Oscilação da Selic é fator para STJ definir correção de dívidas

A oscilação da taxa Selic, o principal instrumento de política monetária para combate à inflação no Brasil, é um elemento chave na análise do Superior Tribunal de Justiça sobre a conveniência de seu uso na correção de dívidas civis impostas em decisões judiciais.

O tema, que por sua importância tem sido alvo de uma longa discussão judicial, está em análise na Corte Especial, que reúne os 15 ministros mais antigos do STJ. O julgamento está empatado em 2 votos a 2 e foi interrompido por pedido de vista do ministro Benedito Gonçalves.

Para o ministro Luis Felipe Salomão, dívidas civis devem ser calculadas com juros de 1% ao mês e correção monetária cabível
Lucas Pricken/STJ

Até esse julgamento, a posição prevalente no tribunal é de que as dívidas civis devem mesmo ser corrigidas com base na Selic, a taxa fazendária que seria a mencionada no artigo 406 do Código Civil. A posição se baseia em um precedente de 2008 da própria Corte Especial, o EREsp 727.842.

proposta do relator, ministro Luis Felipe Salomão, é de, nos casos de dívida civil, substituir a Selic pela taxa de juros de 1% ao mês, conforme definido no artigo 161, parágrafo 1º do Código Tributário Nacional. Incidiria, ainda, correção monetária conforme o índice praticado em cada tribunal.

Por enquanto, a ideia foi repelida pelos ministros Raul Araújo e João Otávio de Noronha, que não veem margem para que o Judiciário escolha livremente qual índice deve ser usado para aplicar o artigo 406 do Código Civil.

Para o ministro Salomão, o uso da Selic não é o mais adequado porque, entre outros fatores, permite o que tem definido como “oscilação anárquica” dos juros. Em julgamentos passados, ele exemplificou o fato de os juros terem alcançado 12,31% ao ano em 2005 e 1,3% ao ano em 2012, períodos em que a inflação foi praticamente idêntica (5,69% e 5,84% ao ano).

O problema é agravado pela introdução de duas formas de uso da taxa fazendária. Na terça-feira, em voto-vista regimental, o ministro trouxe novos dados, acompanhados de pedidos de consideração aos nove colegas que ainda poderão votar.

Juros composto x acumulado mensal
A Selic foi idealizada pelo Banco Central em uma fórmula de juros compostos — os chamados “juros sobre juros” —, com capitalização feita a cada dia útil. Ou seja, a cada dia a dívida é acrescida de juros, e no dia seguinte esse montante atualizado serve de base de cálculo para a incidência de novos juros.

No caso de uma dívida civil, para se obter a variação da Selic, bastaria multiplicar todos os fatores diários contidos entre o termo inicial e o termo final a ser corrigido. Essa é a forma que a Fazenda Nacional usa para cobrar as dívidas da qual é credora.

Selic é o instrumento usado pelo Banco Central para combate à inflação no Brasil
Marcello Casal Jr./Agência Brasil

A partir de 1995, leis federais editadas criaram uma segunda forma de usar a Selic, desta vez para corrigir os valores que a Fazenda deve pagar como devedora. Esse formato foi alçado à Constituição pela Emenda Constitucional 113/2021.

A fórmula envolve a Selic acumulada mensalmente. Isso significa que o fator diário é multiplicado dentro do período de um mês para saber o acumulado mensal. Para fazer a correção da dívida, basta somar os acumulados mensais no período a que ela se refere.

Esse desvirtuamento criou dois cenários bastante distintos. O voto-vista do ministro Salomão usou como exemplo a variação da Selic no período de 20 anos, entre 1º de janeiro de 2002 e 31 de dezembro de 2021.

Nesse recorte temporal, a Selic calculada pelos juros compostos resultou em variação de 786%. Já a inflação medida pelo IPCA foi de 237%. A diferença de 549%, distribuída entre os 240 meses do período, representaria juros mensais de 2,29% ao ano — um índice bastante alto.

Se no mesmo período o cálculo for feito a partir do método do acúmulo mensal, a variação da Selic cai para 219%. Isso significa que ela sequer alcança os 237% de inflação medida pelo IPCA. Ou seja, ela sequer recomporia a desvalorização da moeda. Não haveria juros de mora a cobrar.

“Distorções assim são passíveis de ocorrer quando se adota Selic para corrigir dívidas civis”, destacou o ministro Salomão, no voto-vista. Em sua análise, o STJ nunca se debruçou sobre qual dessas duas formas deve ser usada ao aplicar a Selic.

Compensa dever?
No recorte temporal do caso em julgamento, o uso da Selic traz um cenário ainda distinto. Ele envolve uma mulher que ganhou na Justiça o direito a ser indenizada por danos morais por causa de um acidente de ônibus que sofreu.

O acidente ocorreu em março de 2013, data a partir da qual começam a correr os juros. A sentença condenatória foi proferida em outubro de 2016, marco inicial da correção monetária. O valor da indenização foi fixado em R$ 20 mil. Até o momento, não houve pagamento.

Até julho de 2023, dez anos depois, qualquer das formas de cálculo envolvendo a Selic se mostraria mais benéfica ao devedor do que o uso de juros simples de 1% ao mês e correção monetária pelo IPCA (Veja a tabela). “Compensa dever em juízo”, resumiu o relator.

Correção da dívida
Indenização a ser corrigida a partir da data do fato, em 2013 R$ 20 mil
Em 2023, corrigida pela Selic pelo método de juros compostos R$ 46,7 mil
Em 2023, corrigida pela Selic pela soma dos acumulados mensais R$ 37 mil
Em 2023, corrigida com juros simples de 1% ao mês e correção pelo IPCA R$ 51,4 mil

O voto-vista fez menção a manifestação a Associação Brasileira de Incorporadoras Imobiliárias (Abrainc) e do Conselho Federal da OAB, que atuam como amici curiae (amigos da corte) no julgamento. Ambas indicaram que, pela variação da Selic, há mês em que os juros pode ser negativos.

“Isso significa que há uma flutuação enorme e que o devedor pode ficar à espera de um mês que seja bom pra ele pra pagar dívida. É loteria. Não é efetivamente o que se espera que o tribunal forneça. O tribunal tem que fornecer segurança”, disse o ministro Salomão.

Para ele, a adoção de juros de 1% ao mês calculados de forma simples, nos termos do Código Tributário Nacional, representa uma solução intermediária quando comparada aos dois métodos que usam a Selic.

“Qual é a maneira mais razoável para corrigir dívidas civis? É aquela que permite juros negativos? Não. É melhor ter uma oscilação tão grande a ponto de prejudicar o devedor, para que ele não consiga pagar divida? Não. É o equilíbrio. É o que se propõe”, encerrou.

Advocacia
Para o advogado Leonardo Amarante, que representa a vítima do acidente no caso em julgamento, a confirmação da Selic representaria a destruição de um sistema jurídico em vigor no Brasil há 100 anos. “E substituir por um outro sistema que é muito pior e não tem nenhuma segurança jurídica, beneficiando o calote e o não pagamento das dívidas”, criticou.

O advogado Luiz Fernando Casagrande Pereira, que representa a OAB, destacou que os dados econômicos que o ministro Salomão usou revelam a improbidade de usar a Selic como parâmetro de juros e correção das dívidas civis, sobretudo em razão de sua volatilidade.

“Em todos os outros lugares do mundo se usa uma taxa fixa de juros para desincentivar a litigância. Tem que custar ficar em juízo. E a Selic não garante isso. Além da insegurança da volatilidade do índice, que é usada como instrumento de política monetária e nada tem a ver com o índice de correção e juros das dívidas judiciais”, apontou.

Fonte: Conjur

O que o jogo de cartas Uno ensina sobre a reforma tributária?

Nesta onda de filmes que remetem a brinquedos clássicos, já se cogitam de películas sobre a boneca PollyPocket e sobre o jogo de cartas Uno. Não desejo aqui discutir os filmes, ou a mensagem subjacente à postura da Barbie ou do Ken no mais recente filme deste naipe, algo que, conquanto interessante, transbordaria em muito os limites formais e materiais desta coluna. Mas um livro, relacionando o jogo de cartas Uno à Teoria do Direito, este ainda precisa ser escrito.

O Direito é uma realidade institucional (John Searle), tal como o jogo Uno, compondo-se de regras que constituem realidades novas, que só existem porque se pactua sua existência. Também preveem hipóteses e prescrevem condutas a serem atendidas se e quando essas hipóteses acontecerem, suscitando dúvidas sobre se as regras são aplicáveis a esta ou àquela situação, sobre qual o sentido das regras, o que efetivamente prescrevem, sobre se incidiram etc.

Ocorreu a hipótese de incidência? O fato efetivamente ocorrido se subsume a ela? É o que se discute quando alguém, diante de carta com o número sete sido lançada sobre a mesa — e que obriga todos a permanecerem em silêncio — produz leve ruído com a boca, e se inicia uma discussão sobre se aquilo foi, ou não, uma “fala”. A pessoa ia começando a falar, percebeu o deslize, e transformou a fala em um bocejo, uma tosse ou um espirro, para disfarçar. Ou, diversamente, espirrou mesmo, mas de forma ruidosa. Incide a regra? Você, leitora, se já brincou de Uno, certamente conhece alguma história — e talvez uma briga — em torno do sentido, do alcance e da aplicabilidade das regras deste jogo.

Qual o sentido do texto normativo? Quando se coloca uma carta com o sete, que, já se disse, obriga todos a ficarem em silêncio, o silêncio deve ser mantido por uma rodada completa, ou até que algum jogador coloque outro sete? Surge aí mais espaço para discussão, que pode ser acalorada ao ponto de pôr em risco amizades ou namoros.

Já curioso sobre as relações entre o jogo e a Teoria do Direito, e usando o primeiro como recurso didático para ensinar aos meus alunos institutos da segunda, chegou-me uma inusitada história, vivida por uma amiga durante sua juventude, quando fez intercâmbio no exterior: uma criança da qual ela eventualmente era baby-sitter gostava muito do jogo (que minha amiga levara consigo do Brasil), mas não conhecia bem suas regras nem falava português. Minha amiga, jogando com a criança, quando estava perdendo, mudava um pouco as regras, dando-lhes interpretação peculiar e “inovadora”. Se questionada, lia com toda a autoridade as instruções constantes do manual em português, traduzindo-as ao seu gosto para o idioma da criança. Com um sorriso levemente maligno, alegou ser essa sua suave e inofensiva vingança pelas muitas peraltices que tinha de aguentar. O episódio me remeteu à Igreja Católica na Europa Medieval, quando as bíblias estavam todas escritas em latim, idioma que a imensa maioria da população, analfabeta, sequer conhecia. A Igreja então dizia que a bíblia determinava o que ela, sua autorizada intérprete, queria. Lembra-nos, ainda, da importância da transparência e da cognoscibilidade das leis e demais atos normativos. Quando as leis são escritas de modo não facilmente compreensível, incrementa-se o risco de interpretações arbitrárias e manipulativas.

Pode-se com jogo, ainda, ilustrar a discussão sobre as fontes do direito, quando se discute a legitimidade de uma interpretação dada a uma regra, em momento de conflito, e se vai buscar a caixa, o manual de instruções, ou algum site na internet onde estão as “verdadeiras” regras, se recorrem a terceiros para dirimi-lo, consultam-se amigos versados e considerados autorizados no jogo etc.

Os exemplos são muitos, e talvez fiquem para o livro a ser escrito. Por enquanto, hoje nesta coluna, pretendo examinar apenas a necessidade de as regras serem claras, e previamente conhecidas por todos, para que com isso se evitem manipulações, ou mesmo se frustre a dignidade e a liberdade de quem precisa conhecer previamente as consequências de suas condutas para poder decidir autonomamente como se conduzir. E pretendo fazê-lo tendo em mente o texto aprovado pela Câmara dos Deputados da Proposta de Emenda Constitucional 45/2019, da “reforma tributária”. Sobretudo porque, em se tratando de projeto ainda em gestação, a clareza do texto é indispensável também ao devido processo legal legislativo, e à própria democracia, com reflexos sobre a legitimidade do que se aprova.

Há inúmeros aspectos que podem e merecem comentário e exame profundo, quanto ao texto da PEC. Mas pontuo apenas dois, nos quais a falta de clareza pode fazer com que depois se leia o que se quiser na caixa do jogo escrito em língua enigmática, ou na Constituição, se aprovado o texto da proposta: (1) o imposto seletivo será não cumulativo? (2) IBS e CBS se poderão sobrepor a outros impostos, como o ITBI ou o IOF?

Nenhum desses pontos parece claro, e depois será possível ler na Constituição o que se quiser ler. Melhor deixar claro agora, para que as decisões sobre o que está sendo aprovado sejam conscientes.

Quanto à não cumulatividade do imposto seletivo, o texto da PEC não é explícito em afirmar se ela será, ou não, adotada. Mas estabelece que o imposto poderá incidir na produção, na importação ou na comercialização de bens e serviços prejudiciais à saúde e ao meio ambiente, deixando espaço para que o legislador estabeleça sua incidência em todas essas etapas, cumulativamente. Se um produto prejudicial ao meio ambiente for importado, usado como insumo para a fabricação de outro igualmente nocivo, depois revendido e passando por dois ou três intermediários até seu consumo final, haverá inúmeras incidências? Será possível abater em cada uma delas, o montante incidente nas anteriores? Caso não seja possível o abatimento, o ônus do tributo será maior não porque o produto é mais nocivo, mas só porque se submete a mais operações antes de ser consumido? Serviços nocivos poderão abater créditos do imposto seletivo já incidente sobre insumos nocivos? Nada disso está claro, e minha amiga, lendo as instruções na caixa do Uno para a criança que jogava com ela e não falava português, vai poder dizer que as regras significam o que ela quiser que signifiquem.

O mesmo pode ser dito do âmbito de incidência do IBS e da CBS. Estabelece-se que incidem sobre qualquer operação com bens e serviços, sendo os primeiros tangíveis ou intangíveis, materiais ou imateriais. Abrangerá operações com bens imóveis, em duplicidade com o ITBI?

Não satisfeito com a amplitude da noção de “bens”, o texto, ao tratar da definição de serviço, estabelece que “a lei complementar de que trata o caput poderá estabelecer o conceito de operações com serviços, seu conteúdo e alcance, admitida essa definição para qualquer operação que não seja classificada como operação com bens” (§ 7º do artigo 156-A). Qualquer operação que não seja classificada como sendo “com bens”, poderá ser uma operação com serviços, de sorte a ser abarcada pelo IBS? E se se tratar de operação relativa a títulos ou valores mobiliários? Operação de seguro? De câmbio? E se se tratar de qualquer outro fato? Toda e qualquer situação que não se enquadre como “operação bom bens” pode ser classificada como “operação com serviços”? Coçar a cabeça? Escrever um artigo para a ConJur? Ler esse artigo? TUDO o que não for enquadrável como operação com bens, poderá ser definido como serviço! Isso tornará não apenas sem sentido a competência impositiva residual prevista no artigo 154 da CF/88, mas levará a uma sobreposição indevida — porque vedada pela intepretação conjunta do artigo 154 e do artigo 146 — de competências impositivas, que poderão mesmo perder o sentido. Alguém pode dizer que está implícito, no caso, que não será assim. Mas a obscuridade poderá levar a que, como crianças que não falam português, sejamos enganados pela babysitter que domina o indecifrável idioma constante da caixa do jogo.

Em última análise, o caráter lacônico e confuso de algumas disposições da PEC 45/2019 leva a incerteza quanto à cumulatividade do imposto seletivo e ao âmbito de incidência do IBS e CBS. Abre-se espaço, com isso, para interpretações e manipulações que podem corroer a justiça e a equidade do sistema tributário. Tal como no jogo, onde as regras precisam ser entendidas por todos os participantes, o Direito deve ser formulado de maneira que seus destinatários possam compreendê-lo, garantindo um campo de jogo equilibrado. Evitar a linguagem enigmática é assegurar que o jogo seja disputado de forma justa, com todos os participantes cientes das regras, podendo assim exercer sua liberdade e autonomia de forma informada e consciente. Até porque, em se tratando das regras constitucionais de contenção do poder tributário, as consequências do conflito podem ir muito além de uma mera briga entre amigos, dos quais eles mesmos riem depois. No caso da PEC, talvez não seja engraçado.

Fonte: Conjur – Por Hugo de Brito Machado Segundo

A reforma está saindo, mas como fica o comércio exterior?

Já estávamos conversando sobre os impactos da reforma tributária no comércio exterior [1], mesmo ainda sem a expectativa de que o assunto tivesse um desenvolvimento tão rápido. Assim, depois de tantas propostas, tantos anos ou décadas de discussão, tanto ceticismo… subitamente, saiu uma proposta aprovada pela Câmara dos Deputados, que deve ser analisada pelo Senado no segundo semestre deste ano. Nada como a força de um novo governo para enfrentar grandes desafios do país. Provavelmente, ainda veremos algumas alterações no texto, mas não em aspectos essenciais.

Olhando para o texto aprovado, a Proposta de Emenda Constitucional nº 45-F/2019 [2], verificamos muitos pontos com potencial impacto sobre o comércio exterior, como os novos princípios constitucionais tributários da simplicidade, da transparência, da justiça tributária e do equilíbrio e da defesa do meio ambiente, a nova regra de IPVA (o imposto passa a incidir sobre veículos aquáticos e aéreos, como jatinhos, iates e lanchas, inclusive na importação), as desonerações tributárias de alimentos, medicamentos e outros.

Contudo, diante de tantos aspectos, proponho ao leitor hoje refletirmos sobre as alterações na tributação do consumo que, em decorrência do princípio do tratamento nacional, vão impactar a importação. Vamos discorrer especialmente sobre as seguintes dúvidas: se haverá aumento da carga tributária na importação; se serão alterados os procedimentos na importação; se haverá impacto no âmbito concorrencial.

Atualmente são exigidos na importação tributos concebidos para incidir especificamente sobre o comércio internacional e outros que normalmente oneram a produção interna e são replicados na importação [3].

Os primeiros, denominamos tributos aduaneiros, englobam o imposto sobre a importação e a taxa cobrada pela utilização do sistema de comércio exterior (a taxa Siscomex, exigida somente na importação). Em relação a estes, a reforma tributária não propõe mudanças.

Como tributos niveladores, exigidos também na importação com base no princípio do tratamento nacional, nossa lista é maior: IPI, ICMS, Contribuição para o PIS/Pasep, Cofins, Cide-Combustíveis, ISS. Incidem ainda na importação pelo modal aquaviário o adicional ao frete para renovação da marinha mercante (AFRMM) e a taxa Mercante. Aqui a reforma tributária traz impactos. Todavia, para entender essas mudanças, faz-se mister retomar alguns pontos mais gerais da reforma tributária.

Conforme a Proposta de Reforma Tributária aprovada pela Câmara dos Deputados, a Contribuição sobre Bens e Serviços (CBS) substituirá o IPI, a Contribuição para o PIS/Pasep e a Cofins; ao passo que o Imposto sobre Bens e Serviços (IBS) substituirá o ICMS e o ISS.

A CBS e o IBS constituirão um Imposto sobre o Valor Adicional (IVA) Dual, substituindo, portanto, cinco tributos e com incidência ampla sobre bens, serviços e direitos, legislação única e aplicação ampla da não cumulatividade.

Ainda não está definida a alíquota desses novos tributos, mas a previsão é que seja, para ambos os tributos somados, entre 25 a 28%, de modo a manter o nível atual de arrecadação. A alíquota somente será definida em 2024, por meio de lei complementar. Portanto, até lá, mesmo aprovada a reforma tributária, permanece o suspense.

A alguns setores foi atribuída alíquota reduzida em 60%, são eles: serviços de educação; serviços de saúde; dispositivos médicos e de acessibilidade para pessoas com deficiência; medicamentos e produtos de cuidados básicos à saúde menstrual; serviços de transporte coletivo de passageiros rodoviário, ferroviário e hidroviário, de caráter urbano, semiurbano, metropolitano, intermunicipal e interestadual; produtos agropecuários, pesqueiros, florestais e extrativistas vegetais in natura; insumos agropecuários, alimentos destinados ao consumo humano e produtos de higiene pessoal; produções artísticas, culturais, jornalísticas e audiovisuais nacionais; bens e serviços relacionados a segurança e soberania nacional, segurança da informação e segurança cibernética. Essa redução estava prevista como de 50%, mas nos momentos finais, foi aumentada para 60%.

A cesta básica, cujos produtos devem ser definidos por lei, ficou com alíquota zero pela na proposta aprovada, ou seja, receberá imunidade tributária. Além disso, foi previsto um cash back para as pessoas com menor capacidade econômica, com o objetivo de reduzir as desigualdades de renda (na verdade, esse instrumento deve servir para compensar parte da regressividade da tributação sobre o consumo); no entanto, as regras, especialmente beneficiários e limites desse cash back, ficarão por conta de lei complementar, ou seja, para futura determinação.

Especialmente a redução de 60% tem sido objeto de intensas críticas, pois se o objetivo é manter a arrecadação, quanto mais imunidades, reduções ou isenções mais alta será a alíquota geral. Inclusive há alguma pressão política para que o Senado reveja esses benefícios.

De todo modo, confirmada a alíquota prevista entre 25 a 28%, conforme já se observou, a ideia é que haja neutralidade em termos gerais de arrecadação. Contudo, em termos específicos, deve haver redução da carga tributária em energia elétrica e telecomunicações e nos produtos industrializados. Por outro lado, deve ocorrer aumento de tributação no setor de serviços, streaming e transporte por aplicativo, mesmo considerando a não cumulatividade plena. Esse aumento não alcança os serviços prestados sujeitos ao sistema do Simples Nacional.

Além da CBS e do IBS, consta da Proposta aprovada pela Câmara dos Deputados um novo tributo: o Imposto Seletivo Federal, apelidado de “Imposto do Pecado”. Trata-se de um imposto indutor ou extrafiscal, cujo objetivo é desestimular o consumo de produtos que sejam prejudiciais à saúde, ao meio ambiente, ou tragam outros malefícios, como cigarros, bebidas, alguns insumos agrícolas com impacto ambiental e também armamentos. O Imposto Seletivo Federal tem similares no exterior, como o denominado “sin tax” dos Estados Unidos.

Interessante mencionar que o IPI atualmente ostenta duplo papel, por um lado, serve como um IVA federal que alcança os produtos industrializados, por outro, mediante uma alíquota bem mais alta para certos produtos como cigarros, bebidas, armas e munições, já exercia o papel do imposto seletivo.

Apresentado o panorama, como a reforma Tributária atinge a importação?

Primeiramente, o IPI, a contribuição para o PIS/Pasep, e a Cofins serão substituídas pela CBS; e o ICMS e o ISS serão substituídos pelo IBS. Ou seja, como regra, as importações de bens e serviços estarão sujeitas à CBS e ao IBS, IVA dual, com a alíquota estabelecida (entre 25 e 28%). Além disso, na importação de bens como cigarros e bebidas, incidirá o Imposto Seletivo Federal. Nos denominados tributos aduaneiros na importação (imposto sobre a importação e Taxa Siscomex), no AFRMM e na Taxa Mercante, não há mudanças corolárias da reforma.

Dessa forma, a importação de bens e serviços estará sujeita aos seguintes tributos: imposto sobre a importação, CBS, IBS, Imposto Seletivo Federal, taxa Siscomex, AFRMM, taxa Mercante e Cide-combustíveis. Ainda parecem muitos, mas houve não apenas redução no número, como também simplificação, tendo em conta que não será necessário para o importador (da mesma forma que para o operador interno) conhecer a legislação de ICMS dos diferentes estados e nem, no caso de importação de serviços, conhecer a legislação do ISS dos municípios.

Por sua vez, verifica-se que, em respeito ao princípio do tratamento nacional, os bens importados sofrerão o mesmo impacto que ocorrer na produção e consumo internos, não alterando o aspecto concorrencial.

No que concerne aos regimes aduaneiros especiais, não há alteração direta relacionada à reforma tributária. Entretanto, por um lado, os regimes ficarão menos complexos, pois serão menos tributos “suspensos” para serem controlados e eventualmente pagos; por outro lado, a desoneração das exportações deve ficar mais simples e efetiva, diminuindo a dependência dos regimes para a competitividade das exportações brasileiras [4]. Em relação aos regimes aduaneiros aplicados em áreas especiais, há um dispositivo específico da proposta com o objetivo de garantir a preservação da competitividade da Zona Franca de Manaus e das Áreas de Livre Comércio.

No aspecto procedimental, haverá simplificação em decorrência da diminuição do número de tributos e também da padronização das alíquotas. Vale notar que a aduana controla e fiscaliza a importação de bens ou mercadorias, não de serviços e essa situação assim deve continuar.

Na nova sistemática trazida com a reforma tributária, como regra, as discussões sobre classificação de mercadorias na importação vão se restringir ao imposto sobre a importação, facilitando a aplicação das normas tributárias e diminuindo as lides e o contencioso administrativo e judicial. Nesse sentido, com menos conflito, pode-se esperar um incentivo às importações.

Desse modo, respondendo às questões propostas, não haverá aumento na carga tributária da importação em termos gerais, porém, da mesma forma que ocorre nas operações internas, alguns setores como produtos industrializados, energia elétrica e telecomunicações deverão ter redução da carga tributária, ao passo que outros, como serviços deverão ter aumento.

Continuando nas questões propostas, os procedimentos na importação, devido ao menor número de tributos incidentes e à diminuição de litígios na classificação de mercadorias, devem ser simplificados, tornando, neste aspecto, mais atrativas as importações.

Por sua vez, no que concerne à concorrência relacionada à carga tributária, as mudanças serão similares àquelas do mercado interno, de forma que não é impactado o equilíbrio concorrencial. Quanto aos procedimentos, há uma simplificação que deve se refletir no mercado interno. Contudo, o ganho em competitividade dos produtos nacionais para exportação certamente compensa com sobra esse impacto.

Dessarte, resta-nos agora acompanhar possíveis alterações pontuais e aguardar a aprovação da reforma tributária pelo Senado — com provável retorno para a Câmara dos Deputados —, sustentando a expectativa de que a nova sistemática traga simplificação e sirva não só para estimular a economia brasileira, mas também para nos tornar mais competitivos e fomentar nosso comércio exterior.

[1] Sugiro remissão aos seguintes artigos sobre o tema são: “A reforma tributária: impactos da bala de prata no comércio exterior” (Disponível em <https://www.conjur.com.br/2023-abr-11/artx-territorio-aduaneiro-reforma-tributaria-impactos-bala-prata-comercio-exterior>. Acesso em: 29 jul. 2023) e “Reforma tributária e impactos da bala de prata nos regimes aduaneiros especiais” (Disponível em < https://www.conjur.com.br/2023-mai-16/territorio-aduaneiro-impactos-bala-prata-regimes-aduaneiros-especiais https://www.conjur.com.br/2023-mai-16/territorio-aduaneiro-impactos-bala-prata-regimes-aduaneiros-especiais>. Acesso em: 29 jul. 2023)

[2] Disponível em <https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra?codteor=1728369&filename=PEC%2045/2019>. Acesso em: 29 jul. 2023

[3] Sobre a tributação da importação, sugere-se ao artigo “Um Carnaval tributário na Aduana” (Disponível em <https://www.conjur.com.br/2022-mar-01/territorio-aduaneiro-carnaval-tributario-aduana-abre-alas-eu-quero-passar>. Acesso em: 29 jul. 2023).

[4] Lembrando que há um artigo específico sobre essa questão: “Reforma tributária e impactos da bala de prata nos regimes aduaneiros especiais” (Disponível em < https://www.conjur.com.br/2023-mai-16/territorio-aduaneiro-impactos-bala-prata-regimes-aduaneiros-especiais https://www.conjur.com.br/2023-mai-16/territorio-aduaneiro-impactos-bala-prata-regimes-aduaneiros-especiais>. Acesso em: 29 jul. 2023 )

Fonte: Conjur

Taxação pode afastar super-ricos e não ter eficácia na prática

Em teoria, a taxação de fundos de investimento de super-ricos — proposta encampada na última semana pelo ministro da Fazenda Fernando Haddad (PT) — pode até soar como um possível redutor de desigualdades, em especial a de renda, mas, na prática, seus efeitos no cenário tributário e econômico do país podem não ser tão significativos.

Essa é a perspectiva de advogados tributaristas consultados pela revista eletrônica Consultor Jurídico sobre a chamada segunda fase da reforma tributária. As primeiras mudanças foram aprovadas em Emenda Constitucional votada na Câmara dos Deputados no último dia 7. O texto está atualmente no Senado.

Na última quarta-feira, Haddad afirmou que enviará ao Congresso uma proposta para taxar fundos exclusivos de investimento. O dispositivo vai compor a segunda parte da reforma tributária, que terá como alvo as desigualdades do Imposto de Renda. Hoje, o cotista de fundo exclusivo é taxado somente na hora do resgate de seus rendimentos.

“A extensão do come-cotas para a fundos exclusivos equalizaria o tratamento tributário dispensado a fundos abertos, tratando-os da mesma maneira. O ponto que devemos discutir aqui é se essa equalização é desejável”, diz o advogado Luis Felipe de Campos, do Rolim, Goulart, Cardoso Advogados.

O instrumento citado pelo tributarista, popularmente conhecido como come-cotas, é basicamente o recolhimento de imposto de renda (IR) sobre os rendimentos de determinados fundos de investimento. Uma tributação automática é feita de seis em seis meses sobre os ganhos de determinado investidor naquele período. As alíquotas variam de 15% a 20%, a depender do tipo de produto.

“Embora a Fazenda estime o potencial de arrecadação desta medida de acordo com o estoque de investimentos em fundos exclusivos no Brasil, o capital é extremamente móvel e pode fugir do país” argumenta Campos, citando ponto recorrente entre empresários que são críticos da medida.

“O super-rico ainda teria possibilidade de evitar tal cobrança, transformando o fundo em um produto de previdência, por exemplo”, sentencia.

Na prática é diferente
Para o advogado Gustavo Godoy, do TAGD Advogados, o governo, ao pensar na medida, não levou em conta sua aplicação prática. Ele endossa a ideia de que os ativos podem ser transferidos para países em que não há incidência desse imposto, chamando a política do governo de “meia ideia”.

“As medidas anunciadas para aumento da tributação dos chamados super ricos são propostas de políticas públicas que não foram construídas a partir de análises circunstanciais que permitam sua execução na prática”, diz

“Como o impacto dessa alteração será bastante significativo, diversos investidores já iniciam análises de como migrar seus ativos para estruturas ou produtos financeiros sem incidência do come-cotas. Ou seja, a medida do governo é uma meia ideia, pois dificilmente alcançará os resultados práticos desejados (diminuição da desigualdade tributária no país).”

Já a tributarista Fernanda Lains, do Bueno Tax Lawyers, diz que, sob a lógica da distribuição de renda, a medida seria importante para equilibrar determinadas arrecadações, “ao menos em teoria”. “O valor arrecadado dos super-ricos deveria voltar para a população de menor renda seja em forma de menos taxação, seja como serviço público de qualidade.”

“Resta saber se essa destinação efetivamente se dará ou se servirá apenas para fazer frente ao custo da máquina pública inchada ou das emendas parlamentares necessárias aos acordos políticos”, afirma a especialista.

A desigualdade tributária, diz a advogada Luciana Aguiar, do Alma Law, não se sana apenas com aumento de arrecadação, e também tem relação com a aplicação do orçamento, que precisa ser “bem mais eficiente”.

“Não vai aumentar e nem diminuir a desigualdade. A tributação vai trazer o ‘efeito caixa’, mas a tributação dos fundos fechados ocorreria em algum momento porque os fundos nunca foram isentos. E a desigualdade não se resolve apenas com a arrecadação. Ela depende até mais da decisão sobre o gasto”, diz a tributarista.

Fotne: Conjur

Excesso de judicialização é trava para avanço do setor aéreo

O excesso de judicialização é um problema que trava o desenvolvimento  do setor aéreo e de sua infraestrutura, o que dificulta a diminuição dos valores cobrados pelas empresas de aviação. Essa é a análise de Fábio Campos, diretor de Assuntos Governamentais, Relações Aeroportuárias e Comunicação Corporativa da Azul Linhas Aéreas, feita durante o XI Fórum Jurídico de Lisboa.

De acordo com o executivo, o Brasil representa uma faixa de cerca de 2,7% dos voos de todo o mundo. Por outro lado, segundo ele, cerca de 90% das ações judiciais contra empresas aéreas de todo o mundo são movidas por consumidores brasileiros.

“De 2018 para 2019, a aviação adicionou 20% de viajantes, enquanto as ações judiciais cresceram em 109% nesse mesmo período. Em 2022, a gente já está coletando dados. Esses números triplicaram desde 2019. Temos um crescimento exponencial de uma indústria que se usa do sistema judiciário, que inclusive tem a ver muito com essa questão de digitalização, justamente porque muitas delas são plataformas digitais, aplicativos, que captam clientes no intuito da judicialização.”

Campos cita a Resolução 400 da Agência Nacional de Aviação Civil (Anac), que estabelece as condições gerais aplicáveis ao transporte aéreo regular de passageiros, seja ele doméstico ou internacional. “Ela é uma regulamentação, quando comparada com o resto do mundo, mais pró-consumidor que existe. Não estou questionando a resolução, mas acho que você já põe o consumidor numa situação extremamente positiva quando comparado ao resto do mundo.”

Fábio Campos participou da mesa “Turismo, infraestrutura, governança e perspectivas”, que foi mediada por Ticiano Figueiredo, presidente do Instituto de Garantias Penais e sócio-fundador do Figueiredo & Velloso Advogados Associados.

O presidente da Embratur, Marcelo Freixo, defendeu a necessidade de se colocar o turismo como um elemento central de modelo de desenvolvimento que dialogue com a sustentabilidade no Brasil. “O turismo, com toda a precariedade que a gente tem, representa historicamente 7,8% do PIB do país.”

Freixo acredita que nenhum outro setor tem a capacidade que o turismo tem de oferecer retorno à economia. “É preciso mudar a mentalidade política brasileira. Eu não estou falando nem com a direita, nem com a esquerda. Estou falando com todos. É preciso mudar a mentalidade política e colocar o turismo no lugar central do modelo de desenvolvimento.”

A ex-ministra Daniela Carneiro participou da mesa antes de deixar o comando do Ministério do Turismo. Ela lembrou que o turismo “é a arte de vender felicidade”. Para que o setor se fortaleça, é preciso dar maior atenção à infraestrutura e qualificação de profissionais que atuam na área. “Somente de contratos que já temos ativos no Brasil, são R$ 2,4 bilhões em investimentos em obras.”

Ex-presidente do Turismo de Portugal, Luis Araújo destacou que um dos principais problemas do setor no país europeu é a sazonalidade, quando a movimentação de turistas se concentra em um único período do ano. Além disso, lembrou a baixa qualificação dos profissionais. “60% das pessoas que trabalham no turismo, quase 300 mil pessoas, têm apenas um ensino básico. Isto é inadmissível.”

Diretor da Agência Nacional dos Transportes Terrestre (ANTT), Guilherme Theo Sampaio destacou que o Brasil é um país que movimenta grande parte do seu turismo em rodovias. “Podemos dizer que, hoje, 90% das pessoas se conectam através do transporte rodoviário de passageiros. Paralelo a isso, todo nosso transporte efetivo de cargas e pessoas é feito através de rodovias. Nesse aspecto do âmbito de atuação da agência, nossa competência é fomentar e desenvolver os projetos de infraestrutura de concessões de rodovias e ferrovias.”

Secretário de Turismo da Bahia, Luís Maurício Bacellar Batista disse que o estado possui uma estratégia turística baseada em um farol de ações do governo local. “São dois pilares: a inovação e a sustentabilidade. Em cima deles, nós trabalhamos em quatro eixos: biossegurança sanitária, capacitação e qualificação de mão de obra, obras de infraestrutura e a promoção do ‘destino Bahia’. O desenvolvimento destas ações colocaram o estado em um espaço privilegiado.”

Deputado federal por Pernambuco, Felipe Carreras disse que o básico de infraestrutura turística é a capacitação dos profissionais que atuam na área. “Sem sombra de dúvidas, a principal indústria geradora de empregos é o turismo. Para a gente ter uma política de Estado, de gestão com resultado, é importante ter continuidade de políticas públicas voltadas para o turismo para a gente poder promover, capacitar, gerar emprego e renda.”

Fonte: Conjur

PPA é ficção se não for retroalimentado pelos dados do Censo

O ciclo orçamentário da política pública é dinâmico e, grosso modo, é composto pelas etapas interconexas de planejar, executar e controlar. Caso operasse segundo pressupostos constitucionalmente adequados, tal circularidade deveria nos permitir sobrepujar a força pedagógica do controle, para extrair a máxima aprendizagem dos erros diagnosticados nos exercícios anteriores e, com isso, seria possível tanto aprimorar a gestão durante a execução orçamentária em curso, quanto formular melhores peças de planejamento para os anos vindouros.

Se controle bom é o que retroalimenta o planejamento, esse, por sua vez, precisa necessariamente buscar rastrear e incorporar todos os diagnósticos disponíveis, bem como todos os apontamentos feitos pelas mais diversas instâncias de controle, para fins de detecção, no mínimo, dos vazios assistenciais.

A recomendações e ressalvas apresentadas pelos conselhos sociais de acompanhamento e monitoramento de políticas públicas não podem ser ignoradas, tampouco podem ser preteridos seus congêneres instrumentos de notificação e alerta acerca das irregularidades emitidos pelos Tribunais de Contas. A própria série histórica de demandas judiciais revela, na mais discreta das hipóteses, um diagnóstico de déficit de cobertura das políticas públicas ordinariamente executadas pela Administração Pública.

Para além da dimensão reativa e quase sempre punitivista, os controles social, externo e judicial deveriam ter consciência de que a eficácia e a resolutividade das suas ações são diretamente proporcionais à capacidade de introjetar no âmbito do controle interno a aprendizagem institucional a que se referem os incisos I e II do artigo 74 da Constituição de 1988.

Todavia tal perspectiva ainda não é usualmente pautada, a despeito de ser — a rigor — óbvia. Ora, às vésperas do envio do projeto de plano plurianual relativo ao quadriênio 2024/2027 pelos Estados e pela União, se o ciclo orçamentário fosse reflexivo e comprometido intertemporalmente com a ampliação progressiva da qualidade do planejamento, estaríamos agora precisamente a debater como incorporar os dados do Censo 2022. Em igual medida, estaríamos a refletir amplamente sobre como internalizar, no diálogo dos poderes políticos em torno da elaboração das leis orçamentárias, o acúmulo hermenêutico produzido pelas instâncias de controle em torno da etapa de planejamento anterior e da sua respectiva execução.

A circularidade orçamentária das políticas públicas é um convite à aprendizagem intertemporal, mas — na complexa realidade social brasileira — não a temos aproveitado, na medida em que nos deixamos aprisionar por uma espiral ignorante de repetição dos erros do passado, enquanto resta pragmaticamente interditada a construção dos projetos de futuro comum por força da primazia do curto prazo eleitoral que domina a execução orçamentária em curso.

Vale lembrar que, em um mesmo exercício financeiro cada ente político deve prestar contas do quanto realizado no ano anterior, enquanto é executada a lei orçamentária vigente e é projetado o próximo ciclo, com suas respectivas diretrizes orçamentárias e orçamento anual.

Se planejar é antecipar racionalmente o futuro, necessariamente deveríamos buscar superar os problemas acumulados ao longo do tempo. Para conceber rotas aprimoradas de futuro, é preciso conhecer exaustivamente a realidade antecedente e diagnosticar a existência dos problemas, mesmo sabendo que o Estado não vai conseguir resolvê-los em sua totalidade, de uma só vez e em de uma vez por todas.

Todo bom planejamento tem como ponto de partida o diagnóstico, ou seja, o levantamento ostensivo dos vários desafios que a realidade traz, respeitadas as competências federativas de cada ente político.

Não sabemos o que fazer, porque não conhecemos consistentemente nossos problemas e, por conseguinte, não elegemos aqueles conflitos que serão enfrentados em qual sequência temporal, nem somos capazes de precisar quais insumos/meios são considerados faticamente necessários para tentar resolvê-los. Nós não avaliamos adequadamente os gastos públicos em sua série histórica, nem mesmo monitoramos os resultados e falhas das políticas públicas verificados anteriormente, de modo que quase sempre aceitamos como normal a trágica repetição dos erros ao longo dos anos e décadas.

Uma ignorância histórica de tal monta nos encerra em cenário de capturas cumulativas — sofregamente vívidas no curto prazo — que perpassam nosso capitalismo de compadrio, revelado nas múltiplas e conflituosas demandas por renúncias fiscais, créditos subsidiados, emendas parlamentares balcanizadas, contratos administrativos direcionados, subvenções, auxílios etc. É como se só fosse possível a gestão patrimonialista, porque não refletimos e corrigimos nossos erros, porque o controle não é pedagógico, tampouco retroalimenta o planejamento no ciclo da política pública.

Simplesmente não nos ocupamos do básico esforço de diagnosticar seriamente todos os problemas e, a partir daí, não confrontamos reciprocamente suas pretensões de prioridade. Assim tudo parece caótico, tudo reclama qualquer solução, tudo pode ser alvo de consultorias ou promessas milagrosas de cura pelo mercado ou pelo terceiro setor, diante de um Estado inepto e capturado não só pela cadeia produtiva de fornecedores e variados tipos de intermediários, mas até mesmo por seus agentes públicos insulados burocraticamente.

Nenhuma promessa de aprimoramento da qualidade do gasto público se implementará, de fato, sem nos dedicarmos ao diagnóstico — sempre temporal e territorialmente circunstanciado — dos nossos problemas.

Obviamente não há como pensar em soluções sem se conhecer em profundidade os problemas. Infelizmente, porém, a praxe da maioria dos nossos municípios reside na contratação de consultorias contábeis e jurídicas que oferecem modelos padronizados e genéricos de planejamento setorial e/ou orçamentário.

Neste ano em que serão formulados e apreciados os projetos de PPA estaduais e federal, a existência de haver quem venda e quem compre planejamento genérico e padronizado para fins meramente protocolares na Administração Pública brasileira reclama ser reconhecida como uma das causas centrais da fragilidade das nossas finanças públicas.

As consultorias contábeis e jurídicas que vendem sistemas informatizados com modelos padronizados, por exemplo, de plano plurianual, lei de diretrizes orçamentárias e lei orçamentária anual (PPA, LDO e LOA) precisam ser questionadas do mesmo modo que médicos têm sido demandados em juízo por oferecerem cirurgias sem prévio diagnóstico exaustivo das condições clínicas de cada paciente e sem cumprirem o dever de informação especializado para fins de consentimento específico sobre as soluções contratuais propostas.

Modelos genéricos e padronizados de PPA-LDO-LOA são como cirurgias realizadas em abstrato, porquanto sem suficiente informação prévia individualizada do paciente (aqui equiparado, no nosso caso, à coletividade afetada pela política pública proposta sem prévio diagnóstico circunstanciado).

Tecnicamente a responsabilidade estrutural da atividade de planejamento sequer pode ser terceirizada para consultorias, vez que só é cabível a execução indireta naquilo que implicar “serviços auxiliares, instrumentais ou acessórios”. Esse é o teor do artigo 3º, inciso I e § 1º do Decreto 9.507/2018, que regulamentou a execução indireta (terceirização) no âmbito da Administração Pública federal.

As consultorias contábeis e jurídicas não podem vender modelos padronizados de planejamento setorial e orçamentário, sob pena de nulidade absoluta dessa terceirização e de responsabilidade extracontratual de tais prestadores de serviço, nos moldes dos artigos 6º e 14 do Código de Defesa do Consumidor.

As consequências da frágil concepção terceirizada e pasteurizada do planejamento estatal vão desde a abertura excessiva de créditos adicionais suplementares e especiais, até a própria ineficiência da gestão pública que realiza gastos fúteis diante de tantos vazios assistenciais em outras áreas prioritárias.

O aprimoramento democrático da concepção sobre qual é o papel do Estado brasileiro e sobre quais são suas prioridades na consecução de políticas públicas deveria ser um dos nossos maiores desafios em torno do aprimoramento das regras fiscais que nos regem. O público precisa ser feito em público, até porque diagnóstico de problemas e prognóstico de possíveis soluções na Administração Pública pressupõe inafastavelmente participação popular, tal como exigido pelo artigo 48, §1º, inciso I da Lei de Responsabilidade Fiscal.

A noção de impositividade orçamentária — prevista no §10 do artigo 165 da CF/1988 — passa pela máxima vinculação do gestor ao planejamento que ele formula em diálogo com a sociedade. Para tanto, é preciso retomar a imprescindibilidade do dever de diagnóstico específico que se impõe tanto ao gestor, quanto a todas as consultorias que ele contrata a título de “serviços auxiliares, instrumentais ou acessórios”.

É preciso diagnóstico circunstanciado e individualizado de cada ente político da federação em cada política pública, para que a população possa — durante o processo legislativo que fomenta o debate das leis do planejamento setorial e orçamentário — exercer seu direito de questionar e influenciar o que vier a ser reputado democrática e republicanamente como prioridade da ação governamental.

Nenhuma fonte de conhecimento da realidade brasileira é mais rica e tecnicamente hígida do que aquela que se pode extrair dos dados do Censo de 2022, tanto quanto os apontamentos feitos pelas diversas instâncias de controle (a título de recomendações, ressalvas, alertas e determinações).

Sem esse esforço estrutural, seguiremos a acumular soluções ineptas ou abusivas em nossos instrumentos legais de planejamento protocolar, de onde se originam a má qualidade do gasto público posteriormente executado, a corrupção e, por vezes, a inércia preguiçosa de algumas instâncias de controle que se orientam tardiamente para a punição dos delitos e improbidades consumados.

O diagnóstico é o ponto de partida, mas não é o ponto de chegada. Muito embora até haja um elenco relativamente amplo de dados empíricos coletados para fins de diagnóstico, falta-nos capacidade de enfrentar a perspectiva de que é impossível resolver tudo, para todos e de uma vez só. Eis a razão pela qual é preciso ordenar prioridades em face da própria gestão da escassez.

Desse modo, precisamos fortalecer o PPA, mas não apenas ele. Precisamos resgatar a intrínseca correlação substantiva entre os planos orçamentários quadrienais, de um lado, e as peças de planejamento setorial nas mais diversas políticas públicas, de outro.

É oportuno lembrar que a essência do PPA reside nos programas de duração continuada, porque ali é que estão densificados fiscalmente os serviços públicos essenciais que devem ser mantidos ao longo do tempo, independentemente do governo que entrar ou sair.

Os programas de duração continuada do PPA correspondem, na seara orçamentário-financeira, ao núcleo indisponível da ação estatal, que deve ser financiado até mesmo por meio de dívida pública. Tal garantia intertemporal também pode ser associada, no Direito Administrativo, ao princípio da continuidade dos serviços públicos. Para o Direito Financeiro, portanto, os programas de duração continuada identificam, em última instância, o tamanho constitucionalmente necessário do Estado.

Esse horizonte de essencialidade fiscal delimita o tamanho do Estado e fixa as despesas que não podem ser preteridas ou mitigadas ao longo do tempo. Trata-se, como já dito, da própria identidade constitucional mínima do que o orçamento público precisa contemplar.

A fixação dos programas de duração continuada do PPA como o locus onde podemos reconhecer o tamanho constitucionalmente necessário do Estado é reforçada todos os anos pela lei de diretrizes orçamentárias, em seu anexo de despesas não suscetíveis de contingenciamento. Aludido anexo arrola todas as despesas que correspondem normativamente a obrigações estatais e, como tal, não podem ser fiscalmente reduzidas ou limitadas, independentemente do comportamento da arrecadação estatal, o que implica, no limite, que seu financiamento deve ser assegurado até mesmo mediante dívida pública.

As despesas não contingenciáveis são prioritárias, porque devem ser executadas, ainda que haja frustração de receita, mesmo quando se verifique risco de descumprimento da meta de resultado primário e ainda que o PIB seja negativo em determinado exercício financeiro. No pior dos cenários, elas devem ser financiadas mediante dívida pública, daí porque é possível correlacioná-las com a noção de “mínimo existencial” no âmbito do Direito Financeiro.

Tendo isso claro em mente, devemos impugnar a hipótese de determinado gestor público “furar a fila” de prioridades normativas durante a execução orçamentária, passando despesas discricionárias de curto prazo eleitoral, à frente de tais despesas obrigatórias não suscetíveis de contingenciamento ou dos programas de duração continuada do PPA.

É preciso questionar como fiscalmente ilegítima a opção de postergar tais gastos prioritários, sobretudo quando se verificar que houve alocação de recursos públicos, por exemplo, em festividades, shows e propaganda, ou ainda, quando forem concedidas novas renúncias de receitas por prazo indeterminado e sem pleno atendimento aos requisitos exigidos pelo artigo 14 da Lei de Responsabilidade Fiscal.

Programas de duração continuada e despesas insuscetíveis de contingenciamento são as prioridades indiscutivelmente eleitas no bojo das leis do ciclo orçamentário. Não cabe frustrar a primazia alocativa que lhes ampara, por meio de filas de espera, omissões regulamentares, restos a pagar, passivos judicializados e precatórios, entre outras estratégias de inversão de prioridades ao longo da execução do orçamento.

É premente que passemos a impor, de forma ampla e ostensiva, o dever de aderência do executado em face do planejado, salvo motivação que objetivamente circunstancie os eventuais desvios de rota. Essa, aliás, é a dimensão conceitual do que foi inscrito no §10 do artigo 165 da Constituição de 1988, pela Emenda 100/2019, a pretexto de impositividade orçamentária.

Entre a teoria e a prática, porém, vai uma longa distância. Infelizmente, no Brasil, nós não temos tido capacidade de pautar a ação estatal, para além do curto prazo eleitoral dos agentes políticos de ocasião. Falta-nos o horizonte de médio e longo prazos.

Sem esse olhar referido ao que almejamos no futuro para o conjunto das políticas públicas, a sociedade brasileira perde a capacidade de enfrentar os riscos de captura patrimonialista dos recursos governamentais.

A esse propósito, precisamos estar conscientes de que é impossível, na realidade brasileira contemporânea, falar de revisão das regras fiscais e de rediscussão qualitativa do teto, sem debatermos as razões pelas quais o planejamento não vincula execução orçamentária.

Por que não fiscalizamos a execução orçamentária, no mínimo, à luz dos pressupostos teóricos do controle do ato administrativo discricionário? No Direito Administrativo, é possível controlar se o motivo alegado para prática de determinado ato discricionário, de fato, existiu e, caso o motivo seja falso ou não seja consonante com a regra de competência, o ato pode vir a ser anulado.

Ora, precisamos considerar a execução orçamentária como uma série de atos administrativos, suscetíveis a controle, no mínimo, pelos prismas do dever de motivar, da existência e consistência dos motivos invocados para a prática do ato, do desvio de finalidade, da razoabilidade e da proporcionalidade, tal como já assentado na doutrina administrativista.

É premente a necessidade de impormos o ônus de motivação, caso o executado não seja aderente ao planejado, sobretudo à luz da impositividade orçamentária, como já dito prevista no §10 do artigo 165 da CF/1988. A noção de orçamento impositivo já é adotada em vários países desenvolvidos e essencialmente diz respeito ao dever de motivar a distorção entre planejado e executado.

Não obstante isso, as finanças públicas brasileiras ainda estão presas à retrógrada tese de insindicabilidade da discricionariedade orçamentária. Precisamos reconhecer que, de fato, a inversão de prioridades alocativas, que ocorre durante a execução orçamentária, ainda é muito pouco suscetível a controle. Para superar a frágil sujeição ao sistema de freios e contrapesos na seara fiscal, precisamos, porém, resgatar o planejamento como o eixo de ordenação legítima de prioridades, até porque esse é o fio da meada que permitirá o exercício do controle sem ofensa ao princípio da separação de poderes.

Para fortalecer o controle é preciso situá-lo como um esforço pedagógico capaz de retroalimentar o próprio planejamento. Ou seja, controle adequado é aquele que é reflexivo e obriga o gestor a aprimorar a concepção da política pública na próxima etapa de planejamento, na medida em que aponta seus vazios assistenciais e inconsistências de prognóstico.

Para superar a pecha de peça de ficção, os PPA’s estaduais e federal relativos ao próximo quadriênio devem incorporar os dados já disponíveis do Censo 2022 e o acúmulo hermenêutico das mais diversas instâncias de controle.

Eis o ponto de partida estrutural para um debate efetivamente sistêmico sobre a qualidade do gasto governamental e, por conseguinte, das próprias políticas públicas. É uma óbvia circularidade, mas, infelizmente, não é um caminho fácil de ser trilhado em nossa realidade orçamentária tão pouco reflexiva.

Fonte: Conjur

Consumidores também são responsáveis por proteção de dados

A proteção dos dados inscritos em sites de compra e venda, ou em programas de milhagem de empresas aéreas e congêneres, exige atenção por parte da empresa, mas também do consumidor — este deve se resguardar de compartilhar as informações e senhas que possam guardar questões sensíveis.

Juíza entendeu que não houve vazamento de dados por parte de companhia aérea
Reprodução

Sob esse entendimento, a juíza Roberta Nasser Leone, do 5º Juizado Especial Cível da comarca de Goiânia (GO), indeferiu indenização por danos morais a uma mulher por exposição de seus dados no bojo de uma ação de dissolução de união estável.

A autora alegou que seus dados foram vazados por uma empresa aérea, o que teria ferido, além de seus direitos de personalidade, a Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD). A juíza, no entanto, considerou que não houve vazamento de dados uma vez que o print anexado ao processo só poderia ter sido obtido por alguém que tivesse a senha do aplicativo, que só poderia ter sido passada pela própria titular.

No processo, consta que a autora e seu ex-cônjuge estão passando por uma dissolução de união estável que corre na 6ª Vara de Família da comarca. Na lide conjugal, o ex-cônjuge anexou prints do aplicativo da companhia aérea mostrando que a autora viajou a Portugal no final de 2021, momento em que “experimentou o término da união estável”.

Para a juíza, houve descuido por parte da autora, o que não reverbera em dano moral:

“Os prints mencionados pela autora foram obtidos do aplicativo da Azul, mostrando a opção de ‘gerenciar a reserva’, uma vez que a pessoa acessou o aplicativo da Azul com seu próprio usuário e senha e tirou um print das informações da reserva. Aliás, no tocante a este fato, é de conhecimento comum que apenas com informações de login e senha é que a pessoa tem acesso as informações por aplicativo, o que pode ser conseguido por qualquer pessoa que receba do títular tais informações para acesso.”

A julgadora diz que, por conta deste contexto, não há como provar qualquer vazamento de dados por parte da empresa.

“A proteção de dados exige cautela de ambas as partes, ou seja, das empresas ao criarem políticas e medidas de segurança, e dos usuários em manter seus dados pessoais e senhas protegidos e sem compartilhamento de informações. No caso, ressalto , a pessoa que teve acesso era ex-companheiro da autora.”

Fonte: Conjur

TST e o combate à dispensa discriminatória fundada na Súmula 443

A Súmula nº 443 do Tribunal Superior do Trabalho prevê ser discriminatória a dispensa de empregado soropositivo (HIV) ou acometido por outra doença grave capaz de provocar estigma ou preconceito. Assim, uma vez dispensado o empregado, este terá direito à reintegração ao emprego, em vista da invalidade do ato. O entendimento supra foi publicado ao final de setembro de 2012, há mais de dez anos, após a análise minuciosa de aproximadamente 23 precedentes.

Nesta oportunidade, o TST, diante dessa nefasta discriminação, chegou à conclusão da necessidade de elaboração de uma súmula capaz de consolidar a proteção desses empregados, vítimas frágeis do abuso do poder diretivo dos empregadores.

As súmulas são, para a doutrina majoritária, fontes do Direito. Afinal, seus enunciados traduzem a jurisprudência dominante de determinado órgão ou tribunal sobre algum tema até então controvertido e causador de instabilidade e insegurança jurídica.

Ora, o empregado já se encontra naturalmente em condição de vulnerabilidade perante o empregador, seja ela técnica, econômica, financeira etc. Por tal razão, é necessária a proteção jurídica daqueles ainda mais fragilizados por questões de saúde, que podem ter suas chances no mercado trabalho minadas e, com isso, extinta a fonte de renda para a garantia de suas necessidades básicas.

Tratava-se e ainda se trata de questão afeta à dignidade da pessoa humana, fundamento de nossa República Federativa, de modo que, não poderia o TST tomar decisão diferente. Em resumo, com o posicionamento adotado, o Tribunal Superior do Trabalho tem pacificado o entendimento de que o direito potestativo do empregador, em dispensar empregados sem justo motivo encontra limites.

Esses limites são confirmados pelos princípios constitucionais assecuratórios do direito à vida, ao trabalho, à dignidade da pessoa humana e a não discriminação, respaldados pelos artigos 1º, III e IV, 3º, IV, 5º, caput e XLI, 7º, I, 170 e 193 da Constituição Federal de 1988; pelas previsões contidas na Lei nº 9.029/1985, que vedam práticas discriminatórias para efeitos admissionais ou de permanência na relação de trabalho; além das Convenções 111 e 117 da Organização Internacional do Trabalho.

Ocorre que, a expressão “outra doença grave que suscite estigma ou preconceito” é aberta e inexata. A consequência disso são as dúvidas para os próprios trabalhadores e empregadores em identificá-las no momento de dispensa, mas, principalmente, um desafio interpretativo para os juízes e tribunais trabalhistas.

O problema reside no fato de que ainda não existe um rol certo e determinado que contenha quais doenças seriam consideradas graves a ponto de gerar estigma ou preconceito. Deste modo, cabe aos julgadores determinarem, nos casos concretos, quais seriam tais doenças ou situações, o que provoca críticas dos positivistas, os quais sugerem a violação de princípios como o da legalidade, da reserva legal e da separação dos poderes, além do controle do poder potestativo do empregador.

Críticas à parte, em caso de relatoria do ministro Maurício Godinho Delgado, datado de março de 2023, a 3ª Turma do TST reconheceu a dispensa discriminatória de empregada que foi despedida no curso da licença médica, e com perícia agendada no INSS, por ser acometida com quadro grave de TEPT (transtorno de stress pós-traumático) e TP (transtorno de pânico). Vejamos:

“A) AGRAVO DE INSTRUMENTO. RECURSO DE REVISTA. […]. Agravo de instrumento provido. B) RECURSO DE REVISTA. PROCESSO SOB A ÉGIDE DA LEI 13.015 /2014 E ANTERIOR À LEI 13.467 /2017. DISPENSA DISCRIMINATÓRIA. EMPREGADO PORTADOR DE DOENÇA PSIQUIÁTRICA INCAPACITANTE. INDENIZAÇÃO POR DANO MORAL DECORRENTE DA DISPENSA DISCRIMINATÓRIA. Presume-se discriminatória a ruptura arbitrária do contrato de trabalho, quando não comprovado um motivo justificável, em face de circunstancial debilidade física causada por doença grave. Esse entendimento pode ser abstraído do contexto geral de normas do nosso ordenamento jurídico, que entende o trabalhador como indivíduo inserto numa sociedade que vela pelos valores sociais do trabalho, pela dignidade da pessoa humana e pela função social da propriedade (arts. 1º, III e IV, e 170, III e VIII, da CF). Não se olvide, outrossim, que faz parte do compromisso do Brasil, também na ordem internacional (Convenção 111 da OIT), o rechaçamento a toda forma de discriminação no âmbito laboral. Na esfera federal, sobressai o disposto no art. 1º da Lei 9.029 /1995, que veda a adoção de qualquer prática discriminatória e limitativa para efeito de acesso à relação de trabalho, ou de sua manutenção, por motivo de sexo, origem, raça, cor, estado civil, situação familiar, deficiência, reabilitação profissional, idade, entre outros. Na esteira desse raciocínio, foi editada a Súmula 443 /TST, que delimita a pacificação da jurisprudência trabalhista neste aspecto, com o seguinte teor: “Presume-se discriminatória a despedida de empregado portador do vírus HIV ou de outra doença grave que suscite estigma ou preconceito. Inválido o ato, o empregado tem direito à reintegração no emprego”. Importante registrar que, seguindo a diretriz normativa proibitória de práticas discriminatórias e limitativas à manutenção da relação de trabalho, tem-se que a não classificação da doença do empregado como suscetível de causar estigma ou preconceito, a teor da Súmula 443 desta Corte Superior, não constitui, por si só, em óbice à constatação de dispensa discriminatória, quando tal prática ilícita emergir do acervo probatório produzido nos autos. Nesse passo, se o ato de ruptura contratual ofende princípios constitucionais basilares, é inviável a preservação de seus efeitos jurídicos. […]. Na hipótese, extrai-se do acórdão recorrido que ” a reclamante laborou de 07/12/2011 a 04/05/2017, sendo dispensada imotivadamente com aviso prévio indenizado. Todavia, há provas nos autos de que, à época da dispensa, a autora não gozava de capacidade laboral e, portanto, não poderia ter sido desligada “. O TRT afirmou que, do conteúdo probatório constante dos presentes autos, extrai-se que há atestado – assinado em 20/04/2017 – por médica psiquiatra, confirmando que a Obreira encontrava-se em tratamento psiquiátrico, no qual consta recomendação de afastamento do trabalho até a data da perícia – 09/06/2017. […] Nesse contexto, a Corte de Origem manteve a sentença que entendeu ser devida a reintegração da Obreira, em razão de ter sido dispensada doente. […] Não obstante todas essas premissas, entendeu que não houve dano moral e indeferiu o pagamento de indenização por dano moral em razão de despedida discriminatória. Nesse cenário, evidencia-se dos elementos fáticos delineados pela Corte Regional que a Reclamante foi dispensada doente e que a Ré detinha conhecimento sobre o seu quadro de saúde – de incontestável natureza grave. Desse modo, considera-se que a decisão regional, ao entender que não houve discriminação na dispensa da Reclamante, foi proferida em dissonância ao entendimento consubstanciado na Súmula 443 /TST. Registre-se, outrossim, que a conduta discriminatória é gravemente censurada pela ordem jurídica, especialmente a partir dos comandos constitucionais de 5.10.1988 (Preâmbulo do Texto Máximo; art. 1º, III; art. 3º, I e IV; art. 5º, caput e inciso I; art. 5º, III, in fine, todos preceitos da Constituição da República). O caráter discriminatório da dispensa restou evidenciado nos autos, mormente pelos dados fáticos constantes do acórdão regional – o que não foi desconstituído pela Reclamada, haja vista que não há notícias, no acórdão recorrido, de que a dispensa tenha validamente decorrido de outro motivo. Forçoso concluir, desse modo, que é inequívoco o dano moral sofrido pela Reclamante, pois a caracterização da dispensa discriminatória configura ato ilícito que atentou contra a sua dignidade, a sua integridade psíquica e o seu bem-estar individual – bens imateriais que compõem seu patrimônio moral protegido pela Constituição -, ensejando a reparação moral, conforme autorizam os incisos V e X do art. 5º da Constituição Federal e os arts. 186 e 927, caput, do CCB/2002. Desse modo, considera-se que o Tribunal Regional, ao entender que não houve discriminação na dispensa da Reclamante, decidiu em contrariedade ao entendimento consubstanciado na Súmula 443 /TST. Recurso de revista conhecido e provido”. (TST, AIRR -1000934-94.2017.5.02.0702, 3ª Turma, relator ministro Maurício Godinho Delgado, DEJT 31/3/2023).

O caso é bastante significativo, tendo em vista que o recurso de revista da trabalhadora foi conhecido justamente por contrariedade à Súmula 443 do TST e ao artigo 186 do CC/2022, quando a reclamante se viu frustrada em suas tentativas de receber a devida proteção e reparação jurídica, tanto em primeira, quanto em segunda instância.

Destaca-se que foi dado provimento ao recurso de revista para reformar o acórdão do Tribunal Regional e reconhecer o término da relação de trabalho por ato discriminatório do empregador, acrescentando-se a condenação ao pagamento de indenização por danos extrapatrimoniais, no importe de R$ 30 mil.

Na inicial, a trabalhadora pretendeu o reconhecimento da dispensa discriminatória, a reintegração ao emprego, a manutenção do plano de saúde fornecido pelo empregador e a indenização por danos morais. As principais alegações da autora estavam fundadas em prova documental.

Contudo, o juízo de 1º grau não reconheceu a dispensa discriminatória e igualmente julgou improcedente o pedido de indenização por danos extrapatrimoniais da autora, apesar de o conjunto probatório o levar a determinar sua reintegração e a manutenção do plano de saúde.

Restou comprovado que o empregador tinha conhecimento de que a trabalhadora estava em licença e, mesmo assim, a convocou para realizar exame de retorno, tendo esta sido dispensada dentro do ambulatório médico, por representantes da empresa.

A decisão a quo foi confirmada pelo acórdão da 6ª turma do Tribunal Regional do Trabalho da 2ª Região que, apesar de manter a reintegração ao emprego e a consequente manutenção do plano de saúde, mesmo após recurso da reclamada, negou provimento ao recurso ordinário da reclamante não reconhecendo a dispensa discriminatória e negando o direito à indenização, sob o fundamento de que o quadro psicológico que acometeu a trabalhadora, “embora lamentável, não suscita estigma ou preconceito”.

Ora, a ordem cronológica dos fatos e o conjunto probatório escancararam a discriminação perpetrada pelo empregador em face da empregada. Porém, somente na instância extraordinária trabalhista foi dada a devida atenção ao caso concreto, mesmo não havendo motivos de ordem técnica, financeira, econômica, ou jurídica, para sua dispensa.

Assim, a importante decisão do TST, que se valeu da interpretação analógica, finalística e teleológica da Súmula 443, felizmente, garantiu a proteção necessária à trabalhadora no caso em comento, após a dispensa discriminatória sofrida.

Fonte: Conjur

Sistema eletrônico deu celeridade a processos, mas ainda há riscos

Foi muito significativa a evolução observada na dinâmica dos processos com a implantação do sistema eletrônico. Além dos ganhos práticos e da redução do uso de papel, o que resultou em benefício para o meio ambiente, o andamento das ações tornou-se mais célere. No entanto, ainda é preciso ter muito cuidado com o risco de ataques cibernéticos e de acesso indevido a dados.

Essa conclusão foi apresentada durante a mesa de discussões “Tokenização: o impacto digital na atividade cartorária”, que fez parte do XI Fórum Jurídico de Lisboa, evento que reuniu no fim de junho vários dos mais importantes nomes do Direito do Brasil e da Europa. O debate foi mediado pelo ministro Antonio Saldanha Palheiro, do Superior Tribunal de Justiça.

Sócio do escritório Wambier, Yamasaki, Bevervanço & Lobo Advogados e professor do Instituto Brasileiro de Ensino, Desenvolvimento e Pesquisa (IDP), o advogado Luiz Rodrigues Wambier ressaltou as vantagens apresentadas pelo processo judicial eletrônico.

“O processo está mais célere, embora isso não deva ser o objetivo central. O processo eletrônico democratizou, simplificou e desburocratizou as ações judiciais. Ele deixou de ter aquele peso cartorial do passado. Essa evolução demorou, mas chegou à atividade notarial e registral. Foi um passo longo e difícil, mas que vem sendo paulatinamente implantado”, disse Wambier.

“Além disso, o processo eletrônico trouxe vantagens periféricas interessantes, secundárias, mas não menos relevantes, como, por exemplo, a atenção com o meio ambiente. Nós eliminamos o uso das montanhas de papel. Provavelmente toneladas de árvores que passaram a ser e que podem ser conservadas em função do uso mais restrito do papel”, complementou o advogado.

Por outro lado, o presidente do Colégio Notarial do Brasil da Seção do Distrito Federal, Hércules Benício, chamou a atenção para os problemas surgidos com a novidade tecnológica. “Nós temos os riscos dos ataques cibernéticos e em relação à confidencialidade e à assimetria informacional entre as partes. Assim, é importante a definição de token e suas espécies, e o que há de nova regulação para o país.”

Tokens
Tabeliã no 15º Ofício de Notas do Rio de Janeiro e ex-procuradora do estado do Rio, Fernanda Leitão explicou que o token cartorial é diferente do bancário. Como um código hash (usado para fazer o depósito de registro de programa de computador), o token é um bem, seja ele tangível ou não. “Pode ser imóvel, direito autoral, tela de arte ou qualquer outro tipo de bem de valor econômico que não seja fungível, como é o caso do dinheiro e dos bitcoins”.

token, disse Fernanda, só existe quando há blockchain, que é um conjunto de tecnologias já conhecidas de criptografia, um banco de dados centralizado. A grande novidade é que com o blockchain é possível tornar um arquivo digital íntegro, ou seja, não se pode copiá-lo, multiplicá-lo ou editá-lo.

“Esse registro é imutável, transparente, descentralizado. Ou seja, ele parte de um consenso. Não existe uma só autoridade certificadora, o que dá uma segurança a mais para esses procedimentos.”

Fernanda destacou ainda que, caso o primeiro registro dentro do blockchain seja falso, ele vai contaminar todo o sistema e todos os demais registros, afetando a segurança do sistema imobiliário. “Então, é essencial essa intervenção dos notários para que toda essa tokenização seja feita de forma transparente e segura.”

Presidente do Colégio Notarial do Brasil e 23ª Tabeliã de Notas de São Paulo, Giselle Oliveira de Barros apresentou o conceito de smart escrituras (contratos inteligentes): “Contratos inteligentes são programas que se executam de forma automática assim que certas condições acordadas previamente pelas partes são atendidas. Não há necessidade de intermediários, como bancos ou entidades reguladoras, para garantir a execução das cláusulas.”

Segundo Giselle, todo o processo é feito de forma automática, usando códigos que executam as regras pré-definidas pelas partes assim que os contratos são publicados. Dessa forma, eles são inseridos em uma rede de blockchain, não sendo mais possível alterar ou manipular as disposições contratuais.

“Quando formalizada por um tabelião de notas, constitui-se a smart escritura, que representa, a meu modo de ver, um mundo perfeito. Isto é, uma vez que temos a imutabilidade do blockchain, acrescida da segurança decorrente da fé pública de um notário, conseguimos juntar na smart escritura a humanização e a expertise do atendimento notarial, a gestão automatizada e a tecnologia do blockchain.”

Diretor-geral da Faculdade Baiana de Direito e sócio da banca Didier, Sodré e Rosa Advocacia e Consultoria, Fredie Didier disse que o token funciona como um avatar para os imóveis. “É preciso lembrar que o Brasil possui um sistema de serventias amplo, estrutura tecnológica muito forte e normas que permitem que negócios sejam criados.”

O senador Wilder Morais (PL-GO) levou ao debate o projeto de lei de sua autoria que trata da prestação de serviços de ativos virtuais e que determina que a Comissão de Valores Mobiliários (CVM) seja a responsável pelo monitoramento de ativos passíveis de tokenização.

“Nós temos de ter um processo que tenha certificação e que dê garantia de que aquele título tenha um procedimento e um acompanhamento. É muito importante que o sistema imobiliário e os cartórios participem diretamente para que a gente possa ter a origem de cada um desses empreendimentos.”

O evento
Esta edição do Fórum Jurídico de Lisboa, que aconteceu entre 26 e 28 de junho, teve como mote principal “Governança e Constitucionalismo Digital”. O evento foi organizado pelo IDP, pelo Instituto de Ciências Jurídico-Políticas da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa (ICJP) e pelo Centro de Inovação, Administração e Pesquisa do Judiciário da FGV Conhecimento (CIAPJ/FGV)

Ao longo de três dias, a programação contou com 12 painéis e 22 mesas de discussão sobre temas da maior relevância para os estudos atuais do Direito — entre eles debates sobre mudanças climáticas, desafios da inteligência artificial, eficácia da recuperação judicial no Brasil e meios alternativos de resolução de conflitos.

Fonte: Conjur

Regime aberto é suficiente em caso de tráfico de pequena quantidade

O regime aberto e a substituição da pena privativa de liberdade são suficientes para a repressão e prevenção do crime de tráfico de drogas quando a quantidade apreendida é pequena, o tráfico privilegiado é reconhecido e o réu não é reincidente.

Com essa fundamentação, o ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal, fixou o regime inicial aberto para um homem condenado pelo tráfico de 0,59 grama de crack e ainda converteu a pena em medidas restritivas de direitos, cujas condições devem ser estabelecidas pelo juízo de origem.

O réu foi condenado em primeira instância a dois anos e três meses de prisão em regime semiaberto. Mais tarde, o Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ-SP) reduziu a pena para um ano e 11 meses.

A defesa, então, impetrou pedido de Habeas Corpus no Superior Tribunal de Justiça, mas ele foi negado pelo relator, desembargador convocado Jesuíno Rissato.

Ao STF, o advogado Geazi Fernando Ribeiro pediu a aplicação do princípio da insignificância. Ele também alegou que não ficou claro o envolvimento do acusado com o tráfico e que não houve prova da destinação da droga apreendida a atividades ilegais.

Na visão de Alexandre, os elementos apontados pelas instâncias antecedentes “não se mostram aptos a justificar o agravamento do regime prisional”.

Ele destacou a pequena quantidade de droga, indicou que foi aplicada a minorante do tráfico privilegiado em seu patamar máximo e observou que não há registro de reincidência.

“Presentes essas circunstâncias”, o magistrado considerou que o regime aberto era adequado. E, “considerando que os vetores para a substituição da pena são basicamente os mesmos para o estabelecimento do regime prisional”, ele também autorizou a conversão da pena em medida restritiva de direitos.

Fonte: Conjur