O mercado de apostas e o exílio dos consumidores negativados

Em final de julho de 2023, foi editada a Medida Provisória nº 1.182, a qual alterou a Lei nº13.756/12, que trata do tema da “Aposta de Quota Fixa”. Consoante o artigo 29 da referida norma, foi criada tal modalidade lotérica, sob a forma de serviço público, e que consiste em um sistema de apostas relativas a eventos reais de temática esportiva, em que é definido, no momento de efetivação da aposta, quanto o apostador pode ganhar em caso de acerto do prognóstico. Ou seja, o sujeito, realizando o seu palpite, poderia saber de antemão quanto receberia se o mesmo se concretizasse. E tal opinião é variável conforme forem sendo oferecidas opções pela empresa de apostas, o que pode compreender desde a vitória de um time sobre outro (se considerarmos o caso do futebol, por exemplo), estendendo-se a situações que envolvam cartões amarelos, erro ou acertos de uma cobrança de pênalti, entre outras situações.

Concedida, permitida ou autorizada, em caráter oneroso, pelo Ministério da Fazenda, a loteria de quota fixa deve ser explorada, exclusivamente, em ambiente concorrencial, sem limite do número de outorgas, com possibilidade de comercialização em quaisquer canais de distribuição comercial, físicos e em meios virtuais, Caberia, conforme a lei, ao Ministério da Fazenda regulamentar no prazo de até dois anos, prorrogável por até igual período, o funcionamento do referido serviço.

Uma peculiaridade da norma era o fato as empresas de apostas, que basicamente operam via internet, através de “apps”, não poderem ter sede no Brasil. Desde debates morais, sobre a eventual perdição do indivíduo ao vício do jogo, com prejuízo a sua família, até questões que remetem a aumento de criminalidade, lavagem de dinheiro, entre outros, desde o Decreto-Lei 9.215, de 30 de abril de 1946, assinado pelo presidente Eurico Gaspar Dutra, restara proibido o jogo de azar no Brasil. Ou melhor, proibido em tese, e de forma seletiva. O Estado, que acabava agindo como um defensor de valores da família tradicional daquele período, ao proibir o jogo de apostas, é o mesmo que se reservou a si a exclusividade do jogo no país.

O Estado, nas suas três esferas de atuação, é um exímio explorador de jogos de azar. A Caixa Econômica Federal, maior banco público brasileiro, explora vários concursos de apostas, e faz isso ao longo de várias décadas. Quando ofertas suas várias modalidades de apostas em jogos de azar, o Estado brasileiro não o faz com vistas ao controle do jogo patológico por exemplo. À pessoa que contrata a aposta, não é requerido um atestado clínico indicando a falta de controle e pulsão do jogo.

Ao se reservar o jogo de forma exclusiva, o Estado garantiu a si uma grande fonte de renda e lucro. Com a nº 13.756/12, houve um grande passo em legitimar algo que já era real. Os sites de apostas que operaram no Brasil, estimados em mais de quatrocentos, sequer detêm sede aqui. A menos que seja criado um controle de conteúdo de internet, nos moldes de um Estado ditatorial, é impossível impedir as pessoas de apostarem em sites estrangeiros, inclusive sobre jogos que aqui ainda são proibidos, como cassino.

O reconhecimento e legitimação da aposta em quota fixa é uma necessidade de atrair sedes de operações de empresas ao Brasil, para aqui recolherem tributos, e fomentar a economia. Hoje, tais fornecedores têm seus nomes estampados na grande parte das camisas dos times de futebol brasileiros. Existe já uma dependência econômica desses times com o patrocínio que advém dessas casas de apostas, que têm seus nomes em placas dentro dos estádios, mantendo programas do youtube, com apresentadores de renome, comentando jogos entre outras coisas. Contudo, nesse sentido, estas entidades operavam no Brasil com o registro de empresas de marketing, e não como casas de apostas. Por evidente, estas somente aportarão ao Brasil, sujeitando-se à regulação do Estado, e pagando impostos, se o país for um ambiente interessante para negócios, de maneira que seja mais lucrativo trafegar com regulação, do que somente operar via internet de qualquer lugar do mundo.

Com a Medida Provisória nº 1.182/23, o artigo 29 supracitado, recebe um parágrafo 4º, dispondo que as empresas interessadas em operar no Brasil, com apostas de quota fixa esportivas, deverão ser devidamente estabelecidas no território nacional. Nesse sentido, aquelas que quiserem promover publicidade internamente, deverão aqui ter sede ou filial, sob pena de serem sancionadas, consoante dispõe o artigo 35-A, B e D da referida MP.

Por lógico, isso não vai impedir aquelas empresas sediadas em outros países, que aqui não pretenderem abrir filial, de continuar operando no espaço sem fronteiras da internet. E caberá ao apostador averiguar se determinado fornecedor é ou não confiável, já que é remota a possibilidade de reaver prêmios não pagos em determinados países, isso sem contar o custo de um conflito judicial fora do Brasil. Por outro lado, não é porque funcionam no Brasil que tais jogos estão imunes à manipulação. Como novel legislação sobre o tema, surge, no entanto, uma perspectiva de fiscalização sobre o setor. Hoje o Estado brasileiro abre o mercado de jogos e apostas, uma parte dele ao menos, à iniciativa privada, porque entende que há um anseio da população sobre esse tema, e porque concluiu que pode ganhar mais cobrando tributos do que ele próprio Estado fomentando tal atividade.

É de se anotar que jogos de apostas clandestinos sempre operaram com força no Brasil, e o mais famoso deles sempre fluiu com baixíssima persecução penal e fiscal, ocorrendo à vista de todos, com conivência do Estado, e que é o jogo do bicho. Tal atividade, além de ilícita criminalmente, normalmente vem associada à sonegação fiscal, associação criminosa, tráfico de drogas, e outros.

A MP 1.182/23, por outro lado, prevê mecanismos de controle que deveriam ser colocados em prática para minimizar situações de manipulações de jogos, fazendo do Estado um regulador do setor. Outro ponto importante advindo com a Medida Provisória, é que as empresas de apostas deverão promover ações informativas e preventivas de conscientização de apostadores e de prevenção do transtorno do jogo patológico.

O apostador deve ser considerado como consumidor, sendo seu status bastante condizente com a tipicidade do artigo 2º, caput do CDC: “Consumidor é toda pessoa física ou jurídica que adquire ou utiliza produto ou serviço como destinatário final”. O mesmo está adquirindo e pagando por um serviço de resultado aleatório, sendo um serviço de lazer.

Da redação advinda da MP nº1.182/23, o artigo 35-E apresenta proibições de participação direta ou indireta, na condição de apostador, de certos indivíduos, isto é, sujeitos que não podem atuar como consumidores do serviço. No que tange à proibição de agentes públicos com atribuições diretamente relacionadas à regulação, ao controle e à fiscalização da atividade de apostas esportivas, tal preceito contempla um mínimo de moralidade na perspectiva de seriedade do sistema regulatório. Da mesma forma, correta é a vedação de participação em apostas de pessoa que tenha ou possa ter acesso aos sistemas informatizados de loteria de apostas de quota fixa, entre outros.

Contudo, desperta atenção o inciso VI do referido artigo, ao proibir a participação, como apostador, de pessoa inscrita nos cadastros nacionais de proteção ao crédito. No caso, observa-se uma grande dificuldade de funcionamento imposta ao sistema, na medida em que, mesmo recebendo a aposta à vista, o fornecedor de jogos, antes de concluir o contrato, deveria consultar sistemas como SPC e Serasa acerca da vida econômica do apostador, observando-se se o mesmo detém algum registro negativo de inadimplência. Entendemos que tal medida tornará o serviço mais caro, e menos fluído. A menos que se possa construir um algoritmo que resolva tal equação de forma célere, tal medida inibe o próprio contrato via internet, smartphone etc, diante da análise prévia exigida.

E do que se observa da legislação de regência, a inobservância de tal regra acarreta punição administrativa à casa de jogos. Uma dúvida que paira sobre o caso, é se o apostador negativado, que perdeu a aposta, teria o direito de reaver o que apostou, tal como ocorre com menores, à luz do artigo 814 do Código Civil: “As dívidas de jogo ou de aposta não obrigam a pagamento; mas não se pode recobrar a quantia, que voluntariamente se pagou, salvo se foi ganha por dolo, ou se o perdente é menor ou interdito”. No caso, o mesmo estaria sendo equiparado a uma figura de relativamente ou absolutamente incapaz, pelo fato de realizar uma aposta estando cadastrado negativamente.

Outra situação que gera dificuldades de aplicação a essa regra é a falta de critério sobre a negativação. O fato de algum consumidor estar cadastrado negativamente pode advir de uma cobrança ilegal, da qual ele sequer tem conhecimento, ou simplesmente de um débito que se nega a pagar, sem contar que tal cifra pode ter uma representação econômica tão baixa que não sirva para indicar potencial cenário de prejuízo ao potencial apostador.

Outra questão que se pode levantar é o fato de o consumidor negativado conseguir, inclusive, obter contratos de empréstimos dos mais variados tipos. Se altas taxas de juros e encargos demasiados podem ser contratados pelos consumidores negativados, por que ficariam proibidas apostas esportivas? Seria mais fácil ao sujeito endividar-se com apostas ou com tomada de crédito? O consumidor não cadastrado estaria imune ao endividamento via jogos de apostas?

Proteger-se consumidores de uma forma ampla contra excessos de consumismo, visando a sua preservação econômica deve ser uma política de Estado. No entanto, padece de melhores explicações a restrição advinda com a Medida Provisória dos jogos acima descrita, sob pena de se concluir que foi elaborada sem lastro em dados. E quando isso ocorrer, o referido impedimento aos negativados, estar-se-á violando situações normativas como o direito básico do consumidor à igualdade nas contratações (artigo 6º, inciso II do CDC) e como a proibição de recusa de atendimento às demandas dos consumidores, na exata medida de disponibilidades de estoque do fornecedor (artigo 39, inciso II do CDC).

Em suma, verifica-se, na hipótese, um exílio imposto ao consumidor negativado, afastando-o de uma espécie de “cálice do pecado” das apostas. Com essas resumidas palavras, espera-se fomentar o debate sobre a novidade normativa destacada e os impactos da mesma sobre o mercado de apostas.

Fonte: Conjur

Partido que mantém candidatura feminina inviável pratica fraude

Considerando que as candidaturas femininas lançadas pelos partidos nas eleições proporcionais devem ser efetivas e viáveis no plano jurídico, a insistência em manter candidatas com problemas no deferimento do registro configura fraude à cota de gênero.

Ministro Floriano de Azevedo Marques interpretou que o partido não tinha como não saber dos óbices às candidaturas femininas
Alejandro Zambrana/Secom/TSE

Com esse entendimento, o Tribunal Superior Eleitoral deu parcial provimento ao recurso especial eleitoral para anular todos os votos recebidos pelo Republicanos nas eleições para a Câmara Municipal de Timon (MA) em 2020.

A legenda registrou 26 candidaturas: 19 homens e sete mulheres. Duas candidatas não tinham condições de concorrer, uma porque não apresentou comprovante de escolaridade e outra por ausência de quitação eleitoral relativa à prestação de contas da campanha de 2016.

Ao analisar o caso, o Tribunal Regional Eleitoral do Maranhão afastou a ocorrência de fraude por falta de provas. No entanto, o relator no TSE, ministro Floriano de Azevedo Marques, propôs dar provimento ao recurso por entender que a legenda já sabia das condições dessas duas mulheres.

Apesar de o partido não ter sido intimado a tempo para readequar o Demonstrativo de Regularidade de Atos Partidários (Drap) — o documento pelo qual deve confirmar as candidaturas para determinado cargo —, não havia comprovante de escolaridade de uma, nem quitação eleitoral da outra.

Segundo o ministro Floriano, não se trata de criar uma responsabilidade objetiva aos partidos nas eleições, mas de estabelecer uma mínima exigência para que afiram as condições de elegibilidade das candidatas que registram.

“Considerando que a candidatura lançada deve ser efetiva e viável no plano jurídico, a insistência do partido em manter candidatas com óbices ao deferimento de seus registros, associado à inação delas para defender suas candidaturas, evidencia a fraude”, avaliou ele.

“Se o partido decidiu manter candidaturas juridicamente inviáveis ou sobre as quais pairava razoável dúvida sem combater decisões judiciais ou substitui-las, fê-lo por conta e risco, sob pena de ver reconhecida a fraude à cota de gênero”, acrescentou o magistrado.

Ninguém divergiu, mas essas duas afirmações levaram o ministro Raul Araújo a fazer uma ressalva, para que não sejam tomadas como teses, nem gerem uma presunção da ocorrência de fraude em quaisquer casos futuros. “Isso tem de ser comprovado em cada caso”, pontuou ele.

REspe 0600965-83.2020.6.10.0019

Fonte: Conjur

Ciranda de violações do novo regime recursal da pena de perdimento

Semana passada, no último dia 24 de agosto, foi editada a aguardada Lei nº 14.651, marco inaugural do regime recursal na aplicação e julgamento da pena de perdimento de mercadorias, veículos e moedas.

Na última coluna, ainda antes da publicação desta norma,[1] o colunista Rosaldo Trevisan fez a construção do percurso histórico do rito inerente à “pena de perda” de mercadoria e veículos, constante já na redação original do Decreto-Lei nº 37/1966 (aqui).

Até o momento da publicação da nova lei, a inflição da pena máxima em operações de comércio internacional, o perdimento da mercadoria, era decidido em instância única, sendo o “órgão julgador” o próprio delegado da alfândega que aplicou a pena de perdimento, quando não o chefe da equipe de fiscalização.

Este cenário, referendado inicialmente pelo Supremo Tribunal Federal (ADI nº 1.049-2/DF, de 25/08/1995), prometia chegar a termo com o fim do período de graça da Convenção de Quioto Revisada (CQR/OMA) ao dispor, em seu item 10.5, que “quando um recurso interposto perante as Administrações Aduaneiras seja indeferido, o requerente deverá ter um direito de recurso para uma autoridade independente da administração aduaneira”, disposição que em tese seria suprida pela edição da Lei nº 14.651/2023.

Recorde-se, neste sentido, a obrigatoriedade vinculante dos compromissos internacionais no plano interno (ADI nº 1.480/DF MC, de 4/9/1997), ao que se adiciona uma possível alteração de entendimento da Corte Suprema ao entender pela “(…) necessidade da retirada de obstáculos que configurem supressões ao direito de recorrer (ADI nº 1.976, de 28/3/2007)”,[2] como se observou na oportunidade da edição da Súmula Vinculante nº 21.

A atribuição da instância recursal, no entanto, será do Centro de Julgamento de Penalidades Aduaneiras (Cejul), órgão “(…) formado por auditores-fiscais da Receita Federal do Brasil (RFB), com jurisdição nacional e competência exclusiva para atuar na atividade”,[3] em violação direta à disposição da CQR.

Como desenvolvemos no artigo “O limite recursal, o Carf e as três formas de argumentação” publicado nesta coluna (aqui), a primeira das três ordens de argumentação, no âmbito da Receita Federal, restringe-se a utilizar, como fundamento último de suas decisões “(…) determinadas normas complementares (artigo 100 CTN) consistentes em atos declaratórios e pareceres da PGFN, pareceres e súmulas da AGU, soluções de consultas internas (SCI) e externas (SCE), notas técnicas, pareceres normativos e atos administrativos, tais como instruções normativas, atos declaratórios executivos e interpretativos da RFB. A decisão do auditor, seja ela um auto de infração ou um despacho de não-homologação, tem as suas condições de sobrevivência avaliadas, no âmbito da DRJ e suas Câmaras recursais, por esta primeira camada normativa e, portanto, estritamente dependente da administração aduaneira”.[4]

Portanto, se uma “autoridade independente da Administração aduaneira” é, objetivamente, um órgão que não esteja vinculado aos atos e às normas da aduana, este está longe de ser o caso do Cejul, salvo se facultado ao órgão realizar o controle de legalidade e convencionalidade, livre das amarras infralegais. Ainda assim, o órgão padeceria do vício de origem de seus julgadores, entortada a boca pelo cachimbo.

Chama atenção, ainda, a falta de discussão com o setor privado acerca do conteúdo da nova norma, o que configura nova e efetiva violação, desta vez ao Acordo de Facilitação de Comércio (AFC/OMC). Afinal, quais as “oportunidades [por] um período de tempo adequado para que os comerciantes e outras partes interessadas formul[ar]em comentários sobre propostas de introdução ou alteração de leis de aplicação geral relacionados com a circulação, liberação e despacho aduaneiro de bens” (artigo 2, item 1.1.) foram concedidas? Não há incompatibilidade com o direito interno ou o sistema jurídico brasileiros a consulta pública, pelo contrário, trata-se de medida razoável e, neste caso, particularmente recomendável, como se percebe a partir da leitura da nova norma.

Houvesse sido concedido prazo de manifestação conforme expressamente determinado por norma com força de Lei (AFC/OMC), teriam sido informados os formuladores da proposta, hoje Lei, que a atribuição da decisão em segunda instância ao Cejul deve, por um lado, ser fulminada em controle de convencionalidade e, de outro, que não faz o menor sentido no mundo atual se equiparar a intimação por edital com a intimação pessoal (artigo 27-A § 2° da Lei 14.651/2021).

Quem sabe estas cabeças não coçariam ao ouvir que liberdade demais na destinação das mercadorias pode resultar em arbitrariedades (se é que já não resultam), ainda mais sabedores que estas mercadorias podem ser destinadas logo após a decisão de primeira instância (artigo 27-C § 2°). De que serve a segunda instância, afinal? A indenização será justa? Cobrirá o dano efetivo e o lucro cessante, ou somente o preço das mercadorias?

Trazer para as alfândegas a decisão sobre a destinação das mercadorias (como era de fato feito até a publicação da norma em apreço), pode ser um sinal de que os leilões passarão a ser conduzidos pelo setor privado, tal como ocorre no Poder Judiciário, de forma a conferir maior celeridade e a promover a liberação dos armazéns alfandegados.

A atribuição ao Ministro de Estado da Fazenda para decidir a respeito do rito administrativo de aplicação e das competências de julgamento da pena esbarra no inciso I do artigo 22 da Constituição de 1988, pois as normas processuais são objeto de reserva legal. É desarrazoado se supor que normas gerais de processo, sobretudo voltadas à cominação de penas, sejam relegadas ao alvedrio ministerial. Ainda que fosse este o desejo do legislador, não é o do constituinte originário, o que parece algo a ser meditado pelos formuladores da nova regra.

Ao mesmo tempo, o § 2º do artigo 4º da nova lei determina que os “(…) autos de infração tenham sido formalizados até a data de entrada em vigor desta Lei permanecerá regida pela legislação anterior”, em contrariedade à disposição textual do artigo 14 do Código de Processo Civil. Esquece-se o legislador que, como toda norma processual, ela “(…) será aplicável imediatamente aos processos em curso”, devendo a lei processual atingir o processo no estágio em que ele se encontra.

Este o sentido consolidado, aliás, pelo Superior Tribunal de Justiça no Agravo Regimental no Recurso Especial nº 1.584.433, de 21/10/2016: “(…) a nova lei processual se aplica imediatamente aos processos em curso”. E não poderia ser diferente, pois não se está diante de preservação de ato jurídico perfeito, direito adquirido ou coisa julgada (inciso XXXVI do artigo 5º da Constituição e artigo 6º da Lei de Introdução às normas do direito brasileiro).

A previsão, ademais, passa ao largo da aplicação em concreto do princípio da isonomia, pois, uma vez que o quadro material da penalidade não se alterou, mas apenas a sua estrutura recursal, o que há em concreto são dois importadores sujeitos à mesma norma de caráter substantivo, mas a dois ritos completamente diversos, um sujeito a duplo grau recursal e outro não.

Cria-se toda uma “segunda instância de julgamento” (i) em uma estrutura sem autonomia, em violação à CQR/OMA, o que é feito (ii) a portas fechadas, sem consulta à iniciativa privada em violação ao AFC/OMC, e, na mesma medida, (iii) confere-se ao ocupante do cargo de Ministro da Fazenda a legitimidade para fixar “as competências de julgamento da pena de perdimento de mercadoria, de veículo e de moeda”, em violação à Constituição, determinando-se que (iv) a segunda instância não será cabível a penas aplicadas antes da vigência da lei, em violação ao Código de Processo Civil e ao princípio da isonomia no tratamento entre importadores em situação de equivalência.

[1] Para um histórico da matéria: TREVISAN, Rosaldo. “Processo de aplicação administrativa da pena de perdimento: here I go again!”, Coluna Território Aduaneiro, Revista Eletrônica Conjur, publicado em 22/08/2023, disponível neste link. Para uma análise do Direito Aduaneiro Sancionador, recomenda-se: BRANCO, Leonardo e ANDRADE, Thális. “Amanhã vai ser outro dia: o Direito Aduaneiro Sancionador”, Coluna Território Aduaneiro, Revista Eletrônica Conjur, publicado em 27/09/2023, disponível neste link.

[2] BRANCO, Leonardo. “O limite recursal, o Carf e as três formas de argumentação”, Coluna Território Aduaneiro, Revista Eletrônica Conjur, publicado em 07/02/2023, disponível neste link.

[3] Conforme informação institucional publicada em 24/08/2023 neste link.

[4] BRANCO, Leonardo. “O limite recursal, o Carf e as três formas de argumentação”, Coluna Território Aduaneiro, Revista Eletrônica Conjur, publicado em 07/02/2023, disponível neste link. Neste texto, argumentamos a respeito das possibilidades de se estabelecer uma instância autônoma de julgamento.

Fonte: Conjur

Interpretações do artigo 319 do CPP expõem conflito de poderes

O artigo 319 do Código de Processo Penal está no cerne do debate sobre supostas intromissões do Poder Judiciário em outros poderes nos últimos anos. O dispositivo estabelece medidas cautelares alternativas à prisão de servidores públicos e fundamentou o afastamento de seus cargos de políticos como Eduardo Cunha (PTB)Aécio Neves (PSDB) e, mais recentemente, o governador do Distrito Federal, Ibaneis Rocha (MDB).

Entre as nove medidas alternativas apresentadas pelo artigo 319, está a “suspensão do exercício de função pública ou de atividade de natureza econômica ou financeira quando houver justo receio de sua utilização para a prática de infrações penais”.

O mesmo artigo permite aos magistrados determinarem desde a obrigação de comparecimento periódico em juízo até o uso de tornozeleira eletrônica.

O dispositivo pode ser aplicado para fundamentar o afastamento da função pública daqueles acusados de cometerem qualquer crime que tenha pena restritiva de liberdade, desde que o caso atenda também os requisitos do artigo 282, que disciplina a decretação da prisão preventiva.

A principal controvérsia em torno da interpretação do artigo 319 é se o termo “exercício de função pública” pode abarcar o exercício de mandato conferido por voto popular.

O jurista Lenio Streck acredita que o mandato popular não pode ser equiparado as outras funções públicas, mas com algumas ressalvas: “A suspensão do exercício da função pública não poderia ser entendida como suspensão de mandato. Isso seria fazer uma interpretação extensiva. Mas admito que a questão é complexa, porque é melhor ser suspenso do mandato parlamentar do que ser preso, uma vez que o artigo 319 é uma forma de substituir a prisão. Isso só mostra a complexidade do Direito. Fosse simples não teria graça!”

O governador do DF, Ibaneis Rocha foi afastado por três meses no bojo da intentona golpista do último dia 8 de janeiro
Reprodução

A criminalista Luiza Oliver, sócia do escritório Toron Advogados, explica que o artigo 319 cumpre um papel importante ao oferecer alternativas menos gravosas do que a prisão. Contudo, ela acredita que o fato de o dispositivo não fazer qualquer distinção entre servidores que ocupam cargos alcançados via voto popular e os concursados e comissionados abre brechas para interpretações problemáticas.

“É preciso ver com muita cautela tudo o que envolve afastamento de pessoas que ocupam cargos concedidos via voto popular. Estamos falando da soberania popular de um lado e do Poder Judiciário de outro”, pondera a advogada.

Ela sustenta que a Constituição já estabelece garantias como imunidade parlamentar e necessidade de convalidação da prisão — mesmo em flagrante — de parlamentares pelas casas legislativas. “Existem instrumentos presentes na própria Constituição e nas leis que buscam garantir que não exista nenhum superpoder.”

Sistema bipolar
A redação do artigo 319 do CPP foi alterada pela Lei 12.403, de 2011. Antes disso vigorava no processo penal brasileiro um sistema bipolar, isto é, ou se soltava ou se decretava a prisão do investigado.

O advogado e professor de processo penal do IDP Luís Henrique Machado explica que o artigo foi alterado justamente para dar mais racionalidade ao nosso sistema e coibir a decretação de prisões provisórias excessivas.

“Importante salientar que, nos casos de afastamento de políticos do cargo, o STF e o STJ têm tomado o cuidado do órgão colegiado sempre referendar a decisão do ministro relator que determinou o afastamento por meio de liminar. Acredito que os dois tribunais, de um modo geral, têm conferido interpretação adequada ao artigo 319 do CPP”, afirma.

Machado acredita que, se existe uma causa provável, porém não cabal, de que o agente público, investido no mandato, está a reiterar as ações delitivas, o Direito deve responder a essa questão de alguma maneira. “Nesse ponto, a meu ver, tanto o STF como o STJ têm acertado na maioria das vezes”, sustenta.

Devagar com o andor
O advogado e doutor em Direito Penal Conrado Gontijo, por sua vez, acredita que o afastamento de um político eleito só pode ser justificado pela comprovação cabal de que o detentor do cargo eletivo se vale dele para praticar crimes. “Somente, mesmo, em casos excepcionais, em que a existência de elementos da prática delitiva e do uso do cargo indevidamente estejam comprovados.”

Gontijo acredita que esse tipo de afastamento deve ser absolutamente excepcional. “De toda forma, o critério a ser adotado é: a manutenção desse sujeito no cargo (eletivo ou não) representa um risco real e grave para a ordem pública, para a produção de provas, para o regular desfecho do processo? Essa é a pergunta”, argumenta.

O criminalista Átila Machado defende uma interpretação ainda mais restrita do artigo 319 no que diz respeito a detentores de cargos eletivos. “Valendo-se de um (super) poder geral de cautela, o Poder Judiciário vem praticando excessos na imposição de medidas cautelares, notadamente no que diz respeito à suspensão cautelar do exercício da função pública de políticos democraticamente eleitos”.

Ele defende que o rol previsto no artigo 319 do CPP é inegavelmente taxativo e não admite uma leitura elástica em desfavor do cidadão. “A lei não se vale de palavras inúteis. O Código de Processo Penal faz expressa menção à função pública, no inciso VI, do art. 319, do CPP, havendo evidente diferenciação doutrinária entre função pública e cargos não eletivos. Inclusive, o próprio legislador faz essa distinção por diversas vezes no ordenamento jurídico”, explica citando o artigo 92, I, do Código Penal.

Movimento pendular
Os casos em que o artigo 319 foi usado para fundamentar afastamentos de políticos não são nada parecidos, o que torna a questão ainda mais complexa. “No caso do afastamento do Eduardo Cunha já havia denúncia recebida, além de ter sido uma decisão dos 11 ministros do Supremo. Essa decisão ainda foi submetida à própria chancela da Câmara dos Deputados. É diferente de um caso em que o afastamento se dá no início de uma investigação”, explica.

 Cunha foi o primeiro membro da elite política a ser afastado na história recente
Luis Macedo / Câmara dos Deputados

Como citado por Luiza, no caso do ex-presidente da Câmara, o ministro Teori Zavascki (1948 e 2017) concedeu liminar confirmada pelo Plenário por unanimidade. Nas 73 páginas da decisão referendada, Teori usa a palavra “excepcional” oito vezes. Também recorreu à “extraordinário” e “inusitado” para descrever o caso e classificou a situação como “pontual” e “individualizada”.

Ao analisar o pedido feito pelo Ministério Público — com base no artigo 319 — , o ministro reconheceu que a forma preferencial do afastamento de Cunha deveria ser pelas mãos dos próprios parlamentares, mas reiterou que existiam indícios concretos de quebra da respeitabilidade das instituições se ele seguisse no cargo e afirmou que é papel do Supremo garantir que tenhamos uma República sem intocáveis.

“Poderes, prerrogativas e competências são lemes a serviço do destino coletivo da nação. São foros que convidam os consensos à razão, e não cavidades afáveis aos desaforos. O seu manejo – mesmo na escuridão da mais desoladora das tormentas – jamais poderá entregar-se a empatias com o ilícito”, registrou.

Eduardo Cunha foi o pioneiro da elite política na história recente a ser afastado pelo Judiciário quando ocupava a presidência da Câmara em 2016. Em dezembro do mesmo ano, o ministro Marco Aurélio Mello determinou o afastamento do então presidente do Senado, Renan Calheiros (MDB).

A decisão atendeu pedido da Rede Sustentabilidade, que fundamentou sua demanda a partir do entendimento firmado pelo ministro Teori Zavascki  na ação cautelar 4.070, que afastou Cunha. O desfecho, entretanto, foi bem diferente.

Na ocasião, Marco Aurélio entendeu que, como o senador havia se tornado réu em uma ação penal, não poderia ocupar um cargo que o deixasse na linha sucessória da Presidência da República.

A decisão foi alvo de uma série de críticas da comunidade jurídica. Lenio Streck escreveu em artigo na ConJur que decretar o afastamento de Renan era um perigoso equívoco. “Não há previsão constitucional para esse afastamento. Estamos indo longe demais. O Supremo Tribunal Federal não é o superego da nação, para usar uma frase da jurista Ingeborg Maus, ao criticar o ativismo praticado pelo Tribunal Constitucional da Alemanha”, defendeu. A maioria dos ministros teve entendimento parecido e a decisão foi anulada pelo Plenário.

Já Aécio Neves foi afastado em 2017 por decisão da 1ª Turma do Supremo Tribunal Federal. Por 3 votos contra 2, os ministros determinaram as medidas cautelares pedidas pela Procuradoria-Geral da República.

Votaram pelo afastamento os ministros Luís Roberto Barroso, Rosa Weber e Luiz Fux. Ficaram vencidos os ministros Alexandre de Moraes e Marco Aurélio.

Afastamento de Aécio Neves acabou sendo derrubado pelo Senado Federal em  2017

Ao votar, Fux afirmou que a atitude mais elogiosa a ser tomada por Aécio seria se licenciar do mandato para provar sua inocência. “Já que ele não teve esse gesto de grandeza, nós vamos auxiliá-lo a pedir uma licença para sair do Senado Federal, para que ele possa comprovar à sociedade a sua ausência de culpa”, disse.

O caso de Aécio, entretanto, foi diretamente afetado pelo julgamento da ADI 5.526, em que os ministros do STF definiram que medidas cautelares impostas pela Justiça a parlamentares, caso impeçam direta ou indiretamente o exercício do mandato, devem ser submetidas em até 24 horas à Casa Legislativa. No Senado, Aécio conseguiu reverter a decisão e permanecer exercendo seu mandato.

Em 2020, o então governador do Rio de Janeiro, Wilson Witzel (PSC) foi afastado por decisão monocrática do ministro Benedito Gonçalves, do Superior Tribunal de Justiça, fundamentada pelo artigo 319 do CPP.

Benedito Gonçalves afirmou que a medida era necessária para impedir que o então governador usasse a máquina estatal para seguir praticando crimes e dilapidando os cofres públicos. Witzel acabou sofrendo processo de impeachment em 2021 e foi afastado definitivamente.

O último afastamento polêmico foi do governador do Distrito Federal, Ibaneis Rocha, que ocorreu a reboque da intentona golpista do último dia 8 de janeiro. O ministro Alexandre de Moraes afastou o mandatário do comando do governo distrital por 90 dias.

Ao determinar o afastamento, o ministro disse que houve “omissão” e “conivência” de diversas autoridades da área de segurança e inteligência, incluindo do governador. Policiais militares do DF, subordinados a Ibaneis, não barraram os manifestantes e não fecharam a Esplanada dos Ministérios, a despeito de pedidos feitos por Flávio Dino, ministro da Justiça.

Ao revogar a decisão em março, Alexandre apontou que não havia evidências de que Ibaneis estivesse tentando atrapalhar as investigações sobre os atos bolsonaristas ou destruir provas.

Para Luiza Oliver, os excessos fundamentados pelo artigo 319 podem ser entendidos como um movimento pendular. “Vivemos um momento muito crítico e perigoso da democracia brasileira. E o Judiciário conseguiu responder a isso. Eu vejo isso muito como um movimento pendular e a tendência é retornarmos a normalidade. Vivemos tempos muito estranhos, como costumava dizer o ministro Marco Aurélio.”

Fonte: Conjur

Opinião: Cancelamento do registro imobiliário de terras devolutas

O Pontal do Paranapanema está localizado no extremo oeste do estado de São Paulo, na divisa entre os estados do Paraná e de Mato Grosso do Sul. A região é conhecida nacionalmente por questões fundiárias, de grilagens e de seguidas invasões de propriedades. No meio disso tudo está o Estado de São Paulo, sustentando que as terras são devolutas, e que os registros imobiliários em nome dos particulares estão eivados de vício insanável na origem da filiação dominial.

A situação da região é diferente de outras regiões do Brasil, pois quase todos os imóveis estão devidamente registrados nos Cartórios de Registros de Imóveis.

A maioria das matrículas imobiliárias atuais da citada região deriva do primeiro registro imobiliário de 31 de março de 1901, no Cartório de Imóveis de Assis (SP), Transcrição nº 133, do imóvel denominando Fazenda Pirapó e Santo Anastácio.

Segundo a Procuradoria Geral do Estado (PGE), o registro originário da Fazenda Pirapó e Santo Anastácio teria sido aberto de forma ilegal, sem o devido destaque do Estado ou do processo de revalidação exigido pela Lei nº 601 de 1850, conhecida como Lei de Terras.

Com fundamento nessa alegação são promovidas as ações discriminatórias visando separar as terras particulares das terras devolutas. Terminado o processo, se a ação for julgada procedente, dar-se-á início a fase demarcatória para individualizar o perímetro devoluto, momento em que são canceladas as matrículas imobiliárias atuais até o registro primitivo, possibilitando ao Estado entrar com a ação reivindicatória para tomar posse do imóvel.

Normalmente, o Estado é obrigado a indenizar pelas benfeitorias feitas no imóvel antes de ser imitido na posse. Todavia há casos em que o proprietário sequer teve esse direito reconhecido [1].

É importante consignar que o registro imobiliário tem origem no Brasil justamente quando vigia a Lei de Terras nº 601/1850, e seu regulamento no Decreto nº 1.318/1.854. Assim, quando da abertura da Transcrição nº 133, em 31 de março de 1901, deveria o oficial registrador observar os dispositivos legais vigentes.

O oficial de registro só poderia abrir o registro imobiliário se o possuidor tivesse promovido a revalidação do seu título de posse ou registro paroquial junto à repartição de terras públicas, artigos 3º, 4º e 5º da Lei 601/1850, no caso da Transcrição nº 133, só consta como título de origem um registro paroquial, que de acordo com os artigos 93 e 94 da Lei de Terras não possuía aptidão para caracterizar o domínio e não poderia ensejar a abertura do registro imobiliário.

Com efeito, o registrador tinha obrigação legal de conferir as normas vigentes na abertura do registro da transcrição imobiliária, e sem o título hábil não se poderia dar ensejo ao registro. Essa é a conclusão da jurisprudência do STJ (Superior Tribunal de Justiça) [2] e do TJ-SP (Tribunal de Justiça de São Paulo) [3].

Desta forma, se o oficial de registro não podia abrir a referida transcrição imobiliária, resta evidenciado o erro ou culpa, que induziram a erro os adquirentes dos imóveis.

Os adquirentes das terras foram comprando seus imóveis ao longo destes anos através de escrituras públicas devidamente registradas no folio real, recolhendo impostos intervivoscausa mortis e ITR, em favor do Estado, sem que houvesse qualquer restrição ou informação nos registros imobiliários. Os compradores, terceiros de boa-fé, não sabiam que sobre aquele registro pairava suspeita de vício na origem da cadeia dominial, há casos em que o Estado demorou mais de cem anos para dar entrada na ação discriminatória.

O erro e a culpa do oficial registrador ao não observar as regras para abertura da Transcrição nº 133 são notórios e comprova o nexo de causalidade entre a conduta culposa do agente e os danos experimentados pelos proprietários, que estão tendo suas matrículas canceladas e correndo o risco de perder o imóvel.

Não há qualquer dúvida que o oficial de registro procedeu em desconformidade com o que determinava a legislação. E como os serviços de registros são exercidos por delegação pública [4], o Estado de São Paulo é o grande culpado pela conflagração fundiária que assombra o Pontal do Paranapanema, seja porque demorou muito tempo para buscar resolver o problema, seja porque não fiscalizou os cartórios.

O Estado busca transferir sua responsabilidade para os proprietários que muitas vezes não recebem a indenização pela perda de suas terras, imóveis adquiridos com fulcro na fé pública dos registros imobiliários, conforme dispõe a Lei Federal nº 8.935/94 e artigo 19, II da Constituição Federal.

Nesses termos, a nova Lei de Regularização paulista nº 17.557/2022 é um alento aos proprietários rurais.  Mas no a PGE insista na retomada dos imóveis. A Constituição estabelece a responsabilidade civil objetiva e solidária do Estado no dever de indenizar:

“Artigo 37 (…)§6º. As pessoas jurídicas de direito público e as de direito privado prestadoras de serviços públicos responderão pelos danos que seus agentes, nessa qualidade, causarem a terceiros, assegurado o direito de regresso contra o responsável nos casos de dolo ou culpa.”

O STF (Supremo Tribunal Federal) assentou tese de repercussão geral, obrigando o Estado a indenizar as vítimas por atos praticados pelos oficiais de registro que no exercício da sua função causem prejuízos a terceiros, exatamente como no caso das terras do Pontal do Paranapanema, Recurso Extraordinário nº 842.846/SC, devendo os tribunais e juízes obedecerem a orientação:

“O Estado responde, objetivamente, pelos atos dos tabeliães e registradores oficiais que, no exercício de suas funções, causem dano a terceiros, assentado o dever de regresso contra o responsável, nos casos de dolo ou culpa, sob pena de improbidade administrativa.”

A responsabilidade do Estado por atos irregulares praticados pelos registradores existe desde a codificação anterior. O artigo 15 do Código Civil de 1916 [5] trazia redação semelhante ao atual artigo 43 [6], e o STF no RE nº 116.662, relator ministro Moreira Alves, reconheceu a responsabilidade objetiva do Estado quando presente a culpa do registrador, aliás no Brasil nunca vigorou a irresponsabilidade total do Estado, mesmo quando não havia legislação legal específica, a responsabilização já era aceita como princípio fundamental (CAVALIERI FILHO, 2008) [7], e na lição de Pedro Henrique Baiotto Noronha [8].

Assim os proprietários que tiverem suas terras declaradas devolutas e suas matrículas imobiliárias canceladas, devem buscar a reparação integral de seu prejuízo, na esteira desta fundamentação em sintonia com os artigos 186, 927 e 944 do Código Civil, e a indenização deve ser total e corresponder ao valor de mercado da terra nua e das benfeitorias, com direito de retenção até que os valores sejam efetivamente pagos pelo Estado.

[1] REsp nº 1744310/SP – relator ministro Mauro Campbell Marques.

[2] REsp 389.372/SC, relator LUIS FELIPE SALOMÃO, Quarta Turma, unânime, 04 de junho de 2009.

[3] CGJSP nº 10.819/96.

[4] Constituição Federal artigo 236. Os serviços notariais e de registro são exercidos em caráter privado, por delegação do Poder Público.

[5] Artigo 15. As pessoas jurídicas de direito público são civilmente responsáveis por atos dos seus representantes que nessa qualidade causem danos a terceiros, procedendo de modo contrário ao direito ou faltando a dever prescrito por lei, salvo o direito regressivo contra os causadores do dano.

[6] Artigo 43. As pessoas jurídicas de direito público interno são civilmente responsáveis por atos dos seus agentes que nessa qualidade causem danos a terceiros, ressalvado o direito regressivo contra os causadores do dano, se houver, por parte destes, culpa ou dolo.

[7] CAVALIERI FILHO, Sérgio. Programa de Responsabilidade Civil. 9 ed. São Paulo: Atlas, 2009.

[8] RESPONSABILIDADE CIVIL DO ESTADO NO DIREITO BRASILEIRO encontrado: https://ambitojuridico.com.br/cadernos/direito-civil/a-responsabilidade-civil-do-estado-no-direito-brasileiro/

Fonte: Conjur

Caso 123milhas — o que os consumidores precisam saber

A sociedade empresária 123milhas anunciou, no dia 18/8/2023, que não emitirá passagens já adquiridas da linha “Promo”, com embarques previstos de setembro a dezembro de 2023, e que eventual devolução de valores será realizada por meio da disponibilização de voucher (disponível aqui. Acesso em 20/8/2023).

Os meios de comunicação informam que os ministérios da Justiça e do Turismo já trabalham em conjunto para avaliar a instauração de investigação e pedido de esclarecimentos pela 123milhas, de modo que sejam esclarecidos os motivos dos cancelamentos, a identificação de todos os consumidores atingidos pela medida e também como será feita a reparação dos danos sofridos pelos consumidores (disponível aqui).

Como visto acima, a 123milhas inseriu em seu site um link para que o consumidor possa solicitar o voucher para a obtenção de crédito na própria plataforma da empresa. Ocorre que o consumidor não é obrigado a aceitar referido voucher, podendo exigir a devolução da quantia paga pelo pacote em dinheiro ou sob a forma de estorno para seu cartão de crédito, conforme o meio de pagamento utilizado para a contratação do serviço.

Em primeiro lugar, cumpre dirimir uma dúvida frequente entre consumidores e profissionais da advocacia no tocante a eventuais consumidores que já aceitaram a restituição de valores em forma de voucher. Será que, mesmo tendo aceitado essa espécie de estorno, o consumidor pode se arrepender, e manifestar sua vontade no sentido de que a devolução de valores ocorra em dinheiro ou pela restituição de crédito ao seu cartão?

Para responder a essa indagação, deve-se considerar que o Código de Defesa do Consumidor, conforme enuncia já em seu artigo 1º, “estabelece normas de proteção e defesa do consumidor, de ordem pública e interesse social, nos termos dos arts. 5°, inciso XXXII, 170, inciso V, da Constituição Federal e art. 48 de suas Disposições Transitórias“. Para a melhor doutrina consumerista [1], o conteúdo do referido dispositivo do código traduz a ideia de que as normas do CDC são inderrogáveis pela vontade das partes, ou seja, ainda que o consumidor aceite a restituição por meio de voucher, se essa modalidade for imposta pelo fornecedor — e não uma opção para o consumidor —, não terá validade jurídica, conforme será visto adiante.

Superado o esclarecimento acima, adiante o Código de Defesa do Consumidor traz ao menos mais três importantes dispositivos legais que impedem que a devolução de valores seja imposta ao consumidor por meio de voucher.

Inicialmente, veja-se o que dispõem os incisos II e XIII do artigo 51 do CDC:

“Art. 51. São nulas de pleno direito, entre outras, as cláusulas contratuais relativas ao fornecimento de produtos e serviços que:

(…)

II – subtraiam ao consumidor a opção de reembolso da quantia já paga, nos casos previstos neste código;

(…)

XIII – autorizem o fornecedor a modificar unilateralmente o conteúdo ou a qualidade do contrato, após sua celebração.”

Não há dúvidas de que, ao impor a devolução do valor pago pelo pacote de viagem através de voucher, a 123milhas está subtraindo do consumidor a opção de reembolso em desacordo com os casos previstos no CDC. Isso porque o inciso III do artigo 35 do código é claro ao prever expressamente que, se o fornecedor descumprir a oferta, apresentação ou publicidade, é facultado ao consumidor exigir a devolução da quantia paga, monetariamente atualizada, e sem prejuízo de eventuais perdas e danos. Ou seja, a opção é do consumidor. Veja-se:

“Art. 35. Se o fornecedor de produtos ou serviços recusar cumprimento à oferta, apresentação ou publicidade, o consumidor poderá, alternativamente e à sua livre escolha:

(…)

III – rescindir o contrato, com direito à restituição de quantia eventualmente antecipada, monetariamente atualizada, e a perdas e danos.”

Quanto à cumulação de perdas e danos com a restituição da quantia paga, tal é possível, principalmente, em razão da perda do tempo imposta ao consumidor pela não realização da viagem planejada. Nesse contexto, o consumidor pode ajuizar ação judicial para a reparação de dano moral e pela perda do seu tempo de vida — fato que caracteriza ofensa à sua autodeterminação, atingindo sua liberdade (direito fundamental expresso no caput do artigo 5º da Constituição Federal), prejudicando o tempo que reservou para seu descanso e lazer, que também são direitos fundamentais expressos na Constituição (artigo 6º, caput, da CF/88).

A respeito do que foi dito acima, há precedentes [2] em nossos tribunais em que se garante a tutela do tempo de vida do consumidor em casos envolvendo o cancelamento de viagem pelo fornecedor, aplicando-se a tais hipóteses a Teoria do Desvio Produtivo [3], criada por Marcos Dessaune, bem como a tese do Menosprezo Planejado, de Laís Bergstein [4].

Seguindo, outro argumento apto a afastar a imposição de restituição de valores ao consumidor através de voucher encontra fundamento no princípio da confiança, que se relaciona ao princípio da boa-fé objetiva, expressamente previsto no inciso III do artigo 4º do CDC.

Pelo princípio da confiança, busca-se proteger as legítimas expectativas do consumidor em relação ao produto adquirido ou ao serviço contratado junto ao fornecedor. Significa, resumidamente, que o consumidor confia que a relação com o fornecedor não lhe trará problemas, ou seja, cria a legítima expectativa para o consumidor de que tudo dará certo.

Voltando-se ao caso em comento, a partir do momento em que a 123milhas cancela, de forma unilateral e deliberada, a viagem contratada pelo consumidor, informando, de forma absolutamente genérica, que tal fato tem como causa “questões de mercado”, sem oferecer maiores detalhes, o consumidor perde imediatamente a confiança no fornecedor, e provavelmente não desejará dar continuidade à relação jurídica.

Quem, já tendo sido lesado por um fornecedor, arriscará continuar uma relação que já deu errada?! A pergunta, por óbvio, é retórica.

A encerrar este breve artigo, há reflexão interessante direcionada, particularmente, aos operadores do direito, relacionada ao instituto da desconsideração da personalidade jurídica do fornecedor, em casos semelhantes ao que envolve a 123milhas. O artigo 28 do CDC e seu § 5º enunciam:

“Art. 28. O juiz poderá desconsiderar a personalidade jurídica da sociedade quando, em detrimento do consumidor, houver abuso de direito, excesso de poder, infração da lei, fato ou ato ilícito ou violação dos estatutos ou contrato social. A desconsideração também será efetivada quando houver falência, estado de insolvência, encerramento ou inatividade da pessoa jurídica provocados por má administração.

(…)

§ 5°. Também poderá ser desconsiderada a pessoa jurídica sempre que sua personalidade for, de alguma forma, obstáculo ao ressarcimento de prejuízos causados aos consumidores.”

Nesse contexto, destaca-se que há precedentes [5] em nossos tribunais admitindo a desconsideração da personalidade jurídica do fornecedor em sede de tutela de urgência (artigo 300 e ss. do CPC), em que houve, já no início do processo, a inclusão dos sócios da sociedade empresária no polo passivo da lide, o deferimento de realização de bloqueio de contas bancárias via Sisbajud, na modalidade teimosinha, de modo a se buscar ativos em nome daqueles, e também o bloqueio de veículos pelo sistema Renajud, objetivando-se a busca de veículos de propriedade dos sócios.

Em conclusão, reafirme-se: a 123milhas não pode impor ao consumidor a devolução da quantia paga pelo pacote de viagem através de voucher. A disponibilização desse tipo de crédito deve ser apenas uma opção oferecida ao consumidor, pois, como visto, o Código de Defesa do Consumidor garante a este que a restituição da quantia que pagou pela viagem seja realizada em dinheiro, caso o pagamento tenha sido feito através de boleto bancário, Pix ou outra modalidade de transferência bancária, ou por estorno em cartão de crédito, caso tenha sido essa a modalidade de pagamento utilizada.

[1] “As normas de ordem pública estabelecem valores básicos e fundamentais de nossa ordem jurídica, são normas de direito privado, mas de forte interesse público, daí serem indisponíveis e inafastáveis através de contratos. O Código de Defesa do Consumidor é claro, em seu art. 1.º, ao dispor que suas normas se dirigem à proteção prioritária de um grupo social, os consumidores, e que se constituem em normas de ordem pública, inafastáveis, portanto, pela vontade individual. São normas de interesse social, pois as leis de ordem pública são aquelas que interessam mais diretamente à sociedade que aos particulares, daí poderem encontrar aplicação ex officio, em especial como a sanção do CDC é a da nulidade taxativa absoluta (art. 128, in fine, do CPC c/c o parágrafo único do art. 168 e art. 166, VII, do CC/2002).” (BENJAMIN, Antônio Herman V.; MARQUES, Cláudia Lima; BESSA, Leonardo Roscoe. Manual de Direito do Consumidor. 7ª edição. São Paulo, Revista dos Tribunais, 2016, p. 73).

[2] Por todos, confira-se o seguinte julgado: CANCELAMENTO DE VIAGEM – Pacote de viagem cancelado – falha na prestação de serviço devido a quantia desembolsada não ter sido devidamente devolvida – Aplicação da Lei 11.034/2020 – Responsabilidade objetiva e solidária – Dano moral in re ipsa configurado, pela via crucis imposta ao consumidor – Aplicação da Teoria do Desvio produtivo do consumidor e Teoria do Desestímulo – Recurso ao qual se dá PARCIAL PROVIMENTO, apenas para reduzir o montante fixado a título de danos morais, em atenção aos princípios da razoabilidade e proporcionalidade (TJ-SP – RI: 10023353520228260541 SP 1002335-35.2022.8.26.0541, relator: José Pedro Geraldo Nóbrega Curitiba, data de julgamento: 24/10/2022, 1ª Turma Cível e Criminal, data de publicação: 24/10/2022)

[3] “Desvio Produtivo do Consumidor é o fenômeno socioeconômico que se caracteriza quando o fornecedor, ao atender mal, criar um problema de consumo potencial ou efetivamente danoso e se esquivar da responsabilidade de saná-lo, induz o consumidor carente e vulnerável a despender seu tempo vital, existencial ou produtivo, a adiar ou suprimir algumas de suas atividades geralmente existenciais e a desviar suas competências dessas atividades, seja para satisfazer certa carência, seja para evitar um prejuízo, seja para reparar algum dano, conforme o caso”. (DESSAUNE, Marcos. Teoria Aprofundada do Desvio Produtivo do Consumidor: O Prejuízo do Tempo Desperdiçado e da Vida Alterada. 2ª ed. rev. e ampl., Vitória: Edição Especial do Autor, 2017, p. 357)

[4] “Em primeiro lugar para se aferir o dever de compensação pelo tempo perdido pelo consumidor, questiona-se, no caso concreto, se o consumidor ou a sua demanda foram menosprezados pelo fornecedor? O ato ou efeito de menosprezar consiste na falta de estima, apreço ou consideração; corresponde ao desdém no tratamento dado a alguém, à desconsideração, à desvalorização, à desqualificação, ao menoscabo. O menosprezo ao consumidor é observado nos casos de fornecedores que ignoram os pedidos e as reclamações do consumidor ou não lhe prestam informações adequadas, claras e tempestivas. O menosprezo é o desrespeito, a desconsideração das legítimas expectativas geradas no consumidor. O menosprezo reside na desvalorização do tempo e dos esforços travados pelo consumidor em relação ao fornecedor dentro de uma relação jurídica de consumo, em qualquer de suas fases, seja para resolução de um vício do produto ou do serviço, seja para compreender as instruções técnicas inadequadamente apresentadas, por exemplo (…). Ao implementar sistemas morosos, pouco eficientes, deixando de investir adequadamente na cadeia produtiva o fornecedor transfere ao consumidor todo o ônus decorrente de sua inércia, os riscos inerentes à sua própria atividade. E tal conduta desidiosa pode gerar danos, inclusive o dano pelo tempo perdido, também chamado de ‘dano temporal’ ou ‘desvio produtivo’, que deverão ser reparados. O menosprezo planejado, a tentativa oculta de transferência de riscos ao consumidor, que contraria a boa-fé objetiva, ofende os princípios que regem a política nacional das relações de consumo e constitui prática abusiva”. (BERGSTEIN, Laís. A consolidação do dano pela perda do tempo do consumidor no brasil e o duplo critério para sua compensação: o menosprezo planejado. In Dano Temporal: O Tempo como Valor Jurídico. Gustavo Borges, Maurilio Casas Maia (org.). 2ª ed. rev. e ampl., São Paulo: Tirant lo Blanch, 2019, p. 94-95)

[5] EMENTA: AGRAVO DE INSTRUMENTO – AÇÃO DE RESCISÃO CONTRATUAL C/C DEVOLUÇÃO DOS VALORES PAGOS, COBRANÇA DE RENDIMENTOS E DANOS MORAIS COM PEDIDO DE TUTELA DE URGÊNCIA – TUTELA DE URGÊNCIA – ANTECIPADA – REQUISITOS DO ART. 300 DO CPC/2015 – DEMONSTRAÇÃO – DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA – TEORIA MENOR – OBSTÁCULO AO RESSARCIMENTO DOS PREJUÍZOS CAUSADOS AO CONSUMIDOR – DEFERIMENTO. Para a concessão da tutela de urgência, cumpre à parte que a requerer demonstrar, de forma inequívoca, a probabilidade do direito pretendido e o perigo de dano. Presentes esses requisitos, impõe-se o deferimento da tutela de urgência pleiteada. Em se tratando de relação de consumo, aplica-se a teoria menor, por meio do qual o instituto da desconsideração da personalidade jurídica é devido quando este se configurar como obstáculo ao ressarcimento dos prejuízos sofridos pelo consumidor, nos termos do art. 28, § 5º do Código de Defesa do Consumidor. (TJ-MG – AI: 11378036820238130000, relator: des.(a) Arnaldo Maciel, data de julgamento: 11/7/2023, 18ª Câmara Cível, data de publicação: 11/7/2023)

Fonte: Conjur

Juízo de valor sobre provas configura excesso de linguagem, diz STJ

O uso indiscriminado de adjetivos em relação ao material probatório colhido durante fase de investigação, além do juízo de valor em relação à materialidade da autoria do crime, configura excesso de linguagem e acarreta em nulidade da sentença de pronúncia.

A fundamentação foi utilizada pelo ministro Joel Ilan Paciornik, do Superior Tribunal de Justiça, para anular uma sentença e ordenar ao juízo de origem a formulação de outra decisão sem os vícios de juízo de valor emitidos no texto impugnado. No caso, o acórdão foi proferido pelo Tribunal de Justiça do Tocantins, em ação que investiga homicídio duplamente qualificado em concurso de agentes.

A defesa de um dos réus alegou que o juízo do tribunal estadual se excedeu quando emitiu uma série de adjetivos e juízos de valor em relação à produção probatória feita no curso da investigação.

No acórdão, os desembargadores afirmam que “ambos os denunciados agiram em unidade de desígnios, para o cometimento do homicídio”, apenas com base na prova testemunhal colhida, o que ultrapassou os limites do trabalho do magistrado, segundo o ministro do STJ.

“Em análise detida das provas colhidas perante este juízo, restaram comprovados que ambos os denunciados agiram em unidade de desígnios, para o cometimento do homicídio, senão vejamos”, escreveram os desembargadores.

“Uma vez que o Magistrado emitiu juízo de valor acerca da autoria delitiva, é necessário reconhecer o uso excessivo de linguagem suscetível de influenciar o Conselho de Sentença”, afirmou Paciornik na decisão.

O ministro aceita os argumentos de que, como a sentença de pronúncia visa subsidiar decisão posterior do Tribunal do Júri, os convocados podem ser influenciados pelo excesso de linguagem do magistrado de segundo grau, que já emitiu juízo de valor em relação à conduta dos investigados.

Paciornik ainda cita jurisprudência do STJ no mesmo sentido (HC 355.364). À época, fundamentou o ministro Sebastião Reis, da 6ª Turma: “A utilização de colocações incisivas e de considerações pessoais a respeito do crime e sua autoria é passível de influenciar o Conselho de Sentença, caracterizando o excesso de linguagem.”

Na decisão, além de ordenar que o TJ-TO emita nova sentença sem os vícios oriundos do excesso de linguagem, o ministro também estendeu a decisão ao outro réu que também é acusado do mesmo crime.

A defesa do réu foi patrocinada pelo advogado Raphael Lemos Brandão.

Clique aqui para ler a decisão
REsp 2.025.007

Fonte: Conjur

CNJ começa a analisar norma para regular ida de juízes a eventos

Um pedido de vista do ministro Luis Felipe Salomão, corregedor-nacional de Justiça, suspendeu a análise, no Conselho Nacional de Justiça, de uma minuta de resolução sobre a “prevenção de conflitos de interesse” em relação a magistrados no exercício da docência e na participação em eventos.

CNJ começou a discutir norma que delimita presença de magistrados em eventos
Lucas Castor/Agência CNJ

O relator do ato normativo, ministro Luiz Philippe Vieira de Mello Filho, leu seu voto na sessão desta terça-feira (22/8), e justificou a iniciativa citando a necessidade de adotar medidas que ampliem a transparência da atuação dos membros do Judiciário.

A proposta apresentada pelo ministro prevê uma série de obrigações aos magistrados no sentido de garantir a transparência de sua atuação em eventos públicos e privados, além das suas respectivas agendas dentro das dependências do Poder Judiciário.

“Historicamente a magistratura nacional nunca deteve tanto poder quanto nos tempos atuais”, disse Mello Filho antes de destrinchar os detalhes da resolução.

O texto apresentado divide-se em três partes; a primeira delas prevê as definições conceituais dos termos apresentados, como “conflito de interesses”, por exemplo; a segunda versa sobre os possíveis conflitos no âmbito do exercício da docência, participação de eventos e recebimento de presentes; e o terceiro trata da transparência ativa voltada à prevenção dos conflitos e da quebra de parcialidade.

Alguns pontos da resolução foram detalhados pelo relator:

– O exercício da docência deve observar o conflito de interesses e a compatibilidade de carga horária do magistrado com a instituição de ensino;

– A prática de coaching e congêneres segue vedada, incluindo nas redes sociais;

– A participação de magistrados em eventos na condição de palestrantes, conferencistas, presidentes de mesa, debatedores, mediadores e semelhantes deve ser previamente informada à corregedoria local e nacional, por meio de sistema eletrônico a ser criado para esta finalidade;

– A organização de eventos promovidos por conselhos de Justiça de tribunais, escolas de magistratura e entidades de classe dos magistrados também devem ser previamente registrados neste sítio digital;

– Entidades privadas com fins lucrativos podem patrocinar tais eventos, desde que respeitem o limite de 20% dos gastos totais, não tenham ingerência na programação ou coordenação acadêmica e sua finalidade não seja compatível com o tema do evento;

– Entidades filantrópicas com finalidade de promoção dos direitos humanos também pode financiar ou patrocinar os eventos, desde que sua finalidade seja compatível com o tema do evento;

– O recebimento de remuneração direta ou indireta pelo magistrado por participar de evento configura conflito de interesse para atuar em processos de entidades privadas com ou sem fins lucrativos, excetuados os eventos custeados exclusivamente pelas associações de magistrados;

– Nesses casos, mesmo que o juiz participante não reconheça, as partes de hipotético processo podem suscitar conflito de interesses e argumentar pelo afastamento do magistrado nos termos das respectivas leis processuais;

– Fica vedada a participação de magistrados em eventos acadêmicos que configurem captação por seguimento econômico e cuja programação acadêmica traduza representação de interesses que tenham por objetivos difundir teses dos organizadores ou financiadores, sob pena de configurar conflito de interesses;

– O recebimento de presentes pelos magistrados deve limitar-se ao valor máximo de R$100, à exceção dos livros para fins profissionais;

– Caso o magistrado registre alteração patrimonial correspondente a 40% acima das somas dos rendimentos recebidos no exercício anterior, deve informar a sua respectiva corregedoria;

– Por fim, os magistrados, caso a resolução seja aprovada, terão de publicar sua agenda pública em meio virtual para divulgação de informações relativas a encontros públicos e privados, com partes, advogados e representantes de interesses nas dependências do Poder Judiciário.

Ato normativo 0005083-21.2023.2.00.0000

Fonte: Conjur

Autonomia privada coletiva: pressuposto de negociação válida

O direito coletivo do trabalho pertence a um ramo especialíssimo do Direito do Trabalho, produtor de grandes avanços nas relações de trabalho, que exige do intérprete e daqueles que têm a responsabilidade no seu manejo a compreensão de seus princípios, sua estrutura, forma de realização do direito e seus efeitos.

Neste sentido, e talvez por situar-se em lugar extremamente relevante na definição de direitos coletivos, é que a responsabilidade dos negociadores não pode ser tratada de forma inconsequente ou negligenciada, a fim de que não se criem ou suprimam direitos sem a devida segurança jurídica.

Por esta razão, o §5º do artigo 611-A, da CLT, impôs a participação dos sindicatos subscritores de convenção coletiva ou de acordo coletivo de trabalho como litisconsortes necessários, em ação individual ou coletiva, que tenha como objeto a anulação de cláusulas desses instrumentos.

Deste modo, quanto aos princípios próprios do direito coletivo, vinculam-se eles ao exercício da liberdade sindical (Convenção 87, da OIT) e não se confundem, tais princípios, com aqueles que se aplicam nas relações individuais de trabalho. O exercício do direito à liberdade sindical pelos trabalhadores, por meio da formação de sindicato, representa um ato de entrega e de confiança aos dirigentes sindicais eleitos que, supostamente, poderiam fazer melhor na defesa de seus direitos.

Os efeitos da proteção social divergem profundamente porquanto, no trato individual, o trabalhador é protegido em sua manifestação da vontade por normas, garantidoras de direitos individuais, aplicadas na relação empregado x empregador, consoante disposto no artigo 7º e incisos da Constituição e artigo 468 da CLT. A proteção se justificaria diante da fragilidade econômica na relação contratual do empregado que, diante da necessidade de emprego, poderia se submeter a situações de trabalho degradantes em que direitos lhe fossem negados.

Já no campo do direito coletivo a vontade individual se substitui pela autonomia da vontade coletiva. Aqui, pretende-se que, agindo em grupo, os trabalhadores poderiam equilibrar a desigualdade econômica da relação individual. A proteção social adquire caráter de natureza mais amplo em que se considera a aplicação do negociado sobre todos os beneficiários que tiveram a oportunidade de se manifestar coletivamente, em assembleia, devidamente convocada para a finalidade específica.

Aqui não podem ser discutidos os efeitos da norma coletiva sobre contratos individuais atingidos pela decisão da assembleia dos interessados, tomada presencialmente ou por meios eletrônicos. É o caso da redução de salário por meio de acordo ou convenção coletiva, admitido pela Constituição, artigo 7º, VI e §3º, com previsão, pós-reforma, no artigo 611-A da CLT.

A entidade que tem capacidade de conduzir, de forma legal, as manifestações de ordem coletiva é o sindicato dos trabalhadores que assume, na sua atuação, a presunção e o pressuposto de que tenha legitimidade capaz de liderar o grupo dos interessados envolvidos, permitindo a livre autonomia da vontade coletiva. Trata-se de condição formal de validade jurídica das normas coletivas.

O dirigente sindical, quando atua de forma isolada, produzindo efeitos sobre os direitos dos representados, age de forma absolutista e não representa a vontade dos trabalhadores e, assim, assume a responsabilidade pelo que diz e faz, sem comprometimento dos trabalhadores representados pela entidade sindical.

O sítio do TST (Tribunal Superior do Trabalho) e desta ConJur publicaram notícia que acentua práticas heterodoxas em negociações coletivas. O título da chamada já é esclarecedor: TST anula acordo coletivo assinado na pandemia sem aprovação em assembleia”. A decisão anulatória foi proferida em recurso do MPT, com relatoria do ministro Alexandre Agra Belmonte, contra homologação de acordo coletivo pelo TRT da 13ª Região, a despeito de que, embora provocado pelo MPT, considerou que o momento pandêmico vivido permitiria negociação sem que os trabalhadores se manifestassem (ROT-346-65.2020.5.13.0000).

A Seção Especializada em Dissídios Coletivos (SDC), fundamentou sua decisão na ausência de assembleia dos trabalhadores interessados, única e essencial condição que daria validade ao negociado.

O exemplo de procedimento é típico do exercício da condição de dirigente sindical de forma autônoma, que age sem legitimidade, contrariando princípios básicos e fundamentais que norteiam o direito coletivo do trabalho.

O fato de que, em período de pandemia, não havia condições para reunir trabalhadores, não serviu de justificativa para legitimar a negociação sem assembleia que poderia ter sido convocada por meios eletrônicos.

A situação julgada é sui generis. Não se pode falar de intervenção mínima da Justiça do Trabalho, consoante previsto no artigo 8º, §3º, da CLT, pois não houve manifestação da autonomia da vontade coletiva. Talvez abuso do direito sindical.

Trata-se de exemplo, o julgado, de como o sindicato não deve atuar em negociações coletivas para não comprometer o respeito à liberdade sindical, à organização sindical e à atuação em negociações coletivas.

Fonte: Conjur – Por

Não cabe reclamação por descumprimento de IRDR alvo de recurso

Um comando fixado por tribunal de segundo grau em incidente de resolução de demandas repetitivas (IRDR) não precisa ser aplicado de imediato se for objeto de recurso às cortes superiores. Nesse caso, seu descumprimento em outros processos não pode ser motivo de reclamação.

Com esse entendimento, a 1ª Turma do Superior Tribunal de Justiça deu provimento ao recurso especial do INSS para julgar improcedente uma reclamação ajuizada por uma segurada contra o descumprimento de uma posição firmada pelo Tribunal Regional Federal da 4ª Região (TRF-4) em IRDR. A votação foi unânime.

Ministro Gurgel de Faria destacou que, se IRDR está suspenso aguardando julgamento de recurso, não há ofensa contra autoridade
Lucas Pricken/STJ

O incidente de resolução de demandas repetitivas é um instrumento criado pelo Código de Processo Civil de 2015 para uniformizar a jurisprudência e acelerar a prestação jurisdicional. Ele permite que as cortes de apelação fixem teses em temas muito judicializados, padronizando, assim, a interpretação.

Quando um IRDR é admitido, todos os processos referentes ao tema de julgamento ficam suspensos. E o parágrafo 5º do artigo 982 do CPC e a jurisprudência do STJ indicam que essa suspensão não termina automaticamente: em vez disso, é prorrogada se houver recurso para as cortes superiores.

No entanto, a interpretação do TRF-4 no caso concreto foi diferente. O tribunal entendeu que o IRDR deveria ser aplicado imediatamente nos demais processos em tramitação na Justiça Federal da 4ª Região e que a sua não observância permitiria o ajuizamento da reclamação — o instrumento permite a preservação da competência e da autoridade das decisões dos tribunais.

Relator do caso na 1ª Turma, o ministro Gurgel de Faria explicou que, se os efeitos do IRDR se encontram suspensos enquanto não for julgado o recurso excepcional, não há tese com força obrigatória em vigor. Logo, não se está diante de hipótese de cabimento da reclamação.

“Registro não desconhecer que há decisões do STJ no sentido de não ser necessário aguardar o trânsito em julgado de matéria firmada em IRDR para sua aplicação. Todavia, penso que esse entendimento deve ser empregado nos casos em que a coisa julgada só não se formou porque pendente o exame de embargos de declaração ou petição autônoma, mas não nas hipóteses em que pendente o julgamento do próprio recurso excepcional”, explicou ele.

Fonte: Conjur