Uma faca, dois gumes: prescrição da execução penal

23 de julho de 2023, 13h17 – 4 minutos de leitura

Por Willer Tomaz

O Supremo Tribunal Federal, no último dia 30 de junho, ao julgar o Agravo em Recurso Extraordinário (ARE) 848.107, afetado ao Tema 788 da repercussão geral, pacificou o entendimento de que “o prazo para a prescrição da execução da pena concretamente aplicada somente começa a correr do dia em que a sentença condenatória transita em julgado para ambas as partes”.

Significa dizer que a pretensão executória não começa mais com o simples trânsito em julgado para a acusação, situação em que normalmente há recurso da defesa pendente de julgamento.

O artigo 112, inciso I, do Código Penal, prevê que a prescrição começa a correr do dia em que a sentença condenatória transita em julgado “para a acusação”. Porém, o dispositivo foi dado pelo STF como incompatível com a Constituição, devendo ser interpretado em harmonia com o novo entendimento.

Até então, embora a matéria não se assentasse em terra firme, predominava a literalidade do Código Penal, tendo inclusive sido salientado no acórdão revisto pelo STF que “não [é] cabível considerar como termo inicial do prazo prescricional a data do trânsito em julgado definitivo [para a acusação e para a defesa], sob pena de eleger termo interruptivo não previsto em lei”.

O próprio Supremo já decidira, diversas vezes, que “cuidando-se de execução da pena, o lapso prescricional flui do dia em que transitado em julgado para a acusação, conforme previsto no artigo 112 combinado com o artigo 110 do Código Penal” (STF, ARE 764.385/DF-AgR, relator ministro Luiz Fux, T1, DJe 2/5/2014 — vide também HC 113.715, relatora ministra Cármen Lúcia, T2, DJe 28/5/2013; HC 110.133, relator ministro Luiz Fux, T1, DJe 19/4/2012; ARE 758.903, relatora ministra Cármen Lúcia, T2, DJe 24/9/2013; RE 771.598/DF-AgR, relatora ministra Cármen Lúcia, T2, DJe de 14/2/2014).

Ocorre que em 2020, ao julgar as Ações Diretas de Constitucionalidade (ADC) 43, 44 e 54, o Supremo conferiu nova interpretação aos princípios constitucionais da estrita legalidade e da presunção de inocência para reconhecer a inconstitucionalidade da execução antecipada da pena, tendo esse julgamento servido de parâmetro à nova tese firmada sobre o termo inicial da prescrição da pretensão executória.

O raciocínio é simples: de um lado, se a legalidade penal e a presunção de inocência valem para obstar a formação definitiva da culpa por ausência de trânsito em julgado da condenação, sendo que de acordo com o artigo 5º, inciso LVII, da Constituição, “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”, então, de outro lado, os mesmos princípios devem valer também para o nascimento da pretensão executória, à luz do princípio da actio nata (STF, ARE 682.013/SP-AgR, T1, relatora ministra Rosa Weber, DJe 6/2/2013), segundo o qual, em linhas gerais, o termo inicial do prazo prescricional é a data do nascimento da pretensão resistida.

Ou seja, a pretensão executória somente surgirá quando a culpa do acusado estiver definitivamente formada por sentença penal condenatória transitada em julgado não para a acusação, não para a defesa, mas para ambas as partes, pois esse é o primeiro e único momento em que se é conhecida, de fato e de direito, a culpa indene de dúvidas em todos os seus aspectos.

Como afirmou o STF, “não podendo o Ministério Público executar o título condenatório, descabe cogitar do início do prazo prescricional”.

Com as vênias devidas, não podemos olvidar que a prescrição penal se fundamenta na “inconveniência da aplicação da pena muito tempo após a prática da infração” (CAPEZ, Fernando. Curso de direito penal. São Paulo: Saraiva, 2011. p. 614), pois quando o fato é constatado e as provas são certas, o castigo “deve ser seguido de perto o crime, se se quiser que o mesmo seja um freio útil contra os celerados” (BECCARIA, Cesare. Dos Delitos e das Penas. São Paulo: Edipro, 2018. p. 74), não podendo o acusado estar sujeito a sobressaltos e intempéries decorrentes da letargia estatal sistêmica e extremada para julgar os seus recursos, sobretudo quando as instâncias revisionais proverem tais recursos de qualquer modo.

Isso porque o tempo demasiado para a formação da culpa é fator de insegurança e de injustiça, motivo pelo qual defendemos que a demora excessiva há de assumir sempre maior importância em matéria de direito sancionador, justamente pela maior gravidade da coerção estatal que “intervém nos direitos fundamentais da pessoa humana, individualmente considerados, da maneira mais terrível, concreta, direta e ‘inesperada'” (FEITOZA, Denílson. Direito processual penal: teoria, crítica e práxis. Niterói: Impetus, 2010. p. 48).

Não há como negar coerência lógica do STF nos julgamentos do Tema 788 e das ADCs 43, 44 e 54. Cabe lembrar, porém, o aforismo popular de que “tudo na vida é faca de dois gumes”, não sendo diferente no processo penal, de modo que a vantagem atual poder ser a desvantagem futura, especialmente quando atingir direitos fundamentais.

Willer Tomaz é sócio do escritório Tomaz & Aragão Advogados Associados.


Artigo publicado no site:

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Lei iguala apenado primário e reincidente genérico condenados por crime hediondo

Por Willer Tomaz

A progressão de regime no cumprimento da pena sofreu profundas alterações pelo pacote anticrime (Lei 13.964/19) e ainda gera confusão nos tribunais quanto aos crimes hediondos, por vezes resultando interpretações in malam partem ou mesmo in bonan partem indevidamente, até por parte do Ministério Público.

Foi o que aconteceu recentemente, em maio de 2023, em uma execução penal onde um apenado que já havia sido condenado anteriormente por crime comum cumpria pena de 32 anos e um mês em regime fechado por homicídio. Na origem, o juízo executório negou a aplicação do percentual de 40% sobre o tempo da pena para a progressão de regime e impôs o de 50%.

Quando a questão chegou ao Superior Tribunal de Justiça (STJ) através de Habeas Corpus (HC 778476/SP, relator ministro Joel Ilan Paciornik, T5, j. 30/5/2023), o Ministério Público Federal opinou pela concessão da ordem para que fosse aplicado o percentual de 40%, quando o correto era 50%.

Precisamos lembrar que o chamado Pacote Anticrime revogou expressamente o artigo 2º, §2º, da Lei dos Crimes Hediondos (Lei nº 8.072/90). Com isso, a progressão de regime nos crimes hediondos passou a ser regida exclusivamente pela Lei de Execução Penal (LEP —  Lei nº 7.210/84).

Ocorre que a LEP também teve o seu artigo 112 modificado pela Lei nº 13.964/19, que introduziu novos critérios e lapsos para a progressão de regime, criando um quadro mais complexo sobre a benesse legal.

Em matéria de delito hediondo, a Lei dos Crimes Hediondos exigia o cumprimento de 40% da pena para o apenado primário progredir de regime, e de 60% para o reincidente, sem distinguir entre reincidente específico e genérico.

Já a lei do pacote anticrime instituiu percentuais de 40%, 50%, 60% e 70% para os casos de crime hediondo, com base não apenas na hediondez, mas também no caráter da reincidência e no resultado do crime: se a reincidência é genérica, aplica-se determinado percentual; se específica, outro percentual; se do crime não resulta morte, aplica-se um percentual; se resulta morte, incide outro percentual.

O imbróglio é que a lei acabou criando uma anomalia jurídica, qual seja, o tratamento igual para condenados reincidentes genéricos e primários, relativamente à progressão de regime nos crimes hediondos.

Comparando-se os dois sistemas, na regra antiga, tratando-se de crime hediondo, bastava a reincidência genérica para que a progressão de regime dependesse do cumprimento de 60% da pena. Agora, na regra atual, tanto o apenado primário quanto o reincidente genérico sentenciado por crime hediondo precisam cumprir apenas 40% da pena, ou de 50% se do novo crime resultou a morte da vítima. Os percentuais de 60% e 70% ficaram restritos ao reincidente específico em crime hediondo, sendo o patamar de 60% aplicável aos casos sem resultado morte, e o de 70% aplicável aos casos com resultado morte.

Isso porque o artigo 112 da Lei de Execução Penal passou a exigir o cumprimento da pena em caso de crime hediondo nos seguintes percentuais: 1) 40% para apenado primário (inciso V); 2) 50% para apenado primário, se do crime resultou morte (inciso VI, “a”); 3) 60% para apenado reincidente específico em crime hediondo sem resultado morte (inciso VII); e iv) 70% para apenado reincidente específico em crime hediondo com resultado morte (inciso VIII).

Em uma leitura atenta, percebe-se que a lei regrou as mais variadas situações de apenados primários e reincidentes específicos, mas, por outro lado, foi omissa quanto ao percentual aplicável aos casos de reincidentes genéricos, condenados anteriormente por crime comum e posteriormente por crime hediondo com e sem resultado morte.

Foi exatamente esse o objeto do Tema 1.084, decidido em maio de 2021 pela 3ª Seção do STJ em sede de recursos especiais repetitivos (REsp 1918338/MT, relator ministro Rogerio Schietti, S3, j. 26/5/2021, e REsp 1910240/MG, relator ministro Rogerio Schietti, S3, j. 26/5/2021).

Na ocasião, o STJ firmou a tese de que “é reconhecida a retroatividade do patamar estabelecido no artigo 112, V, da Lei nº 13.964/2019, àqueles apenados que, embora tenham cometido crime hediondo ou equiparado sem resultado morte, não sejam reincidentes em delito de natureza semelhante”.

O STJ entendeu que “evidenciada a ausência de previsão dos parâmetros relativos aos apenados condenados por crime hediondo ou equiparado, mas reincidentes genéricos, impõe-se ao Juízo da execução penal a integração da norma sob análise, de modo que, dado o óbice à analogia in malam partem, é imperiosa a aplicação aos reincidentes genéricos dos lapsos de progressão referentes aos sentenciados primários”.

E assim o STJ concluiu que “ainda que provavelmente não tenha sido essa a intenção do legislador, é irrefutável que de lege lata, a incidência retroativa do artigo 112, V, da Lei nº 7.210/1984, quanto à hipótese da lacuna legal relativa aos apenados condenados por crime hediondo ou equiparado e reincidentes genéricos, instituiu conjuntura mais favorável que o anterior lapso de 3/5 [60%], a permitir, então, a retroatividade da lei penal mais benigna”.

Com efeito, por aparente erro do legislador, o reincidente genérico passou a ter o mesmo tratamento do apenado primário condenado por crime hediondo tanto sem resultado morte quanto com resultado morte: “uma vez que os percentuais de 60% e 70% foram destinados aos reincidentes específicos, a nova lei deve ser interpretada mediante a analogia in bonam partem, aplicando-se, para o condenado por crime hediondo, com resultado morte, que seja reincidente genérico, o percentual de 50%, previsto no inciso VI do artigo 112 da Lei de Execução Penal”. (STJ, HC 778476/SP, relator ministro Joel Ilan Paciornik, T5, j. 30/5/2023).

Essa é a ratio ignorada pelo Ministério Público Federal ao opinar erroneamente pela aplicação do percentual de 40% para a progressão de regime ao reincidente genérico condenado por crime hediondo com resultado morte.

Vemos, portanto, que o pacote anticrime, visando recrudescer o tratamento à criminalidade violenta, acabou por igualar a primariedade e a reincidência genérica relativamente à progressão de regime nos crimes hediondos ou equiparados, aplicando-se o mesmo lapso temporal para a progressão em ambas as situações, de 40% (se não resultou morte) e 50% (se resultou morte), cenário mais favorável que o antes vigente sob a égide da Lei dos Crimes Hediondos.

Artigo Completo publicado em: https://www.conjur.com.br/2023-jun-19/willer-tomaz-incoerencias-pacote-anticrime