Sem padrão ou critérios, ANPP é vantajoso apenas para o MP

A falta de critérios e de orientações objetivas para a assinatura do acordo de não persecução penal (ANPP) vem causando problemas para os advogados e seus clientes. Criminalistas ouvidos pela revista eletrônica Consultor Jurídico apontam que cada membro do Ministério Público avalia e fecha tais acordos à sua própria maneira. Com isso, o ANPP se torna uma ferramenta interessante somente para a acusação.

Edward Rocha de Carvalho, do escritório Miranda Coutinho, Carvalho & Advogados, diz, por exemplo, que alguns promotores negociam o acordo exclusivamente por meio de petições escritas. Já outros permitem ajustes por telefone ou até marcam audiências. “Não tem procedimento padrão.”

Para além disso, as diretrizes sobre quando se deve fechar um ANPP não são interpretadas da mesma forma pelos membros do MP. Carvalho cita o caso de um promotor que justificou não ter oferecido um acordo porque isso “pega mal” na sua pequena comarca.

Matteus Macedo, por sua vez, conta que certos procuradores consideram possível a celebração do ANPP em qualquer momento processual, desde que o caso não tenha transitado em julgado. Já outros entendem que o acordo só pode ser oferecido até a denúncia.

Na prática, muitas vezes, o advogado precisa acionar a 2ª e a 5ª Câmaras de Coordenação e Revisão (CCRs) do Ministério Público Federal (responsáveis, respectivamente, por casos gerais e crimes contra a administração), que têm entendimento consolidado a favor da possibilidade de ANPP em qualquer momento antes do trânsito em julgado.

O ANPP está previsto no artigo 28-A do Código de Processo Penal, inserido em 2019 pela lei “anticrime”. De acordo com a norma, o acordo pode ser fechado em casos de infração penal sem violência ou grave ameaça e com pena mínima inferior a quatro anos. Também precisa ser “necessário e suficiente para reprovação e prevenção do crime”.

Para Macedo, essa cláusula é “muito aberta”. Ou seja, não há uma definição exata sobre o que é um acordo suficiente para a reprovação do crime. Ele narra duas situações pelas quais já passou: em um caso, o membro do MP fechou o ANPP porque o caso envolvia R$ 200 mil; já em outro, o valor era de R$ 200 milhões, mas o procurador negou o acordo.

Renato Stanziola Vieira, presidente do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCRIM), lembra que, pela lei, a possibilidade de ANPP não depende do montante envolvido. Ele defende que o acordo seja proposto sempre, independentemente do valor: “Se tivermos um critério do valor patrimonial, estaremos desconsiderando a pena do crime”.

Diretrizes variadas
Sócia do escritório Mattos Filho, a criminalista Paula Moreira Indalecio explica que cada membro do MP é independente para negociar o ANPP dentro dos parâmetros estabelecidos no CPP. Porém, existem algumas orientações.

As CCRs do MPF, por exemplo, têm uma orientação conjunta e um enunciado (98/2020) que fixam determinados critérios a serem observados para a assinatura dos acordos, além de uma orientação específica sobre ANPPs feitos de forma virtual.

E os MPs estaduais também têm suas regras. O MP-SP, por exemplo, publicou uma recente resolução que regulamenta os acordos, além de um “roteiro para o ANPP“. Já o MP-RJ tem duas resoluções sobre o tema (uma de 2021 e outra de 2022). O MP-PR possui um protocolo, o MP-SC tem um manual e o MP-MG dispõe de um guia.

Por fim, o Conselho Nacional do Ministério Público tem uma resolução de 2017, que foi alterada por outra no ano seguinte. Embora algumas de suas regras tenham sido reproduzidas na lei “anticrime”, tais atos são mais restritos do que as regras do CPP.

As normas do CNMP estabelecem, por exemplo, a impossibilidade de proposta de acordo quando o dano causado for superior a 20 salários mínimos (ou a outro parâmetro econômico definido pelo respectivo órgão de revisão, conforme a regulamentação local). Também impedem a celebração de ANPP quando o delito for hediondo ou equiparado e quando o aguardo para seu cumprimento possa causar a prescrição.

ConJur pediu explicações a vários MPs sobre os problemas relatados pelos advogados. Em resposta, o MPF, o MP-SP e o CNMP apenas informaram que têm suas regulamentações próprias.

Prejuízos
Segundo Paula Indalecio, para propor um acordo o representante do MP precisa verificar previamente se existem indícios de autoria e materialidade. Isso porque, conforme o CPP, o ANPP só pode ser oferecido em “não sendo caso de arquivamento”. Mas ela diz que “muitos acordos são oferecidos de maneira prematura, sem que haja profunda análise dos elementos investigados”.

Renato Vieira indica que, sem um regramento específico, o MP pode acabar oferecendo ANPP em casos nos quais a atitude correta seria “o arquivamento puro e simples”. Segundo ele, o acusado muitas vezes aceita o acordo para não correr o risco de ser processado — quando, na verdade, o caso deveria ser arquivado. Já Mateus Macedo diz que muitos acusados preferem fechar um acordo porque a definição é mais rápida e a solução é previsível. Assim, o ANPP se torna, nas palavras do presidente do IBCCRIM, uma “ameaça de processar alguém”.

A partir de tal pressão, o MP consegue convencer pessoas a aceitar o acordo e pagar prestações pecuniárias em casos que, de outra maneira, não iriam adiante. Ou seja, a acusação consegue o equivalente a uma sanção penal sem ter de discutir o mérito da causa. “O Ministério Público consegue um naco de carne na largada, porque não precisa passar o caso em contraditório. Ele resolve no ANPP”, assinala Vieira. “Existe um risco de o ANPP se substituir às hipóteses de arquivamento”.

As diferenças entre as regulamentações de cada MP são outro fator problemático destacado por Paula. A resolução do MP-RJ, por exemplo, traz diretrizes para a celebração de acordos já nas audiências de custódia — ou seja, antes de qualquer investigação quanto à real ocorrência do crime e às suas circunstâncias.

Diversos MPs, como o de SP, também têm regulamentações próprias sobre ANPP

Até o mês passado, o MP-SP já havia feito quase 46 mil ANPPs. O número expressivo leva a advogada a indagar: “Será que em todos esses casos o órgão acusatório realizou detidamente o devido exame de cada situação concreta, verificou a existência de indícios de autoria e materialidade e de dolo, para chegar à conclusão inequívoca de que não havia uma situação sequer que deveria ensejar uma promoção de arquivamento?”. À ConJur, o órgão disse que não houve oferecimento de denúncia em quase 35 mil dos acordos fechados.

Na visão de Paula, há mais um problema: as resoluções e os manuais dos MPs sugerem “modelos” de acordos, “que acabam por criar diretrizes estanques” e automatizar a análise dos requisitos. Com isso, o ANPP se torna similar a um “contrato de adesão”, em vez de “um instituto próprio de negociação efetiva entre as partes, em que haveria espaço para mudanças ou adaptações nos termos propostos”.

Com todos esses problemas, Vieira avalia que o ANPP se torna interessante somente para a acusação. A prova disso é o fato de que sua regulamentação é feita pelo próprio MP. Além disso, os acordos ficam sujeitos à “apreciação subjetiva deste ou daquele promotor” — o que não deveria ocorrer com uma lei processual válida em todo o país.

Possíveis melhorias
Paula espera “um amadurecimento da jurisprudência para sanar as lacunas e dúvidas de interpretação que a legislação deixou em aberto”, e, assim, evitar “uma atuação discricionária por parte do Ministério Público e garantir os direitos e garantias fundamentais aos indivíduos”.

O presidente do IBCCRIM também considera que “o caminho para tornar objetivos os critérios” do ANPP deve “continuar a ser trilhado”. Para isso, ele defende uma “regulamentação melhor”. Mas, segundo Vieira, enquanto não houver uma mínima “apreciação da constitucionalidade” do artigo 28-A do CPP, sequer é possível falar em melhor ou pior regulamentação.

No entanto, de acordo com o advogado, o primeiro passo para uma melhoria já está ocorrendo. As regras do ANPP trazidas pela lei “anticrime” vêm sendo discutidas no Supremo Tribunal Federal, dentro do bloco de ações diretas de inconstitucionalidade (ADIs) que também discutem a implementação do juiz das garantias. O julgamento deverá ser concluído no próximo mês de agosto.

Culpado desde o início
Outro ponto do artigo 28-A do CPP que preocupa os criminalistas é a exigência de confissão de culpa. Paula lembra que, quando assina um ANPP, o acusado não deixa de ser primário. Assim, a confissão, para ela, é apenas uma espécie de “moeda de troca” moral.

Na prática, tal exigência traz uma desvantagem para o acusado. Isso porque, caso o acordo seja descumprido, o MP pode oferecer denúncia. E, nessas situações, a acusação já conta desde o início com uma confissão da prática do crime.

Segundo a advogada, não há qualquer garantia de que, mais tarde, a confissão não será utilizada, mesmo que indiretamente, como argumento para defender a responsabilidade do acusado. Assim, a exigência dá margem “para uma atuação discricionária” do MP.

Paula ressalta que a confissão não é condição para outros acordos penais, como a suspensão condicional do processo e a transação penal. Ela também crê que tal exigência dificulta a assinatura do ANPP: “Ninguém vai se dispor a confessar algo que acredita não ter feito, especialmente diante da insegurança jurídica sobre o destino dessa confissão”.

Vieira é outro que considera a exigência abusiva, pois, mesmo com o descumprimento do acordo, a confissão permanece válida. Em uma hipótese tradicional, sem assinatura de acordo, o mérito seria discutido na ação penal sem a confissão. Ou seja, o MP consegue uma denúncia muito mais robusta contra alguém que tenha assinado e descumprido um ANPP do que teria contra qualquer outro acusado.

O presidente do IBCCRIM destaca que a confissão “não deve ser vista como uma prova de maior ou menor valia”, porque “não existe uma hierarquia de provas no processo penal”. Para ele, o ANPP “sobrevaloriza a confissão” como prova, “em vantagem da acusação”, pois sua ausência impede a própria negociação do acordo e sua concretização reforça uma eventual denúncia.

Na visão do advogado, os outros requisitos previstos no CPP — infração penal sem violência e pena mínima inferior a quatro anos — já são suficientes para se verificar a possibilidade de um acordo. “Se você está fazendo acordo, você não quer ser processado. E, se você não quer ser processado, você não tem de discutir culpa.”

Paula também defende a suficiência dos demais requisitos legais, “desde que proporcionais e adequados a cada caso concreto”. De acordo com ela, a confissão “não possui nenhuma utilidade do ponto de vista criminal”, pois, quando é feito um ANPP, o juiz não analisa o mérito do caso — apenas homologa o termo, a partir de um “exame da voluntariedade e formalidade legal”. Além disso, quando o acordo é cumprido, a punibilidade do réu é extinta.

Vieira defende que a exigência de confissão de culpa seja excluída da legislação. Essa também é a medida ideal na visão de Paula, mas ela ainda enxerga a possibilidade de “um amadurecimento da jurisprudência nesse sentido, especialmente para sanar as lacunas e dúvidas de interpretação da legislação quanto ao alcance, necessidade e possibilidades (ou impossibilidade) do uso dessa confissão”.

Fonte: Conjur

Caminhos para a igualdade salarial e de critérios remuneratórios

No dia 3 de julho, o presidente da República sancionou a Lei nº 14.611, que dispõe sobre a igualdade salarial e de critérios remuneratórios entre homens e mulheres. Além disso, trouxe alteração no artigo 461 da CLT, inserindo os parágrafos 6º e 7º, o primeiro para assegurar o direito às diferenças salariais e o segundo para dispor sobre multa administrativa quando constatado hipótese de discriminação por motivo de sexo, raça, etnia, origem ou idade.

No contexto geral, a lei reforça e instrumentaliza, no campo das relações trabalhistas, previsão constitucional quanto aos objetivos fundamentais da República (artigo 2º da CF) no sentido na construção de uma sociedade livre, justa e solidária com a promoção do bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação e, ainda, a proibição de diferenças de salários, de exercício de funções e de critério de admissão por motivo de sexo, idade, cor ou estado civil (artigo 7º, XXX).

 

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A previsão constitucional não foi, ao longo dos anos, suficiente para eliminar práticas abusivas nas relações de trabalho, justificando, desta forma, a necessidade de que uma lei específica fosse dirigida à garantia dos direitos sociais no ambiente dos contratos de emprego.

Todavia, convém observar que a nova lei, de um lado, amplia o conceito de igualdade não se limitando apenas ao salário strictu senso, incluindo a remuneração e vantagens contratadas direta ou indiretamente exigindo transparência na política salarial adotada pelas empresas.

De outro lado, a lei instrumentaliza, em cinco aspectos fundamentais, ações a serem observadas, no âmbito das empresas, a fim de que seja garantida a igualdade salarial entre mulheres e homens:

1. Mecanismos de transparência salarial e de critérios remuneratórios;

2. Fiscalização contra discriminação salarial;

3. Disponibilização de canais para denúncias de discriminação;

4. Programas de capacitação e educação de gestores sobre equidade entre mulheres e homens no mercado de trabalho; e,

5. “fomento à capacitação e formação de mulheres para o ingresso, a permanência e a ascensão no mercado de trabalho em igualdade de condições com os homens”.

A Organização Internacional do Trabalho aprovou, em 1951, a Convenção 100 que trata da igualdade de remuneração de homens e mulheres por trabalho de igual valor. Essa Convenção foi ratificada pelo Brasil em 25 de abril de 1957, com vigência a partir de 25 de abril de 1958.

O Conselho da União Europeia também adotou regras rígidas para combater a discriminação salarial e para eliminar a diferença salarial entre homens e mulheres, acentuadamente pela necessidade de priorizar a transparência dos critérios de remuneração adotados pelas empresas. Neste sentido, em 30 de março de 2023, o Parlamento Europeu aprovou diretiva sobre transparência salarial e estabeleceu a obrigação de informações pelas empresas com mais de 150 trabalhadores sobre a remuneração praticada. Consta, segundo estatística da Comissão Europeia, que, em 2020, as mulheres ganhavam em média 13% menos, por hora, do que os homens.

O modelo ora adotado, quanto ao conceito de remuneração, assemelha-se ao que dispõe o Código de Trabalho francês, no artigo L3221-2, que se refere à obrigação de igualdade de remuneração entre mulheres e homens e, inclui, no conceito de remuneração, o salário e todas as vantagens indiretas pagas em espécie ou em natura (L3221-3).

Em Portugal, a Lei nº 60 de 21 de agosto de 2018 trata da igualdade remuneratória entre mulheres e homens por trabalho igual ou de igual valor. No artigo 4º estabelece as obrigações para os empregadores quanto à transparência remuneratória praticada relativamente aos respectivos empregados.

A Lei nº 14.611 deverá contribuir de forma particular para combater a discriminação salarial entre mulheres e homens de forma programática, na medida em que as empresas, com mais de cem empregados, estão obrigadas a divulgar mecanismos de transparência quanto aos critérios objetivos de remuneração, mediante publicação semestral de relatórios anonimizados de transparência salarial.

Além das medidas programáticas, a efetividade da garantia da igualdade e de aplicação da lei contará com incremento da fiscalização contra a discriminação salarial e de critérios remuneratórios entre mulheres e homens. As empresas deverão, portanto, organizar planos de cargos/salários/remuneração, lembrando sempre que, em se tratando de lei nova, a primeira visita da fiscalização deverá respeitar o critério de dupla visita, valendo a primeira como orientação.

Com a vigência da nova lei, os salários perderam o sigilo e o empregador tem obrigação de divulgar periodicamente as práticas salariais e os critérios remuneratórios da empresa.

 

Fonte: Conjur

Férias: pode haver convocação para prestar serviço no período?

Com a chegada do mês de julho, muitas pessoas se programam para usufruir das férias visando ao descanso, à desconexão com o trabalho, ao alívio da fadiga e à recuperação do estresse mental, assim como também para desfrutar do convívio familiar em razão do recesso escolar que acontece nessa mesma época.

Dito isso, por vezes há certa preocupação e sobretudo receio de o(a) trabalhador(a) deixar de atender aos chamados do seu empregador e de clientes durante esse período. Isto ocorre por medo de retaliação, de perder do emprego, de ser substituído(a) por outro(a) profissional, ou, ainda, simplesmente pelo fato de que, por não estar disponível em tal momento, poderia a conduta ser reputada displicente.

Nesse sentido, surgem algumas dúvidas e questionamentos: o(a) trabalhador(a) pode ser convocado(a) para prestar serviços nas férias? Quais seriam as consequências caso isso ocorra? E, mais, quais os cuidados que a empresa deve adotar para que tal direito do(a) trabalhador(a) não seja violado?

Por certo, o assunto é polêmico, tanto que a temática foi indicada por você, leitor(a), para o artigo da semana na coluna Prática Trabalhista, da revista eletrônica Consultor Jurídico [1], razão pela qual agradecemos o contato.

De início, impende destacar que, de acordo com um levantamento do Instituto Ipsos, 53% dos trabalhadores apresentaram piora em sua saúde mental nos últimos anos, sendo o Brasil recordista de pessoas com transtornos de ansiedade e depressão [2].

Aliás, segundo os dados da International Stress Management Association, 72% da população brasileira apresenta alguma sequela do estresse, sendo que 32% são acometidos da Síndrome de Burnout [3].

Do ponto de vista normativo, no Brasil, de um lado, a Constituição Federal (CF) em seu artigo 7º, inciso XVII [4], preceitua que as férias são um direito social garantido ao (à) trabalhador(a). Lado outro, a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) [5] assegura o direito às férias anuais após cada período de 12 meses de vigência do contrato de trabalho.

Nesse desiderato, oportunos são os ensinamentos do professor Homero Batista Mateus da Silva [6]:

“As férias têm a peculiaridade da natureza híbrida de direito e dever simultaneamente. Que elas correspondem a um direito do trabalhador não resta dúvida, conquistando-as o trabalhador em seu dia a dia de atividades prestadas ao empregador. Sua noção como dever certamente é a mais difícil de enxergar, num conceito que vem sendo esquecido pelas partes.

(…). O período deve compreender a mudança de hábitos e de rotina por parte do trabalhador, alteração de seu metabolismo e em seu ritmo devida, desligamento completo das atividades que acaso deixou pendentes e demais condições para um completo reequilíbrio mental e físico.

No dizer das ciências humanas voltadas ao estudo do equilíbrio do corpo e da mente, férias que mereçam esse nome são aquelas que o trabalhador consegue mudar não somente o ritmo cotidiano, mas também o sonho que povoa sua mente durante a noite”.

Sob essa perspectiva, uma pesquisa publicada no Journal of Nutrition, Health and Aging, em 2018, apontou que pessoas que tiram férias mais curtas apresentam 37% mais riscos de morrer, mesmo que possuam um estilo de vida saudável [7].

Portanto, nesse período de férias, em regra, é vedado à empresa convocar o(a) trabalhador(a) para o exercício de suas atividades, assim como importuná-lo(a) com e-mails, mensagens de aplicativos ou quaisquer outras formas de comunicação acerca de tarefas profissionais, haja vista que a finalidade do instituto é justamente o exercício da desconexão do trabalho e a recomposição da higidez física e mental.

À vista disso, a 3ª Turma do Tribunal Superior do Trabalho (TST) já foi provocada a emitir um juízo de valor sobre essa temática, de modo que o entendimento foi no sentido de condenar uma empresa a pagar, em dobro, as férias de um trabalhador que laborou no período destinado ao descanso [8].

Em seu voto, o ministro ponderou o seguinte:

“(…). As férias têm a finalidade de recuperação e implementação das energias do trabalhador e de sua inserção familiar, comunitária e política.

Partindo-se desse objetivo, tem fundamento o questionamento suscitado pelo Reclamante no sentido de que o trabalho realizado em parte das férias desvirtuaria sua própria finalidade, razão pela qual deveria haver o pagamento em dobro não apenas dos dias indevidamente laborados, mas de todo o período de férias correspondente.

Ora, tendo o empregado sido convocado ao trabalho, mesmo por somente três dias, durante o prazo de gozo das férias, o instituto tem frustrada sua regular fruição, ensejando o correspondente novo pagamento da verba, no montante do total das férias fruídas e não somente dos dias laborados irregularmente”.

De igual modo, idêntico foi o entendimento da 2ª Turma do TST ao condenar uma empresa ao pagamento, em dobro, do período integral das férias, e não apenas dos dias laborados, haja vista a frustração do instituto [9].

Frise-se, por oportuno, que conquanto o período laborado nas férias possa ser compensado posteriormente, poderá haver a condenação do pagamento em dobro de acordo com a jurisprudência da Corte Superior Trabalhista, a qual interpreta de forma sistemática dos dispositivos legais [10].

Noutro giro, vale destacar que o lapso de férias não se trata apenas de um direito trabalhista, mas sim de um instituto que visa proporcionar o equilíbrio da saúde física e mental do(a) trabalhador(a) e um meio ambiente laboral saudável. Bem por isso, é forçoso lembrar que a ausência desse descanso irá trazer reflexos negativos na produtividade no trabalho e, quiçá, afastamentos médicos em razão do estresse e doenças mentais.

Outrossim, existem estudos acerca da importância das férias e os seus reflexos para a saúde do(a) trabalhador(a), inclusive no sentido de redução dos casos de depressão daquelas pessoas que gozam das férias e se desconectam do ambiente laboral [11].

Neste contexto, uma empresa indiana optou por multar os funcionários que atrapalhem as férias de seus colegas, independentemente do nível hierárquico, para que tal direito possa ser usufruído plenamente. Ainda, no caso em análise, a empresa realizou o bloqueio do trabalhador junto ao sistema da empresa e vedou o acesso ao e-mail e telefone corporativos [12].

Não há dúvidas de que havendo o equilíbrio entre a vida pessoal e profissional, assim como um tempo destinado para a recomposição da saúde física e mental, os reflexos positivos no trabalho serão visíveis.

Em arremate, o trabalho excessivo, sem pausas e férias, ao invés de aumentar a produtividade, poderá acarretar num ambiente tóxico e, por conseguinte, improdutivo. É forçoso destacar que a desconexão completa nesse período trará benefícios não só ao(à) trabalhador(a), mas também à empresa e à sociedade, já que a sobrecarga de trabalho aumenta o adoecimento físico e mental, afrontando direitos e garantias fundamentais.

[1] Se você deseja que algum tema em especial seja objeto de análise pela coluna Prática Trabalhista, entre em contato diretamente com os colunistas e traga sua sugestão para a próxima semana.

[2] Disponível em https://exame.com/bussola/ferias-sao-mais-que-descanso-uma-pausa-para-recuperar-saude-mental/. Acesso em 4.7.2023.

[3] Disponível em https://www.segs.com.br/demais/366665-especialista-explica-a-importancia-do-recesso-e-das-ferias#:~:text=O%20per%C3%ADodo%20de%20f%C3%A9rias%20simboliza,sofre%20alguma%20sequela%20do%20estresse. Acesso em 4.7.2023.

[4] Art. 7º – São direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, além de outros que visem à melhoria de sua condição social: (…). XVII – gozo de férias anuais remuneradas com, pelo menos, um terço a mais do que o salário normal;

[5] Disponível em https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del5452.htm. Acesso em 7.7.2023.

[6] Direito do trabalho aplicado: Direito Individual do Trabalho – São Paulo: Thompson Reuters Brasil, 2021 – (Coleção Direito do Trabalho Aplicado; volume 2). Página 293 e 294.

[7] Disponível em https://www.uol.com.br/vivabem/noticias/redacao/2022/05/25/faz-mal-para-a-saude-nao-tirar-ferias.htm. Acesso em 4.7.2023.

[8]Disponível em https://consultaprocessual.tst.jus.br/consultaProcessual/consultaTstNumUnica.do?consulta=Consultar&conscsjt=&numeroTst=92500&digitoTst=93&anoTst=2006&orgaoTst=5&tribunalTst=01&varaTst=0011&submit=Consultar. Acesso em 4.7.2023.

[9] Disponível em https://consultaprocessual.tst.jus.br/consultaProcessual/consultaTstNumUnica.do?consulta=Consultar&conscsjt=&numeroTst=684&digitoTst=94&anoTst=2012&orgaoTst=5&tribunalTst=04&v.araTst=0024&submit=Consultar. Acesso em 4.7.2023.

[10] Disponível em https://consultaprocessual.tst.jus.br/consultaProcessual/consultaTstNumUnica.do?consulta=Consultar&conscsjt=&numeroTst=136740&digitoTst=23&anoTst=2009&orgaoTst=5&tribunalTst=03&varaTst=0007&submit=Consultar. Acesso em 7.7.2023

[11] Disponível em https://www.anamt.org.br/portal/2017/07/14/como-as-ferias-picadas-podem-afetar-o-seu-descanso/. Acesso em 4.7.2023.

[12] Disponível em https://rhpravoce.com.br/redacao/empresa-multara-funcionarios-que-atrapalharem-as-ferias-dos-colegas/. Acesso em 4.7.2023.

 

Fonte: Conjur

Consumação do delito do artigo 1º, caput da Lei 9.613/98

Em artigo anterior desta coluna [1]), foram feitas algumas considerações acerca do elemento subjetivo do caput do artigo 1º da Lei de Lavagem de Dinheiro (Lei nº 9.613/1998), concluindo-se pela impossibilidade de tipificação do delito em comento a título de dolo eventual e inaplicabilidade da Teoria de Cegueira Deliberada (Willfull Blindness Douctrine) no ordenamento jurídico pátrio. Isso porque quem oculta, quer esconder. Se quer esconder, é porque tem consciência da necessidade de fazê-lo. Esconde porque sabe que precisa esconder, e sabe que precisa esconder porque conhece a origem ilícita do que está escondendo. Assim, tal consciência da necessidade exige conhecimento inequívoco da origem ilícita do bem ocultado. Com efeito, só oculta quem quer esconder algo que sabe ser ilícito.

Nesta oportunidade, prossegue-se com a análise do tipo penal no tocante ao polo ativo, ou seja, quem poderá responder pela prática delitiva e algumas considerações sobre o momento consumativo.

O delito de ocultar ou dissimular a origem ilícita de bens, direitos ou valores provenientes de infração penal, por não exigir nenhuma qualidade especial do agente, trata-se de crime comum, no qual qualquer um pode figurar como sujeito ativo do delito em comento.

Segundo a doutrina, pode ser sujeito ativo desse crime o autor, coautor ou partícipe da infração penal antecedente [2], não constituindo a lavagem de dinheiro “post factum impunível”. Afasta-se, assim, a incidência do princípio da consunção. Deverá o agente, no caso, responder pelo concurso material de crimes, dado que, além de as condutas serem praticadas em momentos distintos, ofendem bens jurídicos diversos. Nesse sentido, para o STF [3] lavagem de dinheiro é crime autônomo, não se constituindo em mero exaurimento do crime antecedente”.

Todavia, tal entendimento não é isento de críticas. Parte da doutrina sustenta que o delito posterior, ou seja, a lavagem de dinheiro, constitui fato posterior não punível para o sujeito ativo do crime antecedente e a inexigibilidade de conduta diversa, por não ser exigível do infrator outra conduta que não a de esconder o produto ilícito obtido com a infração antecedente.

Entendemos que a lavagem de dinheiro pode configurar delito autônomo ou mero exaurimento, dependendo das circunstâncias do caso concreto. Se o fato subsequente (a lavagem) estiver na mesma linha de desdobramento causal do crime antecedente, isto é, se for praticada dentro do mesmo contexto fático, não haverá concurso de crimes. Este, portanto, o fator decisivo para a questão: similitude de contextos fáticos, sendo imprescindível a análise das circunstâncias de tempo e lugar.

Isso porque, para a incidência do princípio da consunção, é necessário que o fato seja considerado parte de um todo, ora como meio preparatório ou normal fase de execução do delito mais abrangente, ora como nova agressão ao mesmo bem jurídico sem configurar outro crime. Neste último caso, a continuidade da ação implica em mero exaurimento de uma infração penal já consumada.

Deste modo, caso fosse punida também como delito autônomo, a ação estaria sendo apenada duplamente, configurando bis in idem. Ao punir o todo, puniu-se a parte, sendo inadequado puni-la novamente. Para tanto, é imprescindível a similitude de contextos fáticos. Tratando-se de comportamentos destacados no tempo e no espaço, não há que se falar em consunção, mas, ao contrário, quando ambos os comportamentos estiverem na mesma linha de desdobramento causal, haverá consunção do fato antecedente, considerado meio preparatório, ou do consequente, como mero exaurimento. Como já ressaltado, a razão de ser desse princípio é evitar o bis in idem, ou seja, que o sujeito responda duas vezes pelo mesmo fato, como parte de um todo e como crime autônomo. Assim, por exemplo, se o autor de uma corrupção passiva recebe pagamento em dinheiro vivo ou mediante algum tipo de simulação, como por exemplo venda de imóvel por valor superior ao declarado, ou compra por valor inferior, incide a consunção, pois se trata de uma mesma ação. A forma de recebimento da vantagem ilícita não configura delito autônomo de lavagem, pois está ínsita no próprio delito antecedente de corrupção.

Ao contrário, se o sujeito, após realizar a ação delituosa (crime antecedente), prática outra conduta para simular ou ocultar o produto do crime, dificultando a localização do ativo, neste caso haverá concurso de crimes, não se podendo falar em uma única ação, pois os comportamentos foram distintos e destacados no tempo e no espaço. Após consumada a infração anterior, foram realizados outro conjunto de atos tendentes a efetivar ocultação ou dissimulação dos valores já incorporados ao patrimônio do autor, mas ainda sem aparência de licitude.

No tocante à consumação, trata-se de crime formal, isto é, perfaz-se com a ocultação ou dissimulação dos bens, direitos ou valores, independentemente de serem introduzidos no sistema econômico ou financeiro [4].

A doutrina majoritária entende tratar-se de crime permanente. “Assim, ainda que o agente consiga concluir uma operação, encobrindo a natureza, localização etc. de um bem ou valor, o fato é que nem a ocultação, nem a dissimulação, desaparecem com a concretização da mesma” [5], isso porque a jurisprudência tem interpretado tipos penais com o verbo ocultar como permanentes, como a ocultação de cadáver (CP, artigo 211): “O crime previsto no artigo 211 do Código Penal, na forma ocultar, é permanente. Logo, se encontrado o cadáver após atingida a maioridade, o agente deve ser considerado imputável para todos os efeitos penais, ainda, que a ação de ocultar tenha sido cometida quando era menor de 18 anos” [6] e de ocultação de documento (CP, artigo 305): “O delito do art. 305 do Código Penal, na forma ocultar, é permanente. Logo, sua consumação se protrai no tempo, o que impede, na espécie, que se reconheça a extinção da punibilidade em virtude da prescrição da pretensão punitiva” [7].

O STF corrobora com o mesmo entendimento: Assentado pelo Plenário desta Suprema Corte que o crime de lavagem de bens, direitos ou valores, quando praticado na modalidade ocultação, é de natureza permanente, protraindo-se sua execução até que os objetos materiais do branqueamento se tornem conhecidos” [8] e o crime de lavagem de bens, direitos ou valores, quando praticado na modalidade típica de ‘ocultar’, é permanente, protraindo-se sua execução até que os objetos materiais do branqueamento se tornem conhecidos, razão pela qual o início da contagem do prazo prescricional tem por termo inicial o dia da cessação da permanência, nos termos do art. 111, III, do Código Penal” [9].

A ocultação, de fato, configura delito permanente, uma vez que, enquanto os valores estiverem escondidos ou camuflados, eles permanecerão ocultos, protraindo-se no tempo a ação. No caso da dissimulação, porém, é possível que ocorra uma ação instantânea com efeitos permanentes, a depender da forma como o ardil for produzido. Por exemplo, compra subfaturada de imóvel, na qual o autor de corrupção passiva adquire o bem com valor bem inferior ao seu valor real. Neste caso, o crime se consumou no exato instante do negócio com valor simulado, mas seus efeitos permanecerão.

A diferença entre o crime permanente e o instantâneo de efeitos permanentes reside em que neste último (como a própria expressão sugere) a consumação se dá no momento exato da produção do resultado, de modo que somente seus efeitos perduram no tempo. No permanente, ao contrário, a ação não se esgota em um só instante, mas se renova a todo momento, assim como a produção do resultado. No caso da lavagem, se a ocultação fosse considerada delito instantâneo, ela estaria consumada no exato momento em que o agente realizasse a conduta. Não é isso o que ocorre, no entanto, pois, enquanto o agente mantiver escondido o produto da infração penal antecedente, a ação de ocultar estará sendo realizada. Não são os efeitos da ocultação que perduram no tempo, mas ela própria, a qual vai se estendendo enquanto não for interrompida. Por essa razão, enquanto os bens de origem ilícita estiverem sendo ocultados, o sujeito estará em situação de flagrância, além do que o lapso prescricional não se inicia até a cessação da permanência, nos termos do artigo 111, III, do CP.

Em entendimento parcialmente diverso, Pierpaolo Cruz Bottini [10] sustenta que ambas as formas configuram delito instantâneo de efeitos permanentes, destacando os efeitos da permanência delitiva na aplicação da lei penal no tempo: “Parece mais adequada do ponto de vista político criminal a caracterização da lavagem de dinheiro como crime instantâneo de efeitos permanentes. O injusto está consumado no ato da ocultação, e sobre ele incidem as normas vigentes à época dos fatos, da conduta e do dolo. As alterações legislativas posteriores não abarcam esse comportamento pretérito (a não ser as favoráveis ao réu) mesmo que os bens permaneçam ocultos”.

Destaca-se também que não é necessário que a ocultação seja sofisticada, perfeita e impossível de ser descoberta para que o delito se consume, segundo entendimento do STF [11], replicado em decisão de 2021 pelo STJ [12]“Conforme a célebre lição do Min. Sepúlveda Pertence, o tipo não reclama nem êxito definitivo da ocultação, visado pelo agente, nem o vulto e a complexidade dos exemplos de requintada ‘engenharia financeira’ transnacional, com os quais se ocupa a literatura“.

[1] Disponível em: ConJur – Lavagem de dinheiro, dolo e a teoria da cegueira deliberada

[2] Rodolfo Tigre Maia, Lavagem de dinheiro, cit., p. 92, e Marcia Monassi Mougenot Bonfim e Edilson Mougenot Bonfim, Lavagem de dinheiro, cit., p. 52.

[3] STF – HC: 92.279 RN, relator: JOAQUIM BARBOSA, data de julgamento: 24/6/2008, 2ª Turma, Data de Publicação: DJe 19/9/2008

[4] Rodolfo Tigre Maia, Lavagem de dinheiro, cit., p. 81; Marcia Monassi Mougenot Bonfim e Edilson Mougenot Bonfim, Lavagem de dinheiro, cit., p. 43-44; e Marco Antonio de Barros, Lavagem de dinheiro, cit., p. 46-47.

[5] Marcia Monassi Mougenot Bonfim e Edilson Mougenot Bonfim, Lavagem de dinheiro, cit., p. 44.

[6] STJ – REsp: 900509 PR 2006/0224593-1, Relator: Ministro FELIX FISCHER, Data de Julgamento: 26/06/2007, T5 – 5ª TURMA, Data de Publicação: DJ 27/08/2007 p. 287

[7] STJ – HC: 28837 PB 2003/0101067-4, Relator: Ministro FELIX FISCHER, Data de Julgamento: 16/03/2004, T5 – 5ª TURMA, Data de Publicação: DJ 10/05/2004, p. 312

[8] STF – HC: 160225 RJ 0075634-83.2018.1.00.0000, Relator: GILMAR MENDES, Data de Julgamento: 29/05/2020, 2ª Turma, Data de Publicação: 06/08/2020

[9] STF – AP: 863 SP – SÃO PAULO 0000732-48.2007.1.00.0000, Relator: Min. EDSON FACHIN, Data de Julgamento: 23/05/2017.

[10] Bottini, Pierpaolo Cruz e Badaro, Gustavo Henrique. Lavagem de Dinheiro. 5ª Ed. Editora Thompson Reuters, 2023.

[11] STF, 1ª Turma, RHC 80.816-6/SP, DJ de 18-06-2001

[12] STJ – AREsp: 293896 RS 2013/0038987-7, Relator: Ministro ANTONIO SALDANHA PALHEIRO, Data de Publicação: DJ 04/06/2021

 

 

Fonte: Conjur

Como protege direitos, juiz das garantias não cabe só ao Judiciário

Para manter a autonomia, o Judiciário tem competência privativa para propor alterações em sua estrutura e funcionamento. Porém, esse argumento não serve para barrar leis de iniciativa do Legislativo ou do Executivo que, com o fim de proteger direitos fundamentais, promovem mudanças na Justiça — como o juiz das garantias.

Ao criar o mecanismo, a Lei “anticrime” (Lei 13.964/2019) buscou reduzir o risco de parcialidade nos julgamentos. Com a medida, o juiz das garantias fica responsável pela fase investigatória e o juiz da instrução fica a cargo do andamento do processo e da sentença. Entre as atribuições do juiz das garantias está decidir sobre o requerimento de prisão provisória ou outra medida cautelar e sobre a homologação de acordo de colaboração premiada. A competência do julgador acaba com o recebimento da denúncia ou queixa.

A partir desse momento, o juiz da instrução assume o caso e, em até dez dias, deve reexaminar a necessidade das medidas cautelares impostas pelo juiz das garantias. E o julgador que, na fase de investigação, praticar atos privativos da autoridade policial ou do Ministério Público, ficará impedido de atuar no processo.

Em 22 de janeiro de 2020, um dia antes de a lei “anticrime” (que havia sido adiada por 180 dias pelo ministro Dias Toffoli) entrar em vigor, o ministro do Supremo Tribunal Federal Luiz Fux suspendeu a implementação do juiz das garantias. Três anos depois, Fux apresentou voto pela inconstitucionalidade, por diversos aspectos, do juiz das garantias.

Um dos principais argumentos do ministro e dos autores das ações, como a Associação dos Magistrados Brasileiros e a Associação dos Juízes Federais do Brasil, é que a norma desrespeitou a reserva de iniciativa do Judiciário para dispor sobre a competência e funcionamento dos órgãos jurisdicionais e a criação de novas varas (artigo 96, I, “a” e “d”, da Constituição).

O pacote “anticrime” foi apresentado por Sergio Moro, então ministro da Justiça e Segurança Pública do governo Jair Bolsonaro (PL), em fevereiro de 2019. Na Câmara dos Deputados, a proposta foi apensada ao Projeto de Lei 10.372/2018, que reunia sugestões de alteração da legislação penal e processual penal feitas por comissão de juristas presidida pelo ministro do STF Alexandre de Moraes. Ou seja: a Lei “anticrime” teve origem no Executivo e no Legislativo, não no Judiciário.

O texto de Moro foi significativamente alterado no Congresso, de forma a atenuar seu teor punitivista. Em setembro de 2019, o grupo de trabalho que analisava o pacote “anticrime” na Câmara aprovou emenda que incluía a criação do juiz das garantias no projeto. A proposta foi dos deputados Margarete Coelho (PP-PI) e Paulo Teixeira (PT-SP). Em dezembro daquele ano, o projeto foi aprovado pelo parlamento e sancionado pelo presidente Jair Bolsonaro (PL).

O Judiciário tem algumas competências legislativas e regulamentares exclusivas, listadas nos artigos 93 e 96 da Constituição. Por exemplo, cabe ao Supremo Tribunal Federal, aos tribunais superiores e aos Tribunais de Justiça propor ao poder Legislativo respectivo reajustes salarias, criação e extinção de cargos e cortes inferiores e alteração da organização e da divisão judiciárias. Também compete aos tribunais dispor sobre a competência e o funcionamento de seus órgãos jurisdicionais e administrativos. E o Supremo é o responsável por regulamentar o Estatuto da Magistratura.

Dos três poderes, o Judiciário é o único que não tem legitimidade popular. Afinal, seus membros não são eleitos pelo povo. Eles ingressam na carreira por meio de concurso público ou escolha do chefe do Executivo — nos postos de magistrados eleitorais ou selecionados pelo quinto constitucional ou ministros de tribunais superiores.

Ainda assim, a competência do Judiciário para dispor sobre sua estrutura, funcionamento e orçamento não é antidemocrática, avalia Pedro Serrano, professor de Direito Constitucional da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.

“O Judiciário é um poder de Estado, não é um órgão qualquer. Como poder de Estado, deve ter o mínimo de autonomia financeira e estrutural”, afirma Serrano.

As hipóteses de iniciativa legislativa reservada ao Judiciário são concretizações do princípio da separação de poderes. Portanto, não violam o princípio democrático, desde que adequadamente interpretadas, opina Rodrigo Brandão, professor de Direito Constitucional da Universidade do Estado do Rio de Janeiro.

“A Constituição forma um sistema harmônico que equilibra os princípios da separação de poderes e democrático, do que resulta que as hipóteses de iniciativa privativa são apenas aquelas previstas expressamente na Constituição, de modo que as demais matérias podem ter a sua iniciativa em parlamentares ou na chefia do poder Executivo. Apenas a interpretação excessivamente abrangente das hipóteses de iniciativa privativa poderiam ser antidemocráticas ou estimular o corporativismo, e não a sua previsão em si pelo constituinte”.

Direitos fundamentais
A questão é que o juiz das garantias, embora interfira na organização e funcionamento do Judiciário, é matéria processual penal, que visa garantir direitos fundamentais. E a Justiça não tem competência privativa nessa matéria, afirma o jurista Lenio Streck, professor de Direito Constitucional da Universidade do Vale do Rio dos Sinos e da Universidade Estácio de Sá.

“Não entendo essa objeção de ordem formal. O que o STF deve é fazer uma leitura constitucionalmente adequada do juiz das garantias, uma leitura substancial, e não meramente procedimental, do dispositivo que atribui competência privativa ao Judiciário. O juiz das garantias altera a estrutura do Judiciário, é verdade. Mas, antes disso, proporciona alterações no Código de Processo Penal. Um ponto importante: garantias processuais são matéria que diz respeito a direitos fundamentais”.

“Não se pode deixar que o Judiciário — só ele — tenha iniciativa. Quer dizer: pode o sistema de garantias esperar pela boa vontade do judiciário? O poder Legislativo é competente de forma mais ampla”, diz Lenio. Ele ressalta que a alteração na estrutura do Judiciário é um efeito colateral da criação de um instrumento fundamental, que existe em diversos outros países.

A criação do juiz das garantias não é uma mera questão de estrutura do Judiciário, diz Pedro Serrano. “O mecanismo diz respeito ao exercício de um direito fundamental. Ter juízes diferentes para conduzir a investigação e o processo é algo essencial para a garantia de imparcialidade do juízo e do devido processo legal”.

Rodrigo Brandão também entende que a instituição do mecanismo não é de iniciativa privativa do Judiciário. Isso porque “a matéria é tipicamente de processo penal, não se relacionando com o regime jurídico da magistratura (artigo 93 da Constituição), nem com a autonomia dos tribunais (artigo 96)”. “A bem da verdade, traduz uma relevante evolução na proteção dos direitos fundamentais dos réus nos processos penais”, opina.

Entendimento do STF
O Supremo Tribunal Federal já declarou a constitucionalidade de alterações na estrutura e funcionamento do Judiciário que não foram propostas por tal poder.

A Corte validou os juizados de violência doméstica, estabelecidos pela Lei Maria da Penha (Lei 11.340/2006), que teve origem no Executivo (ADC 19). O relator do caso, ministro Marco Aurélio, apontou que a União tem competência privativa para legislar sobre processo penal. Também afirmou que o tema é de caráter nacional e que a lei não criou varas judiciais nem estabeleceu o número de magistrados a serem alocados nos juizados, o que seria de competência dos estados.

Em sustentação oral a favor do juiz das garantias em nome do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil, o criminalista Alberto Zacharias Toron mencionou a validação dos juizados de violência doméstica. E citou a Lei 9.099/1995, que criou os juizados especiais cíveis e criminais. A norma, originada de projeto do então deputado federal Michel Temer (MDB-SP), não teve sua iniciativa questionada. Porém, o Supremo a analisou em diversas ocasiões e nunca contestou o fato de ela não ter sido proposta pelo Judiciário.

 

Fonte: Conjur

Conforme STF, STJ mantém restrição à retroatividade da nova LIA

O Superior Tribunal de Justiça deve manter interpretação restritiva às hipóteses de aplicação retroativa da nova Lei de Improbidade Administrativa (Lei 14.230/2021), permitindo-a apenas aos casos de ato ímprobo culposo não transitado em julgado.

Com esse entendimento, a 1ª Turma do STJ rejeitou mais uma tentativa de elastecer a retroatividade das alterações promovidas em 2021 na Lei de Improbidade Administrativa (Lei 8.429/1992) para além do que julgou o Supremo Tribunal Federal.

Em agosto de 2022, o STF definiu que a nova LIA só se aplica aos casos anteriores à sua vigência que tratarem de ato culposo de improbidade, desde que sem trânsito em julgado. Ou seja, nos casos de improbidade dolosa, a lei não poderia retroagir.

Em maio, a 1ª Turma do STJ analisou se poderia permitir a retroação para aplicar a regra segundo a qual decisões de aprovação de contas pela Câmara Municipal ou pelo tribunal de contas responsável sejam consideradas na formação da convicção do juiz.

O uso desses elementos para analisar o caso concreto impactaria, inclusive, na existência ou não de dolo na conduta do prefeito processado naquele caso. Por 3 votos a 2, o colegiado decidiu não permitir a retroação, fixando a linha de interpretação mais restritiva.

Esse entendimento foi confirmado para negar a aplicação da nova LIA em um caso que discute indisponibilidade de bens e eventual excesso de cautela devido ao bloqueio nas contas que uma empresa médica sofreu nas contas que usa para pagar seus prestadores de serviço.

O bloqueio foi mantido pela 1ª Turma do STJ em julgamento de março de 2022. A empresa voltou aos autos para pedir a aplicação retroativa dos parágrafos 3º e 4º do artigo 16 da LIA, acrescentados pela lei de 2021 e que enrijeceram a exigência para o bloqueio de bens.

As normas indicam que o pedido de indisponibilidade de bens só será deferido mediante a demonstração no caso concreto de perigo de dano irreparável ou de risco ao resultado útil do processo. E que não poderá ser decretada sem a oitiva prévia do réu.

“A matéria de fundo versa sobre indisponibilidade de bens/eventual excesso de cautela e não sobre ato ímprobo culposo não transitado em julgado, motivo pelo qual não há se falar em aplicação retroativa da Lei 14.230/2021 ao caso vertente”, concluiu o relator, ministro Benedito Gonçalves. A votação foi unânime.

Fonte: Conjur

O polêmico inciso VIII do artigo 144 do CPC e sua aplicação

O atual Código de Processo Civil alterou as hipóteses de impedimento do magistrado, incluindo outras, de modo a estendê-las a situações antes não englobadas.

Dentre elas, o polêmico inciso VIII do artigo 144, que assim dispõe:

“Art 144 – Há impedimento do juiz, sendo-lhe vedado exercer suas funções no processo:
(…)
VIII – em que figure como parte cliente do escritório de advocacia de seu cônjuge, companheiro ou parente, consanguíneo ou afim, em linha direta ou colateral, até o terceiro grau, inclusive, mesmo que patrocinado por advogado de outro escritório.”

Essa regra não estava no projeto encaminhado ao Congresso, sendo inserida nos debates legislativos e, em razão da sua amplitude, é objeto de ação direta de inconstitucionalidade proposta pela AMB (Associação dos Magistrados do Brasil) perante o STF (Supremo Tribunal Federal), já em fase de julgamento, com divergência.

A intenção, a partir da análise dos debates havidos na casa legislativa, é bastante clara: evitar a atuação de escritórios de advocacia que, em razão da participação de parentes de magistrado, de algum modo pudessem obter vantagens a favor de seus clientes.

Verifica-se, portanto, que a iniciativa é louvável e deve ser defendida por todos, vez que em perfeita harmonia com os princípios que regem a atividade jurisdicional. No entanto, a questão a ser discutida não é a intenção em abstrato do legislador, mas sim, se a forma como foi redigida a norma em concreto tem o condão de atingir esse objetivo ou se gera uma presunção absoluta de impedimento que poderia violar outros preceitos constitucionais, dentre eles, a regra do juiz natural.

Assim, não podemos nos deixar levar por chavões que em nome da “moralidade” procuram tão somente ofender e achincalhar o Poder Judiciário e parte de seus membros por razões ideológicas.

Para o debate em torno do tema, mostra-se importante partir de três pressupostos.

O primeiro é que o dispositivo tratado está inserido dentre as regras de impedimento e não de suspeição; portanto, trata-se de norma objetiva e deve ser aplicada independente do caso concreto e eventuais especificidades. Caso o magistrado se enquadre na norma, não poderá julgar a demanda e, se o fizer, serão nulos os atos praticados.

O segundo é que, salvo melhor juízo e respeitados os entendimentos em sentido contrário, o dispositivo deve ser aplicado a todos os processos, sejam eles objetivos ou subjetivos, individuais ou coletivos, baseados na lei processual geral ou extravagante; afinal, se o objetivo da norma é garantir a imparcialidade dos magistrados, esta deve ser almejada em todos os processos, sem exceção.

O terceiro é que a norma se aplica a todos os juízos e graus de jurisdição, não podendo o intérprete distinguir juízos de primeiro ou segundo grau ou superiores.

Estes três pressupostos, no meu entender, colocam em xeque a norma. Repita-se: não a intenção do legislador, mas a forma como posta a norma.

Com efeito, a norma é expressa no sentido de que o magistrado está impedido de atuar em todo processo em que a sociedade de advogados de que faça parte (como sócio ou associado) seu cônjuge, companheiro ou parente até o terceiro grau atue (ainda que não esteja constituído como procurador) ou de clientes da mesma sociedade ainda que naquele caso representados por outro escritório de advocacia.

Por exemplo, em um processo de recuperação judicial ou de falência (em que muitas vezes, não há sequer litígio em relação a uma das partes — o credor que concorda com o valor do seu crédito e aceitar a forma de pagamento proposta pela empresa em recuperação judicial), o juiz natural não poderia atuar caso o advogado se enquadre nas hipóteses descritas.

Ou seja, o magistrado teria que verificar os seguintes fatores: a) se uma das pessoas que gera o impedimento atua no processo; b) se a sociedade de que faz parte atua no processo; c) se qualquer um deles atua por qualquer um dos credores ou devedores em outro processo que tenha ou não alguma relação com a recuperação judicial ou com a falência.

Salvo melhor juízo, o magistrado passa a ter, segundo o dispositivo legal, o dever de obter informações a respeito de todos os processos (judiciais — em segredo de justiça ou não, e arbitragens) e de todas as atuações nas áreas consultivas das sociedades em que atuam os sujeitos que geram o impedimento. Uma espécie de fiscalização em que o magistrado teria que ter à sua disposição a relação completa de todos os clientes dos sujeitos na norma elencados.

No caso de companheiro ou cônjuge, a questão já geraria a duvidosa consequência deste e a sociedade em que atua enxergarem no dispositivo objeto desta análise uma exceção ao dever de sigilo profissional; no caso de parentes até terceiro grau exigiriam do magistrado quase a condição de biógrafos profissionais de sujeitos que muitas vezes sequer contato teria, além do mesmo óbice anterior.

Em síntese, a regra mencionada para ser cumprida faria com que o magistrado, muito provavelmente, tivesse que ocupar seu tempo mais com a análise de hipóteses de impedimento do que com o julgamento da demanda, lembrando que a norma se aplica tanto a ministros (que possuem uma grande equipe de assessores) e quanto a juízes de primeiro grau cuja realidade é absolutamente diversa.

Mais do que isso, a norma, tal como posta, produz um efeito colateral em que a parte má intencionada poderia dela se valer para escolher o magistrado que julgaria seus processos, bastando a esse fim contratar para um caso que seja a sociedade da qual o sujeito que gera o impedimento faz parte, afastando assim o magistrado indesejado.

Destarte, por todos esses pontos, a norma no seu sentido literal viola os princípios da proporcionalidade e razoabilidade e do juiz natural, sendo, portanto, inaplicável não somente aos processos de insolvência como aos demais.

Resta verificar se seria possível buscar uma interpretação conforme.

Neste sentido, a limitação que se imporia é que o magistrado tenha conhecimento do fato, isto é, que o sujeito que gera o impedimento ou a sociedade de que faz parte se enquadra na hipótese legal.

No entanto, essa limitação não afastaria o problema acima aventado de que a parte má intencionada escolhesse o juiz e/ou afastasse o magistrado indesejado.

Para resolver essa questão, me parece mais adequado retornar ao ponto central do problema: qual foi a intenção buscada a partir do debate legislativo? Impedir contratações de advogados que gerem direta ou indiretamente rompimento da imparcialidade. Em última análise, não permitir que a demanda seja julgada por quem de algum modo, direta ou indiretamente tem interesse na causa.

Ora, o artigo 145, inciso III do CPC regula exatamente a hipótese:

“Art. 145. Há suspeição do juiz:
(…)
IV – interessado no julgamento do processo em favor de qualquer das partes.”

Desta maneira, se considerarmos que a atuação neste ou em outro processo de qualquer sujeito (independente de parentesco e seu grau) pode afetar a imparcialidade do magistrado desde que existam elementos concretos a essa conclusão, o problema que foi levantado no Congresso Nacional estará superado, sem colocar em risco nem os princípios do juiz natural, nem tão pouco os princípios que fundamentam a imparcialidade do magistrado.

Nem se alegue que esse dispositivo trataria do interesse pessoal do magistrado e não dos sujeitos a ele ligados. Com efeito, se o interesse direto é do cônjuge ou parente e este afeta a imparcialidade do magistrado, evidente que por via reflexa o juiz também passaria a ser interessado e sujeito a essa norma de suspeição.

Com isto, e respeitadas as opiniões em sentido contrário, me parece que a norma citada é inconstitucional e isto não gera qualquer prejuízo a moralidade que deve existir em todos os processos pois a questão já está suficientemente regulada pelo inciso IV do artigo 145 do CPC.

Fonte: Conjur

Juiz das garantias vai melhorar processo penal, defende Schreiber

A maior fragilidade do processo penal brasileiro está na falta de estrutura para que a polícia possa fazer uma investigação de qualidade com provas técnicas. Só a partir daí o Ministério Público terá condições de usar esses elementos e formular uma acusação bem feita e objetiva que permita que os réus posteriormente se defendam. O diagnóstico é de Simone Schreiber, desembargadora do Tribunal Regional Federal da 2ª Região. A magistrada é uma das entrevistadas da série “Grandes Temas, Grandes Nomes do Direito”, que a revista eletrônica Consultor Jurídico vem publicando desde o último mês. Nela, algumas das mais influentes personalidades do Direito brasileiro e internacional falam sobre os assuntos mais relevantes da atualidade. Ela diz acreditar que a entrada em vigor do instituto do juiz das garantias pode ajudar a modificar esse cenário. “Vai dar um salto de qualidade na fase de investigação nós termos um magistrado envolvido unicamente com esse momento para garantir os direitos de pessoas investigadas”, argumenta. Simone sustenta que isso irá dar ao juiz da causa a possibilidade de julgar com mais isenção e defende que é preciso pensar em um sistema que seja eficiente e ao mesmo tempo respeite os direitos das pessoas investigadas. A magistrada explica que o sistema processual penal brasileiro se concentra muito em medidas cautelares pessoais e patrimoniais. E isso gera uma série de incidentes processuais laterais que a rigor acabam tomando muito tempo da Justiça e atrapalham o bom andamento do processo. “Na verdade são medidas que tem uma simbologia de serem muito eficientes de contenção da criminalidade e combate a impunidade, mas não se sustentam. Como as pessoas gozam de presunção de inocência o que acontece na verdade é uma medida de efeito midiático”, explica. Ela lembra que para uma pessoa ser considerada corrupta, por exemplo, é preciso de um processo. “Se fossem decretadas menos medidas e prisões cautelares, além de termos um ganho na proteção dos direitos dos acusados, também teríamos mais eficiência”, pondera. Fonte: Conjur

Os excessos do compliance e o fenômeno de-risking

Não há dúvidas que o crime de lavagem de dinheiro merece atenção das autoridades, e que particulares devem cooperar com sua prevenção, em especial aqueles que atuam nos setores mais sensíveis ao delito. Nesse contexto, é relevante que se incentivem programas de integridade, a fim de que as regras de cuidado, de armazenamento de informações sobre clientes e de comunicação de atos suspeitos às autoridades públicas sejam cumpridas com rigor e eficiência.

No entanto, há um elefante que anda pesadamente pela sala: o exagero.

O medo de ser associado a práticas de lavagem de dinheiro levou algumas empresas ao fetiche do compliance, a adotar regras tão rígidas, procedimentos tão pesados, que acabaram por afetar de forma significativa sua atividade econômica. O resultado: uma superestrutura de integridade, nem sempre eficaz para evitar a lavagem de dinheiro, mas com efeito

O medo de ser associado a práticas de lavagem de dinheiro levou algumas empresas ao fetiche do compliance, a adotar regras tão rígidas, procedimentos tão pesados, que acabaram por afetar de forma significativa sua atividade econômica. O resultado: uma superestrutura de integridade, nem sempre eficaz para evitar a lavagem de dinheiro, mas com efeitos colaterais significantes.

Um primeiro: a exclusão de inúmeras pessoas do mercado profissional de trabalho ou de prestação de serviços: aquelas classificadas de alto risco de envolvimento em atos de lavagem de dinheiro.

Na ausência de uma definição clara do que seja esse risco, acabam por compor esse grupo pessoas citadas em notícias como envolvidas com atos ilícitos, ainda que não processadas ou formalmente investigadas, envolvidas em investigações e absolvidas, ou condenadas e com penas já cumpridas, sem contar aquelas relacionadas com personagens politicamente expostos.

Suas contas bancárias são encerradas, seu acesso a créditos ou financiamentos é fechado, suas empresas não são contratadas, seus serviços não são requisitados.

Muitas vezes até familiares sofrem restrições em razão de um sobrenome que frequentou as mesas policiais no passado, algo incompatível com a previsão constitucional de vedação de penas perpétuas e da individualidade da sanção penal.

Tal fenômeno não é sem razão. Não poucos bancos, contadores, auditores ou empresas de qualquer espécie sofrem investigações por ter se relacionado — ainda que licitamente — com pessoas suspeitas de lavagem de dinheiro, às vezes em momentos anteriores à própria suspeita.

Um simples pagamento, uma conta aberta, uma transação, pode carregar a empresa para uma operação policial, uma busca e apreensão, com todos os impactos em custos e em desgastes derivados de tal fato. Se a regra tem sido apreender antes de perguntar, a resposta será o afastamento das instituições privadas de toda e qualquer relação com pessoas que tenham tido algum dia relações com atos ilícitos, ou politicamente expostas.

Um segundo efeito colateral: para além da exclusão da vida comercial de um contingente grande de pessoas, esse medo institucional acaba por afetar os próprios mecanismos de combate à lavagem de dinheiro.

Instituições obrigadas a comunicar às autoridades públicas atos suspeitos de seus clientes ou parceiros acabam por relatar centenas ou milhares de de operações, em um excesso prejudicial a qualquer controle ou fiscalização.

O grande número de informações acaba por inviabilizar a atividade de inteligência, por misturar milhares de dados sobre atos irrelevantes com condutas que realmente podem caracterizar a lavagem de dinheiro, encobrindo as últimas com os primeiros.

Perdem as empresas, com gastos excessivos em programas de compliance, perdem os reguladores, afogados em mares de dados inúteis, e perdem os cidadãos, cujo acesso a serviços essenciais pode ser restrito caso seu nome apareça — ainda que tangencialmente — em notícias ou expedientes de investigação.

A situação do excesso de compliance é alarmante a ponto de o próprio Grupo de Ação Financeira Internacional (Gafi) elaborar um relatório intitulado “High-level synopsis of the stocktake of the unintended consequences of the FATF Standarts” (2017), no qual alerta para as consequências não desejadas de uma aplicação equivocada das recomendações da da entidade.

Segundo o órgão, corre-se o risco do exagero do de-risking, o “fenômeno pelo qual instituições financeiras encerram ou restringem relações de negócios com clientes ou categorias de clientes para evitar, mais do que gerenciar, riscos relacionados com as recomendações do Gafi”. Como indica a própria instituição, esse fenômeno implica em desbancarização e incentiva o uso de meios informais para operações financeiras.

As políticas de prevenção à lavagem de dinheiro exigidas pelas autoridades públicas e de compliance adotadas pelas empresas são relevantes, mas é preciso evitar o excesso que até agora pautou tais posturas. De nada adiantam normativos complexos e pouco taxativos, cujo resultado será apenas uma enxurrada de informações sobre atos possivelmente suspeitos que não podem ser geridos ou digeridos de forma razoável.

Que os alertas do Gafi sobre os excessos do compliance sejam levados em consideração por governos e instituições privadas, a fim de revisitar e racionalizar regras e procedimentos voltados a empresas e profissionais que atuam em áreas sensíveis à lavagem de dinheiro, de impedir excessos que afetam a atividade econômica, e suprimir imprecisões ou ambiguidades regulatórias, identificadas como fontes primárias da insegurança jurídica que prejudica.

Fonte: Conjur

Reconhecimento facial pela IA no CPP brasileiro

O verbo “reconhecer” remonta suas raízes etimológicas ao latim recognoscere: conhecer novamente, retomar o significado, trazer mais uma vez à mente. Não por outro motivo, o reconhecimento — seja de coisas ou de pessoas — adota uma posição central em um processo penal compreendido justamente como um ato (re)cognitivo, ou seja, de “reconstrução aproximativa de um determinado fato histórico” [1].

E, sob esta perspectiva, deve ser tratado com cautela, sob pena de macular a formação de convencimento do julgador na atividade de conhecer (novamente) do fato apurado. Assim, torna-se pleonasmo afirmar que se faz necessário regulamentar estritamente o procedimento de reconhecimento no bojo da persecução penal, na mesma esteira do que vem entendendo o Superior Tribunal de Justiça desde a mudança de paradigma firmada no Habeas Corpus nº 598.886/SC.

Fernando Frazão/Agência Brasil

Entretanto, a despeito do novo entendimento da obrigatoriedade de observância das disposições do artigo 226 do Código de Processo Penal na produção probatória, é certo que a legislação processual penal não se estende para abranger um problema trazido pelo panorama da quarta revolução industrial: o impacto da inteligência artificial no procedimento de reconhecimento de pessoas. E isto não é surpreendente — afinal, o Código de Processo Penal data de 1941 e, apesar das inúmeras reformas parciais às quais esteve sujeito nestas décadas (e que mantiveram o espírito inquisitorial do processo penal brasileiro, não compatível com a Constituição de 1988 [2]), ainda peca em trazer qualquer disposição sobre a prova digital.

Neste ponto, especificamente, são inúmeras as discussões sobre o cabimento e os riscos sociais das tecnologias de digital surveillance, das quais estas breves considerações irão se eximir. Sem embargo, basta compreender que o clássico modelo do panóptico — uma prisão circular com celas escuras e uma torre de vigia no centro [3], para gerar um senso de autovigilância e controle comportamental [4] — foi meramente mais um dos processos automatizados no século 21, gerando o panóptico digital [5].

Hoje, já não se pode mais precisar o alcance das tecnologias (e de como estas são utilizadas para angariar informações para fins de surveillance) no cotidiano. Desde o reconhecimento facial para desbloquear a tela do smartphone até o uso de biometria em terminais de autoatendimento bancários: tudo compõe um grupo massivo de informações interligadas conhecido como Big Data, que irá alimentar os algoritmos de inteligência artificial para os mais diversos objetivos — inclusive o de docilizar o comportamento social e proporcionar a vigilância e a punição dos transgressores.

A empresa Surfshark, que atua no setor de segurança cibernética, realizou um levantamento que aponta que 109 países empregam ou aprovaram o emprego a ser implementado de alguma forma de tecnologia de reconhecimento facial para fins de segurança, do total de 194 países mapeados [6].

Nas festividades de Carnaval da Bahia, em 2023, quase 80 foragidos foram presos com o auxílio de câmeras de reconhecimento facial [7]. Embora estes casos digam respeito à mera localização de pessoas contra as quais haja mandado de prisão ativo e, a partir da semelhança, notifique a polícia, não parece distante cogitar que estas mesmas câmeras possam identificar um indivíduo em flagrante delito — e, justamente por isso, tornarem-se meio de prova no processo penal.

Em cotejo com o artigo 226 do Código de Processo Penal e com o Habeas Corpus nº 598.886/SC, ainda, é possível afirmar que, hoje, um reconhecimento pessoal realizado por uma inteligência artificial tecnicamente poderia ser admitido como prova. Não seria difícil pedir ao algoritmo que descrevesse a pessoa a ser reconhecida, a partir de um comando básico de transposição da imagem em texto (inciso I). No mesmo sentido, o posicionamento do sujeito ao lado de outras pessoas com quem possua semelhança para que seja efetuado o reconhecimento também parte do funcionamento básico da máquina: a comparação de informações (inciso II). E, em se tratando de uma inteligência artificial, ao menos em tese, não haveria o risco de intimidação ou influência (inciso III).

Todavia, ser tecnicamente possível observar as determinações do artigo 226 do CPP não significa dizer que a prova deva ser, de fato, admitida ao processo penal. Não se desconhece que as análises produzidas por algoritmos são tidas como objetivas e, portanto, imunes a qualquer questionamento, até mesmo porque a maior parte da população não tem o conhecimento matemático para impugná-las [8]. Este é o efeito black box dos algoritmos — pela complexidade inerente a este tipo de tecnologia, não há transparência em seu funcionamento, que atua de maneira opaca, tal qual a caixa-preta de um avião [9]. E não é só: para além da falta de opacidade nas inteligências artificiais, o eventual uso do reconhecimento facial algorítmico como prova no processo penal ainda esbarra em, pelo menos, dois outros questionamentos: a proteção dos dados utilizados para o processo de aprendizado de máquina e a existência comprovada de vieses raciais que prejudicam seu funcionamento.

O reconhecimento facial digital funciona a partir do mapeamento de pontos do rosto do indivíduo cuja imagem é capturada e da comparação destes dados biométricos com informações preexistentes em um banco de dados [10] — que, no caso do uso desta tecnologia pelos órgãos de segurança pública, pode ser composto pelas fotografias dos documentos de identidade (RG) ou da Carteira Nacional de Habilitação (CNH). É evidente que isto gera um gravoso problema justamente quanto à esfera pessoal dos titulares destes dados; afinal, a Lei Geral de Proteção de Dados (Lei nº 13.709/18) especificamente exclui de sua proteção o tratamento de dados pessoais para fins de segurança pública, defesa nacional, segurança do Estado, e de investigação e repressão de infrações penais (artigo 4º, III). E mais: seria possível garantir a cadeia de custódia de uma prova produzida com base nestes dados? Afinal, qual sua fiabilidade, quando inúmeros são de falsidades ideológicas que levam à geração de documentos falsos?

Em outro giro, ainda, o reconhecimento pessoa pela inteligência artificial também padece de outro conhecido vício. Em 2019, um estudo tecido pelo National Institute of Standards and Technology, parte integrante do U.S. Department of Commerce, demonstrou que algoritmos de identificação facial são mais propensos a resultar em falsos positivos quando o alvo compõe algum grupo racializado, especialmente negros e asiáticos, e também quando se trata de mulheres, crianças ou idosos [11]. Noutras palavras: o reconhecimento facial é confiável, mas apenas para o homem branco adulto. É de se recordar que, em 2021, menos da metade da população brasileira (43%) se declarou branca [12]. Assim, mais uma vez, questiona-se: é possível conferir valor probatório efetivo a uma prova produzida com base em um banco de dados que não corresponde com a realidade?

Em apertada síntese, o que se observa é que, embora o Código de Processo Penal seja defasado em relação às novas metodologias de investigação digital, o reconhecimento facial algorítmico não violaria frontalmente o artigo 226 em uma primeira leitura. Entretanto, as peculiaridades do funcionamento deste tipo de modelo matemático computacional exigem que, ao menos, sejam sopesadas as delicadas questões que surgem, sob pena de deixar-se de observar direitos processuais mínimos que devem ser assegurados ao indivíduo – seja em tempos de processo penal digital ou analógico.

Independentemente da (in)admissibilidade do reconhecimento pessoal produzido por uma inteligência artificial, parece que a mera existência de tecnologias de controle tão precisas e tão presentes no cotidiano resguarda uma assustadora semelhança com a distopia orwelliana descrita na obra 1984: um big brother apto a assistir, onipresente e onisciente, a todos os movimentos da sociedade.

 

[1] LOPES JR., Aury. Direito Processual Penal. 17ª ed. São Paulo: Saraiva, 2020. p. 556.

[2] GIACOMOLLI, Nereu José. Algumas marcas inquisitoriais do Código de Processo Penal brasileiro e a resistência às reformas. Revista Brasileira de Direito Processual Penal, Porto Alegre, vol. 1, nº 1, p. 143-165, 2015. p. 144.

[3] BENTHAM, Jeremy. O Panóptico. 2ª ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2000. p. 20.

[4] FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir: nascimento da prisão. 2ª ed. Petrópolis: Vozes, 1983. p. 177.

[5] HAN, Byung Chul. No Enxame: perspectivas do digital. Edição Digital. Petrópolis: Vozes, 2018. p. 66.

[6] Disponível em: <https://surfshark.com/facial-recognition-map>. Acesso em: 09 jun. 2020.

[7] Disponível em: <https://g1.globo.com/fantastico/noticia/2023/02/26/com-ajuda-de-cameras-de-reconhecimento-facial-77-foragidos-da-policia-sao-presos-no-carnaval-da-bahia.ghtml>. Acesso em: 09 jun. 2023.

[8] O’NEIL, Cathy. Algoritmos de Destruição em Massa: como o Big Data aumenta a desigualdade e ameaça a democracia. Tradução de Rafael Abraham. Santo André, SP: Editora Rua do Sabão, 2020. p. 07/08.

[9] “In computing, a ‘black box’ is a system for which we know the inputs and outputs but can’t see the process by which it turns the former into the latter. Somewhat confusingly, airplane flight recorders are also referred to as black boxes; when an artificially intelligent system is indecipherable, it is like an airplane black box for which we have no key” (MICHEL, Arthur Holland. The Black Box, Unlocked: predictability and understandability in military AI. Genebra: United Nations Institute for Disarmament Research (UNIDIR), 2020. p. 03).

[10] NEGRI, Sergio Marcos Carvalho de Ávila; OLIVEIRA, Samuel Rodrigues de; COSTA, Ramon Silva. O Uso de Tecnologias de Reconhecimento Facial Baseadas em Inteligência Artificial e o Direito à Proteção de Dados. RDP, Brasília, Volume 17, n. 93, 82-103, maio/jun. 2020. p. 86.

[11] GROTHER, Patrick. NGAN, Mei; HANAOKA, Kayee. Face Recognition Vendor Test (FRVT). Part 3: Demographic Effects. NISTIR 8280. [S.l.]: U.S. Department of Commerce, National Institute of Standards and Technology, 2019. Disponível em: <https://doi.org/10.6028/NIST.IR.8280>. Acesso em: 09 jun. 2023.

[12] INSTITUTO Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua 2012/2021. Disponível em: <https://educa.ibge.gov.br/images/educa/jovens/populacao/22_pnadAtualizacao_jovens_003_corERaca.jpg>. Acesso em: 09 jun. 2023.

Fonte: Conjur – Gabrielle Casagrande Cenci