Não queremos flores neste Dia da Mulher, queremos respeito

Desde janeiro de 2022, ao lado dos professores Paulo Sergio João e Raimundo Simão de Melo, escrevo quinzenalmente na presente coluna.

Assumi o espaço ocupado pelo professor Pedro Paulo Teixeira Manus, que nos deixou em dezembro de 2021, com um misto de tristeza profunda, pela perda de um mestre e amigo; e com a preocupação em dar continuidade a este espaço de forma competente, em sua homenagem.

Durante os últimos dois anos, tenho tentado expor minhas opiniões, dúvidas e críticas ao Direito do Trabalho, sempre pensando no que diria o professor Pedro Paulo a respeito dos assuntos tratados.

Acredito não ser por acaso que hoje, bem no dia 8 de março, em que se “comemora” o Dia Internacional da Mulher, a incumbência e a vez de escrever a coluna competem a mim.

Talvez o Pedro me dissesse: afinal Fabíola, o que vocês têm a comemorar se, no Brasil, a violência contra a mulher cresce a cada dia?

De fato, o Fórum Brasileiro de Segurança Pública, por meio do Instituto Datafolha, revelou que mais de 18 milhões de mulheres foram vítimas de violência no ano de 2022 [1]. São mais de 50 mil vítimas por dia, ou seja, um estádio de futebol lotado!

O mesmo estudo também mostrou que uma a cada três mulheres brasileiras, com mais de 16 anos, já sofreu violência física ou sexual.

No ano de 2023, a cada 24 horas, ao menos oito mulheres foram vítimas de violência doméstica.

Os dados são da Rede de Observatórios da Segurança, que consta do boletim Elas Vivem: Liberdade de Ser e Viver, divulgado na quinta-feira (7/3), pela Agência Brasil [2].

Ao todo, foram registradas 3.181 mulheres vítimas de violência, representando um aumento de 22% em relação a 2022.

Paridade salarial e sobrecarga

Talvez, mais otimista, mas sempre preocupado com a paridade de gênero, com a igualdade salarial entre homens e mulheres, ou com o famoso “teto de vidro” que dificulta a ascensão das mulheres aos postos de comando e gestão, o Pedro me dissesse que, por outro lado, a diferença entre os salários pagos às mulheres e aos homens vem diminuindo ao longo dos anos.

Realmente, o índice que mede a paridade salarial [3] passou de 72, em 2013, para 78,7, em 2023, segundo o levantamento Mulheres no Mercado de Trabalho, elaborado pela CNI (Confederação Nacional da Indústria) a partir de microdados da PNADc (Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua) do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) [4].

Porém, a despeito da pequena melhora apresentada nos últimos dez anos, as mulheres ainda sofrem com salários menores quando comparados aos dos homens, mesmo possuindo mais anos de estudo, conforme explica o Boletim Especial 8 de março de 2024 do Dieese (Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos) [5].

No último trimestre de 2023, o rendimento médio mensal das mulheres no mercado de trabalho brasileiro foi 22% inferior ao recebido pelos homens.

Entre as trabalhadoras ocupadas, quase 40% recebiam no máximo um salário-mínimo e, entre as negras, metade ganhava até esse valor (49,4%), enquanto essa proporção era de 29,1% entre as não negras e de 29,8% entre os homens.

Em comparação aos profissionais que terminaram o ensino superior, as mulheres ganhavam, em média, 35% a menos do que os homens com o mesmo nível educacional.

Como se não bastassem as diferenças salariais, as mulheres também assumem, muitas vezes sozinhas, a responsabilidade de conciliar as atividades profissionais com os afazeres domésticos e os cuidados com a família.

Enquanto as mulheres ocupadas dedicam, em média, 17 horas semanais com os cuidados relacionados à casa e às pessoas, os homens dispensam aproximadamente 11 horas nessas atividades.

Os números apresentados refletem o preconceito e a desigualdade existente no mercado de trabalho, a dificuldade de aceitar mulheres no exercício de cargos de chefia, a sobrecarga das atividades domésticas assumidas preponderantemente pelas mulheres, além da violência decorrente da discriminação e do assédio.

Pouco a festejar

Por fim, tenho certeza de que ele concordaria comigo e ainda, bem-humorado, me perguntaria: E essa rosa que você ganhou? Avisou que não é seu aniversário?

Pois é!

Desculpem-nos pela sinceridade, mas hoje não é dia de rosas nem de bombons, por mais que essa gentileza seja sutil e delicada.

Temos muito pouco a comemorar.

A luta pela igualdade de direitos entre homens e mulheres parece ser longa.

Nós não queremos flores no dia de hoje.

Queremos respeito!

Respeito às nossas ideias, ao nosso corpo e à nossa liberdade.


[1] https://noticias.uol.com.br/ultimas-noticias/agencia-estado/2023/03/03/brasil-esta-diante-de-um-aumento-de-violencia-contra-a-mulher-diz-pesquisadora.htm

[2] https://agenciabrasil.ebc.com.br/direitos-humanos/noticia/2024-03/cada-24-horas-ao-menos-oito-mulheres-foram-vitimas-de-violencia

[3] A paridade de gênero é medida em uma escala de 0 a 100, sendo que quanto mais próximo de 100, maior a equidade entre mulheres e homens.

[4] https://noticias.portaldaindustria.com.br/noticias/economia/paridade-salarial-entre-mulheres-e-homens-no-brasil-aumentou-nos-ultimos-10-anos-aponta-cni/

[5] https://www.dieese.org.br/boletimespecial/2024/mulheres2024.pdf

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O artigo 142 da Constituição: seu efetivo conteúdo

O tema a ser ora tratado já foi objeto de apreciação de nossa parte, em nosso Tratado de Direito Administrativo Brasileiro.

Dá-se, porém que, sobretudo a partir dos últimos meses da gestão do cidadão que antes ocupava a Presidência da República (posteriormente declarado inelegível pelo Tribunal Superior Eleitoral, por oito anos, contados do primeiro turno das eleições gerais de 2022), o artigo 142 da Constituição tem vindo à ribalta, como tema praticamente diário de debates em todos os veículos midiáticos e de comunicação em geral.

Em sua grande maioria, alguns néscios, outros amantes da prepotência, mas poucos juristas e uma multidão de pessoas que não têm qualquer relacionamento com o estudo do Direito, do alto de suas cátedras e “catedras”, resolveram divulgar seu entendimento do preceito constitucional em questão.

A pletora de extravagâncias e impropriedades, assim veiculadas, poderia até compor um anedotário, não fosse o gravíssimo fato de que tais equívocos rotundos venham todos confluir para uma só conclusão: o autocrata antes no exercício da Presidência pode sim (e até deveria!) ditar as pautas do sistema eleitoral brasileiro, de sorte a assegurar sua reeleição.

Para tanto valeria tudo: delegar às Forças Armadas os condicionamentos técnicos do emprego das urnas eletrônicas; fiscalizar o Executivo (provavelmente com prepostos fardados) toda a atuação da Justiça Eleitoral, desde as campanhas e as votações até a proclamação dos resultados; abrir áreas militares para a ocupação e acampamento de desorientados (alimentados e financiados por todos, cegos, malfeitores e vários outros tipos desse jaez, alguns combinando duas, três ou mais de tais características), personagens sinistros, que pregavam a implantação de uma “ditadura com Bolsonaro” e a interferência dos militares nas eleições.

Enfim, um caldo de “cultura” que exigia um golpe de Estado e o fim da democracia, carinhosamente hospedado e sustentado por agentes que DESCUMPRIAM DEVERES CONSTITUCIONAIS, particularmente o de “defesa da Pátria” e o da “garantia dos poderes constitucionais” (CF, artigo 142).

Deixemos de lado as teorias, explicações e propostas dos néscios, dos mal-intencionados e dos valentões. Por analogia: de minimis non curat praetor.

Mas se deu que também alguns juristas deram rédeas soltas à sua imaginação, chegando mesmo a divisar, no citado artigo 142 constitucional (estamos sempre a referir o caput), a existência, reencarnada nas Forças Armadas, de um superpoder, algo como o Poder Moderador que a Constituição do reinado colocava nas mãos de Pedro 1º e Pedro 2º.

No primeiro volume do nosso referido “Tratado” analisamos o citado Poder Moderador, suas origens, seu exercício e sua superveniente falência no Brasil (que inclusive desmantelou o parlamentarismo que a Constituição de 1822 pretendia instituir). E olhe que se tratava de um Poder constitucionalmente previsto. Mas pensar assim, nos anos 2000, sob a vigência da Constituição de 1988, é uma esdruxularia espantosa!

Os Poderes da República brasileira são apenas três, todos independentes e harmônicos entre si. Leia-se o artigo 2º da Lei Magna:

“Art. 2º São Poderes da União, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário.”

Agora, releia-se a primeira parte do caput do artigo 1º:

“Art. 1º – A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, CONSTITUI-SE EM ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO ……….. (nossos os grifos) — Constituição de 1967/69, artigos 90 e 91
“Art. 90 – As forças armadas, constituídas pela Marinha, pelo Exército e pela Aeronáutica, são instituições nacionais, permanentes e regulares, organizadas com base na hierarquia e na disciplina, sob a autoridade suprema do Presidente da República e dentro dos limites da lei.
“Art. 91 – As forças armadas, essenciais à execução da política de segurança nacional, destinam-se à defesa da Pátria e à garantia dos poderes constitucionais, da lei e da ordem.

A instituição, manutenção, proteção e guarda da Democracia são marcos indissolúveis da própria sobrevivência da Constituição de 1988, assim como do País e do Estado que ela erigiu e edificou.

caput do artigo 142 constitucional não sofreu alterações em sua redação, desde a promulgação em 1988 até nossos dias. Mas não só: o preceito em tela limita-se, em verdade, a repetir, com pequenas modificações meramente formais, análogas regras, de textos constitucionais anteriores. Aqui vão alguns deles, para os devidos confrontos. Assim:

— Constituição de 1946, artigos 176 e 177
“Art. 176 – As forças armadas, constituídas essencialmente pelo Exército, Marinha e Aeronáutica, são instituições nacionais permanentes, organizadas com base na hierarquia e na disciplina, sob a autoridade suprema do Presidente da República e dentro dos limites da lei.”
“Art. 177 – Destinam-se as forças armadas a defender a Pátria e a garantir os poderes constitucionais, a lei e a ordem.”
— Constituição vigente (1988), artigo 142
“Art. 142. As Forças Armadas, constituídas pela Marinha, pelo Exército e pela Aeronáutica, são instituições nacionais permanentes e regulares, organizadas com base na hierarquia e na disciplina, sob a autoridade suprema do Presidente da República, e destinam-se à defesa da Pátria, à garantia dos poderes constitucionais e, por iniciativa de qualquer destes, da lei e da ordem.”

Se ainda houvesse o instrumento de escrita tão tradicional outrora, poder-se-ia dizer que o digitador do texto de 1988 usou “papel carbono”, para editar o preceito em vigor.

O inolvidável Pontes de Miranda, em seus festejados comentários à Constituição de 1967 com a Emenda nº 1 de 1969 [1], em momento algum hesita: a função das Forças Armadas é a “garantia dos Poderes constitucionais”, jamais sua extinção ou cerceamento. Cumpre-lhes, adita, SUSTENTAR AS INSTITUIÇÕES CONSTITUCIONAIS (nossos os grifos).

Outro imortal de nosso jurismo e dos estudos constitucionais, Carlos Maximiliano, após enfatizar que, para a manutenção do regime, “Não se compreende um exército deliberante” [2], adiciona que “os direitos políticos dos militares não divergem dos assegurados aos paisanos, sob nenhum aspecto”, concluindo que “… as leis e regulamentos a que devem render obediência lhes não facultam a franquia, assegurada ao civil, de fazer a crítica de atos dos Poderes constituídos”.

Por último, com direta incidência no artigo 142 da Constituição de 1988, destaco outro excelente “Comentários à Constituição do Brasil” [3], na seguinte anotação expressiva:

“A Constituição Federal de 1988 proscreve que, sob o pretexto de proteger o Estado, sejam perpetradas ofensas aos direitos fundamentais e à estrutura político-governamental do estado de direito, do sufrágio universal, do pluripartidarismo, da separação de poderes e do federalismo.” (meus os grifos)

Mas o que se viu no curso do mandato presidencial, terminado em 2022?

Não há necessidade de acurada memória, para responder. Viu-se o então (e hoje inelegível) Presidente atacar virulentamente o Poder Judiciário (particularmente o Supremo Tribunal Federal e o Tribunal Superior Eleitoral), ameaçando não cumprir suas decisões, pregando a adoção de um processo eleitoral que ao mandatário autocrata garantisse a reeleição, ofendendo as instituições judiciais e seus magistrados, sobretudo alguns que eram de sua especial desestima, especialmente por não se curvarem às diatribes pregadas até em frente a quartéis.

E não faltaram autores para afirmar: se o Executivo se atrita com o Judiciário, poderá aquele invocar o artigo 142 da Constituição, para intervir (no caso, no STF e no TSE), afastando definitivamente o magistrado “perturbador”, domesticando o Poder “insubmisso”. Ou seja, quem estava realmente subvertendo a ordem determinaria o silêncio de quem a defendia! Outra vez: entregava-se a chave do curral, do rebanho ao lobo faminto de autoridade.

Fabio Rodrigues-Pozzebom/Agência Brasil

A culminância de toda essa inacreditável desordem foi a baderna criminosa de 8 de janeiro de 2023, quando turbas ensandecidas, insufladas pela derrota eleitoral de seu destrambelhado ídolo, financiadas por oportunistas apoiadores, invadiram e vandalizaram as sedes do Judiciário, do Executivo e do Legislativo.

Também culminância de toda essa loucura foi a redação (certamente por um ágrafo em Direito) de um ato normativo decretando um alucinado (técnica e argumentativamente) “estado de defesa” no Tribunal Superior Eleitoral.

A verdade é que estivemos à beira da destruição da democracia no Brasil. E ela não se deu não só pela vigilância e manifestações de irresignação da mídia e da maioria do povo brasileiro; mas sobretudo pela coragem vertical e pela tonitruante série de proclamações e atos concretos dos Tribunais atingidos pela demagogia autoritária e destruidora — com destaque para o enérgico ministro Alexandre de Moraes, com o apoio de seus pares.

Não milito entre aqueles que aplaudem sem limites o chamado construtivismo judicial. Mas, para mim, a expressão em tela (e as demais que o mesmo fenômeno denomina) somente se aplica ao exercício jurisdicional que, refletindo a opinião exclusiva do decisor, fundamenta seu pronunciamento fora das linhas do princípio da juridicidade (conceito bem mais amplo que o da mera legalidade).

Fora daí, seja por provocação de alguém, seja em defesa das instituições, e em havendo silêncio ou omissão da legalidade estrita, o Judiciário (particularmente o STF) TEM DE DECIDIR, a ele não sendo aplicável simplesmente alegar o non liquet.

Reiterando: tentou-se usar espuriamente o artigo 142 no debate eleitoral brasileiro, e o pior só não ocorreu pela união das manifestações em sentido contrário em apoio às aspirações democráticas, aliadas ao superior exercício, pelo Supremo Tribunal Federal e pelo Tribunal Superior Eleitoral, do arsenal jurídico que a Constituição nos propicia, em defesa do Estado Democrático de Direito.

Poderão então indagar: quando e como utilizar o artigo 142 e invocar a atuação, em sua conformidade, das Forças Armadas?

A resposta é fácil, conquanto, para ser útil, não deva ser sucinta. Vamos a ela.

Em primeiro lugar, curial sublinhar: as Forças Armadas portam armas. E, por isso, só devem ser, em princípio, convocadas por um Poder contra outro (se possível ocorrer tão retórico evento), se o desafiante também dispõe de armamento bélico.

Se assim não é, como pretender movimentar todo um aparato, quando o hipotético Poder refratário à Lei e à ordem é um Poder desarmado?

Não há dúvidas de que acontecem, vez por outras, crises entre Poderes.

Mas elas se resolvem pelo uso dos instrumentos e da arte da política! E se eles forem insuficientes para a dirimência do litígio?

A Constituição aponta a solução: na forma do artigo 5º, XXXV: não se exclui lesão ou ameaça a direito à apreciação do Poder Judiciário! Gostem ou não os ditadores, ou candidatos a tal infame posto e seus apoiadores: no Brasil a última palavra sobre o conteúdo da Constituição incumbe somente, e inapelavelmente, ao Judiciário.

Incursionemos entretanto pela imaginação delirante: e se, por exemplo, o STF, unânime ou majoritariamente, decidir sempre e sempre contra as pretensões pessoais (revestidas do disfarce de pretensões constitucionais/institucionais) do presidente da República? Novamente resposta simples, constitucional e institucional: pelos caminhos que o nosso ordenamento jurídico prevê, intentar o impedimento dos Ministros desviados de suas magnas atribuições!

Mas para nada disso justifica invocar o artigo 142 e colocar armas para dobrar argumentos e seus fundamentos. Acima de tudo, na LETRA da Constituição e no ESPÍRITO do Estado de Direito Democrático que ela instituiu, o papel fundamental das Forças Armadas, em relação aos Poderes da República, é o de “garantir” seu funcionamento, e não, limitá-lo ou eliminá-lo. E cumprirá tal garantia constitucional sem armas, que devem ser reservadas à “defesa da Pátria” e da “ordem” interna, quando, aí sim, a força será combatida com a força.

_________________________________

[1] MIRANDA, Francisco Cavalcanti Pontes de. Comentários à Constituição de 1967 com a Emenda nº 1 de 1969, Forense, Rio de Janeiro, Tomo III, edição de 1987, particularmente nas páginas 392/393.

[2] MAXIMILIANO, Carlos. Comentários à Constituição Brasileira [de 1946], Freitas Bastos, Rio de Janeiro, 5ª edição, 1954, volume III, página 222.

[3] SOUZA NETO, Cláudio Pereira de. Comentários à Constituição do Brasil (obra coletiva), Saraiva/Almedina, São Paulo, 2013, página 1582.

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TikTok, Instagram e YouTube: como as plataformas digitais impactam a carreira jurídica

A integração de tecnologias digitais na prática jurídica proporcionou mudanças profundas na forma como advogados e profissionais do direito interagem com seus clientes, educam seu público e promovem seus serviços.

De um lado, essas plataformas têm provocado mudanças profundas na forma como vemos o trabalho e como interagimos no dia a dia profissional.

Outro ponto importante é que as novas gerações já entram no mercado de trabalho com um conhecimento nativo desde o nascimento praticamente, o que têm acelerado o processo de adoção dessas ferramentas.

Para se ter ideia, houve um aumento significativo da presença de jovens advogados no cenário jurídico — 52% dos entrevistados pelo Estudo Demográfico da Advocacia Brasileira (PerfilAdv), têm menos de 10 anos de carreira.

Adaptação

Nesse contexto, há uma clara importância da adaptação a um ambiente em que a tecnologia está cada vez mais presente nas atividades diárias, especialmente aquelas consideradas “automatizadas” ou “mecânicas”.

Esse movimento ganha força em um setor que tradicionalmente é visto como obsoleto e lento. No entanto, novos ventos estão chegando e temos presenciado mudanças importantes — e extremamente necessárias no âmbito jurídico.

Uma das transformações mais visíveis é na área da comunicação. As plataformas digitais oferecem ferramentas que permitem uma comunicação mais rápida, eficiente e acessível em diversas esferas da atuação jurídica.

O LinkedIn, por exemplo, facilita o contato rápido, a troca de informações entre profissionais e empresas, o que possibilita compartilhar visões de casos, orientações, oportunidades, colaborações e, em muitos casos, desenvolver parcerias estratégicas.

Já o WhatsApp, a rede social mais usada e a favorita de 34,3% dos brasileiros, segundo a pesquisa global do DataReportal, garante um uso efetivo em processos e gera uma boa experiência ao cliente por passar um atendimento mais exclusivo e personalizado com seu advogado, por exemplo.

Outra questão muito importante é que a tecnologia democratizou o acesso à informação jurídica. Os advogados agora têm à disposição bancos de dados online, recursos educativos, webinars e cursos especializados que permitem atualizações contínuas sobre legislação, proteção e práticas jurídicas.

As plataformas de aprendizado online são flexíveis para o desenvolvimento profissional, permitindo acesso a conteúdo de qualidade, de qualquer lugar e a qualquer momento.

Marketing

O marketing jurídico, por exemplo, foi profundamente influenciado pelo Instagram e pelo Facebook. Advogados e escritórios de advocacia utilizam sites, blogs e redes sociais, estratégias de SEO, marketing de conteúdo e publicidade digital para aumentar a visibilidade online e atrair clientes potenciais em um mercado cada vez mais competitivo.

Atualmente, os advogados podem utilizar as redes sociais não só para promover seus serviços, compartilhar conteúdo relevante e estabelecer-se como autoridades em suas áreas de atuação, mas também para criar conteúdo para educar o mercado e a sociedade.

Isso pode ser feito, por exemplo, por meio de vídeos educativos no TikTok e no YouTube, o que permite aos profissionais demonstrarem conhecimento, compartilharem insights jurídicos e criarem ou fortalecerem sua reputação.

Já a adoção de softwares jurídicos e ferramentas de gestão online tem otimizado a eficiência operacional das práticas jurídicas. Sistemas de gerenciamento de casos, automação de documentos, calendários eletrônicos e plataformas de colaboração permitem que os especialistas gerenciem melhor seus casos, otimizem processos e melhorem a experiência do cliente e flexibilidade na gestão do tempo. No entanto, as facilidades trazem, por sua vez, seus desafios.

Se, de um lado, as redes sociais oferecem uma série de vantagens do ponto de vista operacional e produtivo, de outro, há questões éticas associadas ao seu uso. Estamos falando de temas sensíveis como confidencialidade, privacidade, e conduta profissional, que devem ser cuidadosamente consideradas para garantir a integridade e a ética da prática jurídica online.

É preciso lançar mão de medidas que garantam a segurança da comunicação online por meio de ferramentas como a criptografia de texto, gerenciadores de senhas e uso de redes VPN, por exemplo.

Mesmo em um cenário tão desafiador, não há dúvida de que as plataformas digitais têm contribuído para a evolução da prática jurídica. As redes sociais podem ser aliadas valiosas na construção de uma carreira jurídica bem-sucedida, influente e ética no mundo digital atual.

Fonte: Conjur

Entendendo o estelionato sentimental sob a perspectiva de gênero

Um caso real

Joana conheceu Mateus em uma festa. Ela, uma alta executiva de uma construtora, conhecida por supostamente ser “dura na queda”, de “difícil trato”, “intragável”, dizia parte da equipe quase totalmente masculina liderada por ela, em uma das empresas com maior contratação de homens no país.

Mateus sabia identificar mulheres bem-posicionadas e em busca de um amor. Joana era uma dessas mulheres, capa de inúmeras revistas de negócios, inspiração no mercado, mas há muitos anos sem engatar um relacionamento bem-sucedido. O motivo, segundo ela, era que os homens se sentiam castrados por seu poder e competência.

Joana desejava viver um amor, ela realmente estava empenhada. E foi por essa vulnerabilidade específica, da vontade de amar e ser amada, que Mateus entrou em sua vida.

O romance evoluiu rapidamente. Ele sabia como agir, estava sempre melancólico porque seus projetos profissionais eram um “fracasso”, mas ao mesmo tempo era o companheiro “perfeito” para Joana: carinhoso, apaixonado, envolvente.

E foi nesse contexto que Joana passou a investir nos negócios do amado, afinal, queria vê-lo mais feliz e carregava a culpa de ser bem-sucedida em seu trabalho enquanto  Mateus parecia não alcançar o sucesso por falta de oportunidades.

Ao longo dos anos, Joana emprestou cerca de 20 milhões para investimentos nas empresas de Mateus, sempre com promessas de ser reembolsada. Segundo ele, a fortuna havia sido perdida porque o mercado oscilava. Ele seguia pedindo mais. Ela nunca recebeu um centavo investido.

Nessa altura, Joana já vinha limitando o dinheiro e Mateus apresentava comportamento violento quando as negativas aconteciam, chegando a dizer que “a falta de dinheiro na conta tirava a sua libido”.

Foi durante a exibição de uma matéria jornalística sobre violência doméstica, que Joana percebeu que havia algo muito errado em seu relacionamento e decidiu buscar ajuda com uma advogada especialista.

O caso narrado é verídico e foi atendido no escritório de uma das subscritoras desse texto, com alteração da identidade das partes a fim de preservar o sigilo do caso.

A vítima, acreditando que o companheiro seria mais feliz e se entregaria mais ao relacionamento se fosse bem-sucedido em seus negócios, transacionou valores multimilionários e foi agredida, inclusive mediante enforcamento e socos, ao negar novas transferências bancárias para o companheiro.

O estelionato sentimental na legislação brasileira

Casos como esse sempre existiram, contudo, a maior problematização dessas situações e a identificação de consequências jurídicas, têm tornado essa uma discussão pública.

Para a configuração de um crime de estelionato, é necessário o preenchimento dos seguintes requisitos: (i) obtenção de vantagem ilícita, em prejuízo alheio; (ii) emprego de artifício, ardil ou qualquer outro meio fraudulento; (iii) induzimento ou manutenção da vítima em erro.

A vantagem ilícita é compreendida como todo e qualquer proveito ou benefício não justificado no ordenamento jurídico, enquanto o prejuízo alheio se configura pela perda de patrimônio ou lucro, e o meio fraudulento consiste no método adotado para alcançar a confiança da vítima que, por sua vez, é levada a uma falsa compreensão da situação vivenciada.

No estelionato sentimental há um vício de consentimento. A vítima, envolvida emocionalmente, age com base em seus sentimentos, mas é ludibriada a sentir a partir de uma falsa realidade.

Vale ressaltar que toda e qualquer mulher pode ser vítima de estelionato sentimental. Não há uma “vítima ideal” e esse tipo de golpe tem acontecido de múltiplas formas. Apesar disso, mulheres bem-sucedidas financeiramente costumam ser alvos preferenciais dos oportunistas que buscam enriquecimento indevido, aproveitando-se da confiança estabelecida, levando as vítimas a crer na reciprocidade dos sentimentos.

Para além das possíveis indenizações cíveis, a conduta também repercute na justiça criminal, já que a relação amorosa se constitui como o meio ardil com a qual se pratica o estelionato.

O raciocínio apresentado busca aplicar a norma penal a condutas reais em casos concretos, por meio da subsunção penal, que pressupõe a comparação de determinada situação fática com a descrição do crime na legislação.

Debates no Judiciário

Recentemente, esta ConJur noticiou a aplicação desse entendimento pela 2ª Turma Recursal do Tribunal de Justiça de Santa Catarina, ao tratar do caso de uma mulher que foi levada a erro por um homem que se passava por integrante da Polícia Rodoviária Federal com fins de aumentar sua credibilidade, alegando a vítima, em relacionamento amoroso, que precisava de dinheiro para quitar dívidas, pagar a pensão da filha e comprar remédios para a mãe [1].

A decisão judicial reconheceu a ocorrência estelionato sentimental ao narrar que, no caso, “o agente se utiliza de ardil para obter vantagem econômica ilícita da companheira, aproveitando-se de relação afetuosa”.

Em outro caso emblemático, o Tribunal de Justiça do Espírito Santo, via apelação criminal 0051215-23.2014.8.08.0035, manteve condenação criminal por estelionato sentimental, afastando a incidência do artigo 181 do Código Penal, que isenta de pena quem comete crimes contra o patrimônio em prejuízo de cônjuge ou na “constância da sociedade conjugal”.

O entendimento do TJ-ES se baseou no fato de o réu ter mantido “a vítima em erro quanto à sua pessoa, utilizando-se de seus conhecimentos jurídicos para concretizar o intento criminoso.”, além de que “não se deve admitir que o agente se beneficie da própria torpeza, beneficiando-se da isenção de pena quando agiu de maneira premeditada e calculista, antes mesmo de contrair matrimônio, antevendo todos os atos necessários para obter a vantagem patrimonial indevida em detrimento do sentimento e finanças da esposa,”

Nesta coluna [2], já tratamos, em meados de 2020, sobre a importância de analisarmos a isenção de pena disposta no artigo 181 do Código Penal à luz da perspectiva de gênero, por compreendermos que o próprio artigo penal 183 traz rol excludente da aplicação da isenção de pena, como, por exemplo, “quando haja emprego de grave ameaça ou violência à pessoa”.

De modo geral, a prática da violência patrimonial na constância do casamento, por si só, afastaria a aplicação da isenção penal do artigo 181, por configurar a exceção de “violência à pessoa”, que cumularia abalos emocionais como resultado e, em casos mais graves, possível estresse pós-traumático, uma espécie de distúrbio caracterizado por sintomas físicos, emocionais e psíquicos em decorrência da gravidade da violência sofrida.

Estelionato e a perspectiva de gênero

Analisar o estelionato pela perspectiva de gênero amplia as possibilidades de proteção à mulher, que pode contar com a concessão de medidas protetivas de urgência mais específicas para fazer cessar a violência patrimonial. Esse debate é urgente e trataremos de outras especificidades do estelionato sentimental em uma segunda rodada de texto, na próxima semana.

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[1] Disponível em https://www.conjur.com.br/2024-jan-02/vitima-de-estelionato-sentimental-nas-maos-de-falso-policial-sofre-dano-moral/ (acessado em 4/3/24).

[2] Disponível em https://www.conjur.com.br/2020-set-30/escritos-mulher-critica-imunidade-penal-agressor-violencia-patrimonial/ (acessado em 4/3/24).

Fonte: Conjur

Pagamento de tributos e o direito de desistir conforme a Lei 14.689/2023

O ano de 2024 se iniciou da forma que sonhavam aqueles que trabalham com o contencioso administrativo fiscal federal: com a volta dos plenos trabalhos do Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf), nas sessões presenciais em Brasília. Dar seguimento aos processos, com recursos discutindo o porquê estar o crédito tributário sendo (in)devidamente cobrado, é justamente o que querem os advogados públicos e privados.

Todavia, o advento da Lei nº 14.689/2023 fez com que esse interesse dos contribuintes no julgamento de seus apelos especiais à Câmara Superior de Recursos Fiscais (CSRF) passasse por nova análise. Explicamos.

Como se sabe, a competência da CSRF cinge-se à solução de divergências interpretativas entre as decisões proferidas pelas Turmas do Carf (artigo 37, §2º, II do Decreto 70.235/72), de modo que sua apreciação tem como foco as teses jurídicas (direito), e não as provas trazidas aos autos (fatos). Também é sabida a perspectiva de sucesso dos contribuintes, ou mesmo de perda pelo mero voto de minerva do presidente (“voto de qualidade”), quanto aos temas julgados no âmbito da CSRF. Exemplos dessa realidade não faltam na jurisprudência do Carf.

Dados esses elementos, é possível que o curso do processo administrativo fiscal traga uma particularidade que culmina na nova análise aventada no início da coluna de hoje: se a decisão recorrida por meio do recurso especial foi proferida contra os interesses do contribuinte por voto de qualidade na Turma ordinária, faria sentido seguir com o recurso especial no âmbito da CSRF [2]?

A análise dessa questão passou a ser indispensável aos contribuintes ante o disposto no artigo 25, §9º-A do Decreto 70.235/72, com redação trazida pela Lei nº 14.689/2023, segundo o qual, na hipótese de julgamento final proferido por voto de qualidade em favor da Fazenda Pública, ficam excluídas as multas e cancelada a representação fiscal para fins penais, tratadas no processo. Esse tem sido o grande foco – cancelamento de multas mantidas em julgamento por voto de qualidade – daqueles que analisam os efeitos retrospectivos da aplicação do voto de qualidade, com base nas regras trazidas pelos artigos 15 e 16 da própria Lei nº 14.689/2023.

Todavia, decisões proferidas pelo voto de qualidade em processos pendentes de decisão final também foram objeto de disciplina pelo artigo 25-A do Decreto 70.235/72, igualmente trazido pela Lei nº 14.689/2023. Esse dispositivo determina que, na hipótese de o julgamento de processo administrativo fiscal ser resolvido definitivamente a favor da Fazenda Pública pelo voto de qualidade, uma vez manifestada pelo contribuinte a intenção de pagar a dívida tributária em 90 dias, será permitida a exclusão dos juros de mora, além do pagamento do valor principal da dívida mediante o ”pacote de benefícios” trazido pela própria lei (utilização de prejuízo fiscal, base de cálculo negativa de CSLL, compensação com precatórios e o parcelamento em 12 vezes).

Desistência do recurso

É justamente porque o dispositivo faz menção à “hipótese de julgamento de processo administrativo fiscal resolvido definitivamente a favor da Fazenda Pública” que é apropriada a ponderação sobre a conveniência do seguimento do recurso especial por parte daqueles contribuintes que tiveram voto de qualidade proferido pela Turma ordinária do Carf no passado, e que correm o risco de perdê-lo pela sobreposição de um julgamento por maioria ou unanimidade contra seus interesses na CSRF. Explicamos também.

É direito do postulante desistir do recurso que fora interposto, o que pode ser feito a qualquer tempo (cf. artigo 998 do Código de Processo Civil). A consequência dessa desistência do direito de recorrer, ou de ver julgado o recurso antes interposto, no âmbito do contencioso administrativo fiscal federal, será a prolação de despacho reconhecendo a desistência do recurso especial do contribuinte e determinando a devolução do processo à repartição fiscal de origem (cf. artigo 61, XIX e parágrafo único do Regimento Interno do CARF – RICARF).

Uma vez declarado extinto o processo (cf. artigo 52 da Lei nº 9.784/1999), passa a existir o “julgamento de processo administrativo fiscal resolvido definitivamente a favor da Fazenda Pública pelo voto de qualidade” a que se reporta tanto o artigo 25-A do Decreto 70.235/72, quanto os artigos 1º e 3º da Instrução Normativa RFB nº 2167/2023 [3].

Nessa situação, de mera desistência do recurso e de extinção do processo dela decorrente, não existe o efeito substitutivo de uma decisão (de mérito) da CSRF em relação ao acórdão proferido pela Turma Ordinária do Carf. Tal efeito só ocorreria se houvesse sido dado seguimento ao julgamento do recurso especial, culminando numa decisão terminativa de mérito do processo (acordão da CSRF), a qual substituiria a anterior decisão de segunda instância. Tudo nos termos do artigo 1.008 do CPC, quando estabelece que “o julgamento proferido pelo tribunal substituirá a decisão impugnada no que tiver sido objeto de recurso”.

Em outras palavras, uma vez feita a desistência (total ou parcial) do recurso especial pelo contribuinte, não há julgamento colegiado via superveniente acórdão para manter ou reformar a decisão anteriormente proferida, mas sim simples despacho, reconhecendo a desistência do recurso e declarando extinto o processo, cristalizando (ou seja, tornando definitivo) os efeitos da última decisão (de mérito) proferida no processo. Não há e nunca haverá decisão da CSRF sobre a (im)procedência do crédito tributário, sendo certo que a decisão administrativa final de mérito sobre a matéria é aquela exarada pela Turma ordinária de julgamento do Carf.

Assim é que, com a desistência do REsp, reconhecida por despacho do presidente da CSRF, ou por quem lhe faça as vezes nessa função, torna-se finda a lide administrativa a respeito do tema, sendo que a partir daí conta-se o prazo de 90 dias para a manifestação dos contribuintes no sentido de pagar o valor devido à título de tributo mediante o “pacote de benefícios” trazidos pela Lei nº 14.689/2023.

Redução de litigiosidade

Não parece demais enfatizar que a Lei nº 14.689/2023 não só resolveu a questão do cancelamento das penalidades em caso de empate no julgamento, com clara inspiração no artigo 112 do Código Tributário Nacional, mas também criou estímulos para que o contribuinte pague o valor devido a título de tributo que fora mantido pelo voto da qualidade. Ou seja, trata-se de legislação criada dentro do contexto da promoção da redução de litigiosidade. Afinal, parte relevante das já citadas vantagens (“pacote de benefícios”) só poderá ser usufruída se o contribuinte pagar sua dívida tributária principal, dentro do prazo estipulado pela lei. Ou seja, só poderá ser quitado o crédito tributário com prejuízo fiscal, base de cálculo negativa de CSLL, precatórios e de forma parcelada se o contribuinte deixar de litigar. E como se deixa de litigar? Desistindo do recurso em trâmite no PAF e pagando a dívida sem (novo) questionamento judicial.

Cumpre nesse ponto destacar que a desistência não se confunde com a renúncia ao direito material.

A desistência tão somente põe fim ao processo administrativo e, como se disse, tornam definitivos os efeitos da última decisão de mérito nele proferida. A renúncia ao direito acontecerá apenas se o contribuinte resolver pagar sua dívida, o que ocorrerá por meio de outro ato procedimental no âmbito administrativo, qual seja, o requerimento de opção de pagamento do crédito tributário, dirigido à autoridade fiscal da Delegacia da Receita Federal.

Tal requerimento, nos termos do artigo 3º, §5º, I da IN RFB 2167/2023, representa o trade-off para a fruição do direito de pagar a dívida com desconto de juros moratórios e uso de moedas diferenciadas, caracterizando a “confissão extrajudicial irrevogável e irretratável da dívida, nos termos dos arts. 389 e 395 da Lei nº 13.105, de 16 de março de 2015 – Código de Processo Civil”.

Desistência e renúncia

Com respeito às posições em sentido contrário, o disposto no artigo 133, §3º do Ricarf [4] não altera o entendimento supra. A uma, pois o Ricarf disciplina o rito procedimental perante o Carf apenas, e, portanto, não poderia trazer validamente disposição que pressupusesse a geração de efeitos materiais fora do âmbito do procedimento regulamentado. A duas, pois o Ricarf é aprovado por mera portaria do Ministério da Fazenda, cujo status normativo não permitiria sequer em tese criar obrigação (ou situação) de renúncia a direito sem previsão/autorização em lei em sentido estrito.

Não nos parece que se trata de eventual ilegalidade ou inconstitucionalidade do dispositivo (133, §3º do Ricarf), mas simplesmente de compreendê-lo dentro dos seus limites [5], vale dizer, que desistência e renúncia do interessado são coisas distintas, implicando efeitos distintos. Essa interpretação encontra respaldo, inclusive, no próprio regimento. Veja-se o disposto no art. 118, § 12, do Ricarf, segundo o qual “não servirá como paradigma o acórdão: II – que, na data da interposição do recurso, tenha sido (…) objeto de desistência ou renúncia do interessado na matéria que aproveitaria ao recorrente”.

O que importa destacar é que a interpretação sistemática do Ricarf demonstra que o artigo 133, §3º tem função bastante pontual.

desistência de defesa/recurso pelo contribuinte importa definitividade do crédito tributário em seara administrativa, a propósito, como estabelece o §5 do próprio artigo 133 do Ricarf [6]. Trata-se de “renúncia” com efeito meramente endoprocessual (dentro do PAF) e repercussão na instância administrativa, apenas. É nesse sentido que a renúncia referida no artigo 133, §3º do Ricarf merece ser compreendida: a desistência do recurso não implica renúncia do direito material para fins exoprocessuais (para fora do PAF), mas apenas confere segurança e determinação ao processo administrativo e à constituição do crédito tributário dentro do próprio processo.

renúncia propriamente dita ao direito atinge não apenas o processo, mas o direito material em discussão, e somente nas hipóteses previstas legalmente. O que se garante com a renúncia ao direito não é o mero fim do processo administrativo e a constituição definitiva do crédito tributário dele decorrente, mas a definitividade do pagamento da dívida e o encerramento eficaz do conflito entre as partes.

Imaginemos um contribuinte que, sem petição nos autos do PAF, propõe ação judicial discutindo a mesma matéria que estava em contencioso administrativo. Ele abriu mão da instância administrativa a partir daquele momento, ou seja, ele desistiu do direito de ter julgado o recurso especial (cf. Súmula Carf nº 1). Porém, não há dúvida que não há renúncia alguma ao direito material. Agora imaginemos um contribuinte que apresente petição de desistência do recurso e nessa petição informe que irá propor ação judicial. Esse contribuinte, apenas por ter peticionado sua desistência, renunciou o direito material? Parece claro que não. As situações são idênticas e assim devem ter seus efeitos.

Assim, para o que aqui se discute, a desistência do recurso deve ser seguida da renúncia ao direito material controvertido apenas quando e se o contribuinte pretender realizar o pagamento do débito, inclusive na nova forma criada pela Lei nº 14.689/2023.

Considerações finais

Em suma: sendo o caso de recurso especial por parte do contribuinte, em havendo desistência dessa pretensão, não há concomitante renúncia de direito, tampouco acórdão substitutivo da CSRF. Há, como visto, despacho do presidente do Carf, baixando o processo para a unidade de origem, para reconhecimento e execução da decisão definitiva da Turma ordinária contrária ao contribuinte por voto de qualidade, nos termos dos artigos 42 e 43 do Decreto 70.235/72. Havendo decisão definitiva de mérito proferida pelo Carf por voto de qualidade em favor da Fazenda Pública, pode o contribuinte optar por pagar o débito principal do tributo em 90 dias, conforme os benefícios da Lei nº 14.689/2023.

Nesse novo contexto vivenciado pelos advogados, procuradores da Fazenda Nacional e conselheiros do Carf, vemos um início de 2024 que foi muito bom, porém sem corresponder exatamente aquilo que esperávamos. Para aqueles que acompanharam a última reunião de julgamento da 1ª Turma da CSRF, viram-se diante de um tribunal que foi afogado pelas repercussões da Lei nº 14.689/2023. Esperemos que cada vez mais as nebulosidades em torno da matéria se dissipem, permitindo o pronto pagamento de tributos na forma da nova legislação. Essa situação não apenas auxiliará o Poder Executivo a atingir seu desejado superávit fiscal, como também implicará desafogamento do contencioso administrativo federal, permitindo-se que a CSRF se debruce sobre os casos que tanto merecem sua atenção.


[1] O que foi também objeto de cuidadoso tratamento nessa coluna, mas com conclusão oposta a que se chegará aqui. Nesse sentido, vide: Recursos especiais contra decisões por voto de qualidade: é hora de jogar a toalha? (conjur.com.br).

[2] “Art. 1º. Esta Instrução Normativa dispõe sobre a aplicação do art. 25-A do Decreto nº 70.235, de 6 de março de 1972, aos processos administrativos fiscais decorrentes de decisão definitiva favorável à Fazenda Nacional, proferida pelo Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf) com base no voto de qualidade a que se refere o § 9º do art. 25 do referido decreto.”

“Art. 3º. Para a aplicação de que trata esta Instrução Normativa, o contribuinte deverá formalizar requerimento no prazo de 90 (noventa) dias, contado da ciência do resultado do julgamento definitivo proferido pelo Carf, observado o disposto no § 1º.”

[3] “§ 3º. No caso de desistência, pedido de parcelamento, confissão irretratável de dívida e de extinção sem ressalva de débito, estará configurada renúncia ao direito sobre o qual se funda o recurso interposto pelo sujeito passivo, inclusive na hipótese de já ter ocorrido decisão favorável ao recorrente.”

[4] A falta da interpretação aqui evidenciada invariavelmente deve levar à conclusão pela ilegalidade/inconstitucionalidade do dispositivo, como posto em anteriormente nesta coluna, em artigo de Carlos Augusto Daniel Neto. Vide: Recursos especiais contra decisões por voto de qualidade: é hora de jogar a toalha? (conjur.com.br). Acessado em 04.03.2024.

[5] § 5º. Quando houver decisão favorável ao sujeito passivo, total ou parcial, com recurso da Fazenda Nacional pendente de julgamento, e a desistência for total, o Presidente de Câmara declarará a definitividade do crédito tributário, tornando-se insubsistentes todas as decisões que lhe forem favoráveis.

Fonte: Conjur

Em liminar, juíza afasta limite para compensação de crédito previsto em MP

O Poder Executivo pode regulamentar as leis sobre compensação tributária, mas não tem competência para criar limitações ou condições ao direito dos contribuintes que foram reconhecidos em decisões judiciais definitivas.

Limite foi imposto pelo governo para evitar que empresas fiquem anos sem pagar imposto

Com esse entendimento, a juíza Tatiana Pattaro Pereira, da 14ª Vara Cível Federal de São Paulo, concedeu decisão liminar para permitir à Seara que compense integralmente os créditos tributários reconhecidos judicialmente em seu favor.

A compensação seria limitada pela aplicação da Medida Provisória 1.202/2023, editada no final de 2023 pelo governo Lula como parte do esforço para atingir o déficit zero em 2024.

A MP criou um limite para a compensação de créditos tributários decorrentes de decisões judiciais definitivas. Ele só valeria para decisões cujo valor total supere R$ 10 milhões, mas seria pormenorizado por ato do Ministério da Fazenda.

Em janeiro, foi publicada a Portaria Normativa MF 14/2024, traçando esses limites.

Para créditos entre R$ 10 milhões e 99,9 milhões, a compensação teria de ser divida em prazo mínimo de 12 meses. Já créditos entre R$ 100 milhões e R$ 199,9 milhões, o período aumenta para 20 meses.

A norma avança progressivamente até créditos superiores a R$ 500 milhões, cuja compensação deve ser feita, no mínimo, em 60 meses. Segundo o ministro da Fazenda Fernando Haddad, a ideia seria evitar que multinacionais passassem anos sem pagar imposto.

Com isso, a Seara se viu impossibilitada de compensar plenamente créditos obtidos em decisões judiciais e já habilitados junto à Fazenda em período anterior ao da edição da MP 1.202/2023.

Faltou lei

Os advogados da empresa sustentaram que a MP ofendeu o artigo 170 do Código Tributário Nacional, segundo o qual apenas a lei pode dispor sobre as condições e as garantias para as compensações administrativas.

Além disso, citou jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça segundo a qual as compensações tributárias obedecem ao regime jurídico vigente na época do ajuizamento da demanda (Tema 265 dos recursos repetitivos).

Plenário STF vai decidir sobre constitucionalidade da medida provisória do governo Lula – Rosinei Coutinho/SCO/STF

Também invocaram o Tema 345 dos repetitivos, que diz que as restrições posteriores ao direito de compensação não alcançam o crédito que foi reconhecido em ações judiciais propostas em datas pretéritas.

Para a juíza Tatiana Pattaro Pereira, a MP contraria o princípio da reserva legal, pois o poder de fixar o limite mensal para a compensação dos créditos só poderia ser tratado por lei, não em ato do Ministério da Fazenda.

“O Poder Executivo apenas poderia regulamentar as disposições legais, não podendo, todavia, criar limitações ou condições ao direito dos contribuintes”, concluiu.

Segurança jurídica

Para Carlos Gama, advogado tributarista no Freitas, Silva e Panchaud, a decisão preserva a segurança jurídica, uma vez que a MP 1.202/2023 impactou drasticamente o planejamento financeiro das empresas, feito a partir de decisões definitivas.

Ele questiona, ainda, a constitucionalidade da norma, uma vez que um dos requisitos para uso de medida provisória é a urgência da medida.

“A exposição de motivos fala que o objetivo é estancar a compensação de créditos decorrentes da tese do século. Isso não é relevante a ponto de justificar a MP.”

A MP 1.202/2023 já teve a constitucionalidade contestada no Supremo Tribunal Federal, pelo Partido Novo. A corte vai adotar o rito abreviado e julgar direto o mérito, sem apreciar o pedido de decisão liminar. O relator é o ministro Cristiano Zanin.

Ainda em dezembro de 2023, advogados consultados pela revista eletrônica Consultor Jurídico apontaram que a medida provisória é inconstitucional, viola direitos adquiridos do contribuinte e causa ampla instabilidade jurídica.

Clique aqui para ler a decisão
MS 5000960-39.2024.4.03.6100

Fonte: Conjur Brave

Declaração de pobreza basta para extinção da punibilidade sem pagar multa

A autodeclaração de pobreza é suficiente para a extinção da punibilidade da pessoa que, depois de cumprir pena privativa de liberdade ou restritiva de direitos, não tem condição de pagar a pena de multa.

Miserabilidade do condenado pode ser contestada se MP ou o juiz tiverem indícios de que ele poderia pagar pena de multa – Reprodução

Essa conclusão é da 3ª Seção do Superior Tribunal de Justiça, que fez mais um ajuste na tese vinculante sobre o tema. A votação foi por unanimidade, conforme a posição do relator, ministro Rogerio Schietti. O tema é de grande impacto para a ressocialização das pessoas presas e se insere numa discussão que se arrasta nas cortes superiores brasileiras há pelo menos dez anos. A extinção da punibilidade marca o momento em que o Estado não pode mais continuar punindo a pessoa que cometeu um crime. Ela se dá, entre outras hipóteses, com a declaração do juiz da execução penal de que a pena foi integralmente cumprida. Isso vale, inclusive, para a pena de multa. A posição mais recente do STJ sobre o tema é de que o pagamento não pode ser exigido se o apenado comprovar que não tem condições de fazê-lo. Nesta quarta-feira (28/2), a 3ª Seção avançou para dizer que a autodeclaração de pobreza da pessoa presa é o que basta para fazer essa comprovação. Há uma presunção relativa de veracidade sobre essa declaração. Isso significa que o Ministério Público e o próprio juiz podem contestar a miserabilidade se identificarem elementos que indiquem que o condenado tem condições de fazer o pagamento da multa. Em qualquer dos casos, o MP e a Fazenda Nacional continuam autorizados a cobrar a multa. O seu não pagamento apenas deixa de impedir a extinção da punibilidade.

Ressocialização ameaçada

A readequação foi feita pelo STJ a pedido da Defensoria Pública de São Paulo, como mostrou a revista eletrônica Consultor Jurídico. Para o órgão, não estava dando certo conferir ao condenado a responsabilidade de comprovar que não pode arcar com a pena de multa. Condicionar a extinção da pena ao pagamento da multa está criando no Brasil um círculo vicioso para os mais pobres, que fatalmente os leva de volta à criminalidade. Sem a extinção, o apenado não consegue a reabilitação, que nos termos do artigo 93 do Código Penal assegura o sigilo dos registros sobre o seu processo e condenação. E, sem o sigilo, não consegue a certidão negativa de antecedentes criminais, sem a qual a busca por emprego formal fica extremamente prejudicada. Enquanto não extinta a punibilidade, permanece a suspensão dos direitos políticos. Assim, o condenado não consegue regularizar o título de eleitor. Logo, não pode votar, matricular-se em instituição de ensino público ou exercer cargos públicos concursados. Se o condenado não tiver CPF, não conseguirá expedir esse documento, devido à ausência do título de eleitor. Por isso, não obterá carteira de trabalho, crédito em instituições bancárias ou acesso a benefícios sociais.

Voto do ministro Rogerio Schietti destacou consequências para ressocialização dos presos – Gustavo Lima/STJ

É todo mundo miserável

Todo esse cenário foi levado em consideração pelo ministro Rogerio Schietti, que defendeu a possibilidade da autodeclaração de pobreza porque os dados públicos mostram que a enorme população brasileira se encontra em situação de generalizada hipossuficiência. Ele ainda chamou a atenção para os paradoxos visíveis no Brasil: o Estado, que não ajuíza execuções fiscais se a dívida for de menos de R$ 20 mil e considera insignificante o descaminho cometido até o mesmo valor, exige ao máximo dos pobres na pena de multa. “Para o Poder Executivo, melhor será perdoar a dívida pecuniária de quem já cumpriu a integralidade da pena privativa de liberdade e deseja, sem a obrigatoriedade de pagar a pena de multa, reconquistar o patamar civilizatório de que até então era tolhido.” Ao Ministério Público, caberá fazer a contraprova para afastar a miserabilidade do condenado quando identificar indícios de que ele pode pagar a pena de multa. O juiz também pode fazer isso de ofício, a partir dos dados que tiver em mãos. “Se não houver essa prova e nada indicar que o condenado está no percentual mínimo de pessoas que cumprem pena e possuem recursos, a autodeclarçaão de pobreza bastará como prova que poderá ser infirmada por uma contraprova”, concluiu o relator. A tese aprovada foi:
O inadimplemento da pena de multa, após cumprida a pena privativa de liberdade ou restritiva de direitos, não obsta a extinção da punibilidade ante a alegada hipossuficiência do condenado, salvo se, diversamente, entender o juiz competente, em decisão suficientemente motivada que indique concretamente a possibilidade de pagamento da sanção pecuniária

Revisão da revisão

Esta é a quarta vez que o STJ ajusta a tese. Inicialmente, a 3ª Seção definiu em 2015 que o réu que cumpre a pena privativa de liberdade tem a extinção da punibilidade decretada mesmo se ainda não pagou a pena de multa. A posição na época foi de que essa sanção pecuniária, como dívida de valor, poderia ser cobrada pela Fazenda Nacional, mas sem efeitos no campo penal. Em 2018, o Supremo Tribunal Federal tratou do tema na 12ª Questão de Ordem apresentada na Ação Penal 470, que julgou o caso do mensalão. Pensando nos autores dos crimes de colarinho branco, a conclusão foi outra. O Plenário do STF fixou que o MP tem legitimidade para cobrar multa em condenações penais, com a possibilidade subsidiária de cobrança pela Fazenda. A posição foi a mesma na ADI 3.150, julgada em conjunto na ocasião. A partir daí, as turmas criminais do STJ fizeram adequação. Ainda assim, os recursos continuaram subindo para julgamento, inclusive com pedidos de modulação da chamada “jurisprudência maléfica”. Isso levou a 3ª Seção a readequar a tese, em dezembro de 2020. Menos de um ano depois, o colegiado mudou de novo, dessa vez para deixar claro que a multa deve mesmo ser paga, exceto nos casos em que o apenado comprovar sua miserabilidade. REsp 2.024.901 REsp 2.090.454 Fonte: Conjur

Reforma do Código Civil: uma análise dos artigos sobre contrato de seguro

Uma palavra resume a proposta da Comissão de Reforma do Código Civil sobre a atualização dos artigos que tratam do contrato de seguro e da atividade seguradora: equilíbrio.

Os autores conseguiram sintetizar os ajustes necessários e trouxeram para o conjunto das normas não só a evolução tecnológica, como também o repositório jurisprudencial construído desde 2002. Assim como outros países já haviam procedido, modernizando-se, o Brasil contará com um ordenamento balanceado ao consolidar normas equânimes da relação segurado-seguradora.

A distinção feita entre contratos de “adesão” (massificados) e “paritários/simétricos” – nomenclatura extraída da Lei de Liberdade Econômica (13.874/2019) – ou “grandes riscos”, ratifica o modelo internacionalmente aceito e praticado. A Susep iniciou o processo administrativo de flexibilização das condições contratuais no final de 2020 e a reforma do Código Civil consolida esse movimento extremamente positivo.

Conformidade com o mercado internacional
O Brasil avançou e, ainda que tardiamente, ingressou no século 21 no tocante às bases contratuais. Não há como falar em “subscrição” sem que haja a liberdade para o estabelecimento dos termos e condições para cada segurado, todos eles com suas especificidades em relação às exposições de riscos. Na União Europeia, destacando a importância da customização das condições de coberturas, as Diretivas 2002/92/CE e 2016/97/CE, indicam que os mediadores de seguros têm o dever de adequar os produtos para cada cliente, ao menos indicando as razões que nortearam os conselhos dados quanto a um determinado produto, exceto para os “grandes riscos”.

A padronização de clausulados sob o comando estatal, cujo modelo prevaleceu no Brasil desde sempre e até a flexibilização promovida pela Susep (2020), demonstrou que o procedimento é reconhecidamente estagnante e deve permanecer no passado, na história do mercado de seguros brasileiro, sem qualquer tipo de retrocesso.

Alguns ajustes devem ser feitos, no texto proposto para o seguro, mas o conjunto das normas alteradas/inseridas se encontra bem objetivo, atualizado e em conformidade com os mercados internacionais, o que é essencial para o país. Seguros, embora sejam materializados por contratos nacionais e de acordo com o ordenamento jurídico brasileiro, têm estreita conexão com outros mercados, especialmente através dos contratos de resseguro, Facultativos – risco a risco ou Automáticos – de ramos inteiros. Nos grandes riscos a interconexão é mandatória.

A desmonopolização do resseguro, ocorrida através da Lei Complementar nº 126/2007, não foi acompanhada, na ocasião, da liberdade de as seguradoras estipularem as condições contratuais dos diferentes tipos de seguros, sem a prévia padronização e registro junto ao órgão regulador. Os consumidores brasileiros sempre viveram apartados dos demais países, sendo que os produtos padronizados, de forma conducente e extremada pelo Estado, não produziram excelência técnica no atendimento dos interesses seguráveis.

Longe disso, permaneceram amarrados num passado já distante e estagnados no tocante à criatividade, sem a diversidade de modelos de coberturas já comercializados em outros países, inclusive pela grande maioria das seguradoras que também operam aqui no Brasil. A própria Susep superou este paradigma a partir de 2020. As seguradoras privadas adquiriam liberdade de atuação na atividade, cujo cerceamento nunca poderia ter ocorrido. O tempo é outro.

A reforma do Código Civil proposta, convém destacar novamente, está imbuída desse movimento modernizante e coloca o mercado brasileiro no mesmo patamar dos mercados desenvolvidos, cujo movimento é essencial para os consumidores nacionais.

Sugestões 
A reforma não “revoluciona” o sistema a ponto de desconstruir todas as bases já solidificadas e isso é bom para o segmento, para os consumidores e para a continuidade pacífica dos negócios. O processo de renovação é estimulante. Profissionaliza, necessariamente, os agentes do mercado de seguros. Enriquece a técnica subjacente aos contratos de seguros, de cada ramo. Protege de forma adequada e útil os consumidores de seguros. O ordenamento jurídico ajustado e coerente com a atualidade tem o condão de promover esse círculo virtuoso de desenvolvimento.

Em razão de uma análise preliminar do texto proposto, alguns ajustes são recomendados:

  • Parágrafo único do artigo 762 – suprimir, na medida em que a culpa grave, restrita à apreciação/determinação em sede judicial, está superada pela perda de direito em razão da agravação do risco já prevista no artigo 768;
  • Parágrafo único do artigo 763 – desnecessário, apesar da facilidade atual na comunicação eletrônica. As partes devem cumprir as obrigações decorrentes dos contratos;
  • Parágrafo 2º do artigo 766 – todos os proponentes devem prestar informações acerca dos riscos seguráveis e, nos massificados (adesão), se for viável estabelecer tratamento especial, as referidas informações podem ficar circunscritas àquelas solicitadas pela Seguradora, sendo que as eventuais inexatidões devem ser prontamente declaradas/questionadas por ela, ainda na fase pré-contratual;
  • Parágrafo 2º do artigo 768 – inapropriado, uma vez que não se pode transigir a respeito do agravamento intencional do risco;
  • Parágrafo 4º do artigo 769 – é muito extenso o prazo de 30 dias, desnecessariamente;
  • Parágrafo 5º do artigo 771 – inadequada a aplicação exclusiva para os grandes riscos (paritários/simétricos). Em razão do princípio recorrente em seguros de “o que não estiver excluído está coberto”, se for transposto para os termos do parágrafo 5º, pode ensejar a interpretação inadequada de que para os massificados as despesas estarão compreendidas pelas apólices;
  • Parágrafo único do artigo 771-C – inapropriado estabelecer a confidencialidade apenas no tocante aos grandes riscos e mesmo porque as partes são paritárias e podem estabelecer, voluntariamente, as regras aplicáveis sem a necessária ingerência do ordenamento;
  • 771-D – desnecessário, até porque a norma está compreendida no artigo 772;
  • 778 – deve prever a possibilidade de o seguro ser contratado pelo “valor de novo”, notadamente em relação a equipamentos eletrônicos, cuja obsolescência é galopante, além de outros bens, assim como já acontece em relação a mercadorias em geral, veículos novos, etc.;
  • Parágrafo 2º do artigo 786 – inadequada a aplicação exclusiva para grandes riscos.

Outros comentários e sugestões certamente serão apresentados por diversos especialistas e entidades representativas do mercado de seguros, inclusive para os seguros de pessoas. De todo modo, convém destacar, mais uma vez, a relevância do fato de a comissão de reforma ter incluído a parte relativa aos contratos de seguros, tão oportuna e necessária no contexto geral de atualização do ordenamento jurídico civil. A discussão ampliada do tema, através de audiência pública da proposta e no Congresso, estimulará os ajustes necessários, que são poucos em face da qualidade precisa e incontestável do texto proposto. A reforma do Código Civil, abrangendo também os seguros, é muito bem-vinda.

Uma palavra resume a proposta da Comissão de Reforma do Código Civil sobre a atualização dos artigos que tratam do contrato de seguro e da atividade seguradora: equilíbrio.

Os autores conseguiram sintetizar os ajustes necessários e trouxeram para o conjunto das normas não só a evolução tecnológica, como também o repositório jurisprudencial construído desde 2002. Assim como outros países já haviam procedido, modernizando-se, o Brasil contará com um ordenamento balanceado ao consolidar normas equânimes da relação segurado-seguradora.

A distinção feita entre contratos de “adesão” (massificados) e “paritários/simétricos” – nomenclatura extraída da Lei de Liberdade Econômica (13.874/2019) – ou “grandes riscos”, ratifica o modelo internacionalmente aceito e praticado. A Susep iniciou o processo administrativo de flexibilização das condições contratuais no final de 2020 e a reforma do Código Civil consolida esse movimento extremamente positivo.

Conformidade com o mercado internacional
O Brasil avançou e, ainda que tardiamente, ingressou no século 21 no tocante às bases contratuais. Não há como falar em “subscrição” sem que haja a liberdade para o estabelecimento dos termos e condições para cada segurado, todos eles com suas especificidades em relação às exposições de riscos. Na União Europeia, destacando a importância da customização das condições de coberturas, as Diretivas 2002/92/CE e 2016/97/CE, indicam que os mediadores de seguros têm o dever de adequar os produtos para cada cliente, ao menos indicando as razões que nortearam os conselhos dados quanto a um determinado produto, exceto para os “grandes riscos”.

A padronização de clausulados sob o comando estatal, cujo modelo prevaleceu no Brasil desde sempre e até a flexibilização promovida pela Susep (2020), demonstrou que o procedimento é reconhecidamente estagnante e deve permanecer no passado, na história do mercado de seguros brasileiro, sem qualquer tipo de retrocesso.

Alguns ajustes devem ser feitos, no texto proposto para o seguro, mas o conjunto das normas alteradas/inseridas se encontra bem objetivo, atualizado e em conformidade com os mercados internacionais, o que é essencial para o país. Seguros, embora sejam materializados por contratos nacionais e de acordo com o ordenamento jurídico brasileiro, têm estreita conexão com outros mercados, especialmente através dos contratos de resseguro, Facultativos – risco a risco ou Automáticos – de ramos inteiros. Nos grandes riscos a interconexão é mandatória.

A desmonopolização do resseguro, ocorrida através da Lei Complementar nº 126/2007, não foi acompanhada, na ocasião, da liberdade de as seguradoras estipularem as condições contratuais dos diferentes tipos de seguros, sem a prévia padronização e registro junto ao órgão regulador. Os consumidores brasileiros sempre viveram apartados dos demais países, sendo que os produtos padronizados, de forma conducente e extremada pelo Estado, não produziram excelência técnica no atendimento dos interesses seguráveis.

Longe disso, permaneceram amarrados num passado já distante e estagnados no tocante à criatividade, sem a diversidade de modelos de coberturas já comercializados em outros países, inclusive pela grande maioria das seguradoras que também operam aqui no Brasil. A própria Susep superou este paradigma a partir de 2020. As seguradoras privadas adquiriam liberdade de atuação na atividade, cujo cerceamento nunca poderia ter ocorrido. O tempo é outro.

A reforma do Código Civil proposta, convém destacar novamente, está imbuída desse movimento modernizante e coloca o mercado brasileiro no mesmo patamar dos mercados desenvolvidos, cujo movimento é essencial para os consumidores nacionais.

Sugestões 
A reforma não “revoluciona” o sistema a ponto de desconstruir todas as bases já solidificadas e isso é bom para o segmento, para os consumidores e para a continuidade pacífica dos negócios. O processo de renovação é estimulante. Profissionaliza, necessariamente, os agentes do mercado de seguros. Enriquece a técnica subjacente aos contratos de seguros, de cada ramo. Protege de forma adequada e útil os consumidores de seguros. O ordenamento jurídico ajustado e coerente com a atualidade tem o condão de promover esse círculo virtuoso de desenvolvimento.

Em razão de uma análise preliminar do texto proposto, alguns ajustes são recomendados:

  • Parágrafo único do artigo 762 – suprimir, na medida em que a culpa grave, restrita à apreciação/determinação em sede judicial, está superada pela perda de direito em razão da agravação do risco já prevista no artigo 768;
  • Parágrafo único do artigo 763 – desnecessário, apesar da facilidade atual na comunicação eletrônica. As partes devem cumprir as obrigações decorrentes dos contratos;
  • Parágrafo 2º do artigo 766 – todos os proponentes devem prestar informações acerca dos riscos seguráveis e, nos massificados (adesão), se for viável estabelecer tratamento especial, as referidas informações podem ficar circunscritas àquelas solicitadas pela Seguradora, sendo que as eventuais inexatidões devem ser prontamente declaradas/questionadas por ela, ainda na fase pré-contratual;
  • Parágrafo 2º do artigo 768 – inapropriado, uma vez que não se pode transigir a respeito do agravamento intencional do risco;
  • Parágrafo 4º do artigo 769 – é muito extenso o prazo de 30 dias, desnecessariamente;
  • Parágrafo 5º do artigo 771 – inadequada a aplicação exclusiva para os grandes riscos (paritários/simétricos). Em razão do princípio recorrente em seguros de “o que não estiver excluído está coberto”, se for transposto para os termos do parágrafo 5º, pode ensejar a interpretação inadequada de que para os massificados as despesas estarão compreendidas pelas apólices;
  • Parágrafo único do artigo 771-C – inapropriado estabelecer a confidencialidade apenas no tocante aos grandes riscos e mesmo porque as partes são paritárias e podem estabelecer, voluntariamente, as regras aplicáveis sem a necessária ingerência do ordenamento;
  • 771-D – desnecessário, até porque a norma está compreendida no artigo 772;
  • 778 – deve prever a possibilidade de o seguro ser contratado pelo “valor de novo”, notadamente em relação a equipamentos eletrônicos, cuja obsolescência é galopante, além de outros bens, assim como já acontece em relação a mercadorias em geral, veículos novos, etc.;
  • Parágrafo 2º do artigo 786 – inadequada a aplicação exclusiva para grandes riscos.

Outros comentários e sugestões certamente serão apresentados por diversos especialistas e entidades representativas do mercado de seguros, inclusive para os seguros de pessoas. De todo modo, convém destacar, mais uma vez, a relevância do fato de a comissão de reforma ter incluído a parte relativa aos contratos de seguros, tão oportuna e necessária no contexto geral de atualização do ordenamento jurídico civil. A discussão ampliada do tema, através de audiência pública da proposta e no Congresso, estimulará os ajustes necessários, que são poucos em face da qualidade precisa e incontestável do texto proposto. A reforma do Código Civil, abrangendo também os seguros, é muito bem-vinda.

Fonte: CONJUR

* Esta coluna é produzida pelos professores Ilan Goldberg e Thiago Junqueira, bem como por convidados.

Educação: uma olhada em dados do censo escolar

Na semana passada, o Ministério da Educação (MEC) e o Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep) divulgaram os resultados do Censo Escolar 2023. Este censo  é descrito, na apresentação do Inep, como “o principal instrumento de coleta de informações da educação básica e a mais importante pesquisa estatística educacional brasileira” [1].

Trata-se de uma grande pesquisa feita por meio de dados declaratórios que abrangem todas as escolas públicas e privadas do país. Podemos enxergar o censo como um retrato do estado da educação básica e profissional do país — esse retrato é composto sobretudo por indicadores que permitem acompanhar o cumprimento dos muitos deveres estatais para com a educação.

Com relação a esses deveres estatais, não é demais relembrar que nossa Constituição caracteriza a educação como direito de todos e dever do Estado e da família (artigo 205), e que os diversos deveres do Estado são previstos expressamente (artigo 208), assim como os recursos vinculados para seu custeio.

O Censo Escolar é essencial para o acompanhamento das metas do Plano Nacional de Educação (PNE) [2].

O PNE é o principal instrumento de planejamento das políticas públicas nacionais, com vigência decenal, lhe cabendo definir diretrizes, objetivos, metas e estratégias de implementação para atingir os seguintes objetivos principais: erradicação do analfabetismo; universalização do atendimento escolar; melhoria da qualidade do ensino; formação para o trabalho; promoção humanística, científica e tecnológica do país, e estabelecimento de meta de aplicação de recursos públicos em educação como proporção do produto interno bruto (artigo 214 CF).

Contratos temporários
Passo a comentar duas questões importantes a partir da análise de dados do Censo Escolar referentes à gestão de pessoal da educação pública, ambas destacadas na apresentação coletiva do MEC e Inep e também pela imprensa [3].

A primeira questão é o grande número de docentes das redes estadual e municipal com vínculos precários — contratados temporariamente.

Nas redes estaduais, na maioria dos estados brasileiros o número de professores vinculados por contratos temporários é maior do que o de professores ocupantes de cargo efetivo (como tal, provido por concurso público).

Há casos gritantes como o de Minas Gerais (80,8% de temporários) e o do Tocantins (79,9% de contratados temporários), ao passo em que no Rio de Janeiro e Rio Grande do Norte, por exemplo, predominam efetivos (95,6% e 93,7%, respectivamente) [4].

Há um problema grave de desobediência ao regime determinado pela Constituição. Com efeito, um dos princípios que orienta a oferta do ensino é a “valorização dos profissionais da educação escolar, garantidos, na forma da lei, planos de carreira, com ingresso exclusivamente por concurso público de provas e títulos, aos das redes públicas” (artigo 206, V).

A Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (Lei nº 9.394/96), no mesmo sentido, estatui:

“Art. 67. Os sistemas de ensino promoverão a valorização dos profissionais da educação, assegurando-lhes, inclusive nos termos dos estatutos e dos planos de carreira do magistério público:

I – ingresso exclusivamente por concurso público de provas e títulos;

II – aperfeiçoamento profissional continuado, inclusive com licenciamento periódico remunerado para esse fim;

III – piso salarial profissional;

IV – progressão funcional baseada na titulação ou habilitação, e na avaliação do desempenho;

V – período reservado a estudos, planejamento e avaliação, incluído na carga de trabalho;

VI – condições adequadas de trabalho”.

A contratação por prazo determinado existe somente para o atendimento de necessidade temporária causada por excepcional interesse público (artigo 37, IX da CF). Trata-se de excepcionalidade, como qualificado pela Constituição, carecendo de fundamento jurídico a perpetuação de contrato sem excesso em detrimento da valorização da carreira e provimento por concurso.

A predominância dos vínculos precários pode até atender o interesse fiscal de determinados estados (despender menos recursos, não comprometer o limite de despesas com pessoal, por exemplo), mas jamais atenderá ao interesse público — por isso, deve ser objeto de atenção por parte das instituições de controle e da sociedade.

Seleção e formação de diretores
A segunda questão observada se refere à forma de escolha dos diretores e diretoras das escolas públicas.

Primeiramente, as boas notícias:  nas redes estaduais, 23% dos diretores são selecionados por meio de processo seletivo qualificado e eleição com participação da comunidade escolar (um crescimento de 5,7% com relação ao ano de 2022) e 13,7% são selecionados por meio de processo seletivo qualificado de escolha (crescimento de 6,3% com relação ao ano anterior).

Agora, o dado mais preocupante nesse quesito: nas redes municipais, 45,8% dos diretores e diretoras são escolhidos exclusivamente por indicação/escolha da administração (tendo sido constatado, é verdade, diminuição nesse percentual).

Há farta literatura demonstrando a importância dos diretores escolares para a qualidade da educação, incluindo a materialização da gestão democrática [5].

As boas notícias sacadas dos dados relativos à escolha de diretores certamente devem ser creditadas à criação de uma complementação financeira da União para as redes públicas que cumpram determinadas condicionalidades. Trata-se da complementação Vaar (valor aluno ano resultado), criado pela Lei do novo Fundeb (Lei nº 14.113/2020).

De acordo com a referida lei, uma das condicionalidades para o recebimento da complementação por estados e municípios é o:

provimento do cargo ou função de gestor escolar de acordo com critérios técnicos de mérito e desempenho ou a partir de escolha realizada com a participação da comunidade escolar dentre candidatos aprovados previamente em avaliação de mérito e desempenho” (artigo 14, §1º, inciso I) [6].

Em ampla pesquisa intitulada “Seleção e formação de diretores — mapeamento de práticas em estados e capitais brasileiras” [7], realizada pela D3E, Atricon e Todos pela Educação, foram feitas recomendações importantes relativas à seleção e ao acesso à gestão escolar: adotar critérios técnicos combinados a processos democráticos, conforme previsto no Plano Nacional de Educação (PNE) e na nova lei do Fundeb, e realizar processos seletivos mistos que combinem mais de uma etapa de seleção.

No tocante à formação dos diretores — outra questão que merece análise à luz dos dados do censo — as recomendações foram: garantir oportunidades de formação e desenvolvimento aos professores que desejam se tornar diretores ou àqueles que já estão atuando na gestão; debater as questões relativas ao tempo de duração do mandato, que impactam diretamente o desenho dos tipos de formação a serem oferecidos e seu tempo de duração; avaliar os cursos de formação,  e promover cursos de formação com maior conexão entre teoria e prática.

Conclusão
A realização de pesquisas e a análise de resultados é essencial para o planejamento, monitoramento e avaliação de políticas públicas. Na educação pública, a afirmativa ganha mais relevância quando se constata que há todo um projeto constitucional construído com o fim de garantir educação pública de qualidade e alcançar o pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para a cidadania e sua qualificação para o trabalho.

Reconhecer a cogência desse projeto e a juridicidade dos instrumentos que o delineiam (como o Plano Nacional de Educação) é essencial para avançarmos na construção de um país que possa realmente buscar o bem de todos.


https://download.inep.gov.br/censo_escolar/resultados/2023/apresentacao_coletiva.pdf

https://www.gov.br/inep/pt-br/areas-de-atuacao/pesquisas-estatisticas-e-indicadores/censo-escolar

https://oglobo.globo.com/brasil/noticia/2024/02/23/censo-escolar-2023-tres-estados-ainda-somam-mais-de-85percent-dos-diretores-nomeados-por-indicacao-politica-veja-a-lista.ghtml

https://www.estadao.com.br/educacao/tres-noticias-boas-e-dois-problemas-sobre-a-educacao-basica-revelados-pelos-dados-do-mec/

A lei estabelecerá o plano nacional de educação, de duração decenal, com o objetivo de articular o sistema nacional de educação em regime de colaboração e definir diretrizes, objetivos, metas e estratégias de implementação para assegurar a manutenção e desenvolvimento do ensino em seus diversos níveis, etapas e modalidades por meio de ações integradas dos poderes públicos das diferentes esferas federativas

O Censo Escolar é o principal instrumento de coleta de informações da educação básica e a mais importante pesquisa estatística educacional brasileira. É coordenado pelo Inep e realizado em regime de colaboração entre as secretarias estaduais e municipais de educação e com a participação de todas as escolas públicas e privadas do país. A pesquisa estatística abrange as diferentes etapas e modalidades da educação básica e profissional:

  • Ensino regular (educação infantil, ensino fundamental e médio);
  • Educação especial – escolas e classes especiais;
  • Educação de Jovens e Adultos (EJA);
  • Educação profissional e tecnológica (cursos técnicos e cursos de formação inicial continuada ou qualificação profissional).

A  pesquisa estatística tem caráter declaratório e é dividida em duas etapas. A primeira etapa do Censo Escolar  coleta informações sobre os estabelecimentos de ensino, gestores, turmas, alunos e profissionais escolares em sala de aula. A segunda etapa coleta informações sobre o movimento e o rendimento escolar dos alunos, ao final do ano letivo.

O Censo Escolar é realizado anualmente e a declaração é obrigatória para todas as escolas públicas e privadas do país. Além disso, é regulamentado por instrumentos normativos que instituem a obrigatoriedade, os prazos, os responsáveis e suas responsabilidades, bem como os procedimentos para realização de todo o processo de coleta de dados.

[1] https://www.gov.br/inep/pt-br/areas-de-atuacao/pesquisas-estatisticas-e-indicadores/censo-escolar

[2] Sobre o PNE já escrevemos neste mesmo espaço: https://www.conjur.com.br/2023-jun-29/interesse-publico-plano-nacional-educacao-ppa-proximidade-necessaria/

[3] https://oglobo.globo.com/brasil/noticia/2024/02/23/censo-escolar-2023-tres-estados-ainda-somam-mais-de-85percent-dos-diretores-nomeados-por-indicacao-politica-veja-a-lista.ghtml

https://www.estadao.com.br/educacao/tres-noticias-boas-e-dois-problemas-sobre-a-educacao-basica-revelados-pelos-dados-do-mec/

[4] Os dados constam do gráfico 68 disponibilizado na apresentação coletiva. O gráfico 69 trata das redes municipais, por Estado da federação. Disponível em: https://download.inep.gov.br/censo_escolar/resultados/2023/apresentacao_coletiva.pdf

[5] Remetemos o leitor e a leitora à bibliografia específica utilizada para elaboração do relatório da pesquisa “Seleção e formação de diretores – mapeamento de práticas em estados e capitais brasileiras”, realizada pela D3E, Atricon e Todos pela Educação. Relatório disponível em: https://d3e.com.br/wp-content/uploads/relatorio_2305_selecao-formacao-diretores.pdf Acesso em 26 de fevereiro de 2024.

[6] O FNDE divulgou a relação de Municípios inabilitados ao recebimento dos recursos da Complementação Valor Anual Aluno Resultado(VAAR), previstos para o exercício de 2024, em função do não cumprimento das condicionalidades contidas no artigo 14 da Lei Federal nº 14.113/2020 (Lei do FUNDEB): Disponível em: https://www.gov.br/fnde/pt-br/acesso-a-informacao/acoes-programas/financiamento/fundeb/2024/Redesinabilitadaspormotivo.pdf. Acesso em: 15 fev. 2024.

[7] Relatório disponível em: https://d3e.com.br/wp-content/uploads/relatorio_2305_selecao-formacao-diretores.pdf Acesso em 26 de fevereiro de 2024.

Fonte: Conjur

Em se tratando de medidas provisórias, quem só vê taxa não vê aprovação

A função típica do Poder Legislativo é legislar. Mas a Constituição de 1988 desenhou um modelo de atividade legislativa fortemente centralizado no Poder Executivo, responsável por uma série de ferramentas, como a iniciativa legislativa reservada, o poder de editar medidas provisórias, o pedido de urgência na tramitação de proposições, etc.

Entretanto, sem o Congresso, o presidente não governa, daí que parte das atenções se volta para as relações entre Executivo e Legislativo para avaliar o desempenho legislativo dos governos.

Desde um ponto de vista estritamente jurídico, as chaves de análise baseadas na separação dos poderes, na lógica do sistema de freios e contrapesos (checks and balances) ou no aspecto estrito da estrutura das normas são insuficientes na compreensão da produção legislativa, sobretudo desde uma perspectiva realista como se propôs aqui.

Torna-se necessário fazer incursões empíricas e interdisciplinares para examinar a produção legislativa do Executivo.

Ocorre que, mesmo quando se parte para a literatura da ciência política, por exemplo, há problemas que não são resolvidos, e a realidade pode até ser distorcida, o que converte as pesquisas legislativas em um campo verdadeiramente desafiador.

Daí que a coluna de hoje — dando sequência às participações anteriores — aponta mais uma imprecisão na forma como parte da academia mede e dissemina seus achados de pesquisa envolvendo as medidas provisórias.

Taxa de sucesso e de dominância
Como sabido, a ciência política trabalha especialmente com dois indicadores bastante tradicionais: a taxa de sucesso (leia-se, o percentual de aprovação das propostas apresentadas pelo Executivo, em relação ao total de iniciativas desse mesmo poder) e a taxa de dominância legislativa do Executivo (isto é, a participação de iniciativas deste último no universo dos projetos aprovados pelo Congresso).

A taxa de sucesso pode ser segmentada por espécie de proposição ou considerar todas juntas (por exemplo, projetos de lei, medidas provisórias, propostas de emenda à Constituição, projeto de lei do Congresso).

Para chegar à taxa de sucesso do Executivo, basta dividir o número das proposições aprovadas pelo número das apresentadas por esse poder.

Já a taxa de dominância é encontrada a partir da divisão do número de leis aprovadas de iniciativa do Poder Executivo pelo total de leis aprovadas no mesmo período, considerando, portanto, as demais iniciativas legislativas.

Observatório do Legislativo Brasileiro monitora esses indicadores em um painel, permitindo visualizar as oscilações ano a ano. A cada ano os números são atualizados, pois essas métricas — ao lado de outras, como o percentual de votações nominais versus simbólicas, a disciplina partidária da base quando há orientação do governo, etc. — expressam a força do Executivo ou o apoio da coalizão.

O problema de indicadores como a taxa de sucesso e a taxa de dominância está em que não captam o emendamento parlamentar, cuja magnitude pode impingir verdadeiras derrotas às preferências do Executivo, que, no entanto, acabam sendo contabilizadas no saldo positivo simplesmente porque houve aprovação, sem olhar para o conteúdo da matéria.

Então, a possível distorção desses indicadores precisa ser olhada com lupas. Do contrário, o indicador não se presta a medir adequadamente o fenômeno investigado.

Exemplos mais concretos ajudam a compreender o argumento
MP nº 1.154/2023, que tratou da estruturação da Esplanada, foi aprovada pelo Congresso, entrando para a taxa de sucesso. Porém, deve-se registrar que foram apresentadas 154 emendas a essa MP, das quais 62 foram acatadas pelo relator, o deputado Isnaldo Bulhões Júnior (MDB-AL).

Com isso, foram revertidas escolhas da versão original da MP. Por exemplo, no art. 42 da MP nº 1154/2023, a demarcação de terras indígenas e quilombolas tinha sido atribuída ao Ministério dos Povos Indígenas, mas durante a tramitação essa responsabilidade foi dividida entre duas outras pastas: o Ministério da Justiça e Segurança Pública (terras indígenas, art. 35) e Ministério do Desenvolvimento Agrário e Agricultura Familiar (quilombolas, artigo 25). Assim, a MP nº 1154/2023 foi convertida na Lei nº 14.600/2023, mas não exatamente nos termos pretendidos pelo Executivo.

Nessa mesma MP da reestruturação da Esplanada, a Fundação Nacional de Saúde (Funasa) — que tinha sido extinta com a edição da MP nº 1.156/2023, tendo suas atribuições divididas entre o Ministério da Saúde e o Ministério das Cidades — acabou sendo recriada.

Explica-se. Por falta de acordo, sabia-se que a MP nº 1156/2023 não seria votada e, de fato, essa MP acabou caducando. Tentando contornar isso, a pedido do governo, o relator da reestruturação da Esplanada chegou a incorporar a extinção da Funasa na MP nº 1154/2023.

Entretanto, essa previsão foi retirada durante a votação dos destaques da MP da reestruturação da Esplanada, que, repita-se, foi aprovada, mas nesse ponto representou mais uma derrota. Em resumo, por duas vezes o governo tentou extinguir a Funasa e a matéria foi rejeitada, mas um desses casos entrou como sucesso.

Como se vê, a aprovação das medidas provisórias (e da legislação em geral) é complexa e sua compreensão por um único indicador binário é inadequada. A vitória ou derrota do Executivo não cabe na simples aprovação ou não de uma única proposição pelo Legislativo.

Uma mesma matéria pode entrar em mais de uma MP, seja via emendamento parlamentar, seja pela reinserção em MP na sessão legislativa subsequente. As discussões se desenrolam ao longo do tempo e isso precisa ser levado em consideração.

De acordo com a literatura da ciência política, o primeiro ano de governo costuma ser o de maior força, com as maiores taxas de sucesso.

Quando os últimos números do atual governo saíram no início de 2024, com a manchete de que o presidente Lula teve o menor índice de medidas provisórias aprovadas em comparação aos seus antecessores, nos primeiros 11 meses de mandato, o governo logo se apressou em explicar que houve matérias veiculadas em MPs não aprovadas que, mesmo assim, acabaram virando lei, pois seu conteúdo foi incorporado a projetos de lei aprovados.

De certa forma, por tudo o que se acaba de explicar, a lógica do governo está certa. De fato, quem só olha para a taxa de aprovação não tem a real dimensão dos conteúdos que se tornaram norma.

Isso vale tanto para derrotas relativas computadas como vitórias plenas — como no caso que se acaba de mencionar da MP nº 1154/2023 (Reestruturação da Esplanada) —, quanto o contrário: matérias não aprovadas em um primeiro momento, que acabaram sendo convertidas em lei depois.

Tudo indica que isso acontecerá mais uma vez, por exemplo, com a MP nº 1.202/2023, na parte em que determinou a reoneração gradual da folha de pagamento de pagamento para 17 setores produtivos a partir de 1º de abril de 2024. Segundo vem sendo noticiado, o presidente da República apresentará um projeto de lei sobre o tema.

Com base nessa constatação — de que a taxa de sucesso apurada de forma só quantitativa vem perdendo sua capacidade para servir como um indicador preciso, capaz de dar conta do grau real de alinhamento entre os poderes Executivo e Legislativo —, Cesar Rodrigues van der Laan vem fazendo um minucioso levantamento quanto às MPs editadas entre 2019 e 2022 (durante o governo Bolsonaro).

Trata-se de uma pesquisa qualitativa, feita manualmente, porque esse tipo de coleta e análise não pode ser automatizada.

Para tanto, o autor está examinando cada uma das MPs do período.

A leitura, uma a uma, tem o propósito de verificar os casos em que as matérias acabaram sendo aprovadas em um segundo momento (ou seja, derrotas que depois se tornaram vitórias) ou os casos em que, mesmo tendo caducado, as MPs cumpriram seu papel (ou seja, situações de não aprovação que devem ser lidas como sucesso).

Para ficar em só um dos exemplos trazidos por ele, cite-se o caso da MP nº 1.013/2020, bastante ilustrativo do crescente uso estratégico que vem sendo feito das MPs.

A referida MP alterou o artigo 7º da Lei nº 10.480, de 2 de julho de 2002, para prorrogar o prazo de recebimento de gratificações por servidores ou por empregados requisitados pela Advocacia-Geral da União (AGU) até 2 de dezembro de 2022.

Embora não tenha sido convertida em lei (por decurso do prazo sem votação), a MP nº 1013/2020 gerou efeitos concretos enquanto vigeu e amparou pagamentos até abril de 2021.

Então, sem solução de continuidade, foi editada a MP nº 1.042/2021, que promoveu uma reestruturação das gratificações, eliminando a provisoriedade até então vigente, tendo-se convertido na Lei nº 14.204, de 16 de setembro de 2021.

A MP nº 1042/2021 representou uma continuação da MP nº 1.013/2020. Embora a primeira tenha revogado as alterações que a última fez no referido artigo 7º da Lei nº 10.480/2002, ambas precisam ser lidas em conjunto e representam uma vitória do Executivo, seja porque no primeiro round a MP nº 1013/2020 surtiu os efeitos esperados — mesmo não aprovada pelo Congresso deve entrar como vitória —, seja porque no segundo round a MP nº 1.042/2021 resolveu o imbróglio de vez.

Enganos
O trabalho de Cesar Rodrigues van der Laan está em andamento, mas já se revela promissor para mostrar a discrepância da métrica tradicional em consideração às nuances comentadas acima.

Sem adiantar seus achados, basta registrar que ele encontrou uma variação percentual de 31% nas taxas de sucesso, dependendo de a medição ter sido em caráter quantitativo ou qualitativo, uma diferença muito significativa em se tratando de um mesmo fenômeno sob análise.

Com isso, chega-se à síntese do argumento de hoje: mesmo o giro empírico das pesquisas legislativas pode trazer enganos.

Começa-se a ver produções guiadas por estudos quantitativos (a partir de coletas automatizadas) e artigos repletos de gráficos em coluna, em barra, em pizza, em linha, em rede, etc., que até podem embelezar os trabalhos, mas vêm com conclusões — quando não vazias — no mínimo imprecisas, como se acaba de explicar. Com pesquisas exclusivamente quantitativas, perde-se uma dimensão importante.

Atenta a esse ponto, Helen Romero cuidou de estruturar sua pesquisa empírica sobre a edição de MPs e a relação entre a Presidência da República e o Congresso com base em nove variáveis: quantidade, temática, relevância, resultado, tempo, emendas, decisão, veto e deliberação. Tais variáveis foram cruzadas, levando às conclusões pertinentes. Só assim é possível perceber a interação estratégica e as táticas de que o Executivo lança mão para alcançar seu objetivo junto ao Legislativo.

Uma das dificuldades das pesquisas sobre a produção legislativa, sobretudo envolvendo a relação entre o Poder Executivo e o Congresso Nacional, está nisso: para serem bem feitas, certas investigações precisam ser feitas “na unha”, como se diz, manualmente, de forma qualitativa.

Trabalhar só com números, de forma cega para o que de fato significam, pode gerar distorções. O exemplo da taxa de sucesso quantitativa versus qualitativa envolvendo as medidas provisórias é ilustrativo disso.

Só lendo cada uma das proposições para compreender as tendências. Só a partir dos números de não aprovação, por exemplo, não é possível enxergar que, na verdade, o que amentou foi a quantidade de MPs “feitas para caducar”, bem como a maior utilização da via dos PLs para tratar, com êxito, de assuntos que não foram aprovados em MPs.

É desperdício de tempo dedicar-se a computar mecanicamente números em certos fenômenos sociais e humanos. É preciso melhorar os resultados quantitativos das pesquisas e análises, apresentá-los em moldura qualitativa, evitando recair na falácia da falsa precisão.

Deparando-se com dilema semelhante, John Maynard Keynes bem sintetizou o ponto numa frase que, a despeito de pensada para o âmbito da economia e dos investimentos, vem bem a calhar para a pesquisa empírica na Ciência Política e no Direito: “é melhor estar aproximadamente certo do que precisamente errado”.

Fonte: Conjur