Não cabe agravamento de medida cautelar sem justificativa concreta

Não cabe agravamento de medida cautelar se não houver justificativa concreta.

Com esse entendimento, o desembargador Fausto de Sanctis, da 11ª Turma do Tribunal Regional Federal da 3ª Região, concedeu Habeas Corpus e revogou o agravamento de medidas cautelares impostas contra um investigado por lavagem de dinheiro.

Conforme os autos, o réu cumpre diversas medidas cautelares desde 2022: ele não pode ter contato com outros investigados, está proibido de sair do Brasil e tem que comparecer bimestralmente ao juízo responsável pela investigação.

A apresentação ao juízo era feita de forma virtual, já que o réu vive em São Paulo e o processo corre na 1ª Vara Federal de Campinas (SP). Depois de três anos, o processo foi redistribuído para a 9ª Vara Federal da mesma comarca.

O novo juiz responsável, então, determinou que o comparecimento bimestral deveria ser presencial. A medida foi tomada de ofício, ou seja, sem um pedido do Ministério Público. A defesa do réu, então, impetrou o HC junto ao TRF-3.

Sem motivo

Para o desembargador, não houve justificativa alguma para tornar a medida mais rigorosa. Ele reconheceu, em sua análise, que a situação fática permaneceu inalterada, o que tornou a mudança desproporcional.

“Colhe-se ainda que o c. Superior Tribunal de Justiça, nos autos de AgRg no
recurso em Habeas Corpus 176.155, julgado em 06.02.2024, entendeu suficientes
as medidas cautelares então vigentes, negando provimento ao recurso, mas preservando
a forma como vinham sendo cumpridas, inclusive no tocante ao comparecimento em
balcão virtual”, escreveu o magistrado.

De Sanctis, dessa forma, suspendeu a obrigação de comparecimento presencial e enviou o caso ao Ministério Público Federal para manifestação posterior.

Os advogados Mauro Rosner, Ricardo Fadul das Eiras Gabriel Tagliati Foltran defenderam o réu.

Clique aqui para ler a decisão
Processo 5027248-54.2025.4.03.0000

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A Teoria do Direito Aplicada e as interpretações borgianas

A Teoria do Direito Aplicada pode ser apresentada, de forma sintética, sob uma perspectiva borgiana. A menção a Jorge Luís Borges, nesse contexto, não constitui ornamento literário, mas sim um modo de iluminar os problemas de linguagem nos quais o direito se encontra inevitavelmente enredado. Com seus espelhos, labirintos e sua Biblioteca de Babel, Borges recordou que todo texto multiplica sentidos e que a interpretação pode tornar-se infinita. Essa imagem serve, por contraste, para indicar aquilo que o direito não pode permitir: uma proliferação ilimitada de leituras, um “Livro de Areia” em que as palavras mudam a cada vez que alguém o abre. O Direito positivo é precisamente a resposta a esse risco — ele necessita de regras claras, procedimentos legítimos e de um sistema que imponha limites à interpretação. Ao mesmo tempo, invocar Borges cumpre também uma função cultural mais ampla: construir uma ponte entre a literatura e a teoria jurídica, mostrando que o Direito não está isolado em tecnicismos, mas dialoga com as metáforas mais profundas da tradição intelectual, fortalecendo assim a defesa de um ordenamento normativo legítimo.

A Teoria do Direito Aplicada nasce, como tantas criações humanas, de uma tensão — pode-se dizer, de uma discórdia que, ao repetir-se, converte-se em destino. De um lado, está a Teoria Geral do Direito, que se compraz em abstrações universais e na construção de sistemas em que a nitidez parece definitiva, embora raramente o seja. Borges expressou isso com ironia: “Sabem que um sistema não é outra coisa senão a subordinação de todos os aspectos do universo a um só deles”. Essa frase revela a transição da pureza ilusória de um sistema único à aspereza da realidade.

De outro lado, situa-se a Teoria do Direito Aplicada, que lida com a concretude dos ordenamentos jurídicos, tal como foram concebidos. Essa realidade lembra constantemente que o direito não habita o céu das ideias, mas o solo dos tribunais.

Toda decisão judicial — e até mesmo toda opinião doutrinária — repousa sobre uma concepção teórica, ainda que essa base seja ignorada ou negada. Trata-se das “bibliotecas invisíveis” que Borges imaginou: ainda que ninguém as leia, estão ali, determinando as possibilidades do pensamento. O juiz que profere uma sentença, o advogado que redige uma petição, o legislador que elabora uma norma — todos agem sob o influxo de uma teoria, explícita ou não, coerente ou fragmentária, mas sempre presente.

Daí a necessidade de articular teoria e prática. E quanto mais complexo é o conflito, maior deve ser a solidez e a coerência da teoria que o sustenta.

A Teoria do Direito Aplicada exige, portanto, uma coerência epistemológica: compreender o que é o direito, quais normas são válidas e como justificar o conhecimento com objetividade e a aplicação com imparcialidade. Palavra difícil, “imparcialidade”. Borges escreveu que os espelhos são abomináveis porque multiplicam o número dos homens. Algo semelhante ocorre com os textos jurídicos: seu sentido pode multiplicar-se em reflexos interpretativos. Mas essa multiplicação não pode ser ilimitada. Para que uma decisão judicial seja legítima, a interpretação deve manter-se dentro dos limites traçados pelo texto e pelo sistema jurídico como um todo.

Aqui se revela um dos grandes desafios: a indeterminação. O Direito, que pretende ser um sistema harmônico e fechado, é, no entanto, tecido de lacunas, contradições e zonas de penumbra. Cabe ao juiz atravessá-las. E nesse percurso, nem a linguística nem a lógica são suficientes. O linguístico multiplica os sentidos; a lógica, embora necessária, apenas organiza o já dito — articula premissas, ordena hierarquias, expõe contradições e deduz consequências. Sua tarefa é dar coerência interna ao sistema, não inventar novas soluções. Mas a decisão exige direção.

O juiz assemelha-se, então, a um navegador em um mar de ilhas dispersas. O mapa — a linguística — e a bússola — a lógica — são indispensáveis, mas insuficientes. O que legitima sua travessia não é escolher qualquer caminho possível, mas aquele juridicamente admissível: o que respeita o texto, harmoniza-se com o sistema e apoia-se na autoridade democrática que o fundamenta. Assim, a sentença, nascida da indeterminação, transforma-se em autoridade, porque fixa uma solução obrigatória e projeta-se como referência para o futuro.

O Direito não existe para abolir a incerteza, mas para domesticá-la e convertê-la em ordem — uma ordem frágil, humana, porém legítima, porque enraizada na vontade cidadã e na autoridade institucional que lhe dá forma. Não se trata de perder-se em um labirinto de espelhos infinitos, mas de encontrar o único caminho que não desminta o sistema: o caminho do Direito positivo, que é a forma pela qual a comunidade se protege dos abismos da arbitrariedade.

A primeira questão, como em todo jogo de espelhos, consiste em identificar o que se chama “Direito”. O positivista dirá: é válido aquilo que emana da autoridade conforme os seus rituais. O não positivista responderá: o verdadeiro direito é aquele que se ajusta a valores supremos. Ambas as vozes se entrelaçam como numa discussão infinita. Mas a prática — esse tribunal em que as evasivas não valem — exige identificar com clareza o que é Direito vigente e aplicá-lo com coerência.

Nesse tabuleiro, a Constituição é a peça central. Não contém todo o Direito, mas o estrutura: ordena o jogo e fixa suas regras. Não é um catálogo de intenções — ainda que às vezes seja lida assim — nem um oráculo infalível. É um texto aberto, que pede compatibilidade, não equivalência literal. Todo texto, como a Bíblia ou o Dom Quixote, multiplica-se em interpretações, e a Constituição não escapa a essa lei universal da hermenêutica. Mas múltiplos sentidos não significam ausência de limites. A Constituição não é um livro de areia cujas páginas se alteram a cada leitura. Suas disposições, embora abertas, impõem limites claros: a interpretação deve ser coerente com o texto e compatível com o sistema jurídico em seu conjunto.

Sob esse ângulo, a Teoria do Direito Aplicada é uma filosofia da ciência em ação. Não se perde nas brumas do moralismo ou da política, mas busca conceitos úteis, manejáveis como ferramentas. Borges escreveu que “a metafísica é um ramo da literatura fantástica”. Talvez o mesmo se possa dizer de certa filosofia jurídica que, em busca de pureza, dissolve-se em quimeras. A Teoria do Direito Aplicada, ao contrário, é menos fantástica e mais terrena: mede-se na arena dos conflitos.

Os filósofos da ciência, em geral, ocuparam-se de questões técnicas — lógica das teorias, modelos formais, taxonomias conceituais —, iluminando aspectos parciais, mas negligenciando os grandes problemas humanos. Bertrand Russell, em Os princípios da filosofia, aproxima-se mais da epistemologia e da filosofia da ciência do que da filosofia em sentido amplo. Ortega y Gasset, em O Que é Filosofia?, por sua vez, trata de questões existenciais tão vastas que dificilmente podem converter-se em critérios de ação.

Labirinto sem fim

Um velho chiste ilustra o que a solenidade muitas vezes oculta: o filósofo trabalha com lápis, papel e uma cadeira confortável; o cientista experimental precisa do mesmo, mas acrescenta uma lixeira. O pesquisador que atua no laboratório é treinado para desconfiar de suas ideias enquanto não forem validadas pelos fatos — e por isso descarta sem pudor o que não resiste à prova empírica.

Mutatis mutandis, o mesmo ocorre com a Teoria do Direito Aplicada: não basta formular conceitos no papel; é preciso também uma lixeira. As hipóteses que não são compatíveis com o Direito positivo, com a Constituição ou com o sistema normativo vigente devem ser descartadas sem nostalgia. Essa é, talvez, a diferença essencial entre uma Filosofia do Direito ampla — que mistura Direito, moral e política — e uma teoria do direito aplicada, que se mede no terreno concreto dos conflitos jurídicos.

Essa comparação define melhor o campo da Teoria do Direito Aplicada. Ela não busca refletir sobre a alma ou o sentido último da existência — temas próprios da metafísica ou da poesia —, mas operar com conceitos integráveis ao Direito positivo e transformáveis em critérios de decisão. Enquanto a Filosofia Geral do Direito dissolve-se em abstrações, a teoria aplicada ganha relevância justamente por se confrontar com a concretude dos conflitos normativos.

Há, contudo, uma tentação persistente: reconduzir todos os conflitos às “alturas” da Constituição. Essa ascensão parece nobre, mas frequentemente repousa em preceitos demasiado gerais e abstratos. Mandatos programáticos e abertos, na prática, revelam-se insuficientes para adjudicar direitos. Em vez de derivar regras a partir desses mandatos, essa postura termina por derrotar normas claras e legítimas, inclusive as emanadas do Legislativo, deslocando tudo para o terreno dos princípios. Mas os princípios, sozinhos, não decidem: apenas justificam decisões já tomadas.

O resultado é inquietante. Favorece-se a arbitrariedade e abre-se o risco de converter o Direito em uma batalha moral, em que o ritual final consiste em escolher entre o bem e o mal. Essa simplificação, tão atraente quanto perigosa, transforma o Direito em uma religião secular e seus intérpretes em sacerdotes. O desfecho seria um “Direito iluminado”… ou, ironicamente, um Direito de iluminados — mais do que um direito iluminador.

Reduzido a convicções morais ou preferências políticas, o Direito perderia consistência. A Teoria do Direito Aplicada ficaria mutilada. Em vez de juízes e advogados, restariam sacerdotes da luz, guiados por princípios tão elevados que já não reconhecem o chão da realidade.

Mas essa não é a tarefa do Direito. Sua verdadeira missão é aplicar com rigor o que foi criado conforme procedimentos legítimos, de modo que cada decisão mantenha coerência com o sistema jurídico. Um sistema que não é perfeito nem absoluto — nenhum labirinto o é —, mas que ao menos assegura um chão comum sobre o qual se possa discordar.

Borges imaginou bibliotecas infinitas, livros de areia que enlouquecem o leitor, espelhos que multiplicam os homens. Essas imagens servem de advertência: um Direito sem limites interpretativos seria um labirinto interminável. Diante dessa ameaça, a voz de Bobbio reconduz ao essencial: o problema do nosso tempo não é justificar repetidamente os direitos, mas garanti-los e assegurá-los na prática. Assim, entre Borges e Bobbio, desenha-se um mesmo mandato: domesticar a infinitude da linguagem e traduzi-la em certezas jurídicas que efetivamente protejam as pessoas.

Por fim, se se pensasse que teoria e prática podem coexistir em mundos separados, cometer-se-ia um erro epistemológico — confundir-se-ia o próprio modo de construção do conhecimento. No direito, como em toda ciência aplicada, teoria e prática não se justapõem: sustentam-se mutuamente. A Teoria do Direito Aplicada nasce para evitar esse desencontro. Não cria um terceiro domínio, mas ergue uma ponte entre a teoria que define o que é o Direito — como o positivismo — e as decisões concretas que os tribunais devem tomar. Sem essa ponte, a teoria ficaria confinada no céu das abstrações e a prática se perderia no labirinto da arbitrariedade. Uma boa teoria aplicada assegura a coerência: que a definição de Direito não se desvirtue na aplicação e que a aplicação não desminta a teoria. Nessa concordância — frágil, mas necessária — reside a legitimidade do Direito positivo.

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Planejamento tributário, segregação de atividades e a Solução de Consulta Cosit nº 72/2025

O tema do planejamento tributário envolvendo segregação de atividades empresariais – e os limites de sua oponibilidade ao Fisco – não é novo. Mas a recente Solução de Consulta Cosit nº 72/2025 reacendeu as discussões que há muito vêm sendo travadas no âmbito do Carf com relação à exigência centralizada de IRPJ e CSLL nos casos de segregação de atividades dentro de um grupo econômico.

A segregação de atividades pode ser entendida como a constituição de duas ou mais pessoas jurídicas, dentro de um mesmo grupo econômico, que desempenhem suas atividades com autonomia. A medida pode se justificar por questões gerenciais, sucessórias, estratégicas ou, ainda, fiscais. No entanto, quando a finalidade única é a economia tributária e há artificialidade na segregação das atividades, é comum que a Receita Federal exija do contribuinte os tributos que deixaram de ser recolhidos e, posteriormente, a autuação seja mantida pelo Carf.

Em tese, considerando o que foi decidido pelo Supremo Tribunal Federal da ADI nº 2.446 [1], o contribuinte pode “buscar, pelas vias legítimas e comportamentos coerentes com a ordem jurídica, economia fiscal, realizando suas atividades de forma menos onerosa, e, assim, deixando de pagar tributos quando não configurado fato gerador cuja ocorrência tenha sido licitamente evitada”. Por outro lado, quando “se comprove que o sujeito passivo (…) agiu com dolo, fraude ou simulação”, nos termos do artigo 149, VII, do CTN, deve a autoridade fiscal efetuar o lançamento tributário.

Ocorre que, como bem alerta Sergio André Rocha [2], a discussão teórica dos limites ao planejamento tributário – isto é, a existência de um dever constitucional de pagar tributos ou um direito fundamental de economizá-los – não contribui para a solução de casos concretos. E, sendo assim, analisaremos a seguir a Solução de Consulta Cosit nº 72/2025 e a jurisprudência da 1ª Seção do Carf, para identificar as circunstâncias concretas que levam à inoponibilidade ao Fisco da segregação de atividades empresariais.

Solução de Consulta Cosit nº 72/2025

No caso analisado pela Solução de Consulta Cosit nº 72/2025, a consulente, uma empresa optante pela apuração do IRPJ e da CSLL na sistemática lucro presumido, foi adquirida por outra, que desempenha a mesma atividade, em outra localidade, e está sujeita ao lucro real. Diante disso, questionou acerca da possibilidade de se manter optante pelo lucro presumido, considerando que continuará produzindo e comercializando seus produtos com marca própria, de forma independente e em localidade distinta de sua sócia.

A Receita Federal, ao enfrentar o tema, distingue o “grupo econômico formado de acordo com a Lei das S.A.” do “grupo econômico irregular”, que atrai a responsabilização solidária por débitos tributários nos termos do artigo 124 do CTN [3].

E, a partir de tal premissa, concluiu que, nos casos “em que há pleno respeito à independência da personalidade jurídica de seus integrantes, mantendo-se a autonomia patrimonial, administrativa e operacional de cada um deles”, a segregação de atividades empresariais não caracteriza, necessariamente, abuso de personalidade jurídica ou planejamento tributário abusivo.

Por outro lado, “caso seja constatado que, em duas pessoas jurídicas com CNPJ formalmente diversos, há um mesmo quadro societário ou elas integrem um mesmo grupo econômico, há um mesmo objeto social e há uma mesma administração”, as empresas podem ser enquadradas como uma só, mas com dois estabelecimentos.

Interessante notar que, nos termos da referida solução de consulta, o fato de as pessoas jurídicas estarem sujeitas a uma mesma administração, isto é, a uma “unidade de direção e de operação das atividades empresariais”, parece ser um elemento importante na caracterização da ausência de autonomia e, portanto, na inoponibilidade ao Fisco da segregação de atividades empresariais.

Jurisprudência da 1ª Seção do Carf

No Acórdão nº 9101-002.397 (“Caso Estaleiro Schaefer”), julgado por unanimidade de votos, em 17.07.2016, de forma contrária à tese do contribuinte, examinou-se autos de infração para exigência de IRPJ, CSLL, Contribuição ao PIS e Cofins, em razão de suposta confusão patrimonial e de atividades entre empresas de um mesmo grupo, o que resultou na apuração dos tributos de forma consolidada.

No caso, uma empresa, que atuava no ramo náutico, segregou suas atividades em duas pessoas jurídicas distintas, Kiwi Boats e Schaefer Yatchs, cada uma com receita bruta inferior a 78 milhões por ano, de forma a manter a possibilidade de opção pela sistemática do lucro presumido [4]. Conforme constatado pela autoridade fiscal, (1) as notas fiscais de insumos de uma pessoa jurídica foram escrituradas na contabilidade da outra; (2) não havia nota fiscal ou registros contábeis de transferência de produtos entre as empresas; (3) Kiwi Boats e Schaefer Yatchs compartilhavam a mesma localização geográfica, estrutura operacional, administração e funcionários da contabilidade; e (4) apesar de haver contrato de aluguel entre as empresas, não ocorreu o pagamento ou o registro contábil correlato.

Em seu voto, o relator teceu diversas considerações teóricas acerca da liberdade do contribuinte de estruturar seu capital da forma mais eficiente, inclusive por meio da segmentação de entidades empresariais, e da inexistência de norma que o obrigue a concentrar seu patrimônio em uma única entidade. No entanto, ao analisar as peculiaridades fáticas, concluiu que havia evidências de simulação (1) na estrutura negocial, vez que inexistia estrutura para que cada empresa segregada explorasse a atividade que alegava desenvolver; (2) na estrutura financeira e contábil, pois não havia contabilidade ou documentação fiscal hábil a demonstrar as operações praticadas por cada uma das empresas que, alegadamente se dedicavam a segmentos distintos do processo produtivo; e (3) na estrutura física e operacional, uma vez que as empresas compartilhavam as mesmas instalações físicas, sem que houvesse compartilhamento de despesas ou pagamento de alugueis.

No Acórdão nº 9101-002.429 (“Caso Transpinho”), julgado em 18/8/2016, por maioria de votos, de forma contrária ao contribuinte, analisou-se autos de infração lavrados para exigência, dentre outros, de IRPJ e CSLL em razão de suposto não oferecimento à tributação de ganhos de capital sobre alienação de imóveis. Isso porque, de acordo com a autoridade fiscal, a Transpinho foi objeto de cisão parcial com versão de bens para a Saiqui, empresa do grupo que tinha por objeto social a compra e venda de imóveis e era optante pelo lucro presumido, com objetivo único de reduzir a tributação sobre rendimentos obtidos com a venda de tais bens.

O relator, após discorrer acerca da superação do pensamento liberal, que privilegiava a liberdade econômica e a propriedade privada, pela priorização do bem-estar social, concluiu que as operações analisadas foram realizadas sem qualquer propósito negocial, “objetivando burlar a tributação, ao aparentarem conferir ou transmitir direitos a pessoas diversas (…) daquelas às quais realmente se conferem, ou transmitem”, configurando simulação nos termos do § 1º do artigo 167 do Código Civil.

As circunstâncias fáticas que levaram o colegiado, por maioria de votos, a concluir pela existência de simulação foram, principalmente, (1) a ausência de estrutura física ou mão-de-obra apta para a Saiqui desenvolver as atividades objeto de seu contrato social, já que não possuía empregados e passou a ter apenas 2 em 2008 e sua sede se situava nos fundos do terreno da Transpinho; (2) o compartilhamento de telefone, endereço eletrônico e o responsável pelo preenchimento de declarações fiscais entre as empresas; e (3) a descapitalização da Saqui após a alienação dos imóveis, vez que o produto da venda foi restituído aos sócios por meio de distribuição de lucros.

Vale notar que o “Caso Transpinho” foi submetido ao Poder Judiciário e julgado favoravelmente ao contribuinte pelo Tribunal Regional Federal da 4ª Região [5]. Isso porque entenderam os desembargadores que “a reorganização patrimonial realizada pelo contribuinte, quando levada a efeito por meio de negócios jurídicos e operações verdadeiros, ainda que tenha por resultado a economia de tributos, não autoriza o Fisco a desconsiderá-los, pois não existe — e nem poderia existir, porque ofenderia o artigo 170 da Constituição — uma norma geral que obrigue o administrado a, frente à possibilidade de submeter-se a dois regimes fiscais, optar pelo mais gravoso”.

Posteriormente, em 9/5/2017, foram proferidos o Acórdão nº 9101-002.793, o Acórdão nº 9101-002.794 e o Acórdão nº 9101-002.795, todos do mesmo contribuinte (“Casos Mondial”) e julgados por voto de qualidade de forma contrária à tese defendida pelo contribuinte [6]. O primeiro decorreu de autos de infração para a exigência de IPI, o segundo de Contribuição ao PIS e Cofins e o terceiro de IRPJ e CSLL, todos em razão de suposta segregação indevida de atividades por empresas de um mesmo grupo econômico.

No caso, em breve síntese, as empresas MK e ME, optantes pela sistemática do lucro presumido, supostamente vendiam produtos superfaturados para Mondial, submetida ao lucro real, que revendia os produtos aos clientes externos e concentrava as despesas do grupo. Dessa forma, de acordo com a Autoridade Fiscal, as receitas eram artificialmente alocadas em pessoas jurídicas optantes pelo lucro presumido, enquanto as despesas eram deduzidas naquela sujeita ao lucro real.

O relator, cujo voto foi vencedor, após tratar do desvirtuamento da livre iniciativa para justificar construções societárias descontextualizadas, listou os indícios de segregação artificial de atividades existentes, quais sejam: (‘) empresas funcionando no mesmo endereço, compartilhando contas de consumo e exercendo a mesma atividade; (2) compartilhamento da marca comercial; (3) sócios majoritários comuns com sede no Uruguai e utilização de terceiros na constituição das empresas; (4) mesma direção e mesmos funcionários nos cargos de gerência; e (5) realização de transações internas entre empresas e compartilhamento de informações contábeis e financeiras.

Interessante notar que o relator evidenciou, numericamente, a economia fiscal experimentada em razão da concentração de maior parte das despesas na empresa optante pelo lucro real e da alocação de maior parte da receita nas empresas optantes pelo lucro presumido, o que, supostamente, confirmaria o indício de segregação artificial de atividades no caso concreto.

Por fim, mas sem a pretensão de esgotar o tema, ainda em 2017, foi proferido o Acórdão nº 9101-002.880 (“Caso Pandurata Alimentos”), julgado por unanimidade de votos de forma contrária à tese defendida pelo contribuinte em 6/6/2017. Trata o caso de autos de infração para exigência de IRPJ e CSLL em razão da glosa de despesas com pagamento de comissões pela Pandurata Alimentos à Pandurata Assessoria, ambas controladas pela Pandurata Participações e pertencentes ao Grupo Bauducco.

De acordo com a Autoridade Fiscal, como a Pandurata Alimentos era tributada no lucro real e a Pandurata Assessoria no lucro presumido, os serviços fictícios foram deduzidos na primeira e tributados na segunda, ensejando redução na carga tributária do grupo econômico por meio de operação “desprovida de propósito negocial e caracterizadora de abuso de forma e de dissimulação”.

Em seu voto, o relator não negou que os contribuintes têm direito à auto-organização, bem como o dever de perseguir economia tributária – o que, entretanto, não pode ser feito de maneira abusiva. E acrescentou que os atos formalmente legais, mas desprovidos de substância, “não são oponíveis ao Fisco quando tenham por finalidade única ou primordial reduzir os tributos a este devidos”.

Diante disso, concluíram os julgadores que a Pandurata Assessoria nunca prestou os serviços de assessoria comercial para os quais foi constituída e, embora tivesse existência formal, não possuía substância, pois não desenvolvia “as atividades descritas em seu contrato social, ou quaisquer outras atividades econômicas”.

Isso porque (1) o domicílio tributário da Pandurata Assessoria era em uma sala fechada, na qual os vizinhos nunca viram atividade; (2) a imobiliária que administrava o imóvel afirmou que a empresa nunca desenvolveu atividades no local de sua sede; (3) os gerentes da Pandurata Assessoria foram transferidos da Pandurata Alimentos, mas desconheciam sua sede e não sofrerem alteração em seu local de trabalho; (4) as saídas de caixa da Pandurata Alimentos, para pagar as despesas com prestações dos serviços, eram compensadas com entradas de numerário em seu caixa decorrente de mútuos concedidos pela Pandurata Assessoria; e (5) a Pandurata Assessoria cedia o crédito oriundo dos contratos de mútuo para a controladora Pandurata Participações que, posteriormente, aumentava o capital da Pandurata Alimentos com o valor do crédito.

Conclusão

A partir de tudo o que foi exposto, pode-se concluir que há uma convergência entre a Solução de Consulta Cosit nº 72/2025 e a jurisprudência da 1ª Seção do Carf no que se refere às circunstâncias concretas que, comumente, tornam abusiva a segregação de atividades empresariais. E tais circunstâncias consistem, principalmente, na ausência de (1) autonomia administrativa, assim entendida quando as pessoas jurídicas estão sob a mesma gestão das atividades operacionais; (2) autonomia patrimonial, quando, por exemplo, os custos e despesas comuns não são compartilhados, as transações dentro do grupo são sub ou superfaturadas e há alocação artificial de receitas e despesas entre as empresas; e (3) autonomia operacional, caracterizada pela incompatibilidade da estrutura física ou operacional com as atividades desenvolvidas.


[1] ADI 2446, relatora min. Cármen Lúcia, Tribunal Pleno, julgado em 11/4/2022, DJe-079, divulgação 26.04.2022, publicação 27/4/2022.

[2] ROCHA, Sergio André. Planejamento Tributário e Liberdade Não Simulada: doutrina e situação pós ADI 2.446. 3ª ed. Belo Horizonte: Casa do Direito, 2025. p. 18-21.

[3] Tema tratado no Parecer Normativo Cosit/RFB nº 04/2018.

[4] Nos termos do art. 257 do RIR/2018.

[5] Apelação/Remessa Necessária nº 5009900-93.2017.4.04.7107, Rel. Desembargador Federal Rômulo Pizzolatti, j. em 10/12/2019.

[6] Interessante notar que esses acórdãos foram, posteriormente, anulados pelos Acórdão nº 9101-006.636, Acórdão nº 9101-006.637 e Acórdão nº 9101-006.638, reestabelecendo-se a decisão recorrida. Isso porque o contribuinte obteve medida judicial cancelando o despacho de admissibilidade proferido nos Acórdão nº 9101-002.793, o Acórdão nº 9101-002.794 e o Acórdão nº 9101-002.795, por ausência de “identidade obrigatória entre os modelos/paradigmas e a decisão recorrida”. No entanto, tal circunstância não retira a importância dos “Casos Mondial” para fins de exame do entendimento do Carf sobre segregação de atividades empresariais.

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O controle judicial do desvio de finalidade legislativo

Após a última participação sobre o controle judicial da técnica legislativa – em que foram apontadas as condições e os limites para o seu exercício, notadamente a necessidade de que o vício de técnica legislativa resulte em uma afronta direta à Constituição, e não apenas na inobservância de normas infraconstitucionais, tendo-se explicado que nem todos os defeitos técnicos das leis são suscetíveis de controle judicial –, leitores desta Fábrica de Leis pediram um texto explicativo sobre um outro tipo de controle judicial reivindicado por parte da literatura: o controle judicial sobre o desvio de finalidade legislativo. O tema de fato é importante e atual e merece a coluna de hoje.

A Lei nº 4.717, de 29 de junho de 1965, que regula a ação popular, em seu artigo 2º, parágrafo único, alínea e, estabelece que o desvio de finalidade se verifica quando o agente pratica o ato visando a fim diverso daquele previsto, explícita ou implicitamente, na regra de competência. Também conhecido como desvio de poder, essa forma de nulidade tradicionalmente empregada para atos administrativos implica, não uma apreciação objetiva da conformidade ou não-conformidade de um ato com uma regra de direito, mas sim o que José Cretella Júnior denomina dupla investigação de intenções subjetivas“(…) é necessário indagar se os móveis que inspiraram o autor do ato administrativo são aqueles que, segundo a intenção do legislador, deveriam realmente inspirá-lo” [1].

Então, aplicado ao processo legislativo, essa forma de nulidade pressuporia cotejar se os objetivos da lei aprovada são compatíveis com os previstos na Constituição, que conferiu competência ao legislador para dispor sobre as matérias via legislação. O controle do desvio de finalidade legislativo assumiria a forma de um controle teleológico, em que a fiscalização constitucional passaria a se debruçar sobre supostos vícios baseados em elementos subjetivos, para verificar se as finalidades da Constituição eventualmente foram menosprezadas ou substituídas por determinantes alheios, incongruentes ou não pertinentes com os fins constitucionais. Por exemplo, se a legislação foi aprovada em razão de motivos partidários, para atender interesses familiares de membros do governo, por pressão internacional, etc.

A literatura é controvertida a respeito da possibilidade do controle judicial sobre o desvio de finalidade legislativo. Carmen Chinchilla Marín, por exemplo, nega que o desvio de poder possa ser aplicado ao exercício de poderes legislativos: “primeiro, porque o desvio de poder é uma técnica de controle da discricionariedade e o legislador não tem discricionariedade, mas liberdade de configuração política; e segundo, porque o desvio de poder é um vício que consiste em se afastar do objetivo estabelecido pelo ordenamento jurídico, e a lei não tem objetivos impostos pela Constituição, mas limites que a própria Constituição estabelece ao seu conteúdo” [2].

Entretanto, parecem ser em maior número os que defendem a possibilidade desse controle. No Brasil, um dos textos clássicos sobre o assunto é o de Caio Tácito, para quem “O abuso do poder legislativo, quando excepcionalmente caracterizado, pelo exame dos motivos, é vício especial de inconstitucionalidade da lei pelo divórcio entre o endereço real da norma atributiva da competência e o uso lícito que a coloca a serviço de interesse incompatível com a sua legítima destinação” [3].

Como se vê, a pretensão de um controle judicial do desvio de finalidade legislativo está intimamente relacionado a outro tipo de controle já criticado nesse espaço, qual seja, o controle judicial da motivação da legislação, já que ambos implicam, em maior ou menor medida, escrutinar as razões ou os motivos dos legisladores e, se for o caso, em se tratando do controle do desvio, demonstrar que os objetivos reais (nem sempre suficientemente conhecidos) divergem dos que foram estabelecidos para o exercício da competência legislativa.

Algumas críticas e dificuldades podem ser lançadas a essa empreitada, tanto em termos conceituais, quanto à operacionalidade no que diz respeito à matéria fática.

Em primeiro lugar, deve-se apontar que o controle de constitucionalidade das leis incide sobre a forma ou sobre o conteúdo dos dispositivos legais, não sobre a justificação da legislação. Ou seja, não se declaram inconstitucionais os motivos das leis.

Nesse ponto, apontam-se ao menos três argumentos contrários ao controle judicial da motivação legislativa, apontados pelo Chief Justice Warren no caso United States v. O’Brien (391 U.S. 367 (1968)), e esquematizados por John Hart Ely [4]: 1) a dificuldade de averiguar qual foi a verdadeira motivação dos legisladores, já que os propósitos podem ser contraditórios, e não há como saber qual foi a intenção dominante; 2) a inutilidade (futility) desse controle da motivação, pois os legisladores sempre poderão simplesmente reeditar o ato com a justificação correta; e 3) seu caráter contraproducente: invalidar uma legislação constitucional apenas por causa da sua motivação é desaconselhável, pois é possível que uma boa lei seja expressão de um mau motivo. Só isso já deveria bastar para negar a possibilidade desse tipo de controle.

Objetivo ilícito

Não se desconhece a farta literatura reivindicando o controle judicial quando a motivação legislativa é considerada suspeita, para usar a expressão empregada por Paul Brest. Uma motivação deve ser considerada suspeita quando uma norma, aparentemente inocente, é adotada com o objetivo de causar um resultado que, se fosse explicitado, seria considerado inconstitucional. Ou seja, infere-se a motivação legislativa a partir dos efeitos previsíveis de uma lei.

O autor considera que os governos são constitucionalmente proibidos de perseguir certos objetivos, que são proscritos porquanto prejudiciais à sociedade em geral ou injustos, por exemplo: desfavorecer um grupo racial, suprimir uma religião ou impedir a migração interestadual [5]. Embora não listada pelo autor, a tentativa de prejudicar um grupo político ou uma minoria, por analogia, também desencadearia tal revisão judicial.

Naturalmente, essas finalidades não serão verbalizadas na justificação para a aprovação da lei, mas aparecerão como resultado das escolhas legislativas. Na construção de Paul Brest, na medida em que o processo de tomada de decisão consiste em ponderar as consequências previsíveis e desejáveis da medida legislativa, o tomador de decisão (no caso, o legislador) que se orienta por motivações ilícitas tende a considerar como desejáveis consequências que, sob a perspectiva de um agente guiado por motivações legítimas, seriam indiferentes ou até mesmo indesejáveis [6]. Assim, existindo algum objetivo ilícito, a legislação deve ser considerada inconstitucional.

É de se observar que nessa modalidade, o controle da motivação legislativa fica restrito a situações específicas, sendo necessário que o objetivo ou interesse perseguido com a legislação seja proibido pelo ordenamento jurídico. Diferentemente, no controle do desvio de finalidade legislativo basta que a finalidade perseguida, lícita ou ilícita, seja diferente daquela assinalada na Constituição. Ou seja, o controle do desvio de finalidade pretende ser ainda mais amplo, embora não menos problemático.

Ainda que se admitisse tal controle judicial sobre a motivação legislativa, persistiriam dificuldades em determinar qual foi o motivo único ou dominante. Para resolver esse problema, Paul Brest propõe uma inversão no ônus da prova (burden shifting), de modo a que se presuma que a motivação ilícita foi determinante para o resultado da decisão, salvo prova em contrário. Assim, somente se for apresentada uma justificativa extraordinária por um interesse estatal convincente (compelling state interest) – ou, pelo menos, se a escolha foi justificada em termos legítimos, na linha de John Hart Ely –, a lei será considerada constitucional.

A despeito do entusiasmo da literatura, o fato é que até a Suprema Corte dos Estados Unidos apresenta relutância em declarar leis inconstitucionais tão somente com base em objetivos suspeitos, potencialmente inconstitucionais. Mesmo a partir de Ely e Brest, o papel da motivação inconstitucional como desencadeadora do escrutínio judicial é extremamente limitado: a motivação somente é considerada relevante nas situações em que uma escolha deveria ser aleatória (mas não o foi em concreto), em que o objetivo perseguido é amorfo (por exemplo, a promoção do bem-estar geral) ou quando existe uma obrigação de neutralidade do Estado (no sentido de abstenção de adoção de critérios com base em raça, religião ou crença política).

Em segundo lugar, voltando às objeções ao controle do desvio de finalidade legislativo, tem-se que a norma constitucional que fundamenta o poder de legislar nem sempre contém uma finalidade específica para a aprovação de leis, com o que se confere ampla margem de conformação material. Observe-se, por exemplo, o artigo 48 da Constituição, que se limita a prever: “Cabe ao Congresso Nacional, com a sanção do Presidente da República, não exigida esta para o especificado nos arts. 49, 51 e 52, dispor sobre todas as matérias de competência da União”. Por seu turno, a leitura do artigo 22, que traz o rol das matérias de competência legislativa privativa da União, tampouco indica quaisquer fins. Ou seja, de modo geral, a Constituição conferiu ao legislador um grande espaço de liberdade para as escolhas legislativas, prestigiando o princípio democrático.

Por mais que o artigo 1º da Constituição defina os fundamentos da República (soberania, cidadania, dignidade da pessoa humana, valores sociais do trabalho e da livre iniciativa, pluralismo político) e o artigo 3º estabeleça os objetivos fundamentais (construir sociedade livre, justa e solidária; garantir desenvolvimento nacional; erradicar pobreza; reduzir desigualdades; promover o bem de todos), isso não significa que as leis estejam proibidas de promover fins diversos. As leis não podem é contrariar os fins constitucionais, mas nada impede que o estabelecimento de outros fins, naturalmente, desde que compatíveis com a Constituição.

Essas características (abertura constitucional e pluralidade de fins) trazem dificuldades para o controle judicial do desvio de finalidade legislativo. Nas palavras de Manoel Adam Lacayo Valente: “(…) quanto maior for a margem de discricionariedade menor será a possibilidade de aplicação da teoria do desvio de poder, em função da dificuldade de ser cotejada, com precisão, a finalidade estipulada pela lei com a regra de competência constitucional que concedeu poder ao legislador ordinário para dispor sobre a matéria” [7]. Com isso, é limitado o espaço desse tipo de controle.

Em terceiro lugar, outra dificuldade não desprezível diz respeito à comprovação da suposta motivação inconstitucional dos legisladores. Para exercer esse controle, os tribunais precisariam examinar a intenção por trás da promulgação de leis para determinar sua constitucionalidade, recorrendo a inferências (como já indicado, a partir dos efeitos previsíveis), cujo suporte tende a ser frágil.

Seria possível continuar a lista de objeções e problemas do controle do desvio de finalidade legislativo, mas o espaço da coluna de hoje já acabou e a combinação do que já foi indicado até aqui é suficiente para embasar a conclusão que o exercício desse controle tende a ser altamente disfuncional. Em todo caso, sendo necessário acioná-lo, convém limitar o seu resultado: o controle do desvio de finalidade legislativo serve preponderantemente para desencadear um ônus de justificação – ou seja, para pedir que os legisladores deem razões –, não devendo servir para a invalidação de leis que possam ser justificadas por motivos racionais e inofensivos [8].


[1] CRETELLA JÚNIOR, José. Anulação do ato administrativo por desvio de poder. Forense: Rio de Janeiro, 1978, p. 5.

[2] No original: “(…) primero, porque la desviación de poder es una técnica de control de la discrecionalidad y el legislador no tiene discrecionalidad, sino libertad de configuración política, y segundo, porque la desviación de poder es un vicio que consiste en apartarse del fin establecido por el ordenamiento jurídico y la ley no tiene fines impuestos por la Constitución, sino límites que la misma establece a su contenido” (CHINCHILLA MARÍN, Carmen. La desviación de poder. Madrid: Civitas, 1999, p. 77).

[3] TÁCITO, Caio. O desvio de poder no controle dos atos administrativos, legislativos e jurisdicionais. Revista de Direito Administrativo, v. 242, 63-74, 2005, p. 69.

[4] ELY, John Hart. Legislative and Administrative Motivation in Constitutional Law. The Yale Law Journal, v. 79, n. 7, p. 1205-1341, 1970, p. 1212-1222.

[5] No original: “Governments are constitutionally prohibited from pursuing certain objectives – for example, the disadvantaging of a racial group, the suppression of a religion, or the deterring of interstate migration” (BREST, Paul. Palmer v. Thompson: An Approach to the Problem of Unconstitutional Legislative Motive. The Supreme Court Review, v. 1971, p. 95-146, p. 116).

[6] No original: “The fact that a decisionmaker gives weight to an illicit objective may determine the outcome of the decision. The decisionmaking process consists of weighing the foreseeable and desirable consequences of the proposed decision against its foreseeable costs. Considerations of distributive fairness play an important role. To the extent that the decisionmaker is illicitly motivated, he treats as a desirable consequence one to which the lawfully motivated decisionmaker would be indifferent or which he would view as undesirable” (BREST, Paul. Palmer v. Thompson: An Approach to the Problem of Unconstitutional Legislative Motive. The Supreme Court Review, v. 1971, p. 95-146, p. 116).

[7] VALENTE, Manoel Adam Lacayo. Aplicabilidade da teoria do desvio de poder no controle da constitucionalidade de atos legislativos. Revista de Informação Legislativa, a. 46, n. 182, p. 177-210, 2009, p. 188.

[8] ELY, John Hart. Legislative and Administrative Motivation in Constitutional Law. The Yale Law Journal, v. 79, n. 7, p. 1205-1341, 1970, p. 1280.

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Licença-maternidade conta como tempo de serviço em estágio probatório

O período de licença-maternidade de servidoras públicas em estágio probatório deve ser computado como tempo de efetivo exercício para fins de promoção funcional e estabilidade, conforme precedente vinculante fixado pelo Supremo Tribunal Federal na Ação Direta de Inconstitucionalidade 5.220.

Com essa tese, o 15º Juizado Especial da Fazenda Pública da Região Metropolitana de Curitiba determinou que o estado do Paraná pague as diferenças remuneratórias devidas a uma policial militar, além de retificar sua ficha funcional para incluí-la na promoção com data retroativa.

Segundo os autos, a agente ingressou na corporação em maio de 2019 e iniciou seu estágio probatório em agosto de 2022. Ela engravidou naquele mesmo ano e teve o estágio suspenso devido à gestação e à licença-maternidade.

Ao retornar, a policial constatou que o seu afastamento não foi computado para fins de promoção e antiguidade funcional, o que resultou na postergação de sua promoção para dezembro de 2024, enquanto seus pares foram promovidos na data correta, em 10 de agosto de 2023.

O pedido administrativo para o cômputo do período foi negado pela corporação. O estado do Paraná alegou no processo que o período de afastamento por licença-maternidade não poderia ser computado porque a ausência dela, nesse período, inviabilizaria a análise integral de conduta, aptidão e vocação profissional exigidas para a carreira militar. Uma lei estadual e uma diretriz da PM do Paraná determinam a suspensão do estágio nesses casos.

O estado sustentou ainda que não houve prejuízo remuneratório, mas apenas o adiamento do marco temporal da promoção, que dependeria do término válido do estágio probatório.

Proteção à maternidade

Ao analisar o caso, a juíza leiga Rafaela Pedroso afirmou que a questão jurídica já estava solucionada à luz do precedente firmado pelo STF na ADI 5.220. O tribunal reconheceu, na ocasião, que o período de licença-maternidade deve ser computado como tempo de efetivo exercício para fins de estágio probatório de servidoras públicas.

A julgadora explicou que a norma interna do estado, ao suspender o estágio e postergar a promoção, contrariou a orientação do Supremo e utilizou norma infralegal para restringir um direito constitucionalmente assegurado. A decisão destacou que a suspensão do estágio probatório por meio de simples diretriz representa um ataque à hierarquia das normas e uma ofensa à legalidade administrativa.

A sentença citou a ementa do precedente do STF, proferido em 2021, ressaltando o entendimento de que a estabilidade deve ser interpretada em consonância com os direitos fundamentais.

“O disposto no art. 41 da Constituição da República, pelo qual se estabelece que a obtenção da estabilidade no serviço público ocorre após três anos de efetivo exercício, deve ser interpretado em consonância com os princípios constitucionais da igualdade de gênero, proteção à maternidade, dignidade da mulher e planejamento familiar”, afirmou a julgadora.

Dessa forma, a juíza invalidou a postergação da promoção e mandou retificar a ficha funcional da autora da ação, incluindo-a na promoção ocorrida em agosto de 2023.

A autora foi representada na ação pelo advogado Alisson Silveira da Luz.

Clique aqui para ler a sentença
Processo 0001243-32.2025.8.16.0179 

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Soberania de dados só virá com infraestrutura tecnológica no Brasil

A tão necessária soberania de dados em um mundo afetado por novas tecnologias e inteligência artificial só se tornará possível quando o Brasil tiver a devida infraestrutura tecnológica. É nisso que governo e iniciativa privada devem investir.

O diagnóstico é de especialistas que trataram do tema no XXVIII Congresso Internacional de Direito Constitucional, organizado pelo IDP em Brasília, de 21 a 23 de outubro.

A soberania de dados se tornou crucial para o país porque é a forma de exercer autonomia e segurança na era digital. Sem isso, o Brasil segue vulnerável a riscos geopolíticos e econômicos externos.

Essa posição foi ressaltada na fala do deputado federal Aguinaldo Ribeiro (PP-PB), relator do Projeto de Lei 2.338/2023 na Câmara, que estabelece um marco regulatório para a inteligência artificial.

“A gente está trabalhando nesse texto para se conectar a uma questão que temos falando, que é a soberania nacional. Hoje, não dá para ter soberania sem que tenhamos uma infraestrutura tecnológica. Não estou dizendo que o governo tem que fazer. Tem que ser feita em parceria com empresas brasileiras”, opinou.

Para ele, o desafio do projeto de lei é exatamente criar um marco regulatório que estabeleça diretrizes para o tema e confira segurança à população, mas permita o desenvolvimento de um ambiente de inovação tecnológica.

“Se no passado fomos capazes de produzir campeões nacionais para produzir proteína animal e ser líderes nos Estados Unidos, por que não podemos fazer a mesma coisa em tecnológica, com tantos talentos e condições que esse país tem?”, indagou.

Soberania de dados

Relator do PL 2.338/2023 no Senado, Eduardo Gomes (PL-TO) destacou que mais da metade dos dados dos brasileiros são processados fora do país, o que nos torna vulneráveis a interrupções, ataques cibernéticos, instabilidades e decisões tomada sem a nossa participação.

“O desenvolvimento de uma infraestrutura nacional de dados pelas empresas públicas em parceria com o setor privado é fundamental. E o aprimoramento do marco regulatório, também”, disse o parlamentar.

O senador apontou que uma regulamentação soberana das novas tecnologias possibilita a aplicação de princípios e garantias constitucionais nesse ambiente. “Ter autonomia na gestão e tratamento dos dados dos brasileiros é oportunidade para aplicar a lei, prevenindo e combatendo atos iíicitos.”

Inspiração caseira

Diretor de relações institucionais e regulação do Grupo Globo, o advogado Marcelo Bechara sugeriu inspiração em duas indústrias extraordinárias desenvolvidas pelo Brasil: da agropecuária e da aviação civil.

Elas têm por trás do sucesso institutos de pesquisa: a Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa), o Instituto Tecnológico de Aeronáutica (ITA), respectivamente. O avanço tecnológico rumo à soberania de dados depende de algo similar nesse campo.

“Se não houver um centro de desenvolvimento para pesquisas, não haverá inovação tecnológica. Já provamos que somos capazes. É preciso que a lei dialogue com a construção e desenvolvimento nesse sentido”, defendeu.

Renata Mielli, coordenadora do comitê gestor da internet no Brasil, afirmou que, no ambiente digital, o Brasil tem uma dependência externa de praticamente toda a cadeia produtiva, algo que não pode ser superado por canetadas do dia para a noite.

Ela citou uma iniciativa recente e importante: a Nova Indústria Brasil, programa do governo que tem como um dos eixos infraestruturas públicas digitais.

Mielli acredita que o estado pode ser ponta de lança nesse desenvolvimento de soberania digital, “seja comprando de forma consciente aplicações e tecnológicas desenvolvidas no Brasil, seja promovendo inclusão digital e gerando demandas para acesso a aplicações que vão reverter em termos de serviços, direitos e novas tecnologias para a população”.

“Estamos conseguindo, no âmbito nacional, iniciar processos que podem trazer, em curto, médio e longo prazo, autonomias importantes nessa cadeia produtiva”, disse.

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TJ-MG lança novo formato de Enciclopédia de Precedentes

Tribunal de Justiça de Minas Gerais lançou, nesta semana, a Enciclopédia de Precedentes em formato PDF. O documento já está disponível para consulta e download no portal do tribunal.

Desenvolvida pela 1ª vice-presidência, por meio do Núcleo de Gerenciamento de Precedentes e Ações Coletivas (Nugepnac), a publicação reúne precedentes qualificados, formados ou em formação, do Judiciário mineiro e dos tribunais superiores.

Atualizada semanalmente, a Enciclopédia contempla Incidentes de Resolução de Demandas Repetitivas (IRDR), Incidentes de Assunção de Competência (IAC), grupos de representativos, recursos especiais repetitivos, recursos extraordinários com repercussão geral, além de enunciados da Súmula da Jurisprudência Dominante do TJ-MG, do Superior Tribunal de Justiça e do Supremo Tribunal Federal, além de Súmulas Vinculantes do STF.

O sumário apresenta a relação dos temas por ramo do Direito, organizados conforme a hierarquia dos tribunais.

A obra conta ainda com links externos que permitem a consulta direta aos sites de origem dos precedentes, proporcionando acesso prático aos acórdãos de admissão e de mérito. Dessa forma, o usuário pode examinar não apenas a tese firmada, mas também a ratio decidendi, o que assegura a correta aplicação do precedente ao caso concreto.

O 1º vice-presidente do TJ-MG, desembargador Marcos Lincoln dos Santos, ressaltou a importância do instrumento para a consolidação da cultura dos precedentes no âmbito do tribunal.

“A Enciclopédia de Precedentes é uma ferramenta valiosa para magistrados, servidores, advogados e estudiosos do Direito. Ao reunir e sistematizar, em um único documento, os precedentes qualificados do TJ-MG e dos Tribunais Superiores, promovemos o acesso facilitado à informação e contribuímos para a uniformização da jurisprudência, a segurança jurídica e a eficiência na prestação jurisdicional”, disse.

O gestor do Nugepnac, desembargador Habib Felippe Jabour, enfatiza que “o uso adequado dos precedentes qualificados tem se provado instrumento útil para pacificação de conflitos repetitivos, os quais ao serem tratados de forma individual, retardam bastante a prestação da jurisdição, e frustra a expectativa de duração razoável do processo”.

Enciclopédia potencializada

O juiz Rodrigo Martins de Faria, especialista em Inovação e Tecnologia, destacou a organização do material e explicou como ele pode ser potencializado quando associado ao uso de ferramentas de Inteligência Artificial (IA).

“A Enciclopédia de Precedentes, criada pelo Nugepnac, permite o acesso aos dados de forma estruturada. Sem esse recurso, a pesquisa de precedentes espalhados entre os diversos tribunais seria muito mais trabalhosa. Ao compilar essas informações em um único documento, torna-se possível carregar a enciclopédia como anexo em ferramentas de inteligência artificial generativa, como Gemini ou Notebook LM, e a partir daí pesquisar, de forma rápida, qualquer tema relacionado aos precedentes qualificados.”

Para o juiz Thiago Campos, a Enciclopédia de Precedentes facilita significativamente a busca por precedentes qualificados e a aplicação coerente do Direito.

“Conseguimos identificar rapidamente os precedentes relevantes e aplicá-los com segurança, garantindo decisões mais consistentes e alinhadas à jurisprudência consolidada. No fim, o grande ganho é duplo: de um lado, mais eficiência na elaboração das decisões; de outro, maior uniformidade e previsibilidade na prestação jurisdicional.” Com informações da assessoria de imprensa do TJ-MG.

Clique aqui para acessar a Enciclopédia de Precedentes

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O Tema 1.389, a Passeata dos Cem Mil e a última trincheira do Direito do Trabalho

No dia 6 de outubro foi realizada audiência pública no âmbito do Tema 1.389 de repercussão geral, que trata da competência e do ônus da prova em processos que discutem a existência de fraude em contratos civis de prestação de serviços e a licitude da contratação de pessoas jurídicas para prestação de trabalho subordinado (pejotização). A audiência representou o início do momento mais decisivo na história do Direito do Trabalho no Brasil, um momento constitutivo que poderá selar a derrocada da construção civilizatória pós-1988 ou marcar o início de uma resistência histórica pela preservação da dignidade no trabalho.

A suspensão nacional de todos os processos relacionados ao tema, determinada em abril deste ano, já havia sinalizado a gravidade do momento. Milhares de trabalhadores tiveram seu acesso à justiça suspenso.

O que está verdadeiramente em disputa transcende questões processuais sobre competência jurisdicional ou ônus da prova. O STF prepara-se para redefinir o próprio sentido do artigo 7º da Constituição. A tentativa de estabelecer presunções de licitude para determinadas formas contratuais, independentemente de sua realidade fática, representa a negação do princípio da primazia da realidade, fundamento do Direito do Trabalho desde sua criação.

Estamos diante de algo que pode significar o próprio fim do Direito do Trabalho. Trata-se de um imperativo histórico: sem resistência, sem mobilização social, não há horizonte para os direitos sociais. Se o artigo 7º da Constituição não for considerado limite intransponível na exploração do trabalho humano, não restará dignidade aos trabalhadores.

As palavras de Vladimir Palmeira, no discurso que encerrou a concentração antes da Passeata dos Cem Mil, são surpreendentemente atuais [1]:

“Mas, minha gente, não pense que aplaudir e gritar ‘abaixo a ditadura’ é uma vitória. Hoje a repressão não veio porque não pode. E a nossa vitória é esta: ter saído na raça porque achava que tinha que sair. Mas a gente vai voltar pra casa, o estudante pra aula, operário pra fábrica, repórter pro jornal, artistas pro teatro. E é em casa, no trabalho, que a gente vai continuar a luta”.

Ao final de 1968, a resistência social gerou uma repressão ainda mais forte, mas o sentimento democrático perdurou e corroeu, ao fim, os pilares da ditadura.

E não há outra opção ao Direito do Trabalho: sem mobilização, sem resistência, o futuro se pavimenta rumo à supressão dos direitos dos trabalhadores, ao retrocesso, ao sepultamento do artigo 7º da Constituição.

Momento de inflexão

É fundamental demonstrar que a pejotização não é fenômeno natural da economia moderna, mas resultado de pressões sistemáticas sobre trabalhadores vulnerabilizados. Que a suposta “liberdade de escolha” entre ser empregado ou “empreendedor” é, para a imensa maioria, uma imposição disfarçada de oportunidade. Que o custo social da precarização será pago por toda a sociedade, não apenas pelos trabalhadores diretamente afetados.

A sociedade civil organizada precisa compreender que o resultado dessa audiência reverberará por gerações. Se o STF consolidar sua jurisprudência no sentido de esvaziar a competência da Justiça do Trabalho e flexibilizar ao extremo as proteções trabalhistas, estaremos diante da extinção de um modelo civilizatório construído ao longo de séculos. Por outro lado, uma resistência contundente pode marcar o início de uma retomada da agenda social no país. Como alertava Vladimir Palmeira naquele junho de 1968, a vitória não está em um ato, mas na continuidade da luta.

A história nos ensina que momentos de inflexão raramente anunciam-se com clareza. É apenas retrospectivamente que identificamos os pontos de não retorno. O julgamento do Tema 1.389 pode entrar para a história como o momento em que o Brasil abandonou definitivamente o projeto de proteção social inscrito na Constituição de 1988. Ou pode marcar o despertar de uma consciência sobre o próprio fim do direito do trabalho: Resistir!


[1] VENTURA, Zuenir. 1968: O ano que não terminou. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1988, p. 161.

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Democracias em mira: o ensaio global das guerras invisíveis

Nas últimas semanas, céus europeus tornaram-se palco de uma inquietante coreografia. Drones não identificados cruzaram fronteiras da Dinamarca, sobrevoaram instalações estratégicas na Alemanha e despertaram uma sensação que o continente julgava ter superado: a vulnerabilidade. [1]  A resposta veio rápida; planos de defesa aérea reforçados, novas legislações em curso e discursos inflamados sobre soberania tecnológica e segurança nacional.

Em Moscou, o chanceler russo negou qualquer envolvimento, mas a negação veio acompanhada de uma ameaça: o uso de “armas de destruição em massa” caso a Otan ousasse reagir. O tom, mais do que retórico, revelou uma velha tática em versão 4.0, uma guerra híbrida, onde a força militar se mistura à desinformação, à intimidação psicológica e ao teste calculado das instituições democráticas. [2].

Esses episódios não pertencem apenas à geopolítica europeia. São sinais de um tempo em que a tecnologia redefine as fronteiras entre guerra e paz, verdade e manipulação, segurança e vigilância.

Este artigo parte dessa constatação para discutir:
a) os riscos políticos e eleitorais associados ao uso militar e informacional de drones;
b) as estratégias de preparação institucional de países como o Brasil; e
c) as perspectivas regulatórias para o uso ético e seguro de sistemas de IA em contextos de conflito e poder.

Do risco ao impacto político-eleitoral

Por que essas incursões preocupam as democracias? Três vetores são centrais:

a) Erosão da confiança institucional
Em ambientes em que populações percebem que o Estado não consegue proteger infraestruturas críticas, instala-se um sentimento difuso de insegurança. Além disso, a guerra híbrida contemporânea não se limita ao campo físico. Ela se desloca para o domínio informacional, onde a convergência entre IA generativa e coleta massiva de dados pessoais inaugura uma nova etapa das chamadas “ameaças cognitivas”.

Segundo Pauwels (2024), essas tecnologias “democratizam” a desinformação, permitindo a criação de conteúdos falsos verossímeis dirigidos a perfis psicológicos e socioculturais específicos. No contexto eleitoral, o risco é direto: a micro-manipulação cognitiva com algoritmos que ajustam mensagens e emoções em tempo real para influenciar preferências políticas sem que o cidadão perceba.

O resultado é a erosão silenciosa da confiança institucional e da própria ideia de verdade pública. O relatório da Carnegie Endowment for International Peace (Dempsey, 2025) aponta como a Rússia vem sofisticando suas táticas de  interferência eleitoral, usando IA generativa, perfis automatizados e deepfakes para moldar percepções e corroer a confiança pública.

O estudo adverte que esse modelo russo de guerra híbrida informacional tende a se expandir globalmente nos ciclos eleitorais de 2025 e 2026, à medida que as tecnologias se tornam mais acessíveis e difíceis de rastrear, o que reforça a urgência de mecanismos de transparência, rastreabilidade e regulação da IA voltados à integridade democrática.

b) Intimidação simbólica e efeito psicológico

Os drones que cruzam fronteiras sem disparar um único tiro ainda assim produzem impacto. Sua mera presença sobre territórios nacionais comunica uma mensagem silenciosa, porém inequívoca: ninguém está fora do alcance. É a política da vigilância aérea, uma forma de intimidação simbólica que atua menos pelo dano material e mais pela sensação de exposição constante.

Em tempos eleitorais, esse tipo de ameaça tem efeitos psicológicos profundos. O medo de interferências externas ou manipulações invisíveis age como desestímulo ao engajamento político, ao semear a suspeita de que os resultados já não refletem a vontade popular, mas a engenharia algorítmica de algum poder oculto.

Nesse cenário, a ascensão da IA generativa marca uma virada qualitativa. Diferentemente dos ciclos anteriores de manipulação digital, dependentes de exércitos humanos de bots e fábricas de conteúdo, os novos modelos de IA são autônomos, adaptativos e escaláveis. Essas ferramentas inauguram o que se pode chamar de “sugestionamento híbrido”, uma nova etapa das guerras cognitivas.

c) Modelo de guerra tropelada para operações de influência local

As tecnologias de guerra raramente permanecem restritas aos campos de batalha onde foram concebidas. O que começa como experimento geopolítico tende, cedo ou tarde, a ser importado, adaptado e reconfigurado para contextos internos. É o ciclo clássico da inovação bélica: da fronteira ao cotidiano.

O mesmo ocorre com os drones e os sistemas de IA embarcada. Ferramentas criadas para fins de defesa ou vigilância estatal podem facilmente ser reconvertidas em mecanismos de controle político e intimidação social. Imagine um cenário em que um governo autoritário ou mesmo grupos privados com acesso a tecnologia avançada utilizam drones autônomos para vigiar opositores, monitorar manifestações ou sabotar eventos públicos.

Essa lógica de guerra, em que instrumentos sofisticados de coerção são aplicados de forma improvisada e fora de controle civil, amplia o risco de contaminação das esferas locais por estratégias originalmente militares. Em países cujas instituições eleitorais ainda consolidam sua blindagem digital, essa vulnerabilidade é particularmente sensível.

A guerra híbrida contemporânea não exige invasão territorial. A fronteira, nesse caso, não é o espaço aéreo, é a integridade das instituições democráticas e da mente coletiva que as sustenta.

O Brasil e a necessidade de vigilância normativa

Os episódios recentes na Europa funcionam como alertas antecipados. O Brasil integra uma rede global de riscos e inovações em segurança digital, cibernética e autônoma. A questão central, portanto, não é se as ameaças chegarão, mas quando e de que forma se manifestarão. Alguns fatores tornam a atenção normativa especialmente urgente.

a) Importação e disseminação de tecnologia militar/autônoma

O país pode receber drones e IA de uso dual por meio de cooperação internacional ou canais comerciais. A corrida global pela automação bélica hoje envolve Estados, empresas e até grupos civis.

Segundo o War Room,  U.S. Army War College (2025), o custo da inteligência de alvo caiu para US$ 25, demonstrando a “democratização da letalidade” e o potencial de uso indevido em contextos urbanos, como o do Rio de Janeiro, onde o uso indevido dessas ferramentas por grupos armados é plausível.

b) Contágio de playbooks autoritários

A guerra híbrida europeia funciona como laboratório simbólico para regimes e atores locais. Táticas de desinformação, vigilância política e manipulação psicológica são facilmente adaptadas a contextos internos, sob o pretexto de “segurança nacional”. O perigo é que o discurso de proteção se converta em instrumento de controle.

c) Eleições de 2025 e risco sistêmico

O ano de 2025 trará eleições decisivas em várias partes do mundo, inclusive no Brasil, onde a disputa presidencial ocorre em um ambiente ainda marcado pela polarização e pela desconfiança institucional. Em contextos assim, crises externas e narrativas de ameaça global tendem a repercutir internamente, legitimando ativismos institucionais e discursos de exceção em nome da “segurança nacional”, capazes de enfraquecer a vigilância democrática.

Perspectivas: regulação, dissuasão e resiliência democrática

O desafio brasileiro é equilibrar inovação e segurança, evitando que a mesma tecnologia que impulsiona o progresso seja instrumentalizada para corroer as bases da democracia.

Propõem-se três linhas estratégicas complementares nesse sentido:

a) Regulação tecnológica e restrição normativa

O Brasil precisa antecipar marcos legais específicos para o uso de drones e sistemas autônomos dotados de IA, sobretudo quando houver potencial ofensivo ou de vigilância política.

Deve-se proibir o emprego de sistemas letais autônomos sem supervisão humana significativa, bem como estabelecer padrões de responsabilidade civil e penal para fabricantes, operadores e autoridades que utilizem IA em contextos militares ou de segurança pública.

Essas normas devem dialogar com o princípio da precaução tecnológica, assegurando que qualquer uso de IA em contextos sensíveis seja acompanhado de mecanismos auditáveis de rastreabilidade, explicabilidade e controle humano.

b) Fortalecimento institucional e segurança eleitoral

A resiliência democrática depende da proteção integral das instituições eleitorais, não apenas contra ataques cibernéticos, mas também contra operações híbridas.

É necessário que órgãos como o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) e o Gabinete de Segurança Institucional (GSI) adotem uma abordagem integrada de defesa, combinando simulações de ataque, auditorias técnicas, cooperação com agências de defesa e protocolos emergenciais de resposta coordenada.

Conclusão

Os episódios recentes na Europa e suas reverberações simbólicas revelam que a guerra contemporânea se infiltra pelas redes, pelos dados, pelos céus e, sobretudo, pelas percepções humanas. Ademais, a erosão da confiança institucional, a intimidação psicológica e a adaptação doméstica de tecnologias militares compõem um mosaico de ameaças que ultrapassa fronteiras e desafia categorias jurídicas tradicionais. O inimigo, agora, é difuso: parte máquina, parte narrativa, parte medo.

Nesse sentido, as democracias não são derrubadas por golpes repentinos, mas desgastadas pela fadiga da vigilância e pela saturação informacional. Tendo como risco a naturalização do controle, quando sociedades começam a aceitar a presença constante de olhos invisíveis e discursos fabricados como o preço inevitável da segurança.

Nesse contexto, o desafio brasileiro e de todas as democracias que ainda lutam por estabilidade é compreender que a neutralidade tecnológica é uma ilusão. Sistemas de IA, drones autônomos e ecossistemas de dados não são apenas ferramentas: são atores políticos, capazes de moldar comportamentos, decisões e crenças coletivas.

Proteger a democracia, portanto, exige mais do que legislar sobre o uso de armas inteligentes. Exige reconhecer que a informação tornou-se o novo território de disputa, e que a linha entre defesa e dominação é tênue.

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Notas

Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovações. Estratégia Brasileira de Inteligência Artificial – E-IA Brasil. Brasília, DF, 2021. Disponível aqui.

DEMPSEY, Judy. Russian Interference: Coming Soon to an Election Near You. Brussels: Carnegie Endowment for International Peace, 6 fev. 2025. Disponível aqui.

PAUWELS, Eleonore. Preparing for Next-Generation Information Warfare with Generative AI. Waterloo, Ontario: Centre for International Governance Innovation (CIGI), nov. 2024. Disponível aqui.

TRIBUNAL SUPERIOR ELEITORAL (Brasil). Entenda como funciona o Ciedde e como denunciar via sistema. Brasília, DF, 7 maio 2024. Disponível aqui.

UNITED NATIONS. Group of Governmental Experts on Lethal Autonomous Weapons Systems (LAWS): Report 2024. Geneva: United Nations Institute for Disarmament Research (UNIDIR), 2024. Disponível aqui.

WAR ROOM – U.S. Army War College. Artificial Intelligence’s Growing Role in Modern Warfare. Carlisle, Pennsylvania: U.S. Army War College, ago. 2025. Disponível aqui.

WASSENAAR ARRANGEMENT. The Wassenaar Arrangement on Export Controls for Conventional Arms and Dual-Use Goods and Technologies. Viena: Wassenaar Secretariat, 1996. Disponível aqui.

[1] REUTERS. Germany to take steps to defend itself against ‘high’ threat from drones. 27 set. 2025. Disponível aqui.

[2] G1. Na ONU, chanceler russo nega ataque com drones e diz que qualquer agressão da OTAN à Rússia terá resposta. 27 set. 2025. Disponível aqui.

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Prescrição intercorrente da Lei 9.873/1999 só vale para órgãos federais

A regra da prescrição intercorrente prevista na Lei 9.873/1999 só vale para os procedimentos sancionatórios da administração pública federal. Nas esferas estadual e municipal, na ausência de lei sobre o tema, tal prazo fica suspenso durante o processo administrativo.

Com essa conclusão, a 1ª Turma do Superior Tribunal de Justiça negou provimento ao recurso especial ajuizado por uma concessionária de rodovias que foi multada pela Agência de Transporte do Estado de São Paulo (Artesp).

A punição decorreu de procedimento instaurado em 2015 e encerrado em 2019. Segundo a concessionária, o período era suficiente para a prescrição intercorrente — a perda do direito de exercer a pretensão punitiva pela demora da administração pública.

O artigo 1º, parágrafo 1º, da Lei 9.873/1999 prevê que a prescrição intercorrente no processo administrativo ocorre quando ele é paralisado por mais de três anos.

O Tribunal de Justiça de São Paulo, no entanto, afastou a aplicação dessa norma. Em vez disso, usou o artigo 4º do Decreto 20.910/1932, que suspende o prazo prescricional ao longo do período do processo administrativo sancionatório.

Prescrição intercorrente estadual

Para a 1ª Turma do STJ, essa conclusão está correta. Relator do recurso, o ministro Paulo Sérgio Domingues citou jurisprudência no sentido de que as previsões da Lei 9.873/1999, de fato, só se aplicam no âmbito administrativo federal.

Já para os casos de processo sancionatório estadual, distrital ou municipal, na ausência de leis locais específicas que tratem do tema, deve incidir a previsão do Decreto 20.910/1932.

“A regra prevista no artigo 1°, parágrafo 1°, da Lei 9.873/1999 somente é aplicável aos procedimentos sancionatórios da administração pública federal, não podendo ser invocada para ser reconhecida a prescrição intercorrente no âmbito dos órgãos estaduais e municipais”, resumiu Domingues.

Clique aqui para ler o acórdão
REsp 1.900.837

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