Exames médicos admissional e demissional como medidas preventivas

Estabelecem o artigo 168 e §§ 1º e 4º da CLT que “Será obrigatório o exame médico do empregado, por conta do empregador.

§ – Por ocasião da admissão, o exame médico obrigatório compreenderá investigação clínica e, nas localidades em que houver, abreugrafia (grifados).

§ – O mesmo exame médico de que trata o § 1º será obrigatório por ocasião da cessação do contrato de trabalho, nas atividades, a serem discriminadas pelo Ministério do Trabalho, desde que o último exame tenha sido realizado há mais de 90 (noventa) dias” (grifados).

Como se vê, a lei manda o empregador fazer exames médicos por ocasião da admissão e na cessação do contrato de trabalho.

Esses exames têm o objetivo de avaliar as condições de saúde do trabalhador antes e depois do período contratual, os quais são importantes e essenciais para assegurar às empresas o estado de saúde física e mental dos seus empregados, no início e na finalização do contrato de trabalho.

Os exames médicos admissionais e demissionais são importantes para as empresas, também para não serem responsabilizadas por problemas que o empregado já tinha antes da contratação, salvo se a atividade a ser desenvolvida contribuir para o agravamento do problema de saúde do trabalhador.

Para o empregado, esses exames são igualmente importantes para demonstrar as condições de saúde de quando foi contratado como, também, no momento da dispensa da empresa. Há situações em que o trabalhador é admitido em perfeito estado de saúde física e mental, trabalha alguns anos e passa a padecer de problemas de saúde. Dependendo da atividade desenvolvida, pode ser apurado o nexo da doença com o trabalho, ou não.

Se, ao final do contrato de trabalho, o exame demissional apontar que o empregado adquiriu problemas de saúde durante o respectivo período, motivados pelas atividades de trabalho, ele terá direito a receber indenização e, conforme o caso, de ser reintegrado no emprego, se for detentor de alguma estabilidade, inclusive a acidentária prevista no artigo 118 da Lei n. 8.213/91 ou em normas coletivas de trabalho.

De qualquer forma, apresenta-se de grande importância e necessidade o exame médico demissional, que deve ser feito por médico do trabalho, que ateste verdadeiramente se o trabalhador tem alguma doença e se está apto ou não para o trabalho. Se preciso, o médico deve pedir exames complementares, porque sua responsabilidade é grande ao atestar as condições de saúde e de (in)capacidade laboral do trabalhador.

Se no exame médico demissional for constatada incapacidade para o trabalho, a dispensa do trabalhador não poderá acontecer e, se já tiver sido feita, deve ser cancelada e a empresa deverá encaminhar o trabalhador para a Previdência Social, que avaliará a situação e concederá, ou não, afastamento por algum período e o pagamento de auxílio-doença.

Incapacidade para o trabalho ao tempo da dispensa

Muito acontece na prática de o exame médico demissional do médico da empresa não atestar nenhuma incapacidade laboral do trabalhador e esta, com base nesse atestado, demitir o trabalhador. Este, por sua vez, obtém atestado de outros profissionais médicos ou psicólogos, dizendo que o trabalhador está incapacitado para o trabalho e deve ser encaminhado para tratamento médico e ou psicológico na Previdência Social.

Se tal ocorrer dentro do perídio de aviso prévio, que é contado para todos os efeitos legais (artigo 487, § 1º – “A falta do aviso prévio por parte do empregador dá ao empregado o direito aos salários correspondentes ao prazo do aviso, garantida sempre a integração desse período no seu tempo de serviço”), a empresa deve cancelar a dispensa e encaminhar o trabalhador para o INSS, porque a dispensa passa a ser nula de pleno direito, nos termos do artigo 9º da CLT (“Serão nulos de pleno direito os atos praticados com o objetivo de desvirtuar, impedir ou fraudar a aplicação dos preceitos contidos na presente Consolidação”).

Nesse sentido corrobora a decisão seguinte:

“AGRAVO DE INSTRUMENTO DAS RECLAMADAS – RECURSO DE REVISTA – INCAPACIDADE LABORATIVA AO TEMPO DA DISPENSA – ESTABILIDADE PROVISÓRIA – REINTEGRAÇÃO.1. A Corte regional, soberana no exame dos fatos e provas, concluiu que ao tempo da dispensa, a reclamante apresentava incapacidade para o trabalho, conforme atestado médico, registrando, ainda, ser incontroversa a ciência da reclamada do estado de saúde da autora. 2. Do quadro delineado no acórdão recorrido, correto o acórdão regional que manteve a sentença que reconheceu a nulidade da dispensa, com a consequente reintegração da autora ao trabalho e consectários legais. Incidência do óbice previsto na Súmula nº 126 do TST. … “ (AIRR-1000539-79.2020.5.02.0029, 2ª Turma, Relatora Desembargadora Convocada Margareth Rodrigues Costa, DEJT 04/03/2024 – grifados).

Observa-se da decisão acima que a Justiça do Trabalho declarou nula a dispensa da trabalhadora que, ao tempo da dispensa, apresentava incapacidade para o trabalho, conforme atestado médico apresentado à empresa, cabendo salientar que esse tipo de reintegração não decorre de estabilidade no emprego, mas da simples nulidade da dispensa, porque, ao seu tempo, a trabalhadora estava incapacidade para o trabalho, cujo contrato, nos primeiros 15 dias de afastamento ficaria interrompido e, a partir do 16º dia, se afastada pelo INSS, ficaria suspenso, até a alta médica.

Em casos tais, somente quando o trabalhador tiver alta médica a empresa poderá proceder à sua dispensa, caso não haja qualquer outro impedimento legal.

Conclusão

Portanto, é fácil ver que, para o trabalhador, o exame demissional o protege de ser dispensado, caso seja diagnosticado com alguma doença relacionada ao trabalho ou se estiver inapto para o trabalho. Assim, se o exame médico atestar a existência de alguma doença incapacitante que requeira tratamento médico, a empresa não poderá dispensar o trabalhador, até que ele se recupere, pena de ser compelida pela Justiça do Trabalho a reintegrá-lo no emprego e a lhe pagar todos os direitos e verbas trabalhistas devidas no período de afastamento, o que poderá ficar muito oneroso. Portanto, o melhor remédio para o caso é a prevenção.

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Modulações dos efeitos de teses tributárias do STJ ligam alerta para contribuintes

A recente tendência da 1ª Seção do Superior Tribunal de Justiça de modular os efeitos das teses tributárias que vem fixando, todas com posições favoráveis ao Fisco, deixou alarmados os advogados tributaristas consultados pela revista eletrônica Consultor Jurídico.

 

 
Rafael Luz/STJ – 1ª Seção do STJ adotou três critérios para modular teses tributárias

Modular os efeitos de uma decisão significa restringir sua eficácia temporal. Ou seja, ela passa a ter efeito a partir de uma determinada data, de forma prospectiva — dali para frente —, de acordo com as especificidades de cada caso.

A modulação é muito usada pelo Supremo Tribunal Federal, mas só passou a ser adotada pelo STJ nas causas tributárias em dezembro de 2023. De lá para cá, três modulações foram feitas, cada uma com um critério distinto.

 

Critério 1

No caso em que o colegiado decidiu que o ICMS por Substituição Tributária (ICMS-ST) não compõe a base de cálculo de PIS e Cofins, o critério escolhido foi a data de publicação da ata do julgamento no veículo oficial de imprensa, o que ocorreu em 14 de dezembro do ano passado.

Isso significa que o ICMS-ST só pode ser excluído da base de cálculo de PIS e Cofins a partir dessa data, exceto nos casos em que o contribuinte já havia feito esse pedido administrativa ou judicialmente.

A lógica é a mesma usada pelo STF no caso da “tese do século”, em que a Corte Suprema definiu que o ICMS não compõe a base de cálculo de PIS e Cofins. O tema ICMS-ST, inclusive, é uma das teses-filhote daquele caso.

 

Critério 2

Ao modular os efeitos da decisão de que as taxas de transmissão e distribuição de energia elétrica (Tusd e Tust) compõem a base de cálculo do ICMS, a 1ª Seção adotou o critério da data da decisão que fixou essa jurisprudência pela primeira vez.

Isso ocorreu quando a 1ª Turma do STJ julgou o REsp 1.163.020, decidindo em 27 de março de 2017 que Tusd e Tust deveriam compor a base de cálculo do ICMS sobre energia elétrica.

Quem obteve decisões até essa data para autorizar o recolhimento do ICMS sem essas taxas na base de cálculo pode continuar com esse privilégio até o dia de publicação do acórdão da 1ª Seção, o que ainda não ocorreu.

 

Ministra Regina Helena Costa defendeu modulação no caso das contribuições parafiscais ao Sistema S – Emerson Leal/STJ

 

Critério 3

O terceiro critério foi usado quando a 1ª Seção mudou de posição para considerar que o limite de 20 salários mínimos para o cálculo das contribuições parafiscais voltadas ao custeio do Sistema S deixou de existir com a edição do Decreto-Lei 2.318/1986.

O critério temporal usado nesse caso foi a data em que o colegiado começou a decidir a tese.

Isso significa que a tese não vale para as empresas que ingressaram com ação judicial e/ou protocolaram pedido administrativo até 25 de outubro de 2023, desde que tenham obtido decisão judicial ou administrativa favorável.

Essas empresas poderão continuar recolhendo as contribuições parafiscais calculadas sobre o limite de 20 salários mínimos, mas apenas até a publicação do acórdão, o que ainda não aconteceu.

Esse caso gera uma linha de corte mais ampla porque, quando o STJ afetou o tema ao rito dos repetitivos, em dezembro de 2020, determinou a suspensão nacional de todos os processos sobre o tema. Ou seja, judicialmente, ninguém obteve decisão favorável desde então.

 

Insegurança jurídica

Os advogados ouvidos pela ConJur apontam duas consequências para essa nova tendência do STJ. A primeira é a insegurança jurídica, a prejudicar o planejamento do contribuinte e derrubar qualquer previsibilidade das posições do Judiciário.

O caso das contribuições parafiscais ao Sistema S é o melhor exemplo disso. Contribuintes que tenham ingressado com ação judicial no mesmo dia podem ou não estar protegidos pela modulação, a depender da postura do juiz ou da vara onde fizeram o pedido.

“Adota-se como critério um ato que não está sob controle do contribuinte, o que, sem dúvida, cria uma situação de desigualdade entre empresas que obtiveram decisão e as que não foram contempladas. Isso aprofunda a insegurança jurídica que tem marcado a área tributária”, diz Maria Andréia dos Santos, sócia do escritório Machado Associados.

“São contribuintes que ajuizaram suas ações antes do início do julgamento, foram cautelosos, buscaram o Judiciário, assim como todas as empresas vinham fazendo, confiantes na jurisprudência do STJ que somou mais de 30 decisões favoráveis a essa tese, e agora não veem o seu direito assegurado por conta de uma modulação que, com todo o respeito ao tribunal, não assegura um tratamento isonômico”, diz Bruno Teixeira, do TozziniFreire Advogados.

Julia Ferreira Cossi Barbosa, do Finocchio & Ustra Sociedade de Advogados, chama a atenção para as consequências desse tipo de modulação, considerando o tamanho do Brasil e a quantidade de varas, com decisões totalmente diferentes sobre o mesmo assunto.

“Assim, fica evidente a falta de segurança jurídica e até de isonomia quando apenas parte dos contribuintes, que estão na mesma situação, poderá se beneficiar de uma decisão que é de extrema importância financeira.”

Na opinião da advogada Lesliê Mourad, do Schuch Advogados, o STJ tem feito a modulação de forma casuística. Ela defende a indicação de critério firme, válido para qualquer tese fixada, passível de ajuste apenas em função de uma ou outra particularidade do caso.

“Ao assim não proceder, o tribunal dá margem a surpresas e imprevisibilidades, inclusive em relação à modulação de outras teses ainda em discussão. Tudo isso dificulta o planejamento dos contribuintes e deteriora o ambiente de negócios, especialmente para investimentos de longo prazo.”

Cinthia Benvenuto, da banca Innocenti Advogados, chama a atenção para o fator de incompletude da modulação, mas ela ressalta que não modular seria muito pior. No caso das contribuições ao Sistema S, a jurisprudência era 100% favorável ao contribuinte até então.

“Mais importante é que, apesar de a modulação não ter contemplado todas as empresas que ajuizaram ações judiciais, o que fere a livre concorrência, ao menos se preocupou com aquelas que estavam deixando de recolher suas contribuições com base em alguma decisão judicial.”

 

Incentivo ao litígio

A segunda consequência da nova tendência da 1ª Seção do STJ é a necessidade de, o quanto antes e sempre que possível, litigar em causas tributárias.

Fernando Munhoz, do escritório Machado Meyer Advogados., aponta que, uma vez que o STJ também passou a adotar a modulação de efeitos com mais frequência, “há um estímulo para o aumento do número de ações ajuizadas, visto que somente aqueles que possuem discussão em curso estariam protegidos”.

Lesliê Mourad explica que esse fenômeno não é novo, mas certamente é agravado pela inconsistência demonstrada pelo STJ na modulação de suas decisões. Ela recomenda que o contribuinte adote antecipação assim que identificada a oportunidade de discussão judicial.

“A postura do STJ tem servido para estimular a profusão de ações e a sobrecarga do Judiciário, aprofundando cenário cada vez mais não isonômico entre os contribuintes. Estes, contudo, devem se resguardar, e a estratégia mais conservadora, infelizmente, continua sendo a de ajuizamento precoce de ações e pedidos administrativos, previamente a quaisquer pronunciamos dos tribunais.”

Na visão de Julia Barbosa, essa falta de padrão do STJ deve fazer até com que aumentem os pedidos de liminar, algo que não é muito utilizado nas lides tributárias.

“É interessante o contribuinte adotar uma postura mais conservadora de ingressar com as discussões assim que elas iniciam no Judiciário, e não mais aguardar um pronunciamento final do STJ ou STF.”

REsp 1.898.532
REsp 1.905.870
REsp 1.896.678
REsp 1.958.265
EREsp 1.163.020
REsp 1.692.023
REsp 1.699.851
REsp 1.734.902
REsp 1.734.946

 

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O universo fintech: pagamentos eletrônicos e bancos digitais

No texto a seguir, exploro alguns conceitos e tendências importantes para a compreensão do universo fintech no Brasil, considerando a evolução dos meios eletrônicos de pagamentos e a ascensão dos bancos digitais. Em textos posteriores, explorarei a questão do teto do rotativo de cartões e o debate entre as associações do setor, assim como o open finance e as fintechs de crédito e o fenômeno das finanças embutidas (embedded finance).

‘Clique para pagar’

O ato de pagar é o momento central da conclusão de uma venda e a oferta de opções diversificadas de pagamentos para atender às preferências de diferentes clientes aumenta a chance de fechar negócios, com uma jornada mais rápida e a incorporação de funcionalidades como descontos e recompensas por fidelidade.

Segundo o Sebrae, o comércio digital já responde por mais de 40% do faturamento de microempreendedores individuais, microempresas e empresas de pequeno porte.

A digitalização dos pagamentos é um fenômeno global e o Brasil serve de exemplo, dada a sua capacidade de implementar sistemas robustos como o Pix, a despeito de sua amplitude geográfica e diversidade de culturas e contextos.

O Pix encerrou o ano de 2023 como o meio de pagamento mais popular do Brasil, com quase 42 bilhões de transações (crescimento de 75% comparado a 2022), e de acordo com a Febraban, superando as transações de cartão de crédito, débito, boleto, TED, cheques, DOC, e TEC. Com respeito a valores das transações, o Pix registrou R$ 17,2 trilhões, perdendo o primeiro lugar para a TED, que somou R$ 40,6 trilhões em 2023.

Com o Pix, uma empresa pode gerar QR codes instantâneos para receber pagamentos, eliminando a necessidade de lidar com máquinas de cartão ou transferências bancárias pouco amigáveis. Ainda, pode haver a integração a sistemas de gestão financeira e de vendas, automatizando de processos de cobrança e reconciliação de pagamentos.

O Pix canibalizou alguns produtos, mas colaborou para a bancarização e abriu portas para a oferta de outros serviços tarifados.

Outras comodidades em termos de pagamentos eletrônicos envolvem, por exemplo, o link de pagamento pode ser gerado e enviado ao cliente por e-mail, mensagem de texto ou redes sociais e a cobrança por aproximação usando o celular, sem precisar de maquininha.

Com relação aos boletos, desde 15 de março, se o pagamento ocorrer até às 16h30, o credor poderá receber no mesmo dia, a depender do seu contrato com a instituição financeira.

Redução na receita de tarifas de bancos tradicionais

Segundo estudo recente divulgado pelo Ranking idwall de Experiência Digital, em parceria como Banco Central, o país alcançou 1,2 bilhão de contas bancárias ativas em 2023. Os bancos digitais responderam por 62% das contas abertas no ano e 27,6% dos usuários são exclusivamente ligados a esses novos participantes do setor.

Os grandes bancos têm sofrido com a queda nas receitas de conta corrente — uma perda de 15% entre 2019 e 2023, segundo levantamento feito pelo Valor Econômico. Apesar do aumento de 27,2% na base de clientes dessas instituições (410,7 milhões ao fim de 2023), segundo o Valor, “os cinco maiores bancos tradicionais do país — Itaú Unibanco, Banco do Brasil, Bradesco, Caixa e Santander — tiveram receita de R$ 28,343 bilhões em 2023 apenas com tarifas de ‘serviços de conta corrente’, como ‘pacotes de serviços’, TEDs e outras cobranças do tipo”, um decréscimo nominal de R$ 5 bilhões desde 2019 e uma perda de 19,7% para 15,5% no período na participação das tarifas da receita total desses bancos.

Além do Pix e de uma maior transparência na cobrança e uma maior conscientização dos clientes sobre o que pagam, o aumento da competição na oferta de serviços financeiros é um fator importante na redução das tarifas cobradas.

Nesse contexto, as instituições financeiras têm perseguido uma fórmula de atender clientes de baixa renda de maneira rentável. A solução passa pela oferta de serviços inovadores, de um lado, e pela revisão da estrutura de gastos, de outro.

Uma alternativa é a oferta de novos serviços. A Caixa, por exemplo, passou a oferecer em sua rede de agências produtos e serviços de cartões pré-pagos para clientes pessoa jurídica. O pacote inclui soluções para gestão de vale-transporte de funcionários, abastecimento de frotas de veículos em postos credenciados e pagamento automático em estacionamentos e pedágios.

Guerra das maquininhas

O mercado de maquininhas conta com dois grupos relevantes: de um lado, estarão as empresas controladas por bancos, com capital fechado e, de outro, as adquirentes independentes.

A Rede, que pertence ao Itaú Unibanco, assumiu a liderança do segmento em 2023, após a integração com o banco viabilizar a fidelização de pequenas e médias empresas. Se a Cielo (do Bradesco e Banco do Brasil) fechar seu capital, as três maiores forças do setor, grupo que inclui a Getnet (do Santander), serão companhias fechadas.

A expectativa dos do Bradesco e do Banco do Brasil acerca da deslistagem da Cielo é ter mais flexibilidade para praticar ofertas agressivas, tornando-as uma porta de entrada para fidelizar lojistas por meio de outros produtos, como a gestão de folhas de pagamento e crédito.

Para os bancos que controlam essas empresas, o processamento de pagamentos (adquirência) deixou de ser um negócio em si mesmo para se tornar uma porta de entrada, primeiro para o crédito e depois para outros produtos, como gestão de caixa e seguros.

Rede, Cielo e GetNet têm à disposição os produtos e serviços dos controladores, mas para acessá-los, têm de se integrar a eles. Os sistemas dos grandes bancos foram construídos para operar de forma independente das credenciadoras, e vice-versa. O mesmo acontece com as equipes comerciais.

Por sua vez, os nano e microempreendedores foram trazidos para o mercado de maquininhas pela PagBank, que na década passada, sob o nome de PagSeguro, passou a oferecer maquininhas menores, sem aluguel e com preços mais baratos, o que abriu espaço para que esses comerciantes passassem a receber pagamentos com cartões.

A guerra das maquininhas também afeta as bandeiras. Em meio ao aumento da concorrência, inclusive com métodos de pagamento como o Pix, a Mastercard vem diversificando seus negócios para além do mundo de cartões. A companhia prevê que, em 2025, metade de sua receita líquida no Brasil será oriunda de serviços adicionais, o que inclui soluções de dados e analytics, antifraude, consultoria, entre outras.

Bancos versus fintechs

As instituições incumbentes alegam que existe uma assimetria regulatória que favorece os bancos digitais e que as fintechs adotam uma estratégia de conta e cartão sem tarifas, mas compensam isso cobrando juros mais altos no crédito. Ainda, enfrentam um desafio relevante no varejo massificado. Como muitos bancos oferecem isenção de tarifas para clientes que movimentam muito a conta ou têm investimentos na casa, os usuários de baixa renda acabam pagando relativamente mais.

Por isso, há investimentos em tecnologia e em novos modelos de negócios com correspondentes bancários para reduzir custos e aprimorar o relacionamento com clientes, uma vez que os bancos digitais não migrarão para agências físicas.

Além dos serviços tradicionais de uma conta corporativa, os bancos digitais estão oferecendo soluções de gestão financeira, automação de fluxo de pagamentos dentro de cadeias e ecossistemas e configuração e rastreamento do Pix.

Ainda, as fintechs seguem atacando nichos específicos ou agregando serviços complementares. Vejamos alguns exemplos.

A Stone divulgou sua estratégia de engajar clientes para que tomem capital de giro com a gente para reformar lojas, comprar estoques, além de soluções de folha para pagamento de funcionários. A empresa espera aumentar a venda de produtos financeiros e de software para os clientes das maquininhas.

A Trampay, fundada em 2020, oferece conta digital e produtos financeiros — especialmente antecipação de recebíveis — para os profissionais informais, especialmente motoboys e entregadores de plataformas de delivery. Uma parte significativa desse contingente de trabalhadores lida com o desafio da gestão financeira de despesas básicas ou inesperadas, tais como abastecer o tanque da moto, trocar um celular ou carregador e se alimentar.

O Banco Pan lançou uma nova modalidade de empréstimo com garantia. Em vez do “car equity”, que tem o carro como garantia e já é mais conhecido, agora a instituição estreia o “moto equity”. A novidade permite a obtenção de crédito com taxas a partir de 1,27% ao mês e prazo de pagamento de até 60 meses. As quantias chegam a 100% do valor de motocicletas com até 15 anos.

O Mercado Pago anunciou que passará a oferecer conta com rendimento de 105% para usuários que depositem ou recebam ao menos R$ 1.000 por mês na instituição.

Outra tendência é os bancos digitais de clubes de futebol, um dos maiores é o Nação BRB, parceria entre o banco estatal do Distrito Federal e o Flamengo, em uma joint-venture. O BMG tem acordos com Corinthians, Atlético Mineiro, Vasco e Ceará. O Palmeiras lançou no ano passado o Palmeiras Pay, plataforma criada em parceria com Pefisa (fintech ebraço financeiro do grupo Pernambucanas), Elo e Allianz Seguros. Em outubro do ano passado, o banco Inter fechou um acordo com o Fortaleza Esporte Clube e se tornou o banco oficial do time.

O aumento da competição pode beneficiar os consumidores de serviços financeiros, porém é preciso atenção para evitar que a multiplicidade de contas e produtos contratados acabe prejudicando a visibilidade dos custos e benefícios.

Apesar de tudo, ainda resta uma pergunta inconveniente: quando a inovação resultará em uma efetiva redução do custo do crédito para indivíduos e empresas?

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A importância do processo legislativo tributário

A promulgação da Emenda Constitucional nº 132/23, fruto do trâmite da PEC nº 45/19, apresenta-se como fato disruptivo da realidade do sistema tributário brasileiro.

A aprovação da reforma tributária sobre o consumo decorreu do consenso sobre a necessidade de alteração de um sistema que, após a promulgação da Constituição de 1988, tornou-se regressivo, excessivamente complexo e litigioso, com grave déficit de racionalidade legislativa e dissociado do projeto constitucional.

Esse consenso já existia havia décadas, mas tentativas anteriores de reforma não prosperaram pela dificuldade de atender e compatibilizar os diversos interesses envolvidos na questão.

Nos últimos dois anos, surgiu uma janela de oportunidade, com a unicidade da visão dos estados sobre a necessidade da alteração da tributação do consumo para o destino e o amadurecimento na sociedade e nos meios empresariais da visão de que a litigiosidade/complexidade tributária se tornou insustentável, o que viabilizou a aprovação da reforma tributária.

Promulgada a emenda, cabe agora ao Congresso elaborar, discutir e aprovar as diversas leis complementares que darão o desenho efetivo da reforma tributária.

O trâmite da proposta de reforma tributária gerou um extraordinário interesse e participação dos mais diversos setores da sociedade.

O debate a respeito se deu nas mais variadas esferas, como nas inúmeras audiências públicas no Congresso, em que foram ouvidos especialistas em tributação e finanças, além de representantes da sociedade organizada.

Houve também intensa participação de parlamentares em eventos externos, reuniões em associações empresariais e presença na mídia.

Na fase final de tramitação, principalmente na Câmara dos Deputados, a movimentação dos grupos de interesse e a negociação política foram intensas, tendo provocado modificações no texto-base, inclusive no próprio dia da votação da PEC.

As alterações de última hora, validadas em acordos políticos para viabilizar a aprovação do projeto, foram objeto de críticas de parlamentares e de especialistas, por não terem sido objeto de análise prévia.

Todo esse contexto trouxe para os holofotes a importância do processo legislativo tributário, como prática e, também, como objeto de estudo.

Ciência da legislação

Entretanto, não é algo usual que a doutrina tributária brasileira conjugue os seus estudos com os instrumentos da ciência da legislação ou legística, visando a compreender como se dá a dinâmica de processamento das proposições tributárias no âmbito do Congresso e como isso foi determinante para o descasamento do sistema tributário nacional concreto e o desenho do sistema constitucional tributário. E, ainda, como o processo legislativo contribuiu para o déficit de racionalidade do nosso sistema tributário.

Tradicionalmente, a maioria dos estudos jurídicos tem como partida a lei, como realidade já dada, não considerando como relevante o processo legislativo do qual derivou a sua introdução no ordenamento jurídico.

É um fato louvável o paulatino surgimento de uma doutrina brasileira voltada à ciência da legislação, considerada como o estudo do processo legislativo de criação de normas jurídicas, em suas diversas facetas (jurídica, política e social, principalmente).

E apesar do predomínio dos estudos sobre a regulamentação formal do processo legislativo, trabalhos mais recentes têm incorporado mais temas relativos à qualidade legislativa e a avaliação do seu impacto.

O conhecimento de como se dá o processo legislativo tributário é imprescindível para avaliar criticamente a realidade do sistema tributário e quais os mecanismos políticos que determinam o seu desenho e evolução, e como é possível se trabalhar para o seu aprimoramento.

No âmbito do processo legislativo federal, a sua dinâmica foi e é marcada pelo presidencialismo de coalizão, caracterizado pelo grande poder de agenda do Poder Executivo, a necessidade de construção de maiorias no Congresso via coalizões partidárias e a concentração de poderes políticos e regimentais nas lideranças partidárias e nas mesas diretoras da Câmara dos Deputados e do Senado [1].

A matéria tributária, deve-se reconhecer, sempre esteve vinculada ao difícil equilíbrio político dos interesses dos principais grupos envolvidos no contexto do presidencialismo de coalizão.

O Poder Executivo, vinculado ao interesse de implementar o seu programa de governo e de conseguir o patamar de arrecadação considerado necessário para a sua viabilização; os congressistas, notadamente dos partidos da coalização governista, priorizam avaliar os efeitos políticos das propostas tributárias, principalmente em face do objetivo principal de ganhos visando à reeleição; os grupos de interesses organizados, por sua vez, possuem grande capacidade de influência no Congresso, inclusive através das frentes parlamentares que têm capacidade de barrar o avanço, ou conseguir modificações de propostas que entendam contrárias aos seus interesses.

Outro fator relevante é a inegável complexidade da matéria tributária. Isso dificulta a análise das proposições pelos parlamentares, decorrente do déficit informacional e capacidade de avaliação de dados econômicos, estatísticos, orçamentários, entre outros.

Esse quadro contribui para que em várias situações o Congresso tenha uma função homologatória de medidas gestadas pela tecnoburocracia tributária federal. O que, entretanto, não pode ser considerada uma regra absoluta, principalmente no que se refere a medidas mais polêmicas ou que contrariem interesses econômicos, políticos ou setoriais com maior poder de influência no Legislativo federal.

Benefícios fiscais

No Congresso, prepondera a avaliação com base na escolha racional, implicando que a produção legislativa tributária federal seja muito vinculada à concessão de benefícios tributários, regimes especiais tributários e programas de anistiais fiscais. Depois de instituído esse tipo de benesses, é difícil e tem custo político muito alto a sua revogação ou alteração.

Essa percepção, que já era deduzível pelo acompanhamento da produção legislativa tributária do Congresso pós promulgação da Constituição, tem sido confirmada por recentes estudos empíricos [2].

Pode-se afirmar que a aprovação de benefícios fiscais é a pauta legislativa tributária considerada pela maioria dos legisladores brasileiros como a que traz mais ganhos políticos, eleitorais e junto aos mais fortes grupos de interesse que atuam no Congresso.

Nesse aspecto, a Emenda Constitucional nº 132/23 deverá marcar uma mudança significativa na forma de operação política e administrativa da matéria tributária, ao dispor que o novo Imposto sobre Bens e Serviços (IBS) não será objeto de concessão de incentivos e benefícios financeiros ou fiscais ou de regimes específicos, diferenciados ou favorecidos de tributação, excetuadas as hipóteses expressamente previstas no texto constitucional.

Essa alteração no estado de coisas tem potencial de gerar um sistema tributário mais estável, equilibrado e previsível. A estabilidade e simplificação da dinâmica tributária, no que se refere ao consumo, deverá trazer ganhos de segurança jurídica, incentivando o investimento produtivo. Contudo, exigirá maturidade de todos os operadores, principalmente os legisladores, para entender a nova realidade. O modo de fazer política se alterará significativamente.

Em termos de qualidade democrática, existem reconhecidos problemas no processo legislativo tributário federal, com o forte predomínio das lideranças partidárias e das mesas diretoras da Câmara dos Deputados e do Senado e a utilização comum dos regimes de urgência e urgência urgentíssima, o que, em várias situações, obsta o debate amplo e democrático das proposições tributárias com os mais diversos setores da sociedade.

De fato, em muitos casos o regime de urgência acelera exagerada e desnecessariamente o rito legislativo, com o comprometimento da qualidade do processo e a possibilidade de que os congressistas e os órgãos de assessoria tenham tempo e capacidade de utilização dos recursos como as audiências públicas, obtenção de estudos e informações técnicas, participação de especialistas, etc., para que se tenha uma correta avaliação ex ante.

O estudo e a análise mais profunda do processo legislativo implicam o reconhecimento da existência de uma “lógica de ação” própria, que traz consigo uma racionalidade específica, de caráter fortemente instrumental (o agir político).

Acordos políticos

Pode-se destacar como uma das características mais marcantes do raciocínio legislativo o seu caráter consequencialista, fazendo com que a elaboração legislativa seja, ao mesmo tempo, uma atividade essencialmente conflitiva e cooperativa, o que se traduz nas emendas parlamentares e acordos políticos, em que a deliberação a respeito dos fins e dos valores tem papel fundamental, com a forma e o conteúdo das leis devendo estar de acordo com esses fins e valores. O que torna imprescindível a aproximação da ética com a política.

Todo esse modus operandi deve ser objeto de preocupação e estudo dos especialistas da área tributária, já que afetam diretamente a produção legislativa, e a qualidade e racionalidade do seu produto final.

As atenções que foram voltadas para o trâmite da PEC nº 45/19 agora devem ser direcionadas ao processo legislativo de produção das leis complementares.  Sendo que, consoante determina a emenda constitucional, o Poder Executivo tem o prazo de até 180 dias para enviar os projetos de lei complementar referentes à Contribuição sobre Bens e Serviços (CBS) e ao Imposto sobre Bens e Serviços (IBS).

Espera-se que esse momento histórico também marque uma virada de chave na ótica dos estudos jurídicos, com o reconhecimento da importância do processo legislativo tributário e a sua relevância como objeto de perquirição.


[1] A partir da promulgação das Emendas Constitucionais nº 86/2015 e 100/2019, que trouxeram relevantes alterações na sistemática de execução orçamentária, com a introdução do chamado orçamento impositivo e a redução do nível de discricionariedade do Executivo na execução das emendas individuais, visualiza-se o processo de alteração do presidencialismo de coalizão. Estudiosos tem indicado o surgimento de um semipresidencialismo de fato, com a drástica redução da prerrogativa do Presidente da República de contingenciar e liberar recursos, inclusive de emendas parlamentares.

[2]  LAZZARI, Eduardo; ARRETCHE, Marta; MAHLMEISTER, Rodrigo. O que o Congresso brasileiro prefere em matéria tributária. Políticas públicas, Cidades e Desigualdades, Nota Técnica 17, de 06 de junho de 2022.

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Limites das negociações coletivas de trabalho

As negociações coletivas de trabalho sempre receberam atenção especial em razão dos benefícios e direitos assegurados aos trabalhadores representados e, também, pelos impactos que poderiam causar nos setores de atividade econômica.

Ao longo dos anos, foram promotoras de direitos posteriormente estendidos, por lei, a todos os trabalhadores.

Neste sentido, o pagamento de 1/3 nas férias anuais remuneradas e a redução de jornada de trabalho de 48 para 44 horas que, antes da assembleia constituinte, tinham previsão como abono de férias e redução de jornada (sem redução do ganho mensal de salário) em algumas convenções coletivas, por exemplo, dos metalúrgicos de São Paulo.

Embora a Constituição de 1988 tenha atribuído aos sindicatos protagonismo relevante para a ampliação do escopo do conteúdo das negociações, o modelo da organização sindical se manteve no comodismo anterior do monopólio decorrente da unicidade sindical.

Negociado sobre o legislado

Com a reforma trabalhista em 2017 (Lei nº 13.467) e com a afirmação de que o negociado deve prevalecer sobre o legislado, houve visível alargamento e incentivo para as negociações coletivas, atribuindo aos sindicatos responsabilidade pelas condições negociadas.

Mas, ainda, mesmo assim, o modelo de organização sindical não evoluiu e apenas se preocupou com a alteração da contribuição sindical que deixou de ser obrigatória.

Spacca

Contudo, o STF colaborou com o custeio dos sindicatos e suavizou, com fundamento jurídico discutível, o recolhimento de contribuições assistenciais. Mas as negociações coletivas continuaram e, o tormento da redução de arrecadação dos sindicatos se transformou numa metralhadora descontrolada.

Há uma regra na Convenção nº 87 da Organização Internacional do Trabalho, que trata da liberdade sindical, que é fundamental cujo objetivo é o da preservação da autonomia sindical e que, na Convenção nº 98 da OIT, é de clareza meridiana no sentido da proibição de qualquer custeio direto ou indireto, de empresa ou sindicato patronal, a sindicatos profissionais, (artigo 2, 2) verbis:

Serão particularmente identificados a atos de ingerência, nos termos do presente artigo, medidas destinadas a provocar a criação de organizações de trabalhadores dominadas por um empregador ou uma organização de empregadores, ou a manter organizações de trabalhadores por outros meios financeiros, com o fim de colocar essas organizações sobe o controle de um empregador ou de uma organização de empregadores.”

Portanto, para assegurar a liberdade sindical e seu livre exercício, o repasse de verbas pelos empregadores a entidades sindicais representam um obstáculo à autonomia sindical.

Como afirmado anteriormente, após a reforma e com a alteração na forma de custeio de entidades sindicais, a criatividade para recompor o prejuízo assumiu grandezas inimagináveis.

Em 12 de março, o site do TST publicou a seguinte notícia “Mantida nulidade de cláusula coletiva que prevê benefício custeado por empresas”, decorrente de decisão da 8ª Turma que, apreciando recurso de sindicato profissional (Processo: Ag-AIRR-10135-48.2021.5.18.0054), manteve decisão que entendeu pela ilegalidade de cláusula normativa que criou “benefício familiar social” a favor do sindicato e com custeio das empresas do setor econômico.

O fundamento trazido pela relatora, ministra Delaíde Miranda Arantes, foi de que se trata “de uma espécie de contribuição assistencial compulsória que afronta os princípios da autonomia e da livre associação sindical”.

A cláusula em questão se referia a Benefício Social Familiar com a seguinte redação:

“A Entidade sindical prestará indistintamente a todos os trabalhadores subordinados a esta Convenção Coletiva de Trabalho, benefícios Sociais em caso de: nascimento de filho, acidente, enfermidade, aposentadoria, incapacitação permanente ou falecimento, conforme tabela de benefícios definida pelos sindicatos e discriminada no Manual de Orientação e Regras, por meio de organização gestora especializada e aprovada pelas entidades Sindicais convenentes.”

O detalhe curioso é que o parágrafo segundo da cláusula trazia a transferência obrigatória de R$ 22 por trabalhador, por meio de boleto, para uma sociedade gestora indicada pelo sindicato, gerando renda em favor do sindicato profissional o que, ao final, segundo a relatora, “o sindicato obreiro passa a ser mantido pelas empresas”, situação esta vedada pela citada Convenção 98, artigo 2.

Neste aspecto, vale a lembrança da redação do disposto pelo artigo 8º, §3º, da CLT, na sua redação pela reforma, no sentido de que o exame pela Justiça do Trabalho de normas coletivas observará a atuação pelo princípio da intervenção mínima na autonomia da vontade coletiva.

A situação é típica de aprendizado para que os sindicatos brasileiros, ainda que na sua unicidade, e ansiosos para captar receita, não se deixem levar por excesso de criatividade que comprometa o exercício da liberdade sindical.

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Valores fixados para penas de multa contrastam com miséria dos presos brasileiros

Quando a 3ª Seção do Superior Tribunal de Justiça revisou pela quarta vez sua tese sobre a extinção da punibilidade sem o pagamento da pena de multa, no fim de fevereiro, os valores que eram cobrados dos autores dos recursos julgados pelo colegiado não eram muito altos.

Thathiana Gurgel/DPRJ

Presos saem do sistema carcerário mais miseráveis do que quando entraram

Os réus eram homens condenados por roubo majorado e furto qualificado. E eles não tinham condições financeiras de arcar com R$ 406 e R$ 466,41, respectivamente.

Sem o pagamento da pena de multa, eles tinham a extinção da punibilidade travada e a ressocialização, severamente ameaçada, como mostrou a revista eletrônica Consultor Jurídico em reportagem publicada nesta quarta-feira (13/3).

Essa situação mostra por que o valor cobrado na pena de multa, ainda que nos patamares mínimos, acaba por contrastar gravemente com a miserabilidade fartamente encontrada no sistema carcerário brasileiro.

A revisão feita pelo STJ foi um importante passo para corrigir essa distorção. A partir dessa decisão, a mera declaração de pobreza do apenado — que poderá ser contestada com base em indícios de que ele possui bens — será suficiente para extinguir a punibilidade sem o pagamento da multa.

Esse cenário é particularmente grave nos três crimes que mais levam a condenações no país: furto, roubo e, principalmente, tráfico de drogas.

Como funciona a multa

A pena de multa está prevista no artigo 32 do Código Penal. É uma das três punições possíveis para quem comete o crime — as outras são a pena privativa de liberdade e a restritiva de direitos.

O cálculo é feito em dias-multa, cujo valor pode variar entre um trigésimo do salário mínimo da época dos fatos e cinco vezes o mesmo salário. A previsão está no artigo 49 do CP, e quem estabelece o valor é o juiz da causa.

A regra geral no Código Penal é de que a pena de multa deve ser de, no mínimo, dez dias-multa e, no máximo, 360 dias-multa. Novamente, a escolha é do magistrado.

Atualmente, com o salário mínimo em R$ 1.412, o dia-multa em seu valor mínimo é de R$ 47,06. Isso significa que a pena varia entre R$ 470,66 (dez dias-multa) e R$ 16,9 mil (360 dias-multa).

Em regra, o valor da multa será alterado para cima ou para baixo de acordo com as majorantes ou minorantes da pena.

Há casos em que o rigor da lei é maior, com a imposição de um valor mínimo específico para a pena de multa. No crime de tráfico de drogas, por exemplo, ela é de 500 dias-multa. Para os condenados em 2024, isso equivale a R$ 23,5 mil.

Wilson Dias/Agência Brasil

Pena de multa no Brasil se tornou fator de marginalização dos ex-presos

Já a pena máxima é de 1,5 mil dias-multa, ou R$ 70,5 mil. Esse é um valor que os grandes traficantes têm condições de pagar, devido ao alto rendimento de sua atividade ilícita.

Para os pequenos traficantes, a lei oferece o tráfico privilegiado: o redutor do artigo 33, parágrafo 4º, da Lei de Drogas, que diminui a pena em até dois terços e é destinado ao réu primário, de bons antecedentes e sem ligação com facções criminosas.

Nesse caso, a pena corporal mínima de cinco anos pode cair para um ano e oito meses. Isso significa que a multa é reduzida para 166 dias-multa, ou R$ 7,8 mil. E isso é um problema, porque esse é um valor que o pequeno traficante muito provavelmente terá dificuldades para pagar.

Pobreza generalizada

O cenário é esse no Brasil porque a realidade do sistema carcerário é de pobreza generalizada. O caso levado ao STJ é da Defensoria Pública de São Paulo, que atende às pessoas vulneráveis no estado que tem a maior população presa do país.

Dados da instituição indicam que, de 2020 a 2022, 55% das intimações recebidas para pagamento da pena de multa tinha valores inferiores a R$ 1 mil.

Até abril do ano passado, 67% das execuções ajuizadas na 1ª Vara de Execuções Criminais da Capital, responsável por quase 30% de todos os processos de execução de pena de multa em andamento no estado, não ultrapassavam esses mesmos R$ 1 mil.

A multa, ainda que em valores irrisórios, é impagável porque os assistidos pela Defensoria Pública, em sua maioria, já chegam ao sistema carcerário em condição de miséria.

Levantamento feito a partir das intimações de agravo em execução das execuções de pena de multa destinadas à Defensoria Pública paulista em novembro de 2023 mostra que apenas 11% dos assistidos tinham renda mensal de mais de R$ 2,5 mil quando foram presos.

Lucas Pricken/STJ

Voto do ministro Rogerio Schietti no STJ elencou dados sobre população carcerária

Os mesmos dados mostram também que 36% deles recebiam menos de R$ 1,2 mil. E que 81% dos assistidos no período não tinham declaração sobre bens imóveis, e apenas 20% possuíam casa própria — 43% viviam em habitações coletivas e outros 9% estavam em situação de rua.

No mesmo período, 66% dos assistidos não tinham declaração sobre empregou ou ocupação, e 95% deles não possuiam declaração sobre depósitos bancários.

O resultado, segundo informações do Departamento Estadual de Execução Criminal do Tribunal de Justiça de Ssão Paulo (TJ-SP), é que, entre fevereiro de 2020 e abril de 2022, há a indicação de pagamento da pena de multa em apenas 10% das execuções.

Nos outros 90% — ou seja, 240,2 mil execuções —, o valor seguia pendente, impedindo a extinção da punibilidade dos presos que já cumpriram sua pena corporal.

Objetivo da execução da pena

“É muito triste ver como a miserabilidade da população carcerária foi exacerbada em virtude da pena de multa. É o Estado atuando de maneira ativa para manter a pessoa alheia à sociedade”, avalia Glauco Mazetto, defensor público de São Paulo.

Ele atuou nos recursos que levaram à mais recente revisão de tese pela 3ª Seção do STJ. O defensor diz que perdeu a conta do número de casos em que os assistidos não tinham renda para pagar a multa por serem moradores de rua ou desempregados.

Um relatório do grupo Conectas sobre o tema concluiu que esse cenário faz com que um número expressivo de pessoas deixe a prisão em situação de maior vulnerabilidade do que quando entrou.

O trabalho, intitulado “O Preço da Liberdade — Fiança e Multa no Processo Penal” (clique aqui para ler), foi publicado em outubro de 2019 e usado no voto do relator dos recursos no STJ, ministro Rogerio Schietti.

O magistrado destacou no acórdão que o artigo 1º da Lei de Execução Penal fixa que ela tem por objetivo efetivar as disposições de sentença ou decisão criminal e proporcionar condições para a harmônica integração social do condenado e do internado.

“Não se mostra, portanto, compatível com os objetivos e fundamentos do Estado democrático de Direito que se perpetue uma situação de sobrepunição dos condenados notoriamente incapacitados a, já expiada a pena privativa de liberdade ou restritiva de direitos, solver uma dívida que, a despeito de legalmente imposta, não se apresenta, no momento de sua execução, compatível com os objetivos da lei penal e da própria ideia de punição estatal.”

Clique aqui para ler o acórdão do STJ
REsp 2.024.901
REsp 2.090.454

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Direito à nomeação vale para aprovado em concurso fora das vagas de edital

Hospital, médico, plano de saúde

O direito à nomeação a cargo no serviço público também se estende ao candidato aprovado fora do número de vagas previstas no edital, desde que haja desistência ou desclassificação de classificados em colocação superior.

Esse foi o entendimento da 1ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Distrito Federal (TJ-DF) para dar provimento a mandado de segurança e determinar que o quinto colocado em concurso para um cargo de médico seja nomeado.

No caso concreto, o autor da ação sustentou que foi aprovado em quinto lugar em um certame que oferecia duas vagas. Até o momento, apenas o segundo colocado tomou posse, já que o primeiro foi desclassificado por não cumprir os requisitos do edital. O terceiro e o quarto colocados pediram reposicionamento para o fim da fila, de modo que o autor passou a ser o candidato melhor posicionado para ocupar a vaga restante.

Ao analisar o caso, o relator, desembargador Maurício Silva Miranda, constatou que o autor apresentou documentos que comprovaram suas alegações. Ele também citou jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça no sentido de que o direito à nomeação se estende ao candidato aprovado fora do número de vagas previstas no edital.

Diante disso, o magistrado votou pelo provimento do mandado de segurança para que o governo do Distrito Federal nomeie o autor para o cargo. A decisão foi unânime.

Atuou no caso o advogado Matheus de Oliveira Ferreira.

Clique aqui para ler a decisão
Processo 0711102-49.2023.8.07.0018

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ICMS na Tusd/Tust é o retrato da insegurança jurídica

Originalmente marcado para ocorrer no último dia 22/02/2024, o julgamento pelo Superior Tribunal de Justiça do Tema 986, relativo à inclusão das tarifas de Uso do Sistema de Distribuição (Tusd) e de Uso do Sistema de Transmissão (Tust) na base de cálculo do ICMS, acabou por ser postergado para esta quarta-feira (13/3), tendo em vista o volume de sustentações orais realizadas pelos amici curiae.

Testemunharemos, portanto, ainda hoje, mais uma das várias etapas dessa interminável discussão, que, além de estar muito longe de terminar, demonstra claramente a insegurança jurídica que paira sobre as relações entre fisco e contribuintes.

Tanto assim, que, lá nos idos de 2017, neste mesmo espaço, já citávamos essa disputa como um dos mais contundentes exemplos de oscilação jurisprudencial dos nossos tribunais superiores.

De fato, inicialmente, ambas as Turmas de Direito Público do STJ decidiam reiteradamente que a Tusd e a Tust não poderiam ser incluídas na base de cálculo do ICMS.  Foram várias as decisões proferidas originariamente nesse sentido, o que fez com que se tornasse pacificada essa jurisprudência no tribunal  [1].

Posteriormente, contudo, por ocasião do julgamento do REsp 1.163.020, a 1a Turma do STJ, por maioria de votos (3 a 2),  adotou posicionamento destoante daquela orientação firmada e decidiu pela legalidade da inclusão da Tusd na base de cálculo do ICMS.

A 2ª Turma do STJ, contudo, não se curvou a esse novo entendimento e optou por manter-se alinhada à jurisprudência favorável aos contribuintes (REsp 1.163.020/RS). Destacamos trecho do voto proferido pelo ministro Herman Benjamin nesse REsp, que muito diz a respeito do pano de fundo que se pretende dar a esta coluna:

“uma vez preservado o arcabouço normativo sobre o qual se consolidou a jurisprudência do STJ e ausente significativa mudança no contexto fático que deu origem aos precedentes, não parece recomendável essa guinada, em atenção aos princípios da segurança jurídica, da proteção da confiança e da isonomia.”

Como era de se esperar, diante da divergência jurisprudencial entre ambas as turmas do STJ, houve a oposição de Embargos de Divergência (EREsp 1.163.020/RS) em face do acórdão desfavorável da 1ª Turma, embargos esses que foram afetados para julgamento sob a sistemática dos recursos repetitivos pela 1ª Seção do STJ, ao lado de diversos outros Recursos Especiais (REsp 1699851/TO, REsp 1692023/MT, REsp 1734902/SP e REsp 1734946/SP).

Esses são os casos paradigmáticos cujo julgamento terá seguimento na data de hoje (Tema 986).

Ocorre que, nesse meio tempo — entre a guinada de jurisprudência pelo STJ e este julgamento que se encontra em curso — ocorreram algumas intercorrências importantes.

Primeira intercorrência

Instado a decidir sobre o tema, o Supremo Tribunal Federal (STF) posicionou-se no sentido de que a discussão acerca da incidência do ICMS sobre a Tust e a Tusd possui natureza infraconstitucional (RE 1.041.816 – Tema 956, julgado em 07.08.2017):

É infraconstitucional, a ela se aplicando os efeitos da ausência de repercussão geral, a controvérsia relativa à inclusão dos valores pagos a título de Tarifa de Uso do Sistema de Transmissão (Tust) e Tarifa de Uso do Sistema de Distribuição (Tusd) na base de cálculo do ICMS incidente sobre a circulação de energia elétrica.

Com essa decisão, fisco e contribuintes passaram a ter a confiança legítima de que, com este julgamento que tramita na 1ª Seção do STJ (Tema 986), aquela oscilação jurisprudencial deixaria de existir e a segurança jurídica voltaria a reinar no que diz respeito a essa matéria. Afinal, o STF já se manifestara no sentido de que, por ser matéria infraconstitucional, não caberia a ele decidi-la.

Segunda intercorrência

Em meados de 2022, é editada a Lei Complementar (LC) 194, que altera o artigo 3º da LC 87/96 (Lei Kandir) para prever expressamente a não incidência do ICMS sobre a Tusd e a Tust:

“Art. 3º. O imposto não incide sobre: (…) X – serviços de transmissão e distribuição e encargos setoriais vinculados às operações com energia elétrica.”

Cria-se, nesse momento, um marco legislativo relativamente à matéria em discussão, na medida em que, a partir de então, passa a haver lei complementar que, ao dispor legitimamente sobre normas gerais relativas à incidência do ICMS, expressamente determina a não oneração das referidas tarifas pelo imposto estadual.

Terceira intercorrência

Logo em seguida à edição da LC 194/22, o Colégio Nacional de Procuradorias-Gerais dos estados e do Distrito Federal (Conpeg) ajuíza ação direta de inconstitucionalidade em face dessa e de outras disposições da LC 194/22, com requerimento de medida cautelar para suspensão de eficácia do dispositivo acima transcrito, o que é monocraticamente deferido pelo ministro Luiz Fux, em 9/2/2023 (ADI 7.195).

O ministro Fux fundamenta a concessão da medida cautelar solicitada, não só em argumentos de natureza consequencialista (perdas bilionárias para estados e municípios), como também na alegada razoabilidade do argumento de que a determinação, por lei complementar, de que a Tusd e a Tust não sofreriam a incidência do ICMS configuraria invasão, pela União, da competência tributária dos estados, pois o conceito de “operação” remeteria não apenas ao consumo da energia, mas a toda infraestrutura utilizada para a realização do consumo.

Note-se, aliás, que a referência feita à abrangência do conceito de operação é contrária ao que decidiu o próprio STF ao afastar a incidência desse mesmo imposto estadual sobre o valor da demanda contratada (RE 593.824 leading case do Tema 176 da repercussão geral, cuja ementa faz a seguinte ressalva:

“à luz do atual ordenamento jurídico, constata-se que não integram a base de cálculo do ICMS incidente sobre a energia elétrica valores decorrentes de relação jurídica diversa do consumo de energia elétrica.”

Em março de 2023, por maioria de votos, o plenário do STF ratifica a tutela cautelar concedida monocraticamente pelo ministro Luiz Fux e mantém a suspensão da eficácia do dispositivo da referida LC até o julgamento de mérito da ação, vencido apenas o ministro André Mendonça, que foi o único a lembrar que o Tribunal já havia decidido que, por ser infraconstitucional, essa matéria não deveria ser por ele apreciada.

Com a devida vênia que toda a decisão da Suprema Corte merece e deve ter, não nos parece correta a conclusão de que a edição de uma lei complementar cujo objeto seja a regulação de normas gerais relativas à incidência de impostos — de que competência for — possa configurar, por qualquer meio e forma, invasão de competências tributárias estaduais e/ou municipais.

O fundamento constitucional de leis complementares que tenham esse propósito está estampado no artigo 146 da CF, cuja redação é a abaixo transcrita:

“Art. 146. Cabe à lei complementar:
(…)
III – estabelecer normas gerais em matéria de legislação tributária, especialmente sobre:
1 – a) definição de tributos e de suas espécies, bem como, em relação aos impostos discriminados nesta Constituição, a dos respectivos fatos geradores, bases de cálculo e contribuintes;”

Vê-se claramente, que, ao exercer essa função de regular normas gerais tributárias, ainda que relativas à materialização da incidência de tributos estaduais e/ou municipais, a lei complementar não deve ser tida como lei federal, mas, sim, lei nacional, como nos ensinou o nosso mestre maior, Rubens Gomes De Sousa, no relatório que, juntamente com Gilberto de Ulhôa Canto, apresentou no âmbito da Comissão Especial nomeada pelo ministro da Fazenda para elaborar o Projeto de Código Tributário Nacional.  Essa passagem é bastante elucidativa:

“7. Uma peculiaridade do Código Tributário brasileiro, que o distinguirá de todos os demais da mesma natureza, é justamente o caráter nacional decorrente da sua aplicabilidade simultânea aos três níveis de governo integrantes da Federação. Essa característica é fundamental, porquanto a sua influência não se restringe aos aspectos imediatamente decorrentes da implantação constitucional no que se refere à competência legislativa, mas evidentemente se estende a toda a sistemática do Direito Tributário substantivo regulado no Código. Por outras palavras, a Comissão teve presente que o Código, embora atribuído à competência federal, por uma razão óbvia de hierarquia legislativa, não será lei “federal” mas “nacional”, e ainda, que as suas disposições constituirão antes regras informativas endereçadas ao legislador tributário, afetando o contribuinte, na maioria dos casos, apenas indiretamente, através da sua aplicação por parte daquele.” [2]

Essa mesma natureza há de ser atribuída a todas as leis complementares que exerçam a função de dispor sobre normas gerais que digam respeito à incidência de todos os impostos elencados na Constituição Federal, sejam federais, estaduais ou municipais.

A LC 87/96 e a LC 194/22 não fogem a essa regra.

A despeito do quanto equivocada essa decisão possa ser, o que mais gera perplexidade é o cenário de absoluta insegurança jurídica em que, por tempo indeterminado, ainda permanecerão fisco e contribuintes.

De fato, ao passar o STF a se julgar competente para julgar a matéria e, pior, ao manifestar-se o Tribunal sobre o cerne da questão tributária em si, ao ponto de tecer comentários sobre a abrangência do conceito infraconstitucional de “operação”, o que teremos, independentemente do que venha a decidir o STJ neste julgamento que se reinicia hoje, será a postergação, por mais alguns anos, da indefinição dessa eterna controvérsia.

_______________________

[1] Destaco, abaixo, alguns desses julgados: AgInt no REsp 1.607.266/MT, Rel. Min. Herman Benjamin, Segunda Turma, DJe 30/11/2016; AgRg na SLS 2.103/PI, Rel. Min. Francisco Falcão, Corte Especial, DJe 20/05/2016; AgRg no AREsp 845.353/SC, Rel. Min. Humberto Martins, Segunda Turma, DJe 13/04/2016; AgRg no REsp nº 1.408.485/SC, Rel. Min. Humberto Martins, Segunda Turma, DJe 19/05/2015; EDcl no AgRg no REsp nº 1.359.399/MG, Rel. Min. Humberto Martins, Segunda Turma, DJe 06/09/2013; AgRg no REsp 1.075.223/MG, Rel. Min. Eliana Calmon, Segunda Turma, DJe 11/06/2013; AgRg no REsp 1.278.024/MG, Rel. Min. Benedito Gonçalves, Primeira Turma, DJe 14.02.2013; AgRg no REsp 1.014.552/MG, Rel. Min. Mauro Campbell Marques, Segunda Turma, DJe 18/03/2013; AgRg no REsp 1.014.552/MG, Rel. Min. Mauro Campbell Marques, Segunda Turma, DJe 18.03.2013; AgRg nos EDcl no REsp nº 1.267.162/MG, Rel. Min. Herman Benjamin, Segunda Turma, DJe 24.08.2012; AgRg no REsp nº 1.135.984/MG, Rel. Min. Humberto Martins, Segunda Turma, DJe 04.03.2011

[2] Relatório apresentado pelo Prof. Rubens Gomes de Sousa, relator geral, e aprovado pela Comissão Especial nomeada pelo Ministro da Fazenda para elaborar o Projeto de Código Tributário Nacional, 1954, p. 89-90.

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Agravamento do risco no projeto de atualização do Código Civil

No último dia 26 de fevereiro foi disponibilizado o relatório final da Comissão de Atualização do Código Civil. De pronto, insta consignar e render elogios ao trabalho árduo e em tempo recorde, de todas as pessoas, profissionais, envolvidas.

Por outro lado, esse é o momento de aprofundar as reflexões sobre a proposta apresentada. Nesse sentido e com o propósito de contribuir para o debate, destaca-se o texto sugerido para o artigo 768 do Código Civil, que trata do agravamento do risco, in verbis:

“Art. 768. O segurado perderá o direito à garantia, se agravar intencionalmente e de forma relevante o risco objeto do contrato.

§ 1º Será relevante o agravamento que aumente de forma significativa a probabilidade de realização do risco ou a severidade de seus efeitos;

§ 2º Nos contratos paritários e simétricos, o agravamento intencional de que trata o caput deste artigo pode ser afastado como causa de perda da garantia.”

De pronto, consigna-se que a redação proposta pela comissão é melhor que a atual redação do artigo 768, que apenas anuncia que “o segurado perderá o direito à garantia se agravar intencionalmente o risco objeto do contrato”, representando, portanto, um importante avanço.

No entanto, com a máxima vênia, a proposta ao manter o qualificativo “intencional”, perde a oportunidade de retirar do texto normativo fator de controvérsias interpretativas e que, além disso, não guarda pertinência estrita com o objetivo da norma, que é a preservação do equilíbrio econômico do contrato.

Além disso, o parágrafo segundo permite a interpretação de que nos contratos paritários e simétricos seria possível afastar o agravamento intencional quando, por certo, a intenção da norma proposta é indicar a possibilidade de afastamento do qualitativo intencional e não a disciplina do agravamento.

A reflexão aqui proposta parte de três premissas interligadas entre si

  • imprescindibilidade da correlação entre prêmio e risco para a técnica securitária;
  • especial funcionalização do contrato de seguro;
  • agravamento do risco como instrumento de preservação do equilíbrio econômico do contrato e do mutualismo, a seguir explicitadas.

O prêmio e o risco figuram como elementos essenciais do contrato de seguro. O primeiro é a principal obrigação do segurado e consiste em uma prestação pecuniária correspondente ao preço do risco coberto. Já o segundo, além de ser a própria razão justificadora do contrato, delimita a sua abrangência. Os dois, em conjunto, orientam a técnica securitária, sendo o risco o parâmetro definidor da correspectividade entre o prêmio pago pelo segurado e a garantia assumida pelo segurador.

Consequentemente, a característica essencial do risco coberto por um contrato de seguro é a sua predeterminação no contrato. [1] A predeterminação encontra fundamento ainda no fato de o risco coberto por um contrato de seguro ser derivado de uma decisão, como não poderia deixar de ser, sob pena de impor um perigo para a mutualidade. Isto porque o prêmio pago pelo segurado corresponde à garantia ofertada pelo segurador que, por sua vez, reflete a apreciação pecuniária do risco ao qual está exposto  [2].

Já a técnica securitária consiste precisamente na pulverização dos riscos entre o conjunto de segurados a partir da constituição do fundo comum. Isto porque o seguro só existe enquanto contrato comunitário, cuja técnica específica é baseada no mutualismo, ou seja, na cooperação implícita entre um conjunto de pessoas a partir da constituição e gestão de um fundo comum que congrega os prêmios de um universo de interesses sujeitos ao mesmo risco.

Como o seguro só existe enquanto contrato comunitário, a funcionalização desse contrato é peculiarmente caracterizada pela necessidade de compatibilização de três centros de interesses:

  • do segurado e do segurador, em uma perspectiva individual;
  • do conjunto de segurados e do fundo por eles constituído, em uma perspectiva coletiva interna;
  • dos centros de interesses acima descritos com o da coletividade externa.

Significa dizer que, sendo o seguro um contrato comunitário, a relação estabelecida entre seguradora e segurado deve observar não apenas os objetivos perquiridos pelas partes em suas relações isoladas, mas sim o fim almejado pelo conjunto de relações que compõem a base mutuária do sistema, permitindo a sua própria existência e, além desses, os objetivos socialmente relevantes, na medida em que, além da sua função econômica própria, o contrato de seguro deve respeitar e cumprir a função social dos contratos.

Por esta razão é que a boa-fé no contrato de seguro deve ser qualificada, tendo em vista que o correto dimensionamento do risco depende sensivelmente das informações prestadas pelo segurado e toda omissão ou inverdade afeta a coletividade atrelada ao fundo constituído. Mais ainda, a boa-fé impõe a cooperação entre as partes durante toda a avença, inclusive no que tange ao não agravamento do risco.

Em sendo o seguro obrigatoriamente um contrato de trato sucessivo ou de execução continuada, é de se aviltar a possibilidade de, ao longo do seu curso, fatores externos romperem com o equilíbrio originalmente estabelecido, de sorte que é imperiosa a existência de mecanismos aptos a readequar o pacto.

Nessas hipóteses, além dos institutos genericamente previstos para obrigações que se protraem no tempo, o legislador previu a possibilidade de revisão contratual sempre que, em virtude de alterações no risco, seja quando ele diminui, seja quando é agravado, o contrato se tornar desequilibrado.

Certamente, não será toda e qualquer variação no risco que ensejará a revisão do contrato. Esta só será devida quando a prestação do segurado (prêmio) e a do segurador (garantia) se tornarem desproporcionais em virtude de fatores externos e supervenientes que alterem o risco, sob o qual as prestações foram calculadas [3].

Nesse contexto insere-se a temática do agravamento do risco que, especialmente em razão da consequência jurídica que gera — perda da garantia — é bastante sensível e que, desde a sua previsão no Código Civil de 2002, sempre gerou controvérsias doutrinárias, com reflexos nas decisões judiciais.

Não há dúvidas que muito se avançou, especialmente na delimitação de alguns requisitos para a configuração do agravamento do risco, tais como: conduta praticada pelo próprio segurado,[4] a essencialidade do agravamento com alteração do estado original do risco, nexo de causalidade entre a conduta agravadora e o sinistro.

Contudo, a interpretação da expressão “intencionalidade”, presente na redação original do artigo 768 e mantida no texto proposto pela comissão de especialistas, sempre gerou acirradas discussões, razão pela qual, pondera-se a conveniência da sua manutenção.

Especialmente porque, não obstante as divergências, doutrina e jurisprudência caminharam para a construção do entendimento prevalente de que a intencionalidade diria respeito a adoção da conduta agravadora, independentemente da intenção quanto ao seu resultado, ou seja, independentemente da intenção de que com a conduta adotada ocorresse o sinistro.

Portanto, se configura como agravadora a conduta deliberada e consciente do segurado, independentemente da intenção de prejudicar o segurador, que aumenta a probabilidade de ocorrência do sinistro. Se “é um agir ex ante de agravamento que se confirma, ex post, pela conversão do risco em sinistro, que, assim, necessariamente guarda relação causal com a conduta do agravamento”[5], melhor seria se a expressão “intencionalmente” não tivesse sido incluída no dispositivo.

A rigor, a ratio da norma é a proteção do equilíbrio do contrato, assegurando a “manutenção dos pressupostos técnicos e econômicos associados ao risco” [6], além de reforçar os deveres da boa-fé contratual. Nesse sentido e em conformidade com a ratio do instituto, a análise deve ser objetiva e da conduta, não da intenção. Significa dizer que a conduta será agravadora se aumentar a probabilidade do sinistro, desequilibrando a equação econômica do contrato.

Sendo a conduta agravadora, a perda da garantia é efeito o jurídico necessário e justificável pelo simples fato de que é do risco e do cálculo atuarial em torno da probabilidade de sua concretização que derivam as prestações do contrato — prêmio e garantia. E, sendo assim, o agravamento do risco importa em desequilíbrio do contrato, afetando negativamente não só os interesses do segurador, estabelecidos em torno daquele contrato específico, mas também os interesses do conjunto de segurados e do fundo por eles constituído.

Por derradeiro, considerando que a perda da garantia em razão agravamento do risco é instrumento de proteção do equilíbrio econômico e atuarial do contrato de seguro, sugere-se a substituição da expressão “intencionalmente” por culpa grave ou dolo, da seguinte forma: “o segurado perderá o direito à garantia se, por culpa grave ou dolo, agravar de forma relevante o risco objeto do contrato”. Com isso, o parágrafo segundo torna-se desnecessário, podendo ser suprimido e, no caso, seguindo a boa técnica legislativa, o parágrafo primeiro se converteria em parágrafo único.

A alteração sugerida tem a vantagem de evitar que sejam reacendidas as discussões acerca da intenção, além de ir ao encontro da ratio da norma — preservação do equilíbrio econômico-atuarial do contrato e da base mutual que o garante e viabiliza. Soma-se ainda a necessidade de harmonia na regulação jurídica, especialmente e a título ilustrativo, cabe analisar o artigo 762, específico do contrato de seguro, mas também o artigo 392 que trata do inadimplemento das obrigações

O artigo 762, em sua redação original, dispõe que “nulo será o contrato para garantia de risco proveniente de ato doloso do segurado, do beneficiário, ou de representante de um ou de outro”. Essa redação foi mantida na proposta de atualização, sendo acrescido um parágrafo único, determinando que nos contratos simétricos e paritários, a culpa grave se equipara ao dolo.

Trata-se de dispositivo regulador da formação do contrato, atuando no plano da validade e que não se confunde com o artigo 768, que trata da eficácia. No entanto, é forçoso concluir que, tanto na situação contemplada no artigo 762 quanto na contemplada no artigo 768, a justa medida da aleatoriedade deixaria de se fazer presente e o equilíbrio econômico do contrato restaria afetado. Contudo, a culpa grave, e não só do dolo, como qualificadora da conduta agravadora se justifica pelo fato de que o contrato já vinha produzindo os seus efeitos e que a prestação de garantia vinha sendo cumprida desde a sua formação.

Já o artigo 392, cuja redação foi mantida, diz respeito ao inadimplemento e deve ser aqui cotejado, pois essa é a qualificação do agravamento do risco. Vejamos: a conduta agravadora traduz-se em violação dos deveres derivados da boa-fé. Tal violação já é, há muito, reconhecida pela doutrina e jurisprudência, como configuradora de inadimplemento contratual. Na proposta de atualização do Código Civil, é expressamente previsto que a violação do princípio da boa-fé constitui inadimplemento.

Assim, imperioso observar as regras gerais sobre o inadimplemento. Como cediço, nos contratos onerosos, o não cumprimento da obrigação já configura o inadimplemento e enseja as consequências jurídicas próprias (artigo 389, CC). Nos gratuitos (artigo 392, CC), aquele a quem o contrato não beneficia, responde por dolo.  Significa dizer que, o inadimplemento gera consequências e que o legislador só determina a análise subjetiva, no caso, do dolo, para deflagrar a responsabilidade para aquele que não se beneficia de um contrato gratuito.

Diante dessa regra geral, mostra-se adequado e proporcional que no contrato de seguro, oneroso e que cujos efeitos afetam não só as partes contratantes, mas a coletividade, o agravamento do risco, inadimplemento, gere a consequência da perda da garantia, quando praticado por culpa grave ou dolo.

Em suma, considerando todas as razões apresentadas, e manifestando todo o respeito e admiração pelo trabalho realizado pela Comissão de especialistas, seria preferível que o artigo 768 recebesse uma redação alternativa, tal como sugerimos a seguir:

“Art. 768. O segurado perderá o direito à garantia se, por culpa grave ou dolo, agravar de forma relevante o risco objeto do contrato.

Parágrafo único: Será relevante o agravamento que aumente de forma significativa a probabilidade de realização do risco ou a severidade de seus efeitos.”


[1] “Não há contrato de seguro sem que exista risco definido. É da sua própria natureza que o risco seja identificado para que possa haver levantamento do grau de possibilidade do seu acontecimento. O contrato de seguro não pode ser celebrado para garantir ocorrência de risco indefinido” (DELGADO, José Augusto. Comentários ao novo Código Civil: das várias espécies de contrato. Do seguro (arts. 757 a 802), vol. XI. tomo I. 1 ed. Rio de Janeiro: Forense, 2007, p. 181).

[2] Neste sentido: “Não se ignora, portanto, que o contrato de seguro se assenta sobre a de seleção de riscos, pois é inviável que um grupo de pessoas pretenda segurar-se contra todo e qualquer risco e, por outro lado, é inútil proteger-se contra nenhum risco. É no processo de seleção de riscos que se revela o entrechoque de interesses que, em última instância, leva à celebração do contrato. O segurador busca maximizar as receitas que aufere para administrar o fundo comum que irá cobrir riscos bem delimitados, enquanto o segurado quer se proteger contra o maior número de riscos pelo menor custo possível”. (STJ, 3T. REsp. 763.648/PR. Rel. Min. Nancy Andrigui, Julg.: 14/06/2007.  DJ: 01/12/2007, p.272.

[3] Inclusive, essa racionalidade foi incluída de forma precisa no parágrafo primeiro do artigo 768, proposto pela Comissão de Atualização: “Será relevante o agravamento que aumente de forma significativa a probabilidade de realização do risco ou a severidade de seus efeitos”.

[4] Esse requisito é, por vez, acertadamente relativizado, conforme o caso de disputa de racha de um automóvel que foi emprestado a um terceiro condutor: “Com efeito, a meu ver, o segurado que entrega veículo a terceiro que tem 21 (vinte e um) anos de idade, sabendo que inexistia a cobertura para a hipótese, age de forma imprudente, temerária e em descompasso com as cláusulas do contrato de seguro, assumindo o risco de perder a indenização securitária caso ocorra o sinistro”. STJ, Resp 1.368.766 – RS, 4ª turma, j. 01/03/2016.

[5] PELUSO, Cezar. Código civil comentado: doutrina e jurisprudência. Editora Manole, 2022. E-book. ISBN 9786555766134. Disponível em: ttps://integrada.minhabiblioteca.com.br/#/books/9786555766134/. Acesso em: 22 out. 2023.

[6] MONTEIRO FILHO, Carlos Edson do Rêgo.; TÁVORA, Rodrigo de Almeida. Comentários ao art.768 do Código Civil. In: GOLDBERG, Ilan; JUNQUEIRA, Thiago. (Org.). Direito dos Seguros: comentários ao Código Civil. 1ed.RIO DE JANEIRO: Gen/Forense, 2023, v. 1, p. 277-286.

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Para corrigir dívidas civis pela Selic, será preciso redesenhar sistema usado no Brasil

Para permitir a aplicação da taxa Selic na correção de toda e qualquer dívida civil, conforme decidiu a Corte Especial do Superior Tribunal de Justiça, o sistema erigido pelo Poder Judiciário para essa cobrança terá de ser adaptado ou até redesenhado.

Lucas Pricken/STJ

Essa necessidade existe porque, apesar de o tribunal ter precedentes desde 2008 indicando que a taxa do artigo 406 do Código Civil é mesmo a Selic, os tribunais brasileiros simplesmente não a utilizam nos cálculos após as condenações.

 

Advogados consultados pela revista eletrônica Consultor Jurídico mostraram que, nesse sentido, o país vive uma completa falta de uniformidade.

Cada corte tem o poder de escolher qual será o índice da correção monetária, entre IPCA, IGP-M, INPC e outros. Esses índices servem para a correção monetária. Os juros de mora são convencionados em 1% ao mês.

 

Esse método alheio à Selic foi o proposto pelo ministro Luis Felipe Salomão, relator dos recursos em julgamento na Corte Especial do STJ. Para ele, é inviável obrigar a adoção da taxa fazendária em determinadas causas.

 

Quando a indenização é decorrente de relação contratual, por exemplo, isso não é um problema, pois é praxe que as partes convencionem os índices de correção monetário e juros.

Quando o caso é de responsabilidade extracontratual, como ações sobre danos morais, a Selic é um problema porque ela, enquanto instrumento monetário de controle de inflação, carrega de uma só vez índices de correção do valor e juros de mora.

Nessas causas, frequentemente esses encargos correm a partir de momentos distintos. Os juros moratórios fluem a partir do evento danoso, segundo a Súmula 54 do STJ. Já quanto à correção monetária, o termo inicial é a data da prolação da decisão que fixou o seu valor, como diz a Súmula 362.

 

Existem maneiras mais ou menos complexas de fazer incidir a Selic nessas situações, segundo os advogados consultados. Eles são unânimes ao dizer que esse tema precisa ser abordado pelo STJ.

Esse conflito foi destacado no voto do ministro Salomão. Após a divergência inaugurada por Raul Araújo vencer a votação, o relator propôs questão de ordem para, primeiro, anular o julgamento e, segundo, dar resposta a essa questão.

A questão de ordem já foi integralmente rejeitada por três dos 15 ministros da Corte Especial. A análise foi interrompida por pedido de vista do ministro Mauro Campbell.

 
Lucas Pricken/STJ

Ministro Luis Felipe Salomão indagou como exatamente a Selic deveria ser aplicada

O que podemos fazer

Como mostrou a ConJur, a definição do índice previsto no artigo 406 do Código Civil é uma discussão que se mantém há 20 anos e tem impacto astronômico na economia brasileira.

E não se restringirá à Justiça comum, já que a Justiça do Trabalho utiliza, por analogia, a atualização de valores das causas cíveis de forma supletiva e subsidiária, nos casos em que a lei processual trabalhista é omissa.

 

O voto vencedor do ministro Raul Araújo afirma que em nenhum momento o Código Civil exige que sejam previstos em índices oficiais separados e distintos. E apontou que eles só precisam ser separados quando se tem inflação galopante, o que não é mais o caso do Brasil.

Isso indica, para alguns advogados, a possibilidade de o tribunal simplesmente abandonar as duas súmulas vinculantes e unificar a incidência de juros de mora e correção monetária.

Outro deles cita a possibilidade de fracionar a Selic, incidindo a partir do evento exclusivamente para fins de juros de mora e unificada a partir da data da sentença condenatória.

 

Uma terceira linha já está em prática em alguns tribunais e no próprio STJ: impor juros de mora de 1% ao mês até a data do arbitramento da indenização e, a partir daí, a Selic. A 4ª Turma do STJ fez isso no REsp 1.518.445.

Essa última posição preservaria as Súmulas 54 e 362 do STJ, mas aumentariam a complexidade do cálculo. Nenhuma dessas possibilidades chegou a ser concretamente discutida no julgamento.

Lucas Pricken

Raul Araújo proferiu o voto vencedor no julgamento sobre taxa Selic na Corte Especial

 

Quando termina?

O ponto mais importante, na visão de quem atua diariamente em causas como essa no Judiciário, é chegar a uma definição de uma vez por todas.

Inclusive em um ponto também destacado pelo ministro Luis Felipe Salomão: saber qual Selic será a usada para corrigir as dívidas civis: a que usa o método dos juros compostos ou a da soma dos acumulados mensais.

A primeira tende a ser a mais benéfica ao credor, já que pelo menos recompõe a perda do valor da moeda.

 

Análise exposta pelo ministro Salomão indicou que, no período entre janeiro de 2002 a fevereiro de 2021, a variação total da Selic pelo método dos juros compostos representaria juros mensais de 2,29%.

A segunda seria drasticamente benéfica para o devedor. No mesmo período, a Selic pela soma dos acumulados mensais registrou variação de 219%, abaixo da inflação no período, que foi de 237% conforme o IPCA.

Para o advogado Ricardo Vicente de Paula, o principal é uniformizar. “Quando isso ocorrer, vai prejudicar alguma parte, credor ou devedor. Temos que colocar na balança. Nesse caso, o que pesa mais é a segurança jurídica. Essas situações prejudicam todo o sistema econômico.”

 

Lucas Mayall, do escritório Maneira Advogados, avalia que o entendimento do STJ deve alterar substancialmente a realidade experimentada atualmente nos tribunais, influenciando o valor a ser recebido pelos credores em incontáveis ações de natureza cível.

“A verdade é que ambas as posições são juridicamente defensáveis e há também relevantes argumentos de ordem prática a favor dos dois lados. O fundamental é que haja um posicionamento firme e vinculante a respeito, eliminando, assim, a insegurança jurídica que paira em torno desse tema tão sensível.”

 

O advogado Leonardo Roesler, do RMS Advogados, afirma que a adoção da Selic como incide unificado para correção de dívidas civis representa um avanço na busca por uma reparação adequada aos prejudicados em questões contratuais ou extracontratuais.

“No entanto, essa mudança requer uma reflexão profunda sobre os princípios que norteiam a responsabilidade civil e a atualização de débitos, bem como uma adaptação da jurisprudência do STJ para harmonizar a aplicação da Selic com os marcos temporais estabelecidos para a incidência de juros e correção monetária.”

 

Diego Herrera de Moraes, do Mattos e Filhos Advogados, lembra que o ministro Salomão é o relator do anteprojeto de atualização do Código Civil. A resolução dessa questão pela via legislativa, “se aprovado e promulgado, passaria a viger com força de lei”.

Já Maricí Giannico, do Mattos e Filhos, defende que julgamento da Corte Especial não acarreta a necessária superação de nenhum de nenhuma súmula. “A aplicação da Selic já vinha ocorrendo, em concomitância com a vigência dos enunciados 54 e 362 do STJ.”

 

REsp 1.795.982

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