 10.833/2003, o qual estipula que:

 “Deverá ser estornado o crédito da Cofins relativo a bens adquiridos para revenda ou utilizados como insumos na prestação de serviços e na produção ou fabricação de bens ou produtos destinados à venda, que tenham sido furtados ou roubados, inutilizados ou deteriorados, destruídos em sinistro ou, ainda, empregados em outros produtos que tenham tido a mesma destinação”.

Pretende o legislador, neste parágrafo, destacar a necessidade de utilização do bem ou serviço para o seu enquadramento como insumo. Se o bem foi devidamente adquirido e em tese configura como insumo, mas não foi utilizado, seja devido a roubo, furto e outras hipóteses, torna-se necessário estornar o crédito inicialmente contabilizado e reconhecido.

Considerações finais

Sendo certo que o tema é complexo e não há decisões específicas sobre o objeto em análise, este artigo não possui a finalidade de esgotar a temática.

Sendo assim, não se nega que é possível sustentar, com risco de questionamentos, que a lei não exige expressamente a utilização, bastando a aquisição do bem ou serviço relevante e essencial para que ocorra o creditamento.

Todavia, uma visão mais conservadora seria no sentido de que no caso de não se utilizar da industrialização por encomenda, o pagamento desta pelo mínimo contratual (“take or pay”) não geraria crédito ou levaria ao seu estorno.


[1] SZTAJN, Rachel. Ronald  H. Coase e a importância de perguntar. Revista de Direito Empresarial.  São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013, pp. 201-209.

[2] CALCINI, Fábio Pallaretti. O crédito presumido de PIS/Cofins e a industrialização por encomenda. São Paulo: Consultor Jurídico, 2018, p.1. Disponível em: <https://www.conjur.com.br/2018-jan-12/direito-agronegocio-credito-presumido-piscofins-industrializacao-encomenda>. Acesso em: 03/05/2023.

[3] FRANCO, Nancy Gombossy de Melo; JUNIOR, Fernando Medici. A cláusula de take or pay. Disponível em: < https://direitoagrario.com/a-clausula-take-or-pay/>. Acesso em 03/05/2023.

[4] Pertinente o alerta feito por Vitor Silveira, para o qual “Não há como definir de forma única e geral a cláusula de take or pay, pois não há ‘resposta certa’ para sua delimitação, mas uma multiplicidade de respostas, as quais devem ser cotejadas racionalmente. VIEIRA, Vitor Silveira. A Cláusula de take or pay no Direito Privado Brasileiro: Qualificação, Regime e Aplicação. Vol. 106. Revista de Direito Privado, 2020, p. 2.

[5] Como é típica de ambientes de alto investimento inicial, o fluxo de caixa estável normalmente é requerido pelos credores no momento de realização de empréstimos para consecução da obra.

[6] SESTER, Peter. Take or pay Contracts in Project Finance: Focus on Gas Supply Contracts in Brazil. Chapter 13. International Arbitration in Latin American: Energy and Natural Resources Disputes; Kluwer Law International, 2021, p. 316.

[7] Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, Apelação Cível nº 70054145420, 20º Câmara Cível, Relator Desembargador Carlos Cini Marchionatti, j. 27.03.2019.

[8] Esta lei dispõe sobre a incidência das Contribuições para o PIS/PASEP e da Contribuição para o Financiamento da Seguridade Social nas operações de venda de gás natural e de carvão mineral. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/leis_2001/l10312.htm  Acesso em 03/05/2023.

[9] CARF, 3ª Seção, Ac. 3302-011.762 – 3ª Seção de Julgamento / 3ª Câmara / 2ª Turma Ordinária, Sessão de 21 de setembro de 2021.

[10] CARF, 3ª Seção, Ac. 3801005.038 – 1ª Turma Especial Sessão de 25 de fevereiro de 2015.

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Holding patrimonial e tributação

A compra e venda de imóveis, apesar de ser operação extremamente comum, é geradora de dúvidas aos contribuintes quando outros fatores se somam, por exemplo, o fato do imóvel ser rural, ser o proprietário pessoa jurídica que, dentre as suas atividades econômicas registradas, possui a “compra e venda de materiais” e a sua opção pela tributação pelo lucro real ou presumido.

 

Atividades econômicas como a administração e até a compra e venda de imóveis próprios costumeiramente são utilizadas na criação de pessoas jurídicas destinadas à gestão patrimonial e planejamento tributário, comumente denominadas como holding patrimonial.

Na contabilidade dessas sociedades, os imóveis por ela geridos são lançados em conta específica dentro do ativo imobilizado, quando utilizados no implemento da atividade da sociedade empresária (como sede, aluguéis, agricultura etc) ou do ativo circulante quando destinadas a venda. A reclassificação de tais bens na contabilidade é feito de forma ordinária e dinâmica, de acordo com as intenções dessa empresa para determinado bem e momento.

Esses fatores criam uma tempestade perfeita para que o contribuinte incorra em erros quando do recolhimento dos tributos.

Em 25 de março de 2024, a Receita Federal tornou pública a Solução de Consulta Cosit nº 25, que traz esclarecimentos sobre situação que abarca as variáveis acima e servirá de norte para o tratamento a ser dado pelo Fisco a situações similares.

 

O Fisco, a partir de diferenciação das naturezas daqueles bens lançados no ativo imobilizado (não circulante) e no ativo circulante de sociedades, concluiu que não afasta a incidência do IRPJ sobre o ganho de capital quando é realizada a reclassificação de imóveis antes destinados para uso próprio, passando a uma conta do ativo circulante para viabilizar a sua venda.

A Receita Federal também esclarece que, nessa condição, o prévio registro da sociedade para desenvolver atividade de “compra e venda” não desnatura a obrigação tributária, sendo necessário aferir a característica essencial desse bem, se destinado à consecução das operações da sociedade (não circulante) ou se está atrelado à efetiva atividade econômica da empresa (circulante).

Com essas considerações, o Fisco pontuou que, quando o imóvel vendido não fizer efetivamente parte do ativo circulante da sociedade, independentemente de reclassificação, deve ser apurado o ganho de capital, que comporá a base de cálculo do tributo, inobstante ser a sociedade tributada pelo lucro presumido, atraindo as regras nos artigos 25, inciso II, e 29, inciso II, da Lei nº 9.430, de 1996, e no artigo 215, § 3º, inciso I, da IN RFB nº 1.700, de 2017 para a tributação da operação.

As circunstâncias acima não sofrem a influência do fato do imóvel ser rural ou não, pois nessa primeira hipótese unicamente é importante que o contribuinte se atente ao disposto no artigo 19 da Lei nº 9.393/1996 quando da apuração do ganho de capital, pois o valor de aquisição (valor da terra nua) será aquele informado na declaração anual do ITR, a ser confrontado com o valor de venda.

A solução de consulta traz esclarecimentos a questões tributárias de interesse a produtores rurais e pelas ditas holdings patrimoniais que possuem em sua carteira terras rurais, que podem evitar erros no recolhimento de tributos, processos administrativos ou judiciais e dores de cabeça.

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Progressão direta do regime fechado para o aberto é legal, decide STJ

É possível a progressão do regime fechado ao aberto nos casos em que o detento cumpre os requisitos estabelecidos pela lei, sem que seja obrigatória a passagem pelo regime de pena intermediário. Nessas situações, deve ser respeitada a progressividade da pena e não deve ser imposto maior período de encarceramento apenas pela ausência de passagem pelo semiaberto.

 

Esse foi o entendimento do ministro Rogério Schietti, do Superior Tribunal de Justiça, para dar provimento a um Habeas Corpus em favor de uma mulher que teve a progressão para o regime aberto negada pelo fato de não ter passado pelo semiaberto.

No caso concreto, o cálculo da pena da ré mostrou que ela tinha direito à progressão para o regime aberto desde outubro de 2022, mas o pedido foi negado em primeira instância com a alegação de que a progressão seria precipitada, havendo a necessidade da permanência por 150 dias no regime semiaberto. A negativa foi mantida pela 2ª Câmara de Direito Criminal do Tribunal de Justiça de São Paulo.

 

Coação ilegal

A defesa sustentou no STJ que a ré sofreu coação ilegal, já que o legislador não estabeleceu um tempo mínimo de permanência nos regimes prisionais para a progressão para o menos gravoso, bastando apenas o preenchimento das frações previstas no artigo 112 da Lei de Execução Penal.

Ao analisar o caso, o ministro deu razão à defesa. “A contagem do prazo para a subsequente progressão de regime deve ter como marco inicial a data em que restaram preenchidos todos os requisitos legais, sendo irrelevante a data da efetiva remoção para o regime intermediário”, registrou Shietti, que citou o entendimento fixado no julgamento do AgRg no HC 790.354/SP, de relatoria do ministro Joel Ilan Paciornik.

Diante disso, ele concedeu o HC e determinou que o juízo de origem reexamine o pedido de progressão, considerando como data-base para a concessão do benefício aquela em que a ré preenche os requisitos estabelecidos no artigo 112 da LEP para progredir para o regime semiaberto.

A autora foi representada pelo escritório Fortes, Lopes, Siebner Advogados.

Clique aqui para ler a decisão
HC 887.977

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STJ veta que multa por decisão descumprida seja revisada seguidas vezes

A multa por descumprimento de decisão judicial pode ser alterada ou até excluída pelo juiz a qualquer momento. Uma vez feita a alteração, no entanto, não serão lícitas novas e sucessivas revisões, sob pena de desestimular que o devedor cumpra a obrigação.

 

Multa pode ser alterada, mas não de modo a incentivar descumprimento da decisão

Essa é a conclusão da Corte Especial do Superior Tribunal de Justiça, que decidiu por maioria apertada de votos que o Poder Judiciário deve ser mais rigoroso no trato daqueles que se recusam a cumprir uma ordem judicial.

O caso julgado trata de um banco que firmou acordo com um devedor. O homem se dispôs a quitar dívida de R$ 1,9 mil e a instituição se comprometeu a retirar o gravame que incidia sobre seu nome.

A obrigação foi firmada em 2010 e, 14 anos depois, o banco ainda não fez a sua parte. Nesse período, a única medida tomada pela instituição financeira foi solicitar várias vezes a redução da multa diária aplicada contra ela pelo descumprimento da obrigação.

Tanto o valor da multa diária quanto o montante total que ela alcançou foram alterados pelo Judiciário mais de uma vez e, mesmo assim, a instituição financeira não cumpriu a obrigação de retirar o gravame.

A última impugnação foi feita quando o homem promoveu execução no valor de R$ 529 mil, valor que hoje, atualizado, já ultrapassa R$ 735 mil. Essa tentativa do banco foi rejeitada por 6 a votos a 5 pela Corte Especial do STJ.

 

“Não é licito modificar o que já foi modificado”, destacou o ministro Cueva – José Alberto/STJ

 

Efeito prospectivo

A corrente vencedora, que rejeitou o pedido do banco, foi formada por duas linhas de argumentação.

O primeiro voto divergente foi do ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, para quem a decisão que altera o valor da multa diária deve ter efeitos prospectivos — ou seja, o valor acumulado até esse momento específico não deve ser alterado.

Para Cueva, essa foi a intenção do legislador quando colocou no artigo 537, parágrafo 1º, do Código de Processo Civil que o juiz poderá modificar o valor ou a periodicidade da “multa vincenda”.

“Só tem direito à redução da multa aquele que abandona a recalcitrância. Trata-se de espécie de sanção premial, consequência jurídica positiva para estimular o comportamento indicado pela norma legal, independentemente de sua natureza”, disse o magistrado.

Além disso, ele defende a ocorrência da preclusão pro judicato ao caso, segundo a qual não cabe ao juiz apreciar uma questão que já foi decidida. No julgamento da semana passada, após voto-vista do ministro Raul Araújo, Cueva esmiuçou melhor essa posição.

“É possível, sim, modificar uma decisão que comina multa por descumprimento de decisão judicial. Mas não é licito modificar o que já foi modificado.”

Em sua análise, essa posição não fere a tese do Tema 706 dos recursos repetitivos, segundo a qual “a decisão que comina astreintes não preclui, não fazendo tampouco coisa julgada”.

“Uma vez fixada a multa, é possível alterá-la ou excluí-la a qualquer momento. No entanto, uma vez reduzido o valor, não serão lícitas sucessivas revisões ao talante do inadimplente recalcitrante, sob pena de estimular e premiar renitência sem justa causa.”

 

Para ministra Nancy, multa pode ser alterada se houver novo motivo para tanto

 

Depende do motivo

A outra linha de argumentação foi apresentada em voto da ministra Nancy Andrighi. Para ela, o valor da multa ou o montante total acumulado podem ser seguidamente alterados, desde que exista causa superveniente para isso em cada ocasião.

“A mudança sem uma circunstância superveniente que a justifique não deve ser admitida”, explicou a magistrada. Em sua análise, esse é o caso julgado: não há motivo que autorize o banco a, mais uma vez, solicitar a redução do valor da multa.

Na conclusão, o voto dela acompanha o do ministro Cueva. Também chegaram ao mesmo resultado e formaram a maioria os ministros Herman Benjamin, Benedito Gonçalves, Antonio Carlos Ferreira e Sebastião Reis Júnior.

 

Engessamento desnecessário

Ficou vencido o relator, ministro Francisco Falcão, que votou por autorizar a redução do excessivo valor acumulado a título de multa. Ele foi acompanhado pelos ministros Humberto Martins, Luis Felipe Salomão, Mauro Campbell e Raul Araújo.

Para Salomão, o STJ não deveria “engessar” a análise do tema. “Se amarramos o julgador, estamos em uma situação em que se poderá verificar uma enorme dificuldade em situações extraordinárias. Ficaríamos aqui de mãos atadas.”

 

Já Raul Araújo afirmou que a posição da divergência afronta a tese do Tema 706. “Quando dizemos que o juiz pode rever a multa a qualquer tempo, não estamos tirando a segurança jurídica. Cabe ao julgador aplicar ou não essa possibilidade.”

EAREsp 1.766.665

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Clássicos aduaneiros: o direito da integração

Em 12/07/2022, aqui em Território Aduaneiro, foi apresentado texto sobre os “clássicos aduaneiros” (Por que ler os clássicos? — versão Direito Aduaneiro[1]. Naquela ocasião, inspirando-se em Italo Calvino, definiu-se sintética e precisamente “clássico” como o livro que você teria vergonha de dizer que não leu.

Pensando na democratização do acesso à bibliografia aduaneira, inaugura-se aqui uma série de resenhas de clássicos aduaneiros. O objetivo não é poupar o leitor da coluna de efetivamente ler as obras clássicas, ou “explicar de forma simplificada” [2] as obras clássicas. Pelo contrário, busca-se convidar o leitor a conhecer mais sobre a obra. Ou seja, não se trata de sinopse, mas de trailer do filme, de amostra grátis.

O autor e a obra clássica

E decidimos iniciar a jornada pela obra “Derecho de la Integración”, lançada em 2023, de autoria de Ricardo Xavier Basaldúa [3], um dos juristas que mais publicou obras de referência sobre Direito Aduaneiro nas últimas décadas.

A obra conta com uma Parte Geral, composta por quatro Capítulos (“Introdução”, “Integração”, “As Etapas dos Processos de Integração”  e “O Direito da Integração”), e com uma Parte Especial, com seis capítulos (“O Direito da União Europeia”, “O Mercado Comum Centro americano”, “A Associação Latino Americana de Integração — Aladi”; “O Direito da Integração da Comunidade Andina”, “O Direito da Integração do Mercosul” e “O Tratado de Livre Comércio de México, Estados Unidos e Canadá — T-MEC”).

Lamentavelmente comercializado apenas na forma eletrônica (e-book), para tormenta dos que preferem manusear folhas de papel, o livro está disponível no site da Ed. Thomson Reuters da Argentina. [4]

Multilateralismo, regionalismo e bilateralismo

Existem três tendências principais no modo de os países se relacionarem por meio do comércio internacional: o multilateralismo, o regionalismo e o bilateralismo. Historicamente, os países se vinculavam por tratados bilaterais, posto que não havia uma livre e ampla circulação de mercadorias, em face de posturas frequentemente protecionistas.

Após a 2ª Guerra Mundial, surge uma nova ordem econômica e a ideia de que as mercadorias deveriam ser tratadas da mesma maneira no momento da importação, tanto do ponto de vista tarifário quanto dos demais temas vinculados ao Direito Aduaneiro, constituindo a base do multilateralismo, que deságua na elaboração do Acordo Geral sobre Tarifas Aduaneiras e Comércio (Gatt) de 1947, episódio que dá origem a série que direcionaria, na década de 90 do século passado, à criação da Organização Mundial do Comércio, na Rodada Uruguai.

O propósito de integração econômica foi alcançado, especialmente, quando minimizaram-se os confrontos entre os países europeus, consolidando a paz em um continente marcado por conflitos bélicos.

O Gatt, fomentador da não discriminação e do livre comércio, acabou permitindo exceções, v.g., sem seu Artigo XXIV, que trata de uniões aduaneiras e zonas de livre comércio, objetivando principalmente a integração da Europa para promover a paz e acabar com os conflitos na região.

Outros países seguiram o exemplo, resultando na proliferação de acordos de integração em todo o mundo. De tal modo, o Direito da Integração assume especial relevância para regular essa realidade, notadamente diante do avanço da globalização e dos conflitos comerciais.

Essas premissas norteiam a obra, que traz os fundamentos jurídicos e históricos da integração regional, e a evolução dos principais blocos econômicos.

Teoria Geral da Integração

Na parte geral, trata-se do cenário e da base jurídica dos processos de integração como exceção ao princípio da não discriminação, como alicerces para uma Teoria Geral da Integração, tratando de conceitos, processos, formas e alcance.

Já na introdução, apresenta-se contextualização histórica da movimentação de mercadorias, destacando-se que jamais tivemos uma livre movimentação mundial com um grande mercado único, e que, na verdade, a entrada de mercadorias provenientes do estrangeiro estava sujeita a restrições de naturezas diversas desde a antiguidade, inclusive a nacionalismos.

A França é apontada como a precursora de um nacionalismo econômico designado por Colbertismo, por conta de seu criador Jean-Baptiste Colbert (1619-1683), o qual propôs uma regulamentação aduaneira em 1687 que conformou uma política protecionista naquele país, logo se espalhando para outros locais com a denominação de mercantilismo.

A próxima fase de integração foi o multilateralismo, com a elaboração do Gatt/1947, consagrando um ideal de liberdade de comércio sem discriminações, ideal esse que contemplava exceções (por exemplo, em seu artigo XXIV), inicialmente para que pudesse ocorrer a integração da Europa, mas posteriormente estendidas a outros países, ocasionando uma terceira tendência: o regionalismo.

Depois de se apresentar conceito para a integração, relacionado à existência de partes com as quais se procura conformar um todo, explica-se que a integração econômica pode ser entendida como uma situação que se caracteriza pela ausência de várias formas de discriminação entre as economias nacionais e como um processo que se concebe como um conjunto de medidas dirigidas a abolir progressivamente a discriminação entre os países.

São ainda tratados de forma detalhada os processos de integração econômica, diferenciando-se cooperação de integração, analisando-se a integração econômica no sistema jurídico internacional, com a visão de que a integração constitui um meio que pode transcender interesses econômicos.

Apresentam-se ainda as etapas dos processos de integração, à luz da teoria de Bela Balassa, distinguindo as formas em que se manifestam, como zonas de preferências econômicas, zonas de livre comércio, uniões tarifárias, mercados comuns, uniões econômicas e uniões monetárias.

A parte geral da obra culmina em definição do Direito da Integração como aquele que regula o processo ou conjunto de ações tendentes a redução ou eliminação de discriminações ao comércio ou às atividades econômicas entre os Estados que se comprometeram com esse processo, traçando-se linhas distintivas e pontos de intersecção entre o Direito da Integração e o Direito Internacional Público, e destacando a importância do Direito Aduaneiro nos processos de integração.

Processos de integração regional

Na parte especial da obra, são analisados importantes processos de integração regional: a União Europeia, o Mercado Comum Centro-Americano, a Aladi, a Comunidade Andina, o Mercosul e o Tratado de Livre Comércio da América do Norte (T-MEC).

Inicia-se a análise dos blocos regionais de integração com considerações sobre o Direito da União Europeia, no qual são delineados os antecedentes históricos que levaram à assinatura dos tratados de constituição da Comunidade Econômica Europeia em 1957, bem como os principais acontecimentos até o ano de 2023.

São analisadas as fontes jurídicas da União Europeia, o seu direito originário e derivado, os princípios da proporcionalidade e subsidiariedade, os órgãos que ditam o direito originário e as características do Direito Comunitário Europeu, o seu âmbito espacial de aplicação e a configuração do território aduaneiro comunitário, culminando a análise em reflexão sobre problemas atuais e perspectivas.

Na sequência, é analisado o Mercado Comum Centro-Americano, formado por Belize, Costa Rica, El Salvador, Guatemala, Honduras, Nicarágua e Panamá. Se no capítulo anterior se dedica ao processo mais avançado de integração do mundo, agora se estuda um dos mais antigos, firmado em 14/10/1951 com a Carta de San Salvador, inspirada fortemente pela Cepal (Comissão Econômica para a América Latina), com o objetivo de formalizar uma união aduaneira.

Além de descrever minuciosamente os antecedentes históricos, são ainda analisadas as fontes jurídicas do Mercado Comum Centro-americano, tanto de direito originário quanto derivado.

A Aladi também é merecedora de estudo autônomo, a partir de contextualização histórica, com evidenciação das fontes jurídicas originárias e derivadas, avaliando-se também a vinculação (de continência) da Aladi com o Mercosul, com considerações sobre as perspectivas do processo de integração.

A Aladi prevê três categorias de países, em termos econômicos: países de maior desenvolvimento relativo (Argentina, Brasil e México), países de desenvolvimento intermediário (Colômbia, Chile, Panamá, Peru, Uruguai, Venezuela e Cuba) e países de menor desenvolvimento econômico relativo (Bolívia, Equador e Paraguai).

O Direito da Integração da Comunidade Andina, formado atualmente por Bolívia, Colômbia, Equador e Peru, é analisado na sequência, destacando-se que o Chile se retirou do bloco em 1976, mas está novamente associado, e que a Venezuela se retirou em 2006, considerando o autor a tendência de que este país regresse à Comunidade Andina, por razões históricas, geográficas, sociais e de natureza econômica. Também para tal bloco são analisadas as fontes jurídicas originárias e derivadas, com ampla e relevante bibliografia, característica que, aliás, permeia toda a obra.

Mercosul e T-MEC

O Direito da Integração do Mercosul, bloco econômico regional formado originariamente por Brasil, Paraguai, Argentina e Uruguai, que já havia sido analisado em obra anterior do autor [5], é contextualizado historicamente, propiciando substrato para análise das fontes jurídicas, do direito originário e secundário, da estrutura institucional, do sistema de solução de controvérsias, da situação atual, e dos problemas e perspectivas.

A parte especial do livro é encerrada com uma análise do Tratado de Livre Comércio firmado entre México, Canadá e Estados Unidos (T-MEC), que substituiu o tratado conhecido como Nafta (1992). O autor analisa as fontes jurídicas do tratado em sua versão atual (T-MEC, 2020), também descrevendo a estrutura e sistema de solução de controvérsias do processo, com rica reflexão sobre desafios e perspectivas.

O “Direito da Integração” de Ricardo Xavier Basaldúa analisa de modo sistemático o tema proposto, com o rigor metodológico, a profundidade das explicações e a extensa pesquisa bibliográfica, características que, destaque-se, já constituem marca do autor.

Está-se diante de livro que já nasce clássico, como obra fundamental para os estudiosos do Direito Aduaneiro, e que desejamos que em breve tenha versão impressa. Convidamos, por fim, os leitores da coluna que acompanharam este trailer de filme, a aprofundarem-se nesse interessante universo dos processos de integração regional, na sempre boa companhia de Ricardo Xavier Basaldúa.

____________________________

[1] Disponível em: https://www.conjur.com.br/2022-jul-12/territorio-aduaneiro-ler-classicos-versao-direito-aduaneiro/. Acesso em 8.abr.2024.

[2] Sobre os riscos que envolve a atividade de “explicar de forma simplificada” obras clássicas, remete-se a: TREVISAN, Rosaldo. Para entender Kelsen… (e os riscos do “telefone sem fio”). In: VALLE, Maurício Dalri Timm do; COSTA, Valterlei da (Coord.). Estudos sobre a Teoria Pura do Direito: homenagem aos 60 anos de publicação da 2ª edição da obra de Hans Kelsen. São Paulo: Almedina, 2023, p. 575-601.

[3] Ricardo Xavier Basaldúa é autor de 14 livros e dezenas de artigos em, matéria aduaneira. Foi corredator do Código Aduaneiro Argentino de 1981, delegado argentino no Comitê Técnico Permanente do Conselho de Cooperação Aduaneira (hoje conhecido como Organização Mundial das Aduanas) de 1971 a 1992, tendo presidido tal comitê em 1982-1983, e foi Presidente do Tribunal Fiscal da Nação Argentina (2016-2019), tendo integrado a lista de terceiros árbitros presidentes para Solução de Controvérsias no MERCOSUL. É membro fundador da Academia Internacional de Direito Aduaneiro.

[4] Disponível em: https://tienda.thomsonreuters.com.ar/derecho-de-la-integracion—2023/p. Acesso em 8.abr.2024.

[5] BASALDÚA, Ricardo Xavier. Mercosur y derecho de la integración. 2. Ed. Buenos Aires: Abeledo Perrot, 2011.

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Resolução do CNJ de cota social para mulheres é inconstitucional

Os critérios de antiguidade ou de mérito para promoção de magistrados estão previstos no Texto Constitucional e na Lei Complementar nº 35/1979 (Lei Orgânica da Magistratura Nacional – Loman). Eis, pois, o teor do artigo 93 da CF/88 que é claro ao definir que:

“Art. 93. Lei complementar, de iniciativa do Supremo Tribunal Federal, disporá sobre o Estatuto da Magistratura, observados os seguintes princípios:

II – promoção de entrância para entrância, alternadamente, por antigüidade e merecimento, atendidas as seguintes normas:

  1. a) é obrigatória a promoção do juiz que figure por três vezes consecutivas ou cinco alternadas em lista de merecimento;
  2. b) a promoção por merecimento pressupõe dois anos de exercício na respectiva entrância e integrar o juiz a primeira quinta parte da lista de antigüidade desta, salvo se não houver com tais requisitos quem aceite o lugar vago;
  3. c) aferição do merecimento conforme o desempenho e pelos critérios objetivos de produtividade e presteza no exercício da jurisdição e pela freqüência e aproveitamento em cursos oficiais ou reconhecidos de aperfeiçoamento; (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 45, de 2004)
  4. d) na apuração de antigüidade, o tribunal somente poderá recusar o juiz mais antigo pelo voto fundamentado de dois terços de seus membros, conforme procedimento próprio, e assegurada ampla defesa, repetindo-se a votação até fixar-se a indicação; (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 45, de 2004)
  5. e) não será promovido o juiz que, injustificadamente, retiver autos em seu poder além do prazo legal, não podendo devolvê-los ao cartório sem o devido despacho ou decisão; (Incluída pela Emenda Constitucional nº 45, de 2004)

III – o acesso aos tribunais de segundo grau far-se-á por antiguidade e merecimento, alternadamente, apurados na última ou única entrância; (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 45, de 2004) (Vide ADI 3.392)
(…)”
(grifos meus)

Ora, esta norma constitucional estabelece os princípios básicos que devem reger a carreira do magistrado sendo, pois, uma norma de eficácia plena e aplicabilidade imediata, que independe de regulamentação [1].

Em 2023, entretanto, foi aprovada a Resolução do Conselho Nacional da Magistratura nº 525/2023, que trouxe modificações ao artigo 1º da Resolução CNJ 106/2010 [2], nos seguintes termos:

RESOLVE:
Art. 1º. O art. 1º da Resolução CNJ n. 106/2010 passa a vigorar acrescido do art. 1º-A:
“Art. 1º-A No acesso aos tribunais de 2º grau que não alcançaram, no tangente aos cargos destinados a pessoas oriundas da carreira da magistratura, a proporção de 40% a 60% por gênero, as vagas pelo critério de merecimento serão preenchidas por intermédio de editais abertos de forma alternada para o recebimento de inscrições mistas, para homens e mulheres, ou exclusivas de mulheres, observadas as políticas de cotas instituídas por este Conselho, até o atingimento de paridade de gênero no respectivo tribunal.

  • 1º Para fins de preenchimento das vagas relativas à promoção pelo critério de merecimento, os quintos sucessivos a que alude o art. 3º, § 1º, aplicam-se a ambas as modalidades de edital de inscrição (misto ou exclusivo de mulheres) e devem ser aferidos a partir da lista de antiguidade, com a observância da política de cotas deste Conselho.
  • 2º Para fins de aplicação do art. 93, II, a, da Constituição Federal,a consecutividade de indicação nas listas tríplices deve ser computada separadamente, conforme a modalidade de edital aberto (exclusivo ou misto), salvo a hipótese de magistrada que tenha figurado em lista mista, considerando-se consecutiva a indicação de: a) magistrado ou magistrada que figurou em duas listas seguidas decorrentes de editais com inscrições mistas, independentemente do edital de inscrição exclusiva de mulheres que tenha sido realizado entre eles; b) magistrada que figurou em duas listas seguidas, decorrentes de editais com inscrições exclusivas de mulheres, independentemente do edital de inscrição misto que tenha sido realizado entre eles; c) magistrada que figurou em duas listas seguidas decorrentes, uma de edital de inscrição exclusiva para mulheres e outra de edital de inscrição mista, ou vice-versa.
  • 3º Ficam resguardados os direitos dos magistrados e das magistradas remanescentes de lista para promoção por merecimento, observados os critérios estabelecidos nesta Resolução quanto à formação de listas tríplices consecutivas.
  • 4º Para a aferição dos resultados, o CNJ deverá manter banco de dados atualizado sobre a composição dos tribunais, desagregado por gênero e cargo, especificando os acessos ao 2º grau de acordo com a modalidade de editais abertos.
  • 5º As disposições deste artigo não se aplicam às Justiças Eleitoral e Militar.” (NR)

Art. 2º Esta Resolução entra em vigor em 1º de janeiro de 2024 e aplica-se às vagas abertas após essa data.”

Ora, disposições da Lei Maior não estão sujeitas a quaisquer disposições de leis infraconstitucionais, visto que a estas cabe apenas explicitar o que no Texto Constitucional contido estiver e, jamais, subordinar a Carta Magna aos humores do legislador menor.

Em outras palavras, não poderia nem a Loman, nem tampouco atos inerentes ao poder regulatório dos Tribunais ou do Conselho Nacional de Justiça, instituir qualquer restrição não contida na Constituição. Isso se dá à medida em que:

  • restrição não imposta pela Lei Suprema não pode ser imposta por lei ou ato infraconstitucional;
  • a Lei Suprema não pode estar subordinada à exegese do legislador inferior, naquilo que aumente ou reduza o espectro de atuação;
  • qualquer ato ou lei deve ser sempre interpretado, à luz da Constituição.

Leis da hermenêutica

E aqui cabe outra consideração de hermenêutica constitucional. Considerando que o direito se interpreta pelo conjunto de suas normas, princípios e institutos, não pode o intérprete afastar-se das leis da hermenêutica por conivência ou conveniência, “pro domo sua”.

Não se trata aqui de dar INTERPRETAÇÃO EXTENSIVA AO TEXTO LEGAL, mas, sim, de atribuir-lhe interpretação literal, estrita, como exige o princípio da estrita legalidade, previsto no artigo 5º XIII da CF.

Muito embora as mulheres mereçam aplausos por toda a sua dedicação e dificuldades encontradas no mercado de trabalho, não se pode, entretanto, deixar de reconhecer que cada vez mais o número de mulheres na justiça e na sociedade vem aumentando.

Não basta, portanto, o aumento do número de vagas para mulheres no Judiciário, buscando um critério de igualdade, sem que ocorram determinadas mudanças de padrões de comportamento, pois se não mudarmos a mentalidade da sociedade de que ainda a mulher seria subordinada, frágil e reconhecida por sua beleza, essa realidade social não mudará.

As mulheres têm o direito de serem reconhecidas pela sua dedicação, desempenho e méritos próprios e o fato de dar-lhes um percentual de cotas apenas traria às mesmas ainda mais o ônus de que estariam naquele órgão não por seus méritos.

Vale dizer, a resolução implica em serem classificadas pelo simples fato de serem “mulheres” e, não em função de sua “competência” e “antiguidade”, critérios objetivos para sua promoção junto ao Tribunal que representa.

A sociedade e a magistratura devem reconhecer tais questões e trabalhar de forma efetiva em busca de mudanças, principalmente trazendo as mulheres cada vez mais para os cargos de liderança, como ocorreu, por exemplo, na OAB-SP, que na última eleição, elegeu a primeira mulher, a dra. Patrícia Vanzonili, para presidir a maior seccional deste país.

Assim, a representatividade das mulheres junto ao Poder Judiciário torna-se um desafio diário a ser enfrentado com o envolvimento de todos e não por meio de critérios ideológicos, como no caso da Resolução do CNJ supramencionada.

Em se tratando de hierarquia das fontes formais de direito, uma norma inferior somente pode ser considerada como válida, se tiver sido criada na forma prevista pela norma superior — o que efetivamente ocorre no presente caso, vez que os atos regulamentares tiveram apenas o condão de complementar a legislação existente, sem ampliar ou restringir seu conteúdo normativo, pois a Lei Orgânica da Magistratura — sendo lei complementar — não apresenta conceitos vagos.

Pode-se afirmar, portanto, que a Resolução do Conselho Nacional de Justiça 525/2023 dispôs não só além do que determina a legislação própria que versa sobre tal matéria — Estatuto da Magistratura — mais também do próprio Texto Constitucional.

Evidentemente, não pode a referida resolução ultrapassar os limites da lei, muito menos exercer controle constitucional de editais de promoção dos Tribunais. Isso porque, a competência do CNJ é de dar efetividade às regras constitucionais e infraconstitucionais, não podendo contrariar normas ou inovar no ordenamento jurídico [3].

Por outro lado, a referida resolução ainda macularia de morte o princípio da igualdade, que é a base do regime democrático de direito — tão relevante, que é reiterado em diversos dispositivos — e colocado, em enfático pleonasmo, três vezes, no “caput” e no inciso I, do artigo 5º, para dirimir quaisquer veleidades hermenêuticas. Estão, o artigo e seu inciso, assim redigidos:

“Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito ]à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:

I – homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações, nos termos desta Constituição” (grifamos).

Não há democracia, sem isonomia, que exige tratamento igual entre os iguais e desigual entre os desiguais para gerar a igualdade, nos termos da contestação de Sócrates a Cálicles, no célebre diálogo “Gorgias” de Platão.

Ora, nos tribunais, todos os magistrados são iguais, razão pela qual haveria fantástica violação à Lei Maior, se fossem tratados desigualmente, com base em critérios de igualdade de gênero.

Portanto, a Resolução do CNJ se encontra eivada de manifesta inconstitucional, podendo ensejar, por se tratar de ato normativo do Conselho Nacional de Justiça, ação direta de inconstitucionalidade.

Vale ainda constatar que o critério merecimento cumpre guardar, em alguma medida, relação com o atendimento ou com o adequado atendimento aos princípios da Administração Pública, a saber, legalidade (cujo desapego pode implicar a ideia de “desmerecimento”), impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência.

Não se pode, assim, sequer imaginar válido qualquer critério de aferição do merecimento absolutamente despregado desses vetores. É critério, por assim dizer, aferível funcionalmente, à luz do desempenho funcional do magistrado. E o gênero, com o devido respeito, não guarda nenhuma relação com esses princípios.

Importante pontuar, ainda, que não se desconhece as dificuldades do que poderia ser entendido por “merecimento”, ainda mais se considerarmos as especificidades próprias de cada unidade judiciária.

‘Merecimento’

Contudo, se há uma dificuldade de esclarecer critérios seguros e objetivamente controláveis, para não se cair no domínio da plena subjetividade, do que se possa entender por “merecimento”, é tarefa mais simples compreender o que não se pode ter por merecimento, o que não pode ter-se por um critério válido para a compreensão do termo, e parece claro que o gênero não é critério válido para tal.

Com efeito, a despeito da reconhecida vagueza semântica do conceito, há certas balizas que compõem por assim dizer um núcleo semântico mínimo do que se pode compreender por merecimento e antiguidadeque não pode ser desprezado, quer pelo legislador, quer pelo administrador, quer pelo intérprete [4].

Isso porque, seja na antiguidade, seja no merecimento se promoverá qualquer gênero, seja homem ou mulher. Trata-se, como já visto, de critério justo, objetivo e democrático, por meio do qual tanto juízes quanto juízas sabem, desde quando ingressam na carreira que os critérios utilizados para sua promoção são antiguidade e merecimento, em situação da mais absoluta igualdade, não dando margem, assim, a inclusão de qualquer outro requisito que não os previstos no Texto Maior.

Atualmente, por exemplo, no âmbito do estado de São Paulo, o Tribunal de Justiça conta com aproximadamente 40% de mulheres na magistratura. Ou seja, há, praticamente, já em vias de concretização, um critério de igualdade, considerando, ainda que com o passar do tempo, teremos o atingimento da paridade de gênero, até considerando que as mulheres são mais dedicadas e, muitas vezes, mais competentes que os homens.

Interessante observar que não seria admissível a ocorrência de um concurso para juízes, baseado em barreiras aplicáveis aos candidatos por conta de seu sexo.

A norma constitucional sempre delega ao administrador público um critério de discricionariedade que, entretanto, não pode ser incompatível com os princípios constitucionais, especialmente o da legalidade, sem qualquer razoabilidade para tanto.

Nesse sentido, recentemente, o Plenário do Supremo Tribunal Federal, nos autos da ADI 7.486, referendou liminar que determinou que eventuais nomeações para o cargo de soldado do Corpo de Bombeiros Militar do estado do Piauí se deem sem as restrições de gênero previstas no edital do concurso público.

Já na ADI 7.488, foi confirmada a homologação de acordo que autorizou a continuação de concursos para a Polícia Militar e o Corpo de Bombeiros Militar do estado de Mato Grosso, também sem restrições de gênero.

Ora, se o merecimento é requisito exigido para o bem da sociedade, pois quanto melhor o magistrado, melhor o serviço prestado, não pode ser superado por um critério que procura beneficiar o gênero, ou seja, para o benefício pessoal do juiz.

Por todo o exposto, entendo que a Resolução do Conselho Nacional de Justiça é inconstitucional.

_________________________

[1] Nesse sentido, já decidiu o Supremo Tribunal Federal: ADI 189, rel. min. Celso de Mello, j. 9-10-1991, P, DJ de 22-5-1992 e MS 28.447, rel. min. Dias Toffoli, j. 25-8-2011, P, DJE de 23-11-2011.

[2] A Res. 106/2010 dispõe sobre os critérios objetivos para aferição do merecimento para promoção de magistrados e acesso aos Tribunais de 2º grau.

[3] Nesse sentido, já decidiu o Supremo Tribunal Federal: ADI 4.638 MC-REF, rel. min. Marco Aurélio, voto do min. Ricardo Lewandowski, j. 8-2-2012, P, DJE de 30-10-2014; MS 27.033 AgR, rel. min. Celso de Mello, j. 30-6-2015, 2ª T, DJE de 27-10-2015 e AO 1789, Relator(a): ROBERTO BARROSO, Tribunal Pleno, julgado em 10-10-2018, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-230 PUBLIC 29-10-2018.

[4] Nesse sentido, tem sido o entendimento do Supremo Tribunal Federal: ADI 4.462, rel. min. Carmen Lúcia, j. 18-8-2016, P, DJE de 14-9-2016; RE 239.595, rel. min. Sepúlveda Pertence, j. 30-3-1999, 1ª T, DJ de 21-5-1999; ADI 4.108 MC-REF, rel. min. Ellen Gracie, j. 2-2-2009, P, DJE de 6-3-2009 e ADI 189, rel. min. Celso de Mello, j. 9-10-1991, P, DJ de 22-5-1992.

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A obrigação de não concorrência no anteprojeto do novo Código Civil

No início de setembro de 2023, por meio do ato do presidente do Senado Federal nº 11/2023, instituiu-se a Comissão de Juristas responsável pela revisão e atualização do Código Civil. A presidência da referida comissão ficou sob responsabilidade do ministro Luis Felipe Salomão e a vice-presidência, a cargo do ministro Marco Aurélio Bellizze. A relatoria-geral foi designada para a professora Rosa Maria Nery e o professor Flávio Tartuce.

A finalidade da comissão consiste em apresentar, no prazo de 180 dias, o anteprojeto de lei para a atualização da Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002 (o Código Civil) [1]. Para tanto, a comissão foi dividida internamente em oito subcomissões com relatores parciais [2].

Após notável esforço das subcomissões em atender a diversas reuniões ordinárias, audiências públicas e encontros em universidades com demais especialistas, cada subcomissão apresentou seu relatório parcial, com proposta de redação para os artigos de sua competência. Ato contínuo, a relatoria-geral analisou os textos produzidos e elaborou relatório geral, com algumas alterações às propostas de redação submetida. Um intenso e virtuoso trabalho de todos os envolvidos que merece ser reconhecido.

O prazo final para a comissão enviar ao Senado o anteprojeto e cumprir com a finalidade proposta se encerra neste mês, no dia 12 de abril de 2024. Por isso, durante esta semana, de 1º a 5 de abril de 2024, os juristas membros da comissão estão reunidos para discutirem e votarem sobre a redação do Relatório Final.

A obrigação de não concorrência

Diante das instigantes discussões sobre a atualização do Código Civil, o presente artigo pretende contribuir com breves notas sobre a importância da revisão do artigo 1.147 do Código Civil, que trata sobre a obrigação de não concorrência [3]. Tive a oportunidade de desenvolver a pesquisa sobre este tema durante a minha dissertação de mestrado na Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP), concluída em 2023, sob orientação inicial do professor doutor Newton Silveira (in memoriam) e orientação final da professora doutora Juliana Krueger Pela.

Spacca

A obrigação de não concorrência é regra excepcional, conforme se depreende do comando pró-concorrencial instituído pela Constituição de 1988. Especificamente no artigo 170, em que se inicia o capítulo dos princípios da atividade econômica, há o mandamento de que a ordem econômica deve observar alguns princípios gerais, dentre eles, a livre iniciativa e a livre concorrência.

Os princípios constitucionais da livre iniciativa e da livre concorrência são complementares, por isso costumam ser tratados em conjunto [4]. A Constituição de 1988 os disciplina como instrumentos para o alcance maior da proteção da dignidade da pessoa humana. São essenciais, não só para o adequado funcionamento do livre-mercado, mas também para atingir o fim social perseguido pela Constituição [5].

Considerando a sua excepcionalidade, a obrigação de não concorrência deve ser imposta por lei ou prevista expressamente em contrato para estar em consonância com a Constituição. Além disso, a interpretação de qualquer pacto capaz de restringir a livre concorrência deve ser limitada, razoável e feita de forma estrita.

Nesse sentido, o Código Civil de 2002 positivou a obrigação de não concorrência nos termos do artigo 1.147, o qual, atualmente, dispõe da seguinte redação: “Não havendo autorização expressa, o alienante do estabelecimento não pode fazer concorrência ao adquirente, nos cinco anos subseqüentes à transferência. Parágrafo único. No caso de arrendamento ou usufruto do estabelecimento, a proibição prevista neste artigo persistirá durante o prazo do contrato”.

Pela leitura do dispositivo atual, percebe-se que o legislador previu que a livre concorrência deve ser restringida em casos de alienação, arrendamento ou usufruto do estabelecimento, se as partes nada dispuserem. Ou seja, no silêncio das partes contratantes, aquele que vendeu o estabelecimento fica proibido de concorrer com o que o adquiriu pelo período de cinco anos subsequentes à transferência. No caso do arrendamento ou usufruto, pelo período de duração do contrato.

Assim, tem-se que a atual fonte normativa determinou como regra especial o que deveria ser tratado como exceção. Compreende-se que a sua redação tenha sido inspirada no artigo 2.557 do Código Civil italiano de 1942 [6], que regulou a matéria de proibição da concorrência. Apesar de ambos estabelecerem um limite temporal para tal proibição, o dispositivo legal italiano é mais detalhado, com a previsão de que os limites material e territorial também devem ser definidos no caso concreto. Além disso, a redação do artigo italiano menciona o seu propósito, qual seja, a restrição da concorrência no que seja suscetível de induzir a clientela do estabelecimento alienado em erro, o que contribui para a delimitação e interpretação das situações práticas.

O Código Civil de 2002 inovou com a regulação da obrigação de não concorrência, que não era tratada no Código Civil de 1916. A inclusão do artigo 1.147, na época, pode ter sido útil para atenuar as discussões doutrinárias e jurisprudenciais acerca das teorias para aceitar ou refutar a obrigação implícita de não concorrência em contratos de alienação de estabelecimento, também denominados de contratos de trespasse [7].

No entanto, apesar de a previsão do artigo 1.147 do Código Civil ter seu motivo político e de cunho ideológico daquela época, entende-se que o seu conteúdo não foi adequado, nem benéfico, por dois motivos, em especial. Primeiro, porque o dispositivo privilegia a vedação automática da concorrência do alienante do estabelecimento, em vez de exigir que as partes incluam cláusula contratual expressa para que o adquirente tenha esta proteção. Segundo, porque o artigo, se deseja tratar da restrição da concorrência, poderia ter ido além, para tratar também de forma minuciosa sobre os limites para harmonizar tal obrigação com os princípios da livre iniciativa e da livre concorrência quando as partes a preveem no contrato [8].

A alteração do artigo 1.147 do Código Civil de 2002

De todo modo, saindo deste recorte histórico e voltando para as lentes atuais, o fato é que a obrigação de não concorrência é corriqueiramente prevista no contrato quando as partes assim desejam, independentemente do tipo contratual. Por isso, não se vislumbra mais a necessidade de elaborar qualquer justificativa para impô-la por lei para a proteção de alguma parte.

Os contratos civis e empresariais são considerados presumidamente paritários, como dispõe o artigo 421-A do Código Civil, incluído pela Lei nº 13.874, de 2019, conhecida como Lei da Liberdade Econômica. Assim, independentemente da finalidade do contrato no qual se insere a cláusula de não concorrência, seja ela de alienação do estabelecimento, alienação de participação societária com a transferência do poder de controle, franquia, parceria comercial ou outras, as partes a estabelecem quando a contratam. Como afirma Paula A. Forgioni: “Contrata-se a não concorrência, paga-se por ela. Dá-la de presente significa premiar o oportunismo disfuncional do agente econômico” [9].

Nesse ângulo, felizmente, a comissão pretende alterar o referido cenário e propor a modificação do artigo 1.147 do Código Civil de 2002. A Subcomissão de Direito da Empresa, sob a relatoria parcial da Professora Paula A. Forgioni, propôs a revogação do parágrafo único do art. 1.147 e a seguinte redação para o seu caput: “Art. 1.147. O alienante pode atuar livremente no mesmo mercado do estabelecimento alienado, salvo se o contrário for acordado pelas partes”.

A relatoria-geral concordou, tanto com a revogação do parágrafo único do artigo 1.147, como com o novo comando do seu caput, apenas propôs redação mais específica para o final do caput nos seguintes termos: “Art. 1.147. O alienante pode atuar livremente no mesmo mercado do estabelecimento alienado, salvo solução diversa pactuada por escrito entre as partes, quanto ao tempo e ao espaço de não-concorrência”.

Até o momento não se sabe qual redação prevalecerá, mas o objetivo crucial é a modificação do núcleo da fonte normativa, que ocorre em ambos os casos. Ainda há longo processo legislativo para o anteprojeto prosseguir, mas espera-se que a vedação automática seja retirada de vez, ou seja, que não haja a obrigação implícita de não concorrência, aquela restrição que não foi expressamente pactuada pelas partes.

De início, pensei que a revogação total do artigo 1.147 até poderia ser um bom caminho. No entanto, após as reflexões, entendo que a expressa alteração do comando normativo – de vedação automática para vedação somente quando pactuada pelas partes – trará maior segurança jurídica para guiar a atuação do operador do direito e do intérprete.

A liberdade de concorrer é princípio constitucional tão essencial ao crescimento do mercado e aos consumidores, sendo sua restrição excepcional. O novo dispositivo legal, se aprovado, estará em harmonia com a Constituição Federal de 1988, contribuindo para a segurança jurídica e a previsibilidade de que o mercado tanto necessita, com o comando geral de que a regra é a livre concorrência, devendo qualquer restrição ser expressamente contratada pelas partes. Além disso, cumpre relembrar que, quando pactuada, a cláusula de não concorrência deve ter interpretação estrita e ser bem delimitada.

Com estas breves considerações sobre a regulação da matéria da obrigação de não concorrência, espera-se ter colaborado para as discussões, com os sinceros e positivos votos para que a mudança legislativa neste e em outros temas ocorra para a melhoria e atualização do Código Civil.


[1] As informações sobre as atividades legislativas da Comissão de Juristas responsável pela revisão e atualização do Código Civil (CJCODCIVIL) está no website do Senado Federal, no link https://legis.senado.leg.br/comissoes/comissao?codcol=2630

[2] A composição final da Comissão e Subcomissões pode ser encontrada no website do Senado Federal, no link https://legis.senado.leg.br/comissoes/arquivos?ap=7964&codcol=2630

[3] Confesso que, quando soube da alteração do artigo 1.147, pensei que a aprovação por todos os especialistas seria unânime, mas, recentemente, presenciei em uma banca de defesa de mestrado, professores argumentando pela manutenção do art. 1.147 nos seus atuais termos, ao passo que, senti-me motivada a escrever este breve artigo, no intuito de contribuir para a necessária evolução do tema.

[4] GRAU, Eros Roberto. A ordem econômica na Constituição de 1988: interpretação e crítica. 14. ed. São Paulo: Malheiros, 2010, p. 203.

[5] FORGIONI, Paula A. Os fundamentos do antitruste. 10. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2018, pp. 196-197.

[6] Em tradução livre, a redação do artigo 2557 do Código Civil italiano de 1942 prevê: “Quem aliena o estabelecimento deve abster-se, pelo período de cinco anos a partir da transferência, de constituir nova empresa que, pelo objeto, localização ou outras circunstâncias, seja suscetível de induzir em erro a clientela do estabelecimento cedido (2125, 2596). O pacto de abstenção da concorrência, em limites mais amplos do que os previstos no parágrafo precedente é válido, desde que não impeça qualquer atividade profissional do alienante. Isso não pode exceder a duração de cinco anos da transferência. Se no pacto for indicada uma duração maior ou ela não for estabelecida, a proibição da concorrência é válida pelo período de cinco anos a contar da transferência. No caso de usufruto ou arrendamento do estabelecimento, a proibição da concorrência prevista no primeiro parágrafo aplica-se ao proprietário ou ao locador enquanto durar o usufruto ou arrendamento. O disposto neste artigo aplica-se aos estabelecimentos agrícolas apenas para as atividades a elas conexas (2135), quando seja possível o desvio de clientela em relação às mesmas”. O original pode ser encontrado no seguinte link: https://www.altalex.com/documents/news/2014/03/31/dell-azienda

[7] Historicamente, um litígio, em especial, ficou conhecido no meio jurídico sobre este tema. Trata-se do “caso da juta”, ocorrido em 1913. Pode-se considerar que esta contenda inaugurou ou, ao menos, noticiou o assunto da obrigação de não concorrência em alienação de estabelecimento no Brasil. Além do tema ser de interesse dos comercialistas, as partes do caso contrataram o patrocínio de José Xavier Carvalho de Mendonça, de um lado, e Rui Barbosa, de outro, com ambos os advogados subsidiando suas defesas em pareceres de renomados juristas franceses e italianos. Para resumo da famosa contenda, os argumentos giravam em torno de dois assuntos principais: se há cessão da clientela quando se aliena o estabelecimento ainda que no silêncio do contrato e se há obrigação implícita do alienante de não concorrer, passando por qual seria o fundamento para tal. A tese vitoriosa foi sustentada por Rui Barbosa de que o sobrevalor pago na transferência do estabelecimento era referente à posição conquistada no mercado e não à clientela, entendendo o Supremo Tribunal Federal, por maioria, que a clientela não integrou implicitamente o objeto do contrato e que o alienante estaria livre para concorrer por nada contrário ter sido expresso no contrato. Cumpre destacar que, mesmo com o entendimento firmado pelo Supremo Tribunal Federal neste célebre caso, não reconhecendo obrigação implícita de não concorrência no referido contrato, a jurisprudência e a doutrina foram consolidando posicionamento em sentido oposto sobre a matéria para o contrato de trespasse, até que a proibição restou expressa no Código Civil de 2002. Com a inclusão do art. 1.147, a discussão abrandou e não havia mais a necessidade das tantas teorias justificadoras da obrigação implícita de não concorrência para o contrato de trespasse.

[8] Em concordância com esta orientação, Vera Helena de Mello Franco complementa: “Por tal razão, embora louvável a orientação do CC/2002, é necessário mencionar que peca, posto não exigir a delimitação espacial. Peca, igualmente, pelo fato do automatismo da vedação, posto que agora o cedente somente poderá exercer a mesma atividade se do instrumento de cessão constar autorização expressa, e a disposição é complicada”. (FRANCO, Vera Helena de Mello. Direito Empresarial: o empresário e seus auxiliares, o estabelecimento empresarial, as sociedades. 4. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2012, p. 141).

[9] FORGIONI, Paula A. Contratos empresariais: teoria geral e aplicação. 4. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2019, p. 291.

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Dogmática jurídico-penal: 4 teses defensivas para crime de falsidade ideológica

O crime de falsidade ideológica, tipificado ao artigo 299 do Código Penal, possui alta relevância na prática forense. Trata-se de um delito que, na letra da lei, aparenta uma simplicidade que não corresponde à complexidade do fenômeno (e isso vale para os crimes de falso em geral).

Ora, não é nada simples demonstrar o que é “alterar a verdade sobre fato juridicamente relevante”, por exemplo, uma vez que essa locução necessita de um exercício a contrario sensu. Nesse sentido, impõe-se a pergunta: o que é a verdade de um fato juridicamente relevante?

É esse exercício que a hermenêutica jurídico-penal deve fazer para encontrar o âmago deste delito — que, em apertada síntese, significa dizer encontrar a ofensa ao bem jurídico fé pública.

Nesse contexto, este ensaio visa debater quatro teses defensivas para o delito em tela, incidentes sobre, respectivamente: o tipo objetivo, referentes à 1) atipicidade objetiva e 2) crime impossível; e o tipo subjetivo, tanto por 3) ausência de dolo quanto por 4) erro de tipo.

Ainda à abertura, se esclarece que o tipo penal que se está a tratar, amiúde, apresenta-se subsumido no uso de documento falso (artigo 304, do Código Penal), mas que, pelo princípio da absorção, e pelo desvalor que este delito possui, o debate acaba se concentrando no núcleo típico do artigo 299. 

1) Atipicidade objetiva da conduta 

No crime em comento, há uma série de situações cotidianas que já foram largamente tratadas na jurisprudência, concluindo-se que não há crime nenhum a ser punido, por uma evidente atipicidade objetiva.

Os processos judiciais são ricos em exemplos. Por exemplo, tem-se o caso da parte que declara hipossuficiência mesmo possuindo recursos para arcar com as custas judiciais; que apresenta endereço diverso que o verdadeiro; ou ainda que apresenta documento falso em processo visando à obtenção de aposentadoria junto à secretaria municipal competente.

Já fora do âmbito dos processos judiciais, cita-se caso de médico concursado que insere dados falsos na folha-ponto, conduta que, embora censurável moralmente e em também por outros ramos do direito, não o é perante o Direito Penal (princípio da subsidiariedade).

De um modo geral, fundamenta-se que tais situações não ensejam potencialidade ou idoneidade lesiva, mormente pela não demonstração de fim de prejudicar direito, criar obrigação ou alterar a verdade sobre fato juridicamente relevante.

2) Crime impossível (artigo 17, do Código Penal)

Ao contrário dos casos citados acima, há uma situação um tanto mais esdrúxula, que merece maior atenção. Embora estranho à primeira vista, esse problema é relativamente comum: o caso do sujeito que, visando obter porte legal de arma, apresenta documento falso junto à Polícia Federal. Parece uma piada de mau gosto, mas não é. É uma situação bastante corriqueira, e que enseja algumas dúvidas dogmáticas interessantes.

Inicialmente, é preciso destacar que o simples fato de o sujeito querer obter o porte legal de arma de fogo já lança sombras sobre a tipicidade da conduta — isto é, mesmo que o agente tenha querido valer-se de uma alteração da verdade sobre fato, é de se perguntar se essa alteração é juridicamente relevante, ou se há algum direito a ser prejudicado.

Isso porque, se fosse para obter posse de arma ilegalmente, não seria necessário ir à Polícia Federal, bastaria comprar uma arma e mantê-la em sua posse às escondidas. Portanto, pode-se tanto pensar em atipicidade objetiva, pois ausente a incidência de elementos normativos do tipo, quanto em subjetiva, por ausência de dolo.

A jurisprudência pátria, contudo, vem entendendo que tal situação se amolda à categoria do crime impossível. Tal instituto está previsto ao artigo 17 do Código Penal brasileiro.

De uma maneira sintetizada, pode-se dizer que é impunível a tentativa que não puder ensejar nenhum grau de ofensa ao bem jurídico-penal tutelado, o que, nos termos da lei, ocorre por ineficácia absoluta do meio ou por absoluta impropriedade do objeto.

O TRF-4 possui não poucos julgados sobre o tema. Para ficar apenas em um dos mais recentes, transcreve-se a ementa:

“RECURSO CRIMINAL EM SENTIDO ESTRITO. FALSIDADE IDEOLÓGICA. DECLARAÇÃO FALSA PERANTE A POLÍCIA FEDERAL PARA OBTENÇÃO DE ARMA DE FOGO. AUSÊNCIA DE POTENCIALIDADE LESIVA. ATIPICIDADE DA CONDUTA. REJEIÇÃO DA DENÚNCIA. MANUTENÇÃO. 1. A declaração falsa prestada em requerimento de aquisição de arma de fogo perante a Polícia Federal não ostenta potencialidade lesiva, uma vez que, nos termos da legislação vigente à época, se sujeita à comprovação pelas certidões negativas de antecedentes e à posterior averiguação por parte do órgão policial. Precedentes. 2. A ocorrência de crime impossível pressupõe a ineficácia absoluta do meio ou a absoluta impropriedade do objeto.” (TRF-4, RSE 5003384-47.2023.4.04.7107/RS, 8ª Turma, relator Marcelo Malucelli, juntado aos autos em 14/6/2023).

No caso acima citado, a pessoa declarou primariedade, embora ostentasse condenações. Segundo o voto do relator, “a declaração prestada pelo denunciado no requerimento de aquisição de arma de fogo carece de potencialidade lesiva, porquanto sujeita à comprovação pelas certidões negativas de antecedentes e a posterior averiguação por parte do órgão policial, são os precedentes citados na sentença”. Portanto, considerando a ineficácia do meio empregado, trata-se de crime impossível.

3) Atipicidade por ausência de dolo específico

Como se sabe, o tipo penal é composto pelos tipos objetivo e subjetivo, este último subdividido em dolo e culpa. O dolo consiste, em apertada síntese, no conhecimento e na vontade do agente em praticar determinado fato. Como referência legislativa, tem-se o artigo 18, inciso I, e o artigo 20, ambos do Código Penal.

No âmbito do delito de falsidade ideológica, fala-se na necessidade de “dolo específico”. Em termos de doutrina, essa categoria é bastante criticada, inclusive pelo signatário deste texto.

De todo o modo, fato é que a jurisprudência abraça tanto o seu conceito quanto a sua incidência no caso do tipo penal em apreço. Assim, no âmbito do crime de falsidade ideológica, o “dolo específico” pode ser definido como o intuito de prejudicar direito, criar obrigação ou alterar a verdade sobre fato juridicamente irrelevante.

Na jurisprudência, encontra-se situações em que o reconhecimento da ausência do dolo específico enseja a absolvição. Por exemplo, o sujeito que insere dado falso em declaração de endereço junto ao Detran.

Essa conclusão ocorre também em situações mais complexas. No âmbito empresarial, houve caso de emissão de notas fiscais falsas utilizadas para obtenção de crédito indevido junto ao ICMS.

Na instrução da ação penal, chegou-se à conclusão de que a pessoa jurídica em questão havia sofrido muitas trocas societárias, sendo que as pessoas que foram denunciadas não haviam realizado a emissão dessas notas fiscais, tampouco tinham conhecimento a respeito disso.

O resultado foi a absolvição pela ausência de dolo específico, especialmente porque no crime de falsidade ideológica “é imprescindível a presença do dolo específico e do especial fim de agir de se lesar o particular ou o Estado, tendo a clara e inequívoca intenção de prejudicar direito, criar obrigação ou alterar a verdade sobre fato juridicamente relevante”. Uma vez que não forem comprovados tais elementos, a atipicidade da conduta se evidencia.

Vale destacar que também há situações em que sequer se chega a descer à minúcia da categoria do dolo específico: fala-se na ausência do dolo em geral. É o caso, p. ex., do candidato em processo eleitoral, que, ao preencher o pedido de registro de candidatura, omite desempenho de função pública (artigo 350, do Código Eleitoral). Esta simples omissão, se não comprovada a intenção dolosa do agente em fraudar o processo eleitoral, não constitui crime.

Outra situação se deu em município que recolheu a menor contribuição previdenciária de natureza patronal dos servidores públicos municipais.

Nesse contexto, alguns agentes públicos, incluindo parlamentares, teriam elaborado, assinado e apresentado ao Ministério da Previdência Social (MPAS) seis comprovantes de repasse e recolhimento de RPPS, atestando que o recolhimento do tributo se dera de forma legal, e não a menor.

Ao julgar o caso, decidiu o Supremo Tribunal Federal que, apesar de comprovada a materialidade, não se pôde concluir pelo objetivo de falsear informações para prejudicar direito, criar obrigação ou alterar a verdade sobre fato juridicamente relevante – levando à absolvição pela ausência de dolo.

4) Atipicidade por erro de tipo

Derradeira hipótese a ser tratada, esta é, sem dúvida, a de mais escassa ocorrência. Trata-se de incidência de erro de tipo, instituto previsto ao artigo 20 do Código Penal, e que pressupõe a ausência de conhecimento de determinado elemento do tipo penal — que, como consequência, afasta o dolo da conduta.

Na jurisprudência, há caso em que o sujeito mantinha vínculo de dedicação exclusiva com universidade federal, mas teve cumulação indevida de cargos públicos, pois era também concursado a nível municipal. Logo, é incontestável que havia vínculo ilegal.

Nesse sentido, o agente assinou, junto à universidade, declaração de não acumulação de cargos públicos, o que ensejou denúncia por falsidade ideológica. Ocorre que, quando assinou tal declaração, o sujeito já havia solicitado o afastamento do cargo ao município, de modo que ele cria não havia mais haver nenhum vínculo entre eles.

Interessante referir que o juízo singular fundamentou o édito absolutório com a incidência de erro de proibição. Já no TRF-1, o fundamento foi o erro sobre o tipo. Destaca-se: “[…] o réu não teria agido de maneira dolosa, por acreditar que já não preenchia o cargo na [Prefeitura], deveria decorrer da incidência do instituto do erro de tipo (art. 20 do CP), com o consequente reconhecimento da atipicidade formal da conduta”.

Assim, há raras situações em que um elemento fático não é conhecido pelo sujeito ao firmar determinada declaração. Logo, mesmo que se possa falar objetivamente em uma inverdade, é evidente que o desconhecimento sobre ela exclui o dolo através de erro de tipo.

Por derradeiro: sobre a (im)possibilidade de exclusão da culpabilidade por erro de proibição

O instituto do erro sobre a proibição é previsto ao artigo 21 do Código Penal, e ocorre quando a pessoa desconhece o teor ilícito do fato que está a praticar – trata-se, portanto, de instituto que exclui a culpabilidade da conduta. Trata-se de situação raríssima na jurisprudência no âmbito do crime em comento, quiçá jamais aceita.

Amiúde, fala-se que o desconhecimento da lei é inescusável — palavras que estão no próprio artigo 21 do Código Penal. Para colorir esse conceito, encontra-se o afastamento desta tese em situações como: quando a pessoa insere declaração falsa em requerimento de atualização de carteira de identidade de estrangeiro; quando a pessoa, ao preencher instrumento para declaração de aves junto ao Sispass (Sistema de Cadastro de Criadores Amadoristas de Passeiriformes), insere informações falsas; ou, ainda, quando motorista insere declarações falsas em formulário de identificação de condutor junto à Polícia Rodoviária Federal, identificando terceiros como condutores em infrações de trânsito, com a intenção de não contabilizar pontos em sua carteira de habilitação.

Como se pode perceber, as situações acima elencadas não diferem tanto daquelas mostradas nos tópicos acima. Fato é que, quando há absolvição, ela não é fundamentada pelo erro de proibição, mas, sim, por outras teses. Um bom exemplo disso é o caso citado no tópico acima: o juízo singular absolveu com base no erro de proibição; o tribunal, embora mantendo a absolvição, modificou o seu fundamento para o erro de tipo.

Outro caso paradigmático é o do condutor que, notificado por multa de trânsito do Detran, faz constar o nome do proprietário do veículo ao invés do seu. Devido a esse fato, foi denunciado por falsidade ideológica. Em juízo, declarou que não sabia que tal fato fosse considerado crime.

Apesar dessas circunstâncias, a absolvição ocorreu, mas ela não se deu por erro de proibição, e sim por atipicidade da conduta, uma vez que tal declaração não possui capacidade de, por si só, modificar a imposição de multa — e, portanto, não foi capaz de prejudicar direito, criar obrigação ou alterar a verdade sobre fato juridicamente relevante.

Portanto, percebe-se que as hipóteses exculpantes do delito ora tratado se manifestam essencialmente no âmbito do tipo, tanto por eventual falsidade tratar-se de verdadeiro indiferente penal (atipicidade material ou crime impossível) quanto pela ausência de conhecimento do agente de que a conduta concreta pudesse, de fato, ensejar um fato criminoso (ausência de dolo) ou, em raras circunstâncias, desconhecer algum elemento da realidade que, afasta definitivamente o dolo (erro de tipo).

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Supremo decidirá sobre lei que proíbe pesca profissional em MT

O ministro André Mendonça, do Supremo Tribunal Federal, vai encaminhar para manifestação da Procuradoria-Geral da República os processos que discutem a validade de lei estadual de Mato Grosso que proíbe a pesca profissional pelo período de cinco anos. Após o parecer, ele proferirá decisão sobre a matéria.

Pesca pescaria pescador lago

 

Ações questionam mudanças na política da pesca do estado de Mato Grosso – Freepik

O magistrado anunciou a medida nesta terça-feira (2/4), em razão de as partes envolvidas no caso não terem chegado a um acordo nas audiências de conciliação.

Mendonça é relator das ações diretas de inconstitucionalidade sobre o tema propostas pelo Movimento Democrático Brasileiro (MDB), pelo Partido Social Democrático (PSD) e pela Confederação Nacional dos Pescadores e Aquicultores (CNPA).

As ações contestam as alterações na Política da Pesca de Mato Grosso (Lei estadual 9.096/2009), promovidas pela Lei estadual 12.197/2023, para proibir a pesca profissional no estado por cinco anos, a partir de 1° de janeiro deste ano.

Entre outros argumentos, os autores alegam que a regra contraria a legislação federal sobre a matéria, além de colocar em risco a continuidade de vida tradicional e comprometer a sobrevivência das comunidades pesqueiras no estado. Ao convocar as rodadas de negociação, o relator ressaltou as vantagens para a construção de um consenso sobre a matéria.

 

Espécies de peixes

A primeira audiência foi promovida no dia 25 de janeiro. Na ocasião, as partes se comprometeram a apresentar sugestões visando a ajustar a legislação para atender aos interesses de preservação ambiental e de sobrevivência dos pescadores.

Na segunda audiência, promovida nesta terça-feira, representantes do governo de Mato Grosso e da Assembleia Legislativa apresentaram a flexibilização da legislação, mantendo a proibição de apenas 12 espécies. Representantes dos pescadores ponderaram que quatro espécies de peixes da lista do governo estadual poderiam ser liberadas: pintado, tucunaré, trairão e piraputanga.

 

Sem acordo

A discussão sobre as proibições, no entanto, não avançou. A representante da Advocacia-Geral da União (AGU), por sua vez, disse que a legislação estadual, tal como prevista, restringe a gestão da pesca em Mato Grosso apenas ao governo estadual. A proposta do governo federal foi de suspensão da vigência da lei até que fossem concluídos estudos técnicos para estabelecer quais espécies devem ser proibidas, mas a sugestão não foi acolhida pelo governo mato-grossense.

Diante do impasse na via conciliatória, o Supremo deverá deliberar sobre o caso. Antes, contudo, diante das inovações legislativas apresentadas, o ministro relator encaminhará ao caso à PGR para emissão de novo parecer sobre a controvérsia.

Participaram das audiências representantes do governo federal por meio da AGU, dos ministérios do Meio Ambiente e Mudança do Clima e da Pesca e Aquicultura, do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio), do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) e do Instituto Nacional do Seguro Social (INSS), além de representantes do governo do estado e da Assembleia Legislativa. Os partidos que ingressaram com as ações também participaram. Com informações da assessoria de imprensa do STF.

 

ADI 7.471
ADI 7.514
ADI 7.590

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