Inconstitucionalidade do artigo 24-A do Estatuto da OAB: direito penal do amigo e inimigo estrutural

O artigo 24-A do Estatuto da Ordem dos Advogados do Brasil (Lei 8.906/94) garante ao advogado o recebimento de até 20% dos bens universalmente bloqueados do cliente como forma de pagamento dos honorários advocatícios, exceto em crimes da Lei de Drogas.

Esta ressalva, alvo de crítica neste artigo, fere princípios fundamentais da CRFB/88 como da dignidade humana e devido processo legal. A análise se dá com base em um estudo jurídico, histórico e político, visando demonstrar a inconstitucionalidade da exceção contida no dispositivo aplicada aos delitos da Lei 11.343/06.

Direito de constituir advogado como instrumento do processo democrático

A Constituição (artigo 133) assegura que o advogado é indispensável à administração da justiça, e a constituição do defensor é parte inegociável do devido processo legal (artigo 5º, LIV e LV). A limitação imposta pelo artigo 24-A do EOAB nega ao acusado o direito de constituir advogado com recursos próprios. A norma, ao excluir a Lei de Drogas, afronta os pilares da processualidade democrática.

O Código de Processo Penal estabelece, em seu artigo 261, que ninguém poderá ser acusado sem a presença de um defensor. Já o artigo 263 dispõe que, caso o acusado não tenha um defensor constituído, o juiz deverá nomear um, ressalvando-se o direito do acusado de indicar outro de sua confiança.

Assim, a marcha processual depende não apenas da atuação de um defensor, mas daquele de livre escolha e confiança do acusado. Portanto, o direito de constituir advogado de sua confiança é uma garantia constitucionalizada, irrenunciável e indisponível. Se não há advogado legitimamente constituído, não há processo.

Autobiografismo político como gestador do dispositivo do EAOAB

O artigo 24-A do EAOAB tem origem legislativa no Projeto de Lei nº 5284/2020, de autoria do deputado Paulo Abi-Ackel (PSDB-MG), que propunha alterações em diversos dispositivos do Estatuto da Advocacia. No entanto, o referido projeto, em sua proposição inicial, não continha o dispositivo em discussão.

Posteriormente, o PL recebeu diversas alterações propostas pelo deputado Lafayette de Andrada (REP-MG), que, entre os anos de 2020 e 2022, introduziu o dispositivo e realizou modificações em sua redação. Em um primeiro momento, acertadamente, previa-se o direito da parte ré, nos casos de bloqueio universal, à destinação de até 20% do montante ao advogado constituído, para pagamento de honorários advocatícios e custas da defesa, mediante autorização judicial.

Entre o ano de 2020 e a apresentação do Parecer Preliminar de Plenário nº 10, às 11h38 do dia 15 de fevereiro de 2022, o projeto de lei não continha qualquer ressalva à Lei de Drogas. Contudo, ao anoitecer da mesma data, às 19h40, foi apresentado o Parecer Preliminar de Plenário nº 11, pelo relator, deputado Lafayette de Andrada, já incluindo a controversa — e inconstitucional — ressalva ao referido dispositivo, sem que houvesse qualquer emenda parlamentar que justificasse tal modificação.

Não bastasse a inclusão realizada ao final do expediente, momento em que muitos parlamentares já não se encontravam na Casa, chama atenção o fato de que, já na manhã do dia seguinte, 16 de fevereiro de 2022, o projeto foi submetido à votação e aprovado pela maioria. E menos de cinco meses depois, foi sancionado pelo então presidente Jair Bolsonaro, cuja retórica política sempre esteve fortemente pautada no combate ao tráfico de drogas.

Faz-se imprescindível delinear a trajetória do deputado Lafayette de Andrada, relator do projeto de lei e responsável pela apresentação da redação do artigo 24-A. Lafayette é deputado federal, advogado, professor de Direito e Ciência Política; filho, neto e sobrinho de deputados; além de descendente do jurista e patriarca da Independência, José Bonifácio de Andrada e Silva, e do inconfidente mineiro José Aires Gomes. Suas principais atuações incluem os cargos de vice-líder do Partido Republicanos, vice-presidente da Comissão de Constituição, Justiça e de Cidadania da Câmara dos Deputados, e presidente da Frente Parlamentar Mista em Defesa da Advocacia Pública no Congresso. Verifica-se, portanto, que a “ciência” do Direito, a prática da advocacia e sua relação ancestral com a política não são meros detalhes.

Ocorre que Lafayette de Andrada foi também o autor da inclusão, no “pacote anticrime” (Lei nº 13.964, de 24 de dezembro de 2019), do artigo 316 do Código de Processo Penal, que dispõe que o juiz poderá, de ofício, revogar ou novamente decretar a prisão preventiva, desde que presentes os requisitos legais.

Em 10 de outubro de 2020, com base no artigo 316 do Código de Processo Penal — incluído no “pacote anticrime” por iniciativa de Lafayette de Andrada —, o ministro do STF Marco Aurélio Mello concedeu liberdade a André Oliveira Macedo, conhecido como “André do Rap”, apontado como um dos líderes do Primeiro Comando da Capital (PCC). Após a expedição do alvará de soltura e a ampla repercussão midiática, o Supremo Tribunal Federal foi alvo de duras críticas. No mesmo dia, o então presidente do STF, Luiz Fux, revogou a decisão e determinou novamente a prisão de André do Rap. No entanto, ele já havia fugido e, até o momento (2025), permanece foragido.

decisum do ministro Marco Aurélio, em 2020, gerou intenso debate sobre a soltura de um conhecido membro do crime organizado e levantou críticas ao artigo 316 do CPP, incluído por iniciativa do deputado Lafayette de Andrada, bem como de sua pessoa [1].

As críticas vieram, em grande parte, de eleitores da direita, apontando uma incompatibilidade político-ideológica entre a família Bolsonaro e o deputado. Isso porque, além de ser o autor do dispositivo utilizado para fundamentar a soltura, de ofício, de um narcotraficante por um magistrado, Lafayette de Andrada dividia com Flávio Bolsonaro o mesmo partido político.

A controvérsia ganhou ainda mais repercussão quando os eleitores passaram a ver Lafayette não apenas como desalinhado aos ideais do ex-presidente, mas como o responsável pela medida que resultou na impunidade de um narcotraficante. Em contrapartida, o deputado declarou que:

“Repudio com veemência as reportagens veiculadas na imprensa que, por desconhecimento ou malícia, associam a soltura do traficante André de Oliveira Macedo, o André do Rap, a meu nome” […] “Não havia motivo para a soltura de André do Rap. Sou contrário à liberdade para criminosos. Fui autor de várias modificações que endureceram o texto do pacote anticrime. Entre eles, o que dificulta a progressão de regime, o que proíbe a ‘saidinha’ para crimes hediondos, o que amplia a pena para crimes cometidos com armas de uso proibido, entre outros. Esclareço, por fim, que sou daqueles que pensa que lugar de bandido é na cadeia” (UOL, 2020).

O deputado Lafayette de Andrada, ainda que sem intenção, acabou simbolizando, por alguns anos, a figura de um político contrário às causas defendidas pela “direita” e conivente com a perpetuação do crime de tráfico de drogas no país. Esse episódio parece ter abalado sua relação com a família Bolsonaro e com os eleitores então no “poder” — especialmente quando se observa, neste trabalho, que a criação do artigo 24-A do EOAB teria representado, supostamente, sua principal tentativa de defesa ou reafirmação política.

Curiosamente, desde a soltura de “André do Rap”, em 10 de outubro de 2020, até a tarde do dia 15 de fevereiro de 2022, o artigo 24-A apresentava apenas a redação que assegurava a destinação de até 20% do patrimônio universalmente bloqueado ao advogado regularmente constituído.

Contudo, na 11ª versão do parecer — apresentada às 19h40 do dia anterior à votação do projeto — foi incluída, sem qualquer justificativa jurídico-democrática plausível ou emenda parlamentar, a ressalva inconstitucional referente aos procedimentos regidos pela Lei de Drogas. Menos de cinco meses depois, o projeto seria sancionado pelo então presidente Jair Bolsonaro.

Após o deputado federal Lafayette de Andrada — que, à época, integrava o mesmo partido de Flávio Bolsonaro — ter sido publicamente apontado por eleitores de Jair Bolsonaro como um parlamentar que contribuiu, por meio do artigo 316 do Código de Processo Penal, para a soltura de um notório traficante internacional e líder do PCC, sua aparente decisão de incluir, no artigo 24-A, uma exceção excessivamente combativa — e flagrantemente inconstitucional — ao tráfico de drogas, na noite anterior à votação do projeto e a apenas cinco meses da sanção presidencial, sugere um possível gesto de realinhamento político com o então presidente da República e sua base eleitoral.

A inserção tardia e silenciosa da medida sugere uma possível tentativa de evitar questionamentos midiáticos que pudessem barrar o sancionamento da redação. Ao mesmo tempo, o deputado ainda teria, durante o governo Bolsonaro, uma espécie de “trunfo” nas mãos, caso sua posição político-criminal voltasse a ser questionada.

Por que a ressalva para a Lei de Drogas?

O artigo 24-A, visa garantir o direito à defesa mesmo em caso de bloqueio total de bens, mas negar essa garantia em crimes de drogas, fere diametralmente a Constituição. Ainda que o tráfico de drogas seja tratado de forma mais rigorosa em diversas normas e tratados, não há base constitucional para a supressão de direitos fundamentais.

Ademais, sustentar que a Defensoria Pública poderia suprir essa lacuna também não possui cabimento e previsão legal: a Defensoria é voltada apenas aos hipossuficientes e não possui estrutura equiparada (isonômica) ao Ministério Público.

A exclusão aos crimes da Lei de Drogas prejudica milhares de advogados criminalistas e atinge de forma desproporcional populações vulneráveis, principalmente negras e pobres. Ao impedir o exercício pleno do direito de defesa nesses casos, cria-se uma distorção inaceitável do processo penal democrático.

Direito penal do inimigo estrutural como garantia do direito penal do amigo

Surge a seguinte questão: qual seria a razão de não incluir, nessa ressalva, crimes como organização criminosa, prevaricação, corrupção, terrorismo, homicídio, comércio ilegal de armas de fogo, crimes ambientais, lavagem de dinheiro e outros delitos financeiros e fiscais, considerando que muitos, de alguma forma, estão conectados ao narcotráfico ou garantem a sua perpetuação?

A resposta está no fato de que o Direito Penal do Inimigo garante, por sua vez, o direito penal do amigo. Os crimes geralmente associados às classes desfavorecidas ganham os holofotes, enquanto os crimes que ameaçam a ordem financeira, o meio ambiente e a administração pública — em grande parte cometidos pela alta sociedade burguesa — permanecem sob o próprio controle dos holofotes: ninguém os vê. Assim, resta a esses grupos a alternativa de, inteligentemente, adequar, burlar e instrumentalizar o Direito para atender às suas próprias vontades. O Direito Penal do Inimigo, ao reforçar uma ordem social desigual, acaba por perpetuar essa desigualdade.

Conclusão

A razão para a flagrante inconstitucionalidade de parte do artigo 24-A insere-se no contexto do Estado de Coisas Inconstitucional, em que tudo parece diametralmente oposto à proposta da Constituinte de 1988. Diversos motivos se apresentam para justificar a inclusão da ressalva relativa aos crimes previstos na Lei de Drogas e, embora aparentemente dispersos, eles não são desconexos. De um lado, é possível que a ressalva tenha se originado de uma manobra política voltada à reaproximação do relator do projeto com figuras no poder e à proteção contra acusações de suposta leniência com o tráfico de drogas. De outro, ela reflete um processo histórico de enfrentamento ao narcotráfico na América Latina, frequentemente marcado pela ausência de limites legais.

Entretanto, há algo ainda mais profundo: a presença do direito penal estrutural do inimigo em diversas instituições públicas, autarquias e fóruns. Esse direito penal estrutural, claramente voltado para o desvio de atenção dos ilícitos praticados pelos “amigos”, contaminou até mesmo a instituição que deveria ser a maior defensora da processualidade democrática: a Ordem dos Advogados do Brasil.

Por fim, este trabalho propõe um debate técnico, com a participação dos legitimados do processo, da comunidade jurídica e acadêmica, para sustentar a inconstitucionalidade parcial do artigo 24-A do EAOAB perante o STF, em defesa dos princípios do Estado democrático de Direito.


Referências

BRASIL. Decreto-Lei nº 3.689, de 3 de outubro de 1941. Código de Processo Penal, disponível aqui

BRASIL. Lei Nº 11.343, de 23 de agosto de 2006. Institui o Sistema Nacional de Políticas Públicas sobre Drogas. Disponível aqui.

BRASIL. Lei nº 13.964 de 24 de dezembro de 2019, aperfeiçoa a legislação penal e processual penal, acesso em: 28 de novembro de 2024, disponível aqui.

BRASIL. Lei Nº 8.906, de 4 de julho de 1994. Dispõe sobre o Estatuto da Advocacia e a Ordem dos Advogados do Brasil, disponível aqui.

CÂMARA DOS DEPUTADOS. PL 5.284/2020. Projeto de Lei. Altera a Lei no 8.906, de 4 de julho de 1994, que dispõe sobre o Estatuto da Advocacia e a Ordem dos Advogados do Brasil – OAB, para incluir disposições sobre a atividade privativa de advogado, a fiscalização, a competência, as prerrogativas, as sociedades de advogados, o advogado associado, os honorários advocatícios e os limites de impedimentos ao exercício da advocacia.

FÓRUM. Deputado bolsonarista é o autor de artigo usado para libertar chefe do PCC: Lafayette de Andrada é deputado federal por Minas Gerais e pertence ao Republicanos, mesmo partido de Flávio Bolsonaro e Celso Russomanno, mas passou maior parte de sua vida política no PSDB. 12 out. 2020. Disponível aqui. 2024.

GUNTHER, Jakobs. Direito Penal do Inimigo. 1. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris. 2008.

UOL. Autor de artigo que baseou saída de André do Rap se exime e critica soltura. 12 out. 2020. Disponível aqui.

WIKIPÉDIA. Lafayette Andrada. Disponível em: https://pt.wikipedia.org/wiki/ Lafayette_Andrada. Acesso em: 28 de nov. 2024.

[1] FÓRUM. Deputado bolsonarista é o autor de artigo usado para libertar chefe do PCC: Lafayette de Andrada é deputado federal por Minas Gerais e pertence ao Republicanos, mesmo partido de Flávio Bolsonaro e Celso Russomanno, mas passou maior parte de sua vida política no PSDB. 12 out. 2020. Disponível aqui. 2024

Fonte: Conjur

Acesso a dados financeiros sensíveis: Ministério Público e polícia têm medo do Judiciário?

Na era da informação, dados pessoais são, antes de tudo, tratados como mercadorias. Justamente por essa razão, faz-se necessário o direito constitucional para assegurar sua proteção e impedir que o “ser humano seja tratado meramente como objeto ou como uma variável econômica”.. [2] O legislativo vislumbrou essa importância ao incluir a proteção de dados como direito fundamental específico (artigo 5º, LXXIX, CF) para além do sigilo tradicional dos dados (artigo 5º, XII, CF).

Esta coluna não versará sobre a questão dos dados pessoais sensíveis. O objetivo, como em texto anterior, é retomar a questão específica do sigilo dos dados financeiros e de seu compartilhamento pelo Coaf, mormente à luz das interpretações divergentes que vem sendo emprestadas ao Tema n° 990/RG:

É constitucional o compartilhamento dos relatórios de inteligência financeira da UIF e da íntegra do procedimento fiscalizatório da Receita Federal do Brasil, que define o lançamento do tributo, com os órgãos de persecução penal para fins criminais, sem a obrigatoriedade de prévia autorização judicial, devendo ser resguardado o sigilo das informações em procedimentos formalmente instaurados e sujeitos a posterior controle jurisdicional. 2. O compartilhamento pela UIF e pela RFB, referente ao item anterior, deve ser feito unicamente por meio de comunicações formais, com garantia de sigilo, certificação do destinatário e estabelecimento de instrumentos efetivos de apuração e correção de eventuais desvios.

Trata-se de tema crucial para a democracia e o tipo de Estado que aceitamos. Afinal, se aceitarmos que a investigação com quebra de sigilo pode ser feita sem o envolvimento do Judiciário, estar-se-ia criando um braço investigativo do Estado sem supervisão judicial. Noutras palavras, estar-se-ia chancelando a gestação daquilo que Ernst Fraenkel denominou um Estado Dual, situação em que o Estado — no caso de Fraenkel, o nazista —, longe de constituir uma realidade unitária, cindia-se entre a metade técnica, que observava regras e procedimentos legais, e a metade política, em que o Estado operava de forma abusiva, arbitrária e caótica. [3]

Em termos objetivos, a discussão tem como pano de fundo o artigo 15 da Lei n° 9.613/1998, [4] que impõe ao Coaf o dever de comunicar às autoridades “competentes” — leia-se, as autoridades persecutórias e especialmente o Ministério Público — quando concluir pela existência de crimes ou fundados indícios de sua prática, seja de tipos penais previstos ou não naquela lei.

O busílis reside na interpretação equivocada que às vezes é emprestada ao Tema n° 990/RG, para ver nele abarcado, também, e com base na Lei n° 9.613/1998, a possibilidade de o Ministério Público (e quiçá até mesmo a polícia) requerer diretamente ao Coaf relatórios financeiros sem a autorização prévia do Judiciário.

O problema da referida interpretação é antes de tudo normativo, justamente por subverter o que estabelece o Tema n° 990/RG. Há todo um conjunto de dispositivos que condicionam o fornecimento de dados financeiros sensíveis à reserva de jurisdição, cuja renúncia pelo Judiciário significaria restrição inconstitucional de suas próprias competências e, em última instância, diminuição do âmbito de proteção do princípio do acesso à justiça tal como previsto pelo artigo 5º, XXXV da CF.

Em primeiro lugar, o requerimento direto não é previsto pelo artigo 15, da Lei n° 9.613/1998, que só autoriza o compartilhamento espontâneo pelo Coaf e, na condição de regra restritiva de direitos fundamentais, deve ser ela própria lida restritivamente.

Além disso, a medida é expressamente vedada pelo artigo 1º, §4º da Lei Complementar n° 105/2001, que submete à reserva de jurisdição o requerimento de dados financeiros, assim como o faz, também, o artigo 3º-B, XI, “b”, “d” e “e” do CPP, incluídos pelo Pacote “Anticrime” (Lei n° 13.964/2019) e declarados constitucionais pelo STF nas ADIs 6.298, 6.299, 6.300 e 6.305.

A segunda ordem de razões que impede o requerimento sem observância da reserva de jurisdição é da ordem jurisprudencial. Nem a textualidade do Tema n° 990/RG, tampouco o caso que o originou, autorizam a compreensão de que algo além do compartilhamento espontâneo pelo Coaf foi chancelado pelo STF, e isso porque, a Corte parece ter consignado uma clara distinção entre os juízos técnicos de inteligência e de legalidade. O primeiro pertence à UIF/Coaf, e o segundo, às autoridades persecutórias, razão pela qual o pedido de compartilhamento deve ser feito à autoridade judicial, que apreciará a justificativa respectiva para tanto.

A justificativa constitucional para essa leitura, e essa é a terceira ordem de razões, é precisamente o resguardo constitucional dada à proteção de dados no art. 5º, LXXIX, para além da proteção tradicional dos dados pessoais (artigo 5º, XII). Aqui, a experiência alemã é particularmente elucidativa.

Ao decidir sobre o Censo de 1983, a Corte Constitucional Alemã Corte derivou do “direito geral de personalidade” [Allgemeinen Persönlichkeitsrecht] um “direito fundamental à autodeterminação informacional” [Grundrecht auf informationelle Selbstbestimmung], [5] que se refere ao direito de os indivíduos decidirem autonomamente quando e dentro de quais limites fatos sobre sua própria vida serão revelados, [6] sejam eles dados valiosos ou não, [7] e que é integrado, também, por uma dimensão “procedimental” de proteção por intermédio da qual o BVerfG se posicionou como um ator na implementação da proteção de dados [8] ao submeter o Legislativo a um controle de constitucionalidade que ultrapassa a etapa de elaboração legislativa para alcançar sua implementação prática. [9] [10]

Diferentemente do caso alemão, em que a “autodeterminação informacional” decorreu de uma construção jurisprudencial do BVerfG[11] a Constituição brasileira prevê atualmente a proteção de dados e a reserva de jurisdição para a autorização de seu requerimento direto ao Coaf pelo MP.

Trata-se, desse modo, de opção política legítima tomada pelo constituinte que deve ser respeitada por todos aqueles que integram lato sensu a persecução criminal, sob pena de o aparato persecutório, cioso de seus próprios meios e quiçá melindrado pelo Judiciário, constituir-se em parcela meramente “política” de um Estado tornado Dual, em que o direito é apenas seletivamente observado, tudo debaixo do argumento requentado e ad terrorem da “eficiência” no combate à corrupção, um dos motes contemporâneos da raison d’état.

Não se está aqui a discutir a possibilidade de o Coaf compartilhar espontaneamente as referidas informações quando seus mecanismos automatizados identificarem operações ou movimentações ilícitas, nem o valor probatório dos dados financeiros, tampouco a possibilidade de o Conselho fornecer tais dados ao Ministério Público.

Trata-se tão somente de respeitar a opção constitucional de submeter previamente ao Judiciário a análise da pertinência do acesso aos dados financeiros e, portanto, da restrição à regra geral de proteção dos dados pessoais dos indivíduos, até mesmo porque tais dados permanecem estáticos — não sofrerão alterações — e armazenados — não serão perdidos — nos registros do Coaf, razão pela qual não me parece existir absolutamente nenhuma justificativa para que o MP e a polícia — que também vem fazendo esse tipo de requerimento — não obedeçam a reserva de jurisdição.

Aliás, a situação provoca ainda uma outra e mais fundamental indagação: teriam parcelas do MP e da polícia medo do Judiciário? Se sim, por quais razões? Não estariam estes órgãos tão bem aparelhados e repletos de servidores competentes em condições de justificar de modo razoável a necessidade de acesso a tais dados? Por que submeter seu acesso a controle judicial a posteriori, quando o direito fundamental já foi restringido e os eventuais danos já consumados? Haveria algum argumento “político” que não poderia ser conhecido pela sua contraparte “técnica”?

Ora, ainda que a LGPD (artigo 4º, III, “d”) tenha excepcionado as atividades de investigação e repressão de infrações penais, o dispositivo seria patentemente inconstitucional se não observasse um postulado básico do constitucionalismo contemporâneo de que todo dispositivo constitucional possui alguma eficácia, ainda que simplesmente hermenêutica, como guia de interpretação para outros dispositivos constitucionais. Vale dizer, a opção político-constitucional continua vigendo e orienta a interpretação da proteção de dados pessoais quaisquer, em todos os âmbitos da atuação estatal.

O controle judicial do acesso a dados financeiros sensíveis tem como finalidade, não só garantir a sua pertinência probatória, mas dificultar a criação de um mercado paralelo de dossiês contra inimigos políticos, venda de dados, abuso de denúncias anônimas e etc.

Portanto, essa subversão degenerada que tem sido tentada em relação ao Tema n° 990/RG não viola apenas direitos fundamentais, mas também atinge a magistratura enquanto instituição democrática. Mais precisamente, autorizar que a polícia e o MP requisitem dados fiscais sem prévia autorização judicial é retirar também uma reserva de jurisdição, de modo a atingir prerrogativas da magistratura.

Nesse cenário, é fundamental que as entidades representativas da magistratura atuem para impedir que o Judiciário seja golpeado a pretexto de se favorecer, em abstrato, o combate à corrupção e ao crime organizado.

Não se trata apenas de uma questão (sensível) a ser tratada pela jurisdição constitucional; é também questão de legalidade stricto sensu e atinente às próprias garantias da magistratura, que podem, hoje ou amanhã, ser vítimas das circunstâncias que hoje autorizaram por terem sucumbido ao brado histérico e ad terrorem de que a avaliação judiciária prévia estaria a serviço do desmonte do combate à corrupção.

Após três décadas de democracia constitucional no Brasil, o Judiciário, e em especial o STF, demonstrou todo o seu empenho e credibilidade na defesa da democracia. Não há argumento que justifique blindar investigações de uma revisão judicial. Pelo contrário, impedir que o Judiciário avalie, previamente, a existência ou não de argumentos suficientes à autorização para compartilhamento de RIF, é um verdadeiro convite ao estabelecimento de um mercado ilegal de venda de dossiês e aniquilação de reputações sem sequer ter havido propositura de ação penal. A “lava jato” deveria ter ensinado algo à magistratura, MP, polícia e advogados. Frequentemente, contudo, sinto que permanecemos reféns de práticas “tão velhas quanto o mundo.

___________________________________________

[1] Jakob Wassermann. Golovin, 2ª ed., trad. Adonias Filho, Campinas: Sétimo Selo, 2024, p. 81.

[2] Fabian Uebele. Datenschutz und Kartellrecht, Berlim: Duncker & Humblot, 2022, p. 42.

[3] Ernst Fraenkel. „Das Dritte Reich als Doppelstaat“. In: Gesammelte Schriften, Baden-Baden: Nomos, 1999, v. II, p. 504; Georges Abboud. Direito Constitucional Pós-Moderno, 2ª ed., São Paulo: Revista dos Tribunais, 2024, p. 153 e ss.

[4] Art. 15. O COAF comunicará às autoridades competentes para a instauração dos procedimentos cabíveis, quando concluir pela existência de crimes previstos nesta Lei, de fundados indícios de sua prática, ou de qualquer outro ilícito.

[5] Fabian Uebele. Datenschutz und Kartellrecht, cit., p. 31-32. Cf. Rupert Scholz; Rainer Pitschasp. Informationelle Selbstbestimmung und staatliche Informationsverantwortung, Berlim: Duncker & Humblot, 1984, p. 11-15; 69 e ss; e Benedikt Buchner. Informationelle Selbstbestimmung im Privatrecht, Tübingen: Mohr Siebeck, 2006, p. 202 e ss.

[6] Cf. Gerhard Robbers. “Informationelle Selbstbestimmung und allgemeine Informationsfreiheit in Deutschland“. In: Juridica International, VII/2002, p. 98-105.

[7] Jörn Ipsen. Staatsrecht II: Grundrechte, 24 Aufl., Munique: Franz Vahlen, 2021, §317, p. 88.

[8] Rupert Scholz; Rainer Pitschasp. Informationelle Selbstbestimmung und staatliche Informationsverantwortung, cit., p. 56.

[9] Rupert Scholz; Rainer Pitschasp. Informationelle Selbstbestimmung und staatliche Informationsverantwortung, cit., p. 51-54.

[10] Cf. BVerfGE, 1 BvR 209, 269, 362, 420, 440, 484/83.

[11] Por todos, Jörn Ipsen. Staatsrecht II, cit., §318, p. 88.

O post Acesso a dados financeiros sensíveis: Ministério Público e polícia têm medo do Judiciário? apareceu primeiro em Consultor Jurídico.

Equilíbrio orçamentário e controle do gasto tributário: criação da Secgat

Uma questão que deveria ser evidente para todos os que acompanham o ambiente político brasileiro é a centralidade do Direito Financeiro e do Direito Tributário. É raro uma pauta política relevante que não trate destes dois temas ou que não seja de alguma forma condicionada por questões financeiras e tributárias. Atualmente, parece que temos uma grande questão, o equilíbrio fiscal, sendo que tudo o mais, do Perse ao IOF, são subtemas do tema maior que é o equilíbrio das contas públicas.

Em uma coluna anterior (aqui), dedicada à reforma da tributação da renda, chamei a atenção para a total falta de coerência dos diversos atores que clamam pelo equilíbrio fiscal no Brasil. Parece-me relevante trazer para este texto os seguintes trechos do que afirmei naquela oportunidade:

Temos ouvido muito a fala de que “o Congresso Nacional assumiu o seu papel e a sua relevância em relação ao orçamento público”, como referência ao fato de que a última década testemunhou um crescimento das atribuições de deputados e senadores em relação a decisões de alocação de recursos. Contudo, só gasto não é o orçamento. O orçamento é composto de despesas, mas também de receitas.
O que temos testemunhado é que o Congresso (i) não tem nenhuma ação clara de redução de sua fatia do orçamento, (ii) luta contra tornar os seus gastos mais transparentes – a transparência é uma imposição da LRF e do § 3º do artigo 145 da Constituição Federal, e (iii) não tem interesse em medidas de equilíbrio orçamentário que o coloque em rota de colisão com a elite do serviço público – que eles integram – ou com a elite econômica – que muitos e muitas deputados e senadores também integram. Esta é a quintessência da austeridade seletiva. É a austeridade desde que não seja feita por mim e que eu não sofra seus efeitos.
Não é uma realidade muito diferente da que encontramos no “mercado” e no mundo dos “analistas”. Como apontamos, o “mercado” quer equilíbrio fiscal, desde que não tenha que contribuir com ele. Seria muito mais coerente se, além de exigir desindexação de benefícios dos X% mais pobres da população, o “mercado” trouxesse para a mesa também estudos para a redução do nosso monumental gasto tributário, ou que o jornalista, fazendo aquela crítica indignada sobre a “crise fiscal”, lembrasse que muitas vezes recebe seus vencimentos via pessoa jurídica, pagando muito menos imposto do que um assalariado com remuneração equivalente.

Tributação e finanças públicas são, em essência, baseadas em decisões alocativas relacionadas a quem vai receber prestações públicas e quem vai financiá-las. O Sistema Tributário Nacional foi, em larga medida, apropriado por quem deveria ser responsável pelo financiamento dos gastos públicos, e qualquer discussão sobre equilíbrio orçamentário deveria começar por uma revisão profunda dos gastos tributários que foram apropriados pelo topo da pirâmide de renda da sociedade brasileira.

Isonomia, generalidade da tributação e privilégios odiosos

Sabe-se que o princípio da isonomia é uma das pedras angulares do Sistema Tributário Nacional e estabelece que todos os que manifestem a mesma capacidade contributiva paguem o mesmo tributo. Contudo, como bem observava Ricardo Lobo Torres, a isonomia tem, em si, um paradoxo, em suas palavras, “o aspecto mais intrincado da igualdade se relaciona com a sua polaridade. Enquanto nos outros valores (justiça, segurança, liberdade) a polaridade significa o momento da sua negação (injustiça, insegurança, falta de liberdade), na igualdade o seu oposto não a nega, senão que muitas vezes a afirma. Aí está o paradoxo da igualdade”. [1]

Dessa forma, a questão mais complexa relacionada ao princípio da isonomia não está em afirmar que todos que manifestem igual capacidade contributiva devem pagar o mesmo tributo, mas em identificar as situações nas quais a desigualdade realiza os valores, princípios e finalidades constitucionais em maior medida do que a igualdade da tributação.

Mesmo que a igualdade conviva com a diferença, não é qualquer tratamento diferenciado que será compatível com a isonomia. Aquele somente se justificará por uma finalidade constitucional que a realize. Do contrário, teremos o que Ricardo Lobo Torres, de forma eloquente, chamava de privilégio odioso. Segundo nosso saudoso mestre “o privilégio odioso consiste na permissão, destituída de razoabilidade, para que alguém deixe de pagar os tributos que incidem genericamente sobre todos os contribuintes ou receba, com alguns poucos, benefícios inextensíveis aos demais”. [2]

Tamanho dos gastos tributários

Segundo o Relatório Nacional sobre Gastos Tributários elaborado por Paolo de Renzio, Manoel Pires, Natalia Rodrigues e Giosvaldo Teixeira Junior, disponibilizado em fevereiro de 2025 (aqui), “os gastos tributários no Brasil corresponderam a 4.78% do Produto Interno Bruto (PIB) em 2023, considerando somente o nível federal. Se os gastos tributários de nível estadual são incluídos, a proporção chega a 7.2% do PIB em 2023”. O gasto tributário da União Federal previsto para 2025 atingia exorbitantes R$ 544 bilhões (aqui).

É evidente que uma redução significativa do gasto tributário da União contribuiria significativamente para o tão falado equilíbrio fiscal. Nada obstante, mais problemático do que o tamanho do gasto tributário é a sua opacidade, a falta de políticas públicas claras e, principalmente, como apontamos, a sua conversão em privilégios para os mais ricos, à custa da pressão por corte de gastos que beneficiam os mais pobres.

Sugestões sobre o controle dos gastos tributários

Há diversas sugestões sobre como equacionar as distorções causadas pelos gastos tributários, desde a revisão dos regimes simplificados do IRPJ/CSLL, até a limitação de deduções com saúde (ver o Relatório Nacional sobre Gastos Tributários, aqui). Alternativas como estas certamente fazem sentido.

O Simples Nacional deveria ser apenas um regime de simplificação sem ser, necessariamente, corresponder a uma relevante desoneração fiscal. Nesse sentido, uma revisão da tabela do Simples seria certamente adequada. De outra parte, a previsão de limites às deduções de saúde, assim como as que vigoram para os gastos com educação, é outra medida que deve ser debatida abertamente com a sociedade.

Nada obstante, neste texto não queremos tratar deste aspecto “qualitativo” dos gastos tributários. Temos uma questão mais relevante, de natureza institucional, decorrente do fato de não haver uma efetiva gestão do gasto tributário da União Federal, utilizada, aqui, como paradigma.

Recentemente, na reforma tributária, tivemos uma experiência bem-sucedida com a criação da Secretaria Extraordinária da Reforma Tributária do Ministério da Fazenda. A Sert exerceu um papel fundamental de desenvolvimento técnico, interlocução pública, transparência e debate congressual de questões relacionadas à reforma tributária, tornando-se essencial para o avanço e aprovação da Emenda Constitucional nº 132/2023 e da legislação infraconstitucional subsequente.

Cremos que precisamos de uma estrutura similar com foco no gasto tributário, com a criação da Secretaria Especial para Controle do Gasto Tributário (Secgat).

Necessitamos, urgentemente, de transparência sobre o gasto tributário da União, muito além do que encontramos no Demonstrativo dos Gastos Tributários que acompanha o Projeto de Lei Orçamentária Anual. Ter transparência [3] não é só revelar quanto é o gasto tributário e onde está alocado. Exige que a sociedade entenda a justificativa da renúncia fiscal para que possa controlá-la e que seja possível verificar a existência de fundamento constitucional que a legitime. [4]

Por exemplo, a renúncia fiscal decorrente do Simples está escorada em justificativas que vão da suposta relevância das pequenas empresas na geração de emprego até a sua capacidade de inovação. Contudo, estudos como o publicado por Leonel Cesarino Pessôa, Alexandre Evaristo Pinto e Daniel Zugman (aqui) negam a existência de base empírica para tais premissas.

Dessa forma, este é um exemplo claro de um gasto tributário que demanda uma análise e discussão pública ampla e transparente, para que seja possível uma decisão política sobre a sua manutenção, readequação ou mesmo eliminação.

Um órgão federal inteiramente dedicado à questão do gasto tributário e da sua gestão, que gere informação técnica transparente de qualidade, certamente imporá ao Congresso a obrigação de se posicionar a favor da manutenção de privilégios — que no modelo atual certamente existem — ou da sociedade. Afinal, como destacaram Paolo de Renzio, Manoel Pires, Natalia Rodrigues e Giosvaldo Teixeira Junior, no citado Relatório Nacional sobre Gastos Tributários, “é possível afirmar que o Congresso Nacional é o principal ator na criação de gastos tributários, pois todos os novos incentivos precisam passar pelo Poder Legislativo”. (destaque nosso)

Tema recorrente nos debates contemporâneos sobre finanças públicas é o papel do Poder Legislativo na execução orçamentária. Contudo, o Legislativo buscou protagonismo no gasto público sem ter a mesma responsabilidade jurídica atribuída ao chefe do Poder Executivo.

Nesse contexto, uma medida salutar para que o Poder Legislativo passe a pensar a gestão fiscal de uma forma responsável é a criação de hipóteses legais de crimes de responsabilidade contra a lei orçamentária, que possam ser cometidos por deputados(as) federais e senadores(as), notadamente os (as) presidentes dessas Casas Legislativas.

Conclusão

O desvio de finalidade dos gastos tributários é uma das maiores patologias do Sistema Tributário Nacional. Temos um modelo tributário que cria privilégios disfarçados de iniciativas de política pública e redistribui o custo do orçamento para quem, não raro, sequer deveria contribuir, tudo isso com base em argumentos retóricos na maioria das vezes sem qualquer base empírica.

Este cenário tem que mudar, e a mudança, segundo vemos, passa pela institucionalização do controle do gasto tributário. Nesse sentido, a criação da Secretaria Especial para Controle do Gasto Tributário, ou qualquer órgão equivalente, poderá ser um grande passo adiante de um Sistema Tributário mais justo, alinhado ao que impõe o § 3º do artigo 145 da Constituição.

_____________________________________________

[1] TORRES, Ricardo Lobo. Tratado de Direito Constitucional Financeiro e Tributário: Valores e Princípios Constitucionais Tributários. Rio de Janeiro: Renovar, 2005. v. II. p. 158.

[2] TORRES, Ricardo Lobo. Tratado de Direito Constitucional Financeiro e Tributário: Valores e Princípios Constitucionais Tributários. Rio de Janeiro: Renovar, 2005. v. II. p. 319.

[3] Sobre o tema da transparência, ver nosso texto publicado na semana passada em coautoria com Carmen Silvia Lima de Arruda (aqui).

[4] Ver: ROCHA, Sergio André. Fundamentos do Direito Tributário Brasileiro. 3 ed. Belo Horizonte: Casa do Direito, 2024. p. 131-139.

O post Equilíbrio orçamentário e controle do gasto tributário: criação da Secgat apareceu primeiro em Consultor Jurídico.

Juíza afasta multa prevista no Mover para importador independente 

A Lei 14.902/2024, que criou o Programa Mobilidade Verde e Inovação (Mover), dispensou importadores de veículos que atuam de forma independente — sem vínculo direto com as montadoras  — do chamado “registro de compromissos” ao programa. Por essa razão, o Decreto 12.435/25, que regulamenta a lei, não tem o condão de impor uma penalidade não prevista por ela. 

Magistrada entendeu que exigência não está prevista no texto da lei que criou o programa e não pode ser imposta via decreto

Esse foi o entendimento da juíza Enara de Oliveira Olímpio, da 2ª Vara Federal Cível de Vitória, para afastar a incidência de uma multa que foi aplicada com base nesse decreto. A penalidade é prevista pela exigência do registro de compromissos, uma obrigação do Mover para fabricantes e representantes oficiais de montadoras no país. 

O artigo 4º da lei que criou o Mover, no entanto, dispensa importadores independentes dessa obrigação. A Advocacia-Geral da União (AGU), por meio de parecer da Consultoria Jurídica do Ministério do Desenvolvimento, Indústria, Comércio e Serviços (MDIC), sustentou que a dispensa prevista na lei não afastaria, por si só, a aplicação da multa compensatória. 

A interpretação da CGU foi incorporada ao decreto, cujo artigo 7º passou a prever sanção mesmo nos casos não previstos no texto da lei. Diante disso, o autor impetrou mandado de segurança preventivo para afastar a penalidade. 

Ao analisar o caso, a magistrada entendeu que a penalidade imposta via decreto viola princípios da legalidade (art. 150, I, da Constituição Federal) e da hierarquia normativa, ao prever penalidade fundada exclusivamente em norma infralegal.

“Com efeito, se a Lei dispensou o importador de cumprir determinado requisito para a importação (registro de compromisso), não pode o Decreto impor penalidade diante da ausência de tal cumprimento. Verifica-se, portanto, alteração do sentido e alcance da norma legal, o que é vedado pelo nosso ordenamento jurídico, sob pena de violação aos princípios da estrita legalidade e da hierarquia das normas”, registrou. 

O importador foi representado pelos advogados João Gabriel Jacob e Lucas Pereira de Almeida Tedesco, da Mattar Vilela Advogados.

Clique aqui para ler a decisão
Processo 5015344-96.2025.4.02.5001

O post Juíza afasta multa prevista no Mover para importador independente  apareceu primeiro em Consultor Jurídico.

Revolução Digital: promessas e riscos

Vivemos sob a égide da Revolução Digital, com o crescimento gradativo da inteligência artificial no dia a dia dos brasileiros. Ela substituiu a tecnologia analógica pela digital, permitindo a universalização dos computadores pessoais, dos telefones celulares inteligentes e da internet, conectando bilhões de pessoas em todo o mundo.

Os benefícios sociais dessa revolução são inegáveis. Houve a democratização sem precedentes do acesso ao conhecimento, à informação e ao espaço público. Em momentos desafiadores, como o confinamento imposto pela pandemia de Covid-19, a tecnologia mostrou sua face mais virtuosa. Plataformas digitais viabilizaram o trabalho remoto, o ensino a distância, a prestação jurisdicional e a manutenção de vínculos afetivos. Surgiram, ademais, potentes ferramentas de interação social, como as redes sociais, que redefiniram as formas de participação e de engajamento cívico.

Entretanto, essa nova ordem digital também fez emergir um conjunto expressivo de desafios. O primeiro deles diz respeito à circulação irrestrita de conteúdos, que, destituídos de qualquer filtro editorial, abriram espaço para a proliferação da desinformação, dos discursos de ódio e das teorias conspiratórias. A forma de funcionamento das redes sociais, com seu modelo de negócios fundado no engajamento, tem desestabilizado a esfera pública e ameaçado valores fundamentais como a civilidade, a verdade e o respeito mútuo. Enfrentar tais distorções exige um delicado equilíbrio: preservar a liberdade de expressão, sem que ela se converta em instrumento de destruição da própria democracia e sem que o mundo desabe num abismo de incivilidade movido a ódio e a mentiras.

A segunda consequência negativa foi uma certa tribalização da vida, em que os programas de inteligência artificial direcionam a cada usuário apenas notícias, informações, anúncios e opiniões que já correspondem ao que essas pessoas pensam, reforçando o viés de confirmação. Os indivíduos passaram a habitar bolhas informacionais que reforçam suas crenças preexistentes, os distanciam de visões contrapostas e dificultam o exercício da empatia.

Um terceiro aspecto crítico está relacionado à crise no modelo de negócios da mídia tradicional, fragilizada pela migração da publicidade para as plataformas digitais. Além do fechamento das portas de veículos da mídia tradicional – rádio, televisão e jornais impressos –, houve o enfraquecimento de um mecanismo essencial ao funcionamento do espaço público: o controle editorial feito pela imprensa tradicional sobre a informação, que assegurava um grau mínimo de qualidade, veracidade e civilidade das informações difundidas.

O que se vê, portanto, é a emergência de “tribos” digitais que constroem suas próprias narrativas, muitas vezes dissociadas da realidade objetiva. A verdade foi perdendo a importância. Os fatos já não são mais objetivos, passam a ser entendidos como meras opiniões que podem ser moldadas ao gosto das crenças individuais. Nesse cenário, precisamos fazer com que mentir volte a ser errado. Em uma democracia, a verdade é plural e não tem dono, mas não pode ser substituída por falsidades deliberadas.

Por outro lado, quando usada com responsabilidade e para fins pacíficos e humanitários, a tecnologia digital tem o potencial de elevar o melhor da experiência humana. No âmbito do Poder Judiciário, por exemplo, a digitalização dos processos tornou-se realidade em toda a Justiça brasileira. Isso permitiu maior celeridade, transparência e eficiência na entrega da prestação jurisdicional, aproximando o Poder Judiciário do cidadão.

Adicionalmente, o sistema de justiça tem se valido da inteligência artificial para aprimorar rotinas, qualificar a análise de dados e liberar os agentes humanos para as tarefas mais relevantes. No Supremo Tribunal Federal (STF), contamos com quatro ferramentas de inteligência artificial em uso. A mais recente é a MARIA, a primeira com inteligência artificial generativa, desenvolvida para gerar ementas, relatórios processuais e análises iniciais de processos de modo automatizado, a partir da análise de peças processuais. Ela é um marco do compromisso da Suprema Corte brasileira com a modernização e com a utilização institucional e a inovação responsável.

Fora do campo jurídico, a inteligência artificial pode proporcionar melhorias significativas em áreas de relevância social, como saúde, cultura e educação. Mas também impõe desafios, sobretudo no mercado de trabalho, no qual o impacto é mais óbvio e previsível, ameaçando postos tradicionais e exigindo uma complexa requalificação da força laboral.

A Revolução Digital representa, em síntese, uma das maiores transformações da humanidade. Somente a história nos dirá se saberemos aproveitá-la para o bem ou se nos perderemos no caminho. O que está ao nosso alcance, neste momento, é estabelecer marcos éticos, regulatórios e jurídicos, para frear o mau uso da tecnologia e para preservar o pluralismo, a diversidade e a liberdade.

O post Revolução Digital: promessas e riscos apareceu primeiro em Consultor Jurídico.

Judicialização de terapias CAR-T: papel do Judiciário no acesso à saúde

A judicialização da saúde vem crescendo no Brasil, tanto no âmbito da saúde pública quanto na suplementar.

Na saúde suplementar, a judicialização possui um papel importante diante das frequentes negativas de cobertura de certos tratamentos pelas operadoras de planos de saúde. Especificamente no campo da oncologia, a judicialização é ainda mais evidente com o surgimento de terapias avançadas, como aquelas com CAR-T (Chimeric Antigen Receptor T-cell therapy).

As negativas de cobertura têm se tornado tão frequentes que aos pacientes não restam alternativas, senão acionar o Judiciário, que vem acertadamente pautando-se no que dispõe a Lei nº 9.656, de 3 de junho de 1998 (Lei dos Planos de Saúde), para garantir o acesso ao tratamento prescrito.

Terapia CAR-T: tratamento inovador não experimental

A terapia CAR-T representa uma abordagem inovadora de tratamento oncológico, envolvendo a alteração genética de células T do próprio paciente, as quais desempenham um papel fundamental na defesa e no combate a doenças, para que elas passem a reconhecer e atacar as células tumorais.

As terapias CAR-T são o resultado de mais de 60 anos de estudos e avanços em imunoterapia e biotecnologia. No Brasil, diversas terapias CAR-T, enquadradas pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) como uma categoria especial de medicamentos novos [1], já passaram por um rigoroso processo de avaliação e aprovação de registro [2] perante a agência até a sua disponibilização no mercado brasileiro.

Assim, o fato de terapias CAR-T já registradas serem resultado de pesquisa e desenvolvimento de novas tecnologias não pode ser confundido com o atributo experimental.

Como se sabe, medicamentos experimentais são aqueles que só podem ser disponibilizados aos pacientes sob condições determinadas, que incluem a participação em pesquisas clínicas, antes da aprovação de seu registro na Anvisa, ou por meio de programas específicos, como o uso compassivo ou acesso expandido. Essas restrições visam garantir o acesso seguro a tratamentos promissores, mas ainda em fase de desenvolvimento — o que não é o caso de terapias CAR-T já registradas.

Obrigação dos planos de saúde

Apesar de diversas terapias avançadas já serem aprovadas pela Anvisa há anos, o que se nota é um movimento das operadoras de negativa de cobertura de tais medicamentos, sob a argumentação de que seriam medicamentos (i) de caráter experimental, (ii) de alto custo e (iii) não previstos no Rol da ANS.

Como mencionado, o primeiro argumento é equivocado em razão do registro das terapias CAR-T na Anvisa. E o segundo argumento não é suficiente nem aceitável para motivar uma negativa de cobertura. [3] Afinal, o teto dos preços de comercialização desses medicamentos no país é definido pela Câmara de Regulação do Mercado de Medicamentos (Cmed). Além disso, o pressuposto econômico da operação de planos e seguros de saúde é justamente pulverizar os riscos dentre uma massa de beneficiários para que o acesso a tratamentos de alto custo para um indivíduo seja acessível àqueles que tiverem prescrição médica e cobertura contratual para tanto.

Por fim, o último argumento também não encontra suporte na legislação. Por se enquadrarem como medicamentos e não possuírem caráter experimental, as terapias CAR-T devem ter sua cobertura assegurada pelas operadoras de planos de saúde, o que inclusive decorre de diversos dispositivos legais da Lei dos Planos de Saúde.

Primeiramente, para os planos que incluem a cobertura de internação hospitalar, o artigo 12, II, “d” [4], da referida lei prevê a cobertura obrigatória dos medicamentos administrados durante a internação conforme prescrição do médico assistente.

Essa previsão é reforçada pelo artigo 8º, III, [5] da Resolução Normativa nº 465/2021 (“RN nº 465/2021”) da ANS, ao estabelecer a obrigatoriedade de cobertura de medicamentos com registro na Anvisa, ainda que não listados expressamente no Rol da ANS, quando (i) utilizados em procedimentos com cobertura obrigatória, no caso de planos de segmentação ambulatorial, ou (ii) ministrados durante o período de internação, quando o plano incluir internação hospitalar, como é o caso da administração das terapias avançadas.

Não bastasse isso, é evidente a intenção, na Lei de Planos de Saúde, de que haja ampla cobertura para tratamentos antineoplásicos, ou seja, oncológicos. Nesse sentido, a Lei estabelece a obrigatoriedade de cobertura de tais tratamentos como exigência mínima tanto nos planos da segmentação ambulatorial (artigo 12, I, “c” [6]), quanto nos planos da segmentação hospitalar (artigo 12, II, “g” [7]).

E essas não são as únicas hipóteses legais que suportam a obrigação de cobertura das terapias CAR-T por operadoras de planos de saúde. Com a alteração legislativa promovida pela Lei nº 14.454/2022, foi acrescentado o §13 ao artig 10 da Lei nº 9.656/1998, que expressamente obriga as operadoras de planos de saúde a cobrir procedimentos/tratamentos fora do Rol da ANS, sempre que prescritos por médicos e atendidos os seguintes critérios: (i) houver comprovação de eficácia com base em evidências científicas e plano terapêutico; ou (ii) houver recomendação da Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no Sistema Único de Saúde (Conitec) ou de órgão internacional de renome, desde que também aprovadas para seus nacionais.

Nesse contexto, inclusive, a jurisprudência [8] do Superior Tribunal de Justiça (STJ) passou a reconhecer que a natureza do Rol de ANS é de taxatividade mitigada.

Diante dessas previsões legais e dos critérios estabelecidos, em caso de negativas abusivas por parte das operadoras, decisões judiciais que determinam o fornecimento de terapias CAR-T não são arbitrárias ou infundadas. Longe disso, estão em consonância com o ordenamento jurídico.

Atuação judicial pautada na legalidade

A análise das demandas envolvendo o fornecimento de terapia CAR-T evidencia que o Poder Judiciário vem atuando de forma técnica e criteriosa, assegurando a efetividade do direito à saúde nos casos em que estão presentes requisitos objetivos para tanto, o que impede decisões arbitrárias e realça o caráter técnico das intervenções judiciais.

Nas decisões que determinam a obrigação de fornecer o medicamento de terapia avançada ao paciente, o Judiciário considera a existência de registro vigente da terapia na Anvisa, o que afasta qualquer alegação quanto ao seu caráter experimental e assegura a sua regularidade para comercialização no mercado brasileiro.

O Judiciário também tem exigido a apresentação de prescrição médica, acompanhada de laudo clínico, que atestem a pertinência da terapia solicitada no caso concreto, considerando a inexistência de alternativas eficazes, especialmente nos casos de doenças raras e refratárias a tratamentos convencionalmente indicados. Isso demonstra a diligência do Judiciário para que a obrigação de fornecimento se dê nos casos devidamente justificados [9].

Soma-se a isso a importância das Notas Técnicas emitidas pelos Núcleos de Apoio Técnico do Poder Judiciário (NatJus), que vêm se posicionando favoravelmente à terapia em diversos casos, com destaque à sua eficácia comprovada em evidências científicas [10].

Outro aspecto examinado pelo Judiciário é a eficácia da terapia CAR-T atestada por outras agências reguladoras como o Food and Drug Administration (FDA) nos Estados Unidos, que aprovou a primeira terapia no país após décadas de estudos com resultados positivos [11].

Por fim, os tribunais também reconhecem que a negativa de cobertura de medicamento registrado na Anvisa pelas operadoras, sem a existência de alternativa terapêutica, consiste em violação ao objeto contratual e ainda coloca o consumidor em extrema desvantagem em ofensa ao Código de Defesa do Consumidor [12].

Todos esses critérios adotados comprovam que a construção das decisões favoráveis ao fornecimento das terapias CAR-T não é aleatória, mas consequência direta de uma análise fundamentada em aspectos legais, técnicos e constitucionais, em especial o direito à vida e à saúde.

Conclusão

Como visto, considerando as previsões e hipóteses da Lei nº 14.454/2022, em especial a evidente intenção do legislador de que haja ampla cobertura de tratamentos antineoplásicos/oncológicos (artigo 12, I, “c” e II, “g”) e o disposto no artigo 12, II, “d”, que já determina o fornecimento de medicamentos durante o período de internação hospitalar, as operadoras devem fornecer obrigatoriamente terapias CAR-T registradas que tenham sido prescritas por médicos aos pacientes, independentemente de sua inclusão específica no Rol da ANS. Ou seja, a obrigação de fornecimento já decorre da leitura da própria Lei dos Planos de Saúde.

Nesse contexto, longe de decisões simplesmente voluntaristas ou meramente dotadas de critérios subjetivos, o Judiciário tem exarado decisões mais técnicas e responsáveis, o que assegura uma assistência mais efetiva à saúde dos cidadãos e maior previsibilidade às operadoras.

___________________________

Referências

[1] Nos termos do inciso XVIII do art. 4º da Diretoria Colegiada nº 505, de 27 de maio de 2021 (“RDC nº 505/2021”).

[2] Terapias CAR-T registradas na ANVISA: Yescarta (registro nº 109290013); Kymriah (registro nº 100681180); Tecartus (registro nº 109290014);

[3] Especialmente porque a Câmara de Regulação do Mercado de Medicamentos (Cmed) – órgão responsável por precificar os medicamentos – adota critérios rigorosos, como a comparação com preços aprovados em outros países e avaliação de impacto orçamentário, propiciando que os preços sejam aprovados de forma compatível ao sistema de saúde brasileiro.

[4] Art. 12.  São facultadas a oferta, a contratação e a vigência dos produtos de que tratam o inciso I e o § 1o do art. 1o desta Lei, nas segmentações previstas nos incisos I a IV deste artigo, respeitadas as respectivas amplitudes de cobertura definidas no plano-referência de que trata o art. 10, segundo as seguintes exigências mínimas:   (…) II – quando incluir internação hospitalar: (…) d) cobertura de exames complementares indispensáveis para o controle da evolução da doença e elucidação diagnóstica, fornecimento de medicamentos, anestésicos, gases medicinais, transfusões e sessões de quimioterapia e radioterapia, conforme prescrição do médico assistente, realizados ou ministrados durante o período de internação hospitalar;

[5] Art. 8º Nos procedimentos e eventos previstos nesta Resolução Normativa e seus Anexos, se houver indicação do profissional assistente, na forma do artigo 6º, §1º, respeitando-se os critérios de credenciamento, referenciamento, reembolso ou qualquer tipo de relação entre a operadora e prestadores de serviços de saúde, fica assegurada a cobertura para: (…) III – taxas, materiais, contrastes, medicamentos, e demais insumos necessários para sua realização, desde que estejam regularizados e/ou registrados e suas indicações constem da bula/manual perante a ANVISA ou disponibilizado pelo fabricante.

[6] Art. 12.  São facultadas a oferta, a contratação e a vigência dos produtos de que tratam o inciso I e o § 1o do art. 1o desta Lei, nas segmentações previstas nos incisos I a IV deste artigo, respeitadas as respectivas amplitudes de cobertura definidas no plano-referência de que trata o art. 10, segundo as seguintes exigências mínimas:

I – quando incluir atendimento ambulatorial:
[…]
c) cobertura de tratamentos antineoplásicos domiciliares de uso oral, incluindo medicamentos para o controle de efeitos adversos relacionados ao tratamento e adjuvantes;

[7] II – quando incluir internação hospitalar:

[…]
g) cobertura para tratamentos antineoplásicos ambulatoriais e domiciliares de uso oral, procedimentos radioterápicos para tratamento de câncer e hemoterapia, na qualidade de procedimentos cuja necessidade esteja relacionada à continuidade da assistência prestada em âmbito de internação hospitalar;

[9] TJSP; Apelação Cível 1169606-97.2023.8.26.0100; Relator (a): Schmitt Corrêa; Órgão Julgador: 3ª Câmara de Direito Privado; Foro Central Cível – 8ª Vara Cível; Data do Julgamento: 03/09/2024; Data de Registro: 03/09/2024

[10] TJSP; Apelação Cível 1061341-64.2024.8.26.0100; Relator (a): Domingos de Siqueira Frascino; Órgão Julgador: Núcleo de Justiça 4.0 em Segundo Grau – Turma IV (Direito Privado 1); Foro Central Cível – 43ª Vara Cível; Data do Julgamento: 28/03/2025; Data de Registro: 28/03/2025

[11] TJSP; Apelação Cível 1035146-28.2013.8.26.0100; Relator (a): João Batista Vilhena; Órgão Julgador: 5ª Câmara de Direito Privado; Foro Central Cível – 27ª Vara Cível; Data do Julgamento: 22/05/2024; Data de Registro: 26/07/2024

[12] Art. 51. São nulas de pleno direito, entre outras, as cláusulas contratuais relativas ao fornecimento de produtos e serviços que: (…) IV – estabeleçam obrigações consideradas iníquas, abusivas, que coloquem o consumidor em desvantagem exagerada, ou sejam incompatíveis com a boa-fé ou a eqüidade; (…)   § 1º Presume-se exagerada, entre outros casos, a vantagem que: (…) II – restringe direitos ou obrigações fundamentais inerentes à natureza do contrato, de tal modo a ameaçar seu objeto ou equilíbrio contratual;

O post Judicialização de terapias CAR-T: papel do Judiciário no acesso à saúde apareceu primeiro em Consultor Jurídico.

Limitação de condenação solidária de empresa consorciada se há boa-fé

No boletim de jurisprudência do Tribunal de Contas da União nº 541 [1] há uma notícia relativa ao acórdão nº 1136/2025 [2], do Plenário daquela Corte de Contas que chama a atenção: “É possível a aplicação do artigo 944 do Código Civil para limitar a condenação solidária de empresa consorciada, se reconhecida a sua boa-fé, à proporção do débito equivalente à sua participação no consórcio, pois há espaço jurídico para tratamento diferenciado aos integrantes de consórcio, de forma a se atender ao princípio da isonomia e a se tratar de forma desigual os desiguais”.

No caso concreto, o Plenário do TCU analisava, por determinação de acórdão anterior (item 9.14.1 do acórdão nº 1361/2021, proferido no TC 027.542/2015-7) o sobrepreço de duas parcelas do Demonstrativo de Formação de Preços (DFP), a saber, “Fornecimentos” e “Subempreiteiros”, relativos ao contrato nº 0800.0053457.09.2, firmado pela Petrobrás e o Consórcio CNCC, cujo objeto era a realização de obras de implantação das Unidades de Coqueamento Retardado (UCR) da Refinaria Abreu e Lima (Rnest), localizada em Ipojuca (PE).

Tanto no acórdão anterior (nº 1.361/2021), como no acórdão ora analisado (nº 1.136/2025), aquele Plenário havia se pronunciado pela limitação da responsabilidade de uma das consorciadas ao limite de sua participação no consórcio (10%), porque: (i) tinha papel secundário no consórcio, contando somente com 10% de participação; (ii) os atos ilícitos que deram causa ao sobrepreço apurado foram de responsabilidade da parte predominante no consórcio, não havendo indicativos de sua participação nesses ilícitos; (iii) ausência de participação na licitação e na elaboração das propostas, pois integrou o consórcio em 2010, quando a execução do contrato já havia iniciado e (iv) inexistência de provas ou indícios de que a sucessão empresarial tenha ocorrido para acobertamento de ilícitos e/ou fuga de responsabilizações.

Os acórdãos, inclusive, defrontam uma possível responsabilização decorrente da inobservância do dever de diligência na análise dos contratos que a sucessora assumiria por consequência da incorporação empresarial, arrogando a si os riscos da contratação em questão. Contudo, foi consignado que o contrato era realmente complexo e a que própria Corte, ao examiná-lo, teve de partir de manifestações de inúmeros auditores para estimar o sobrepreço, de modo que não se deveria considerar da sucessora “que realizasse amplos e custosos estudos para que assumisse a contratação em andamento. Até porque, à época, não havia questionamentos em relação aos preços praticados”.

Nas fundamentações, ainda, ambos os acórdãos se respaldaram não apenas no art. 944, parágrafo único, do Código Civil, mas também no artigo 4º, § 1º da Lei nº 12.846/2013 (Lei Anticorrupção) e em fundamentos da decisão proferida pelo TRF-4 no julgamento do Agravo de Instrumento nº 5046411-08.2016.4.04.0000/PR.

Reflexões

Uma primeira leitura do acórdão pode trazer certo conforto, ante a sensibilidade com que os ministros consideraram as questões fáticas do caso. Entretanto, sob lentes mais questionadoras, parece haver necessidade de se depurar mais o entendimento e, então, arriscamos algumas linhas sobre ele, não para reprová-lo, obviamente, mas para suscitar reflexão.

No caso das contratações administrativas com consórcios de empresas, a solidariedade decorre da própria legislação. Desde a Lei nº 8.666/1993, vigente quando da contratação examinada pelo TCU, a regra da responsabilidade solidária das consorciadas está prevista (artigo 33, V da Lei nº 8.666/1993 e artigo 15, V da Lei nº 14.133/2021). Não bastante, o próprio Regulamento do Procedimento Licitatório Simplificado da Petrobras (Decreto 2.745/1998) também a prevê no item 4.10.1, letra e).

Acerca da solidariedade, prescreve o artigo 264 do Código Civil que “há solidariedade, quando na mesma obrigação concorre mais de um credor, ou mais de um devedor, cada um com direito, ou obrigado, à dívida toda”. E segue o artigo subsequente: “a solidariedade não se presume; resulta da lei ou da vontade das partes”.

Trata-se, evidentemente, de instrumento que “facilita a vida” do credor. Como afirmado por Fabiana Barros de Martin, em sua dissertação de mestrado pela Universidade de São Paulo: [3] “(…) a existência de solidariedade em uma relação obrigacional cria uma maior proteção ao crédito, tornando-se, por consequência, um instrumento de extrema segurança para o credor” e o Tribunal de Contas da União decidiu por afastar essa proteção, em homenagem aos princípios da isonomia, equidade e justiça.

O problema é que a superação de regras por princípios não é tarefa fácil. Isso porque, as regras possuem prevalência sobre princípios, ao menos numa primeira vista, pois são preceitos gerais e abstratos cuja relação de sopesamento e limitação do espectro principiológico já foi realizado aprioristicamente pelo legislador e, portanto, na maioria dos casos, deve haver aplicação da regra em desfavor em desfavor da otimização do princípio, eis que ela se apresenta como limitação ou restrição desta otimização. [4]

É inegável que essa prevalência apriorística dá lugar à aplicação do princípio em algumas situações, como “quando a aplicação da regra […] produz um resultado extremamente indesejado e, até mesmo, incompatível com a ordem constitucional ou mesmo quando há dúvidas quanto à constitucionalidade da regra”. [5] Entretanto, invocar princípios para afastar regras incidentes no caso concreto demanda um esforço argumentativo muito superior àquele natural a qualquer decisão, considerando que a regra, por si só, é um instrumento de maior previsibilidade e estabilidade que os princípios. [6]

Era imprescindível que o TCU, através do exame da adequação, da necessidade e da proporcionalidade em sentido estrito, efetuasse a demonstração da desproporcionalidade da regra legal da solidariedade. [7] Contudo, os acórdãos percorrem a via acima mencionada, indicando dúvida se o TCU teria satisfatoriamente se desincumbido de seu ônus argumentativo para afastar a regra da solidariedade entre consorciadas e mesmo a do artigo 1.116 do Código Civil, segundo a qual a sucessora “herda” todos os direitos e obrigações da sucedida.

Se assim for, não estaria o instituto da solidariedade esvaziado? Afinal, a solidariedade possui alguma relação entre grau de culpa ou se trata de instituto que dá maiores garantias a um credor? Sigamos com as reflexões.

O parágrafo único do artigo 944 do Código Civil permite a redução equitativa da indenização quando o juízo se deparar com uma grande desproporção entre a gravidade da culpa e o dano. O dispositivo, tal como posto, não faz distinção entre a indenização por danos materiais ou imateriais. Tampouco se a redução pode ser aplicada a casos de responsabilidade negocial e/ou extra negocial, [8] subjetiva e/ou objetiva. Dessas particularidades cuidou a doutrina — e com divergência.

Parece mesmo que a análise do grau de culpa sugere que a redução apenas pode ocorrer em casos de responsabilidade subjetiva, ao passo em que a responsabilidade objetiva dispensa a própria existência de culpa.

Quanto ao alcance do dispositivo em relação à espécie de dano causado, convence a tese de que tanto os danos materiais como os imateriais podem ser reduzidos, seja porque a lei não faz qualquer limitação a este respeito, seja porque os bens jurídicos tutelados na indenização por dano material e imaterial têm assento constitucional, revelando-se um nonsense permitir a redução da indenização de um, mas não do outro. Já no que tange aos danos decorrentes da responsabilidade negocial ou extra negocial, tem-se algumas ressalvas a serem formuladas sobre a ampla e irrestrita utilização do dispositivo para reduzir-se a indenização.

Como consignado em nota de rodapé, a responsabilidade negocial se origina no inadimplemento e a extra negocial nos atos ilícitos, propriamente ditos ou assim classificados pelo abuso de direito. Em geral, os negócios jurídicos, ainda que unilaterais, são previamente conjecturados e examinadas todas as suas condições e repercussões. Logo, devem, em regra, ser cumpridos (pacta sunt servanda). A partir dessa perspectiva, aparentemente, reduzir a indenização, cujos termos e razões de ser já estavam previamente ajustados e eram conhecido pelas partes do negócio parece inapropriado, principalmente quando esses termos decorrem da Lei e do Edital de Licitação.

Os acórdãos nos 1361 de 2021 e 1136 de 2025 do TCU examinavam a existência de danos ao erário e, consequentemente, a responsabilidade das consorciadas pelo ressarcimento desses danos. O contrato administrativo tido como pano de fundo do exame realizado pela Corte de Contas decorria de licitação pública realizada, em que as partes se submetem integralmente ao Edital e, obviamente, às normas de Direito Público.

Trata-se, portanto, de um contrato que se inicia com a resignação dos interessados aos termos e condições previstos na Lei e no Ato Convocatório e não nos parece que a sociedade sucessora desconhecia essas circunstâncias quando incorporou a consorciada originária.

Não é que se queira preservar intransigentemente a rigidez contratual, mas a própria segurança jurídica e o interesse do Estado enquanto lesado clamam pela observância da solidariedade, que era desde sempre conhecida por todos os envolvidos.

De outro lado, é apressado limitar a responsabilidade da sucessora no que tange ao ressarcimento do erário à sua participação no consórcio (10%), por força do artigo 4º, § 1º da Lei Anticorrupção. Isso porque, o dispositivo em questão diz: “Nas hipóteses de fusão e incorporação, a responsabilidade da sucessora será restrita à obrigação de pagamento de multa e reparação integral do dano causado, até o limite do patrimônio transferido (…)”.

Logo, a obrigação da reparação do dano ao erário é integral, desde que o patrimônio transferido seja superior a este montante a ser ressarcido, mas, se inferior, estará limitada ao valor deste patrimônio transferido. Porém, os acórdãos não identificam este patamar de limitação da indenização e, evidentemente, se o patrimônio transferido à sucessora tiver sido superior aos 10% do sobrepreço, o Estado está recebendo menos do que deveria receber e, se referido patrimônio tiver valor inferior aos 10% deste sobrepreço, a sucessora que foi responsabilizada por valor superior àquele fixado em lei.

Por fim, acerca do julgamento do Agravo de Instrumento nº 5046411-08.2016.4.04.0000/PR, não há correspondência adequada entre os casos, pois que tratam de matérias distintas.

No paradigma invocado, o objeto de discussão era a prática de improbidade administrativa, cuja responsabilização é subjetiva e na exata medida da culpabilidade pelos atos praticados e, nesta hipótese, o ressarcimento do erário é muito mais uma consequência do ato ilícito doloso (pressuposto da improbidade) que causa lesão ao erário que uma sanção propriamente dita. Tanto assim que, mesmo que inexista o dano ao erário, é possível ser constatada improbidade administrativa e vice-versa. Entretanto, no caso examinado, a responsabilidade solidária é uma consequência do império da lei e da vontade das partes, e diz respeito exclusivamente a questões patrimoniais, que não se inserem nas relações de direito administrativo sancionador, que é o caso da improbidade.

Por todas as razões acima mencionadas, aparentemente o Tribunal de Contas da União afastou incidência de regras relativas à solidariedade entre as consorciadas e, com arrimo em princípios jurídicos, responsabilizou uma das consorciadas pelo ressarcimento ao erário até o limite de sua participação no consórcio (10%) sem, contudo, desincumbir-se de seu ônus de fundamentação, muito mais qualificado em razão desta superação.

Ainda, os dispositivos legais utilizados e o próprio julgado invocado para a limitação da responsabilização da consorciada são de incidência incerta da forma como foram aplicados ao caso e, por essas razões, é necessária a reflexão acerca de ser ou não adequado afastar a responsabilidade solidária em casos em que fique demonstrada a boa-fé de consorciadas em relação a fatos e/ou atos que causem danos ao erário.

_________________ 

1 Disponível aqui.

2 Disponível aqui.

3 Das obrigações solidárias: relação com as obrigações indivisíveis no sistema jurídico romano e reflexo no direito brasileiro. Dissertação – Faculdade de Direito, Universidade de São Paulo, 2015. Disponível aqui.

4 Otimização de princípios, separação de poderes e segurança jurídica: o conflito entre princípio e regra. Dissertação – Faculdade de Direito, Universidade de São Paulo, 2012. Disponível aqui.

5 Ibid., p. 44.

6 Neste sentido, Rafael Scavone Bellem de Lima apud Bustamante: “a existência de uma regra implica, portanto, a existência de uma pretensão de estabilidade para o resultado das ponderações de princípios realizadas pelo legislador, isto é, uma pretensão de que esses resultados tenham caráter definitivo”. (Ibid. p. 68).

7 ÁVILA, Humberto. Teoria dos princípios: da definição à aplicação dos princípios jurídicos. São Paulo: Malheiros. 2021.

8 Segundo lições do Prof. Nelson Rosenvaldi: “Evita-se, aqui, a adoção do par responsabilidade contratual e extracontratual – usualmente adotada em doutrina e tribunais –, pela sua incompletude. O inadimplemento não é um fenômeno restrito aos contratos, mas se estende a qualquer obrigação, tenha ela origem em um contrato ou em um negócio jurídico unilateral. […] Não obstante a consagração pelo uso da expressão responsabilidade contratual, pelas razões técnicas ora suscitadas, optamos pela decomposição do fenômeno da responsabilidade em negocial e extranegocial”.

(Disponível aqui)

O post Limitação de condenação solidária de empresa consorciada se há boa-fé apareceu primeiro em Consultor Jurídico.

A proteção dos consumidores na regulação bancária

O consumo de crédito e de outros serviços financeiros é um tema sensível no Brasil. Mesmo com a incidência do Código de Defesa do Consumidor, pautado nos princípios da boa-fé objetiva e do equilíbrio, as relações entre instituições financeiras e consumidores são marcadas por altíssima litigiosidade. Ano após ano, os relatórios Justiça em Números do CNJ indicam os bancos entre os maiores litigantes, em demandas que discutem desde os abusos em cobranças de dívidas e os pedidos de revisão dos contratos,[1] até os fenômenos mais recentes do superendividamento e a explosão de fraudes bancárias [2].

Com a intensa transformação digital dos serviços financeiros, a proteção dos consumidores exige cada vez mais o conhecimento especializado e multidisciplinar, tanto para compreensão dos novos problemas nas relações bancárias, quanto para construir as respectivas soluções. O Direito Bancário é naturalmente multidisciplinar e dialoga constantemente com outras ciências. Expressões como custo efetivo total, sistema de amortização, capitalização composta de juros, etc., são linguagem corriqueira dos contratos bancários, com conceitos definidos pela Economia ou Matemática Financeira.

O Direito Bancário também se funda em múltiplas fontes, como a Constituição, o direito dos contratos no CDC e no Código Civil, as legislações específicas do sistema financeiro, os precedentes do STJ e STF que interpretam esse arcabouço normativo, a regulação setorial do Conselho Monetário Nacional (CMN) e Bacen, os usos e costumes bancários, as recomendações de soft law e a autorregulação bancária [3].

O CDC, microssistema das relações de consumo, prevê expressamente, em seu artigo 7º, o diálogo das fontes. Esse método possibilita uma visão unitária, sistemática e coerente do direito privado, iluminado a partir da Constituição, para a concretização do direito fundamental de defesa do consumidor [4]. O diálogo entre o CDC e as demais normas que regulam o Sistema Financeiro Nacional foi reconhecido na Adin 2.591/DF, julgamento em que o STF consolidou a aplicação do CDC aos contratos e serviços bancários.

Quase duas décadas depois, o diálogo com a regulação setorial, exercida pelo CMN e Bacen, pode contribuir para o aprimoramento das relações entre bancos e consumidores, em três frentes distintas: (1) a informação adequada sobre os custos e riscos do crédito; (2) a limitação dos juros praticados em operações de alto risco de endividamento, como o cartão de crédito e o cheque especial; e (3) o reforço dos deveres de segurança das transações, para prevenção e reparação das fraudes bancárias.

O detalhamento do custo do crédito se articula com um dos principais direitos do consumidor: o direito básico à informação, artigo 6º, III, CDC, que exige que o consumidor seja informado, de forma prévia e adequada, sobre os elementos dos produtos ou serviços, inclusive a modalidade, riscos e preço. Para que o consumidor compreenda os custos do crédito, o CDC desde sua origem estabeleceu uma série de informações obrigatórias no artigo 52, dentre elas a “soma total a ser paga, com ou sem financiamento”. Ou seja, há mais de três décadas, exige-se que a concessão de crédito ou financiamento esclareça ao consumidor, de forma clara, o valor total devido pelo empréstimo.

Para reforçar a clareza sobre os custos do crédito, a Lei 14.181/2021 introduziu no CDC os artigos 54-B, 54-C e 54-D, com o intuito de prevenir o superendividamento dos consumidores. Desde então, os fornecedores de crédito devem não apenas informar mas também esclarecer os consumidores sobre os custos do crédito e modalidade de contratação, bem como advertir sobre os riscos gerais e específicos da inadimplência. O artigo 54-B especifica que o Custo Efetivo Total (CET) das operações, sintetizado em percentual ao ano, deve compreender todos os valores cobrados do consumidor, “sem prejuízo do cálculo padronizado pela autoridade reguladora do sistema financeiro”. E é justamente nesse cálculo padronizado do CET que a regulação bancária contribui para aprimorar o direito à informação [5].

Resoluções do Conselho Monetário Nacional

O custo das operações foi tratado pelo CMN em três resoluções, publicadas no Dia Mundial do Consumidor (15/3), no ano de 2013. A Resolução CMN 4.196 exigiu que os bancos esclareçam aos consumidores o direito aos serviços essenciais gratuitos nas contas correntes para pessoas físicas, devendo informar que o consumidor não é obrigado a contratar um pacote mensal de tarifas, para abertura e movimentação de contas correntes. Trata-se de dever importante de informação que deve ser atendido pelos bancos, para que a contratação de tarifas em contas correntes não seja imposta em venda casada, prática abusiva vedada pelo artigo 39, I, CDC.

A Resolução 4.198 regula as informações sobre os custos de transações de câmbio. Já a Resolução 4.197, estabeleceu que o Custo Efetivo Total das operações de crédito deve discriminar cada componente (juros, tarifas, IOF, seguros, etc.) em percentual ao ano e em reais. Ou seja, não basta apenas informar as taxas de juros e valores das prestações mensais. Para compreensão adequada do custo do crédito, cada encargo cobrado deve ser detalhado tanto em percentual ao ano, como em valor monetário, permitindo assim que o consumidor avalie com clareza o custo real do crédito. A Resolução CMN  4.881, de 23/12/2020, passou a exigir esse detalhamento do CET também para os contratos de empresários individuais e empresas de micro ou pequeno porte, que podem se enquadrar no conceito de consumidores, ante a vulnerabilidade que notadamente apresentam junto aos bancos [6].

O objetivo de aprimorar as relações entre bancos e clientes se observa também na Resolução CMN 2.878, de 26/7/2021, que estabeleceu que as instituições financeiras devem atuar com transparência nos relacionamentos com seus clientes, assegurando respostas tempestivas a dúvidas, clareza nas informações sobre os custos das operações, em contratos de fácil leitura, fornecendo aos seus clientes os contratos, extratos, demonstrativos de dívidas e demais documentos solicitados. O texto foi alterado pelas Resoluções CMN 3.694, de 26/3/2009, CMN 4.949, de 30/9/2021 e CMN 5.117, de 25/1/2024, e a versão atual exige deveres como adequação dos produtos às necessidades dos clientes, segurança das transações, em uma política de relacionamento cooperativo, equilibrado e justo para os clientes, considerando seus perfis de relacionamento e vulnerabilidades associadas.

Ainda para reforçar a transparência, as Resoluções CMN 5.004, de 24/3/2022 e CMN 5.112, 21/12/2023, estabelecem que a contratação de operações financeiras depende de formalização de instrumento representativo do crédito junto ao cliente. Tal exigência é de suma importância, num cenário em que não raro os consumidores não recebem cópia dos contratos, o que inclusive contribui para a propagação de fraudes bancárias. Essas mesmas resoluções determinam que as instituições financeiras devem fornecer aos clientes, pessoas físicas e empresários individuais, o Documento Descritivo de Crédito, detalhando informações como número do contrato, saldo devedor atualizado e demonstrativo de sua evolução, sistema de pagamento, além de informar o valor para quitação antecipada dos contratos, com o abatimento proporcional dos juros a partir das mesmas taxas contratadas. O Descritivo de Crédito deve ser fornecido imediatamente nos canais de atendimento presenciais, e em até um dia útil nos demais canais de atendimento.

Essas medidas reforçam um dos principais pilares do direito contratual, tanto do CDC, como do Código Civil: a boa-fé objetiva, princípio de ordem pública, fonte dos deveres colaterais de cooperação, transparência e lealdade. As próximas normas que serão abordadas corroboram com outro pilar fundamental do CDC: o princípio do equilíbrio, que reprime a onerosidade excessiva.

A proteção contra onerosidade excessiva em contratos bancários perpassa necessariamente pelo tema das altíssimas taxas de juros praticadas no Brasil. O provisionamento da inadimplência continua sendo a principal justificativa dos bancos para as estratosféricas taxas de juros brasileiras. Tal justificativa é questionada, a partir de estudos que demonstram o crescimento das taxas de juros mesmo em períodos em que a inadimplência se mantém estável [7]. Outras pesquisas identificam que o principal fator para as taxas de juros tão altas é o igualmente elevado spread bancário [8], decorrente da falta de competição no mercado financeiro [9]. O spread bancário do Brasil é o maior do mundo e cerca de 11 vezes o praticado em países desenvolvidos, não havendo diferença significativa entre o spread dos bancos públicos e privados no Brasil[10].

Apesar de todo o tabu que essa discussão enfrenta, o fato é que a Lei Bancária (Lei 4.595/64) atribui ao Conselho Monetário Nacional a competência normativa para limitar os juros praticados pelas instituições financeiras. A limitação é mais frequente nos contratos de crédito direcionado, linhas de crédito específicas, criadas por lei, para a execução de alguma política pública, como o crédito para habitação, financiamento estudantil e crédito rural. Apenas recentemente é que o CMN passou a exercer o seu poder regulatório também em operações de taxas livres, em que não há limitação legal de encargos. E o fez justamente em duas modalidades de concessão de crédito, de altíssimo custo e risco de endividamento: o cheque especial e o cartão de crédito.

A Resolução CMN 4.765, de 27/11/19 limitou em 8% a.m. as taxas máximas de juros cobradas pela utilização de limite de cheque especial, em contas correntes de pessoas físicas e microempreendedores individuais. Dentre as justificativas adotadas pelo Bacen, para estabelecer esse teto inédito de juros, destaca-se a constatação de que “entre 2017 e 2019, a taxa de juros do cheque especial aumentou − a despeito da queda na taxa básica de juros, da manutenção do nível de inadimplência e da queda dos spreads bancários para a quase totalidade das operações de crédito com taxas livremente pactuadas entre instituições financeira e clientes” [11].

Em relação ao cartão de crédito, que segue sendo um dos vilões de endividamento dos consumidores, a Resolução CMN 4.549 de 26/01/17, determinou que: (1) o uso do limite rotativo do cartão de crédito somente poderia ser feito em um mês, evitando que o cliente reiteradamente contrate essa modalidade de crédito de altíssimo custo; (2) a partir do mês seguinte, o banco deve ofertar ao cliente a possibilidade de parcelamento do valor em aberto, com taxas de juros mais baixas, em benefício do cliente. Importante frisar que ofertar uma linha de crédito alternativa, com juros mais baixos, não é o mesmo que impor um parcelamento automático, sem solicitação expressa do cliente, e com taxas muito maiores do que as do crédito pessoal.

Para conter o endividamento excessivo nos cartões de crédito, a Resolução CMN 5.112, de 21/12/2023, estabeleceu que os valores totais de encargos cobrados pelos parcelamentos de faturas de cartão de crédito não poderia ultrapassar o valor emprestado. A partir de janeiro de 2024, os bancos devem respeitar o teto de encargos fixado pelas autoridades monetárias.

As limitações de encargos nos contratos de cheque especial e cartão de crédito são um importante avanço. Entretanto, a regulação do CMN nas operações com “taxas livres” ainda é tímida, com parcimônia e omissão em relação a empréstimos para pessoas físicas, com taxas de juros que alcançam os absurdos patamares de 1000% ao ano. Se na limitação dos encargos a regulação setorial ainda deixa muito a desejar, o campo da segurança e prevenção contra fraudes talvez seja o de maior atuação.

No ano de 2012, a Súmula 479/STJ reconheceu a responsabilidade objetiva das instituições financeiras em reparar os danos causados a consumidores, por fraudes cometidas por terceiros. Trata-se de risco inerente da atividade bancária, que integra o chamado “fortuito interno”.

A regulação bancária permite aprofundar tanto a noção do fortuito interno, quanto as medidas que devem ser adotadas pelos bancos para cumprir os deveres de segurança. A Resolução CMN 4.557, de 23/2/2017 inclui expressamente as fraudes internas e externas como eventos inerentes ao risco operacional da atividade bancária. Em conjunto com a Resolução CMN 5.076, de 18/05/23, esclarecem uma série de falhas que integram o risco das atividades de pagamento, e exigem que a estrutura de gerenciamento de riscos operacionais deve contemplar sistemas, processos e infraestrutura de T.I. para assegurar integridade e segurança nas transações, mecanismos de proteção de redes, monitoramento das falhas de segurança e das reclamações dos consumidores, além de identificar movimentações financeiras e operações atípicas.

As operações atípicas podem ser compreendidas a partir do perfil de movimentação financeira e de uso do crédito de cada cliente da instituição financeira. No âmbito do Pix – pagamento instantâneo brasileiro, a regulação está em constante aperfeiçoamento. A Resolução BCB 142, de 23/9/2021 estabeleceu limites máximos de valores para transações realizadas entre 20h e 6h, bem como prazo mínimo de 24h para aumento de limites de transações a pedido dos clientes. As tentativas de fraudes devem ser registradas diariamente, cabendo aos bancos também discriminar as medidas corretivas adotadas.

A Resolução BCB 103 de 8/6/2021 criou o Mecanismo Especial de Devolução (MED), que pode ser iniciado tanto por iniciativa do usuário pagador, em caso de pagamento indevido ou suspeito de fraude, quanto por iniciativa própria da instituição financeira, que atende o usuário recebedor, em caso de suspeita de fraude. Ambos os processos são implementados por meio do Diretório de Identificadores de Contas Transacionais (Dict).

Já o Bloqueio Cautelar, criado pela Resolução BCB nº 147, de 28/9/21, estabelece a obrigação dos bancos de bloquearem preventivamente as operações, quando as transações destoarem do perfil do cliente e do histórico de transações anteriores, ou quando a chave recebedora dos valores for uma chave suspeita. O bloqueio cautelar deve ser implementado independentemente de solicitação do usuário pagador.

A Resolução Conjunta CMN/BCB 6 de 23/5/2023 e a Resolução BCB 343 de 4/10/2023 determinam aos bancos o compartilhamento de informações sobre suspeitas de fraudes. E a Resolução BCB 457 de 6/3/2025 estabeleceu que serão canceladas as chaves Pix vinculadas a CNPJs e CPFs que estejam irregulares junto à Receita Federal.

Em suma, a regulação bancária atual: (1) reforça a clareza das informações sobre os custos do crédito; (2) impõe limites às taxas de juros, que podem orientar os processos de revisão dos contratos, sobretudo nos casos de superendividamento; e (3) auxilia a identificar as falhas de segurança das transações bancárias, que ensejam o dever de reparação das fraudes. Se outrora houve resistência dos bancos à aplicação do CDC, da regulação setorial os bancos não podem se afastar.


[1] Sobre o tema, vide a robusta pesquisa indicando que, na maioria dos casos, os consumidores de crédito tem razão nos litígios judiciais contra os bancos. GREGORINI, Pedro Augusto. Jurimetria aplicada aos litígios em massa: o perfil dos processos envolvendo os bancos na Justiça Estadual de São Paulo. 2021. Dissertação (Mestrado) – Universidade de São Paulo, Ribeirão Preto, 2021. Disponível em: https://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/107/107131/tde-15082022-114649/. Acesso em: 11 jun. 2025.

[2] Metade dos brasileiros sofreu fraude em 2024, diz Serasa Experian | Agência Brasil. Acesso em 29/03/2025.

[3][3] MIRAGEM, Bruno. Direito Bancário. 2 ed. rev., atual. e ampl – São Paulo: Thomson Reuters, 2018, pp. 85-106

[4] MARQUES, Claudia Lima. Diálogo das fontes: do conflito à coordenação de normas no direito brasileiro / Claudia Lima Marques, coordenação. – São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2012, p. 59-63.

[5] Código de defesa do consumidor comentado / organização de Denise Hammersschmidt / Curitiba: Juruá, 2025. Artigos 54-A a 54-G, Andressa Jarletti Gonçalves de Oliveira / Maria Carla Moutinho, pp. 452-481.

[6] OLIVEIRA, Andressa Jarletti Gonçalves de. Defesa judicial do consumidor bancário. Curitiba: Rede do Consumidor, 2014, pp. 76-94.

[7] CAMARGO, Patrícia Olga. A evolução recente do setor bancário no Brasil. São Paulo: Cultura Acadêmica, 2009, pp. 84-85.

[8]NOGUEIRA, José Jorge Meschiatti. Tabela Price: Mitos e Paradigmas. 3. Ed. Campinas: Millenium Editora, 2013, pp. 208-209.

[9] BELAISCH, Agnès. Do Brazilian Banks Compete? IMF: [s.l.], 2003.

[10] DANTAS, José Alves. MEDEIROS, Otávio Ribeiro de; CAPELLETO, Lucio Rodrigues. Determinantes do spread bancário ex post no mercado brasileiro. RAM, Revista de Administração Mackenzie, v. 13, n. 4. São Paulo, jul./ago. 2012, p. 48-74.

[11] Banco Central do Brasil. Cheque Especial: avaliação do impacto da limitação da taxa de juros. Relatório de Economia Bancária. 2020.

O post A proteção dos consumidores na regulação bancária apareceu primeiro em Consultor Jurídico.

De incêndios à ‘uberização’: os julgados-chave do STF em 2024

Supremo Tribunal Federal julgou 115 mil casos em 2024. As decisões colegiadas somaram 24 mil, tomadas em Plenário e nas duas turmas. Destacaram-se entre os temas de maior repercussão nacional, a determinação para um plano de prevenção e combate a incêndios na Amazônia e no Pantanal, a ilegalidade de abordagem policial e busca pessoal motivadas por raça, sexo, orientação sexual, cor da pele ou aparência física e a responsabilidade estatal por disparo de arma de fogo durante operações policiais.

Esses e outros temas foram selecionados por este Anuário da Justiça, que analisa não só a jurisprudência de temas relevantes julgados pelo Plenário durante 2024, mas também mostra como cada ministro votou – e defendeu seu entendimento – em julgamentos enfrentados nas 1ª e 2ª Turmas. O levantamento qualitativo foi construído com base nos julgados selecionados pela Corte em seu Boletim Informativo e nos processos selecionados pela redação na ferramenta de busca de jurisprudência do site do tribunal.

Litígios da área de Direito do Trabalho, como os que envolvem mudanças promovidas pela reforma trabalhista de 2017 (Lei 13.467) e as relações de trabalho alheias à CLT, continuam revelando as nítidas divergências entre os ministros. A maioria na corte é contra, por exemplo, o reconhecimento do vínculo de emprego entre motoristas de aplicativo e as plataformas. A ‘uberização’ teve repercussão geral reconhecida (Tema 1.291) e o processo envolvendo o caso ainda tramita no Plenário Virtual (RE 1.446.336). A expectativa recai sobre os votos de Flávio Dino, que ainda não se manifestou sobre o tema, e de Edson Fachin, relator do recurso, que tende a levar em conta impactos sociais na análise de matérias que envolvem direitos trabalhistas.

Nv¹: Não votou; IMP²: Impedido; NC e JNC³: Julgamento não concluído. Fonte: Pesquisa do Anuário com base no Informativo STF 2024

Fachin, inclusive, foi um dos que saiu vencido no julgamento em que o STF validou os dispositivos que instituíram o trabalho intermitente. O ministro compôs a corrente que entende que, a despeito de a modalidade assegurar ao trabalhador direitos tradicionais (repouso semanal remunerado, recolhimentos previdenciários e férias e 13º salário proporcionais), o formato de contratação, como foi instituído pela reforma trabalhista, não garante previsibilidade de trabalho e, consequentemente, de salário. Acompanharam essa tese Cármen Lúcia, Rosa Weber (aposentada), Luiz Fux e Cristiano Zanin. Já Nunes Marques (relator), Luís Roberto Barroso, Gilmar Mendes, Alexandre de Moraes, Dias Toffoli e André Mendonça integraram a ala que decidiu que o trabalho intermitente não suprime direitos trabalhistas, nem fragiliza as relações de emprego (ADI 5.826, 5.829 e 6.154).

página 38 - anuário brasil 2025

A posição dos ministros em matéria trabalhista também pode ser medida pelo índice de procedências de reclamações constitucionais, instrumento pelo qual empresas chegam diretamente ao Supremo para reverter decisões da Justiça do Trabalho. Levantamento deste Anuário da Justiça junto ao painel de estatísticas do STF mostra que Gilmar Mendes foi o ministro que mais votou pela procedência (total ou parcial) das 8,8 mil reclamações relacionadas a Direito do Trabalho na corte entre 2024 e 2025: 77%. Na sequência aparecem André Mendonça (74%); Fux (71%); Cármen Lúcia (69%); Zanin (66%); Alexandre (63%); e Nunes Marques (59%). Na outra ponta, estão Edson Fachin, que julgou procedentes 13% dessas reclamações, e Flávio Dino (36%).

página 39 - anuário brasil 2025

Só em 2024, o STF recebeu mais de 10 mil reclamações (de todas as áreas), um salto de quase 40% em relação ao ano anterior. “É uma consequência de o Supremo ter se tornado um tribunal de precedentes, e esses precedentes serem vinculantes, o que justifica o aumento das reclamações”, explica o presidente Luís Roberto Barroso.

No campo do Direito Penal, o Supremo enfrentou temas que evidenciaram posições mais duras dos recém-chegados Zanin e Dino. No julgamento sobre a ilegalidade de abordagem policial motivadas por raça, os dois acompanharam a maioria para denegar Habeas Corpus a um homem condenado por tráfico de drogas.

página 40 - anuário brasil 2025

No caso, o policial que o abordou afirmou em depoimento que avistou “indivíduo de cor negra que estava em cena típica de tráfico”. Gilmar, Toffoli, Nunes Marques e Mendonça também votaram contra o HC, por entender que a revista não foi motivada por filtragem racial. Já Barroso, Fux e Fachin votaram a favor do réu, alegando que a abordagem teria sido motivada unicamente pela cor da pele. “A prisão por 1,5 g de cocaína é muito atí-pica e reveladora, na minha visão, de um perfilamento que, se não for racial, pelo menos é social. Revela o tratamento desequiparado em partes diferentes da cidade”, disse Barroso, em seu voto.

página 40 (2) - anuário brasil 2025

No mesmo julgamento, por unanimidade, o Plenário fixou a tese: “A busca pessoal independente de mandado judicial deve estar fundada em elementos indiciários objetivos de que a pessoa esteja na posse de arma proibida ou de objetos ou papéis que constituam corpo de delito, não sendo lícita a realização da medida com base na raça, sexo, orientação sexual, cor da pele ou aparência física” (HC 208.240).

A tendência de Dino mais favorável à acusação também ficou demonstrada no julgamento em que o STF definiu, por maioria, que cabe recurso de apelação contra decisão do Tribunal do Júri que absolve o réu por quesito genérico (absolvição por clemência), em contrariedade às provas. Zanin, Mendonça e Gilmar foram contra, por entenderem que a possibilidade de apelação esvazia a soberania dos veredictos populares, prevista na Constituição. Prevaleceu o entendimento de Fachin, de que a revisão da decisão nessas situações, com determinação de novo julgamento, não viola a soberania do júri. Foi acompanhado por Dino, Cármen Lúcia, Alexandre, Fux, Toffoli e Barroso.

página 41 - anuário brasil 2025

O post De incêndios à ‘uberização’: os julgados-chave do STF em 2024 apareceu primeiro em Consultor Jurídico.

A montanha-russa regulamentar do Ex-tarifário

O regime de Ex-tarifário instituído pela Lei nº 3.244/1957 é um importante mecanismo de política comercial que permite a isenção ou redução do Imposto de Importação para bens de capital (BK) e bens de informática e telecomunicações (BIT), bem como suas partes, peças e componentes, quando não há produção nacional equivalente, ou esta é insuficiente para atender ao consumo interno. [1]

Sua base normativa encontra-se também no inciso I do artigo 14 do Decreto-Lei nº 37/1966, na Decisão Mercosul/CMC/Dec 34/03, em seu artigo 1º, e no Decreto no 5078, de 11/05/04. Sua importância está sintetizada pelo Ministério de Desenvolvimento, Indústria, Comércio e Serviços (MDIC), como sendo: (i) viabilizar o aumento de investimentos em bens de capital (BK) e de informática e telecomunicação (BIT); (ii) possibilitar o aumento da inovação por parte de empresas, com a incorporação de novas tecnologias inexistentes no Brasil, ampliando produtividade e competitividade; (iii) promover  um efeito multiplicador de emprego e renda da economia nacional.” [2]

Como o imposto de importação atende a objetivos muito diversos do que meramente ser fonte de arrecadação de receitas para o Governo Federal, dentro da sua função regulatória e extrafiscal, promove-se a sua redução por meio da concessão de um regime de exceção tarifária. Esse permite zerar a cobrança do imposto de importação, quando a entrada do produto estrangeiro no território nacional for de interesse do país. Importar máquinas e equipamentos sem produção nacional equivalente estimula o setor produtivo, a inovação, a utilização de tecnologia de ponta, gerando desenvolvimento econômico, social, tecnológico, renda e empregos.

Como o imposto de importação é uma exceção ao princípio constitucional da anterioridade, nos termos do artigo 153, §1º da CF/88, o uso do Ex-tarifário serve legitimamente às políticas de governo, ora se reduzindo, ora se ampliando sua concessão, atendendo a interesse de maior proteção da indústria nacional, ou estímulo às importações.

Para regular a previsão da exceção às tarifas da TEC (Tarifa Externa Comum), o Poder Executivo, através dos Ministérios competentes, da Fazenda (outrora da Economia) e do Desenvolvimento, Indústria, Comércio e Serviços, tem editado resoluções e portarias ao longo dos anos para estabelecer as regras procedimentais para a análise e deferimento dos pleitos de Ex-tarifário.

A aplicação desse benefício a bens usados e destinados à revenda têm sido, nos últimos anos, um ponto de câmbios regulatórios, gerando incertezas para os importadores e acerbas discussões. A análise das normas que regularam o Ex-tarifário nos últimos dez anos revela uma trajetória de idas e vindas e, notadamente quanto à possibilidade de importação de bens usados com o benefício, é possível distinguirmos três momentos principais, a saber: 

1º momento: vedação expressa (Resolução Camex nº 66/2014)

A Resolução Camex nº 66, de 14 de agosto de 2014, nesse período, foi a primeira norma a dispor sobre a redução temporária e excepcional da alíquota do imposto de importação para BK e BIT sem produção nacional equivalente, estabelecendo também as regras procedimentais para se requerer o benefício. Durante sua vigência essa resolução limitava expressamente a concessão dos Ex-tarifários exclusivamente a bens novos, excluindo, portanto, os bens usados, conforme previsão expressa do §3º do seu artigo 1º. Assim, qualquer Ex-tarifário analisado e deferido nesse período não abarcava a importação de bens usados.

2º momento: a abertura e a interpretação da Receita (Portaria ME nº 309/2019 e Soluções de Consulta Cosit)

Em 24 de junho de 2019 foi editada a Portaria ME nº 309/2019 revogando a Resolução Camex nº 66/2014. Uma novidade relevante na nova regulamentação foi que ela não manteve dentre seus dispositivos a vedação expressa à utilização do Ex-tarifário para bens usados, tampouco para bens de consumo. Embora a Portaria Sepec nº 324/2019 orientasse pela recomendação negativa para pedidos visando aplicação a bens usados na análise técnica, conforme disposição do seu artigo 3º, essa recomendação não possuía caráter vinculante, conforme entendimento 6ª Turma do TRF 3ª Região estabelecida no julgamento da apelação em remessa necessária, no 50018206720204036104 SP, Relator: Desembargador Federal Luís Antonio Johonsom Di Salvo, publicada em 18/02/2021. [3]

Diante da ausência de previsão normativa no texto da Portaria ME nº 309/2019 vedando a aplicação do Ex-tarifário a bens usados, a Receita Federal, respondendo a questionamento de um interveniente, publicou a Solução de Consulta Cosit nº 122/2020 consignando que o Ex-tarifário concedido nos termos da Portaria ME nº 309/2019 seria aplicável tanto à importação de bens novos, quanto de bens usadosincluindo os remanufaturados ou “refurbished[4]

A Solução de Consulta Cosit nº 122/2020 analisou especificamente um caso em que um Ex-tarifário, inicialmente concedido sob a Resolução Camex nº 90/2017 (que se submetia à vedação da Resolução Camex nº 66/2014), foi prorrogado pela Portaria Secint nº 461, de 26 de junho de 2019, já sob a égide da Portaria ME nº 309/2019. A Receita entendeu à época que deveria prevalecer o regramento procedimental vigente quando da concessão, ou prorrogação, do benefício e que, portanto, esse Ex-tarifário poderia ser aplicado a bens usados. Essa interpretação foi reafirmada de modo ainda mais claro na Solução de Consulta Cosit nº 174, de 18 de setembro de 2023, que reiterou a aplicabilidade do Ex-tarifário, indistintamente, a bens novos e usados, bem como para bens de consumo, isso em relação àqueles concedidos sob a Portaria ME nº 309/2019, dentro do prazo de vigência do ato concessório.

3º momento: o retorno à vedação e a proteção das expectativas legítimas. (Resolução Gecex nº 512/2023 e Solução de Consulta Cosit nº 76/2024)

Em 18 de agosto de 2023, foi publicada a Resolução Gecex nº 512, de 16 de agosto de 2023, que revogou as Portarias ME nº 309/2019 e Sepec nº 324/2019. Essa nova resolução voltou a prever, nos mesmos moldes da Resolução Camex nº 66/2014, a vedação da aplicação do Ex-tarifário para bens usados, conforme se verifica na disposição do seu art. 2º, §2º, inciso II.

A partir da publicação da Resolução Gecex nº 512/2023, em resposta a outra consulta de um importador, a Receita Federal estabeleceu sua interpretação das normas por meio da Solução de Consulta Cosit nº 76, de 09 de abril de 2024. Essa esclareceu que até 17 de agosto de 2023 (ou seja, para Ex-tarifários concedidos sob égide da Portaria ME nº 309/2019), a redução de alíquota podia ser utilizada para importação de bens novos e usados.

Contudo, a partir de 18 de agosto de 2023, com a publicação da Resolução Gecex nº 512/2023, o benefício não se aplicaria mais a importação de bens de capital usados e de consumo, restando prejudicado o entendimento exposto na Solução de Consulta Cosit nº 122/2020. [5]

É fundamental ressaltar que essa mudança não possui efeito retroativo, sendo inservível para interpretar e aplicar as exceções tarifárias concedidas anteriormente e com prazo fixo, inclusive prazo fixo posterior à data de publicação da Resolução Gecex nº 512/2023. [6] Ex-tarifários concedidos e válidos sob a vigência da Portaria ME nº 309/2019 podem e devem continuar a ser aplicados para bens usados e independente de sua destinação.

A não retroatividade da nova orientação procedimental da Resolução Gecex nº 512/2023, norma destinada à análise de novos pedidos de Ex-tarifário, é um imperativo legal, sob pena de violação do art. 178 do Código Tributário Nacional (CTN) e do artigo 24 da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (Lindb).

O artigo 178 do CTN estabelece que a isenção, salvo se concedida por prazo certo [7] e em função de determinadas condições, pode ser revogada ou modificada por lei a qualquer tempo, mas o benefício concedido por prazo certo passa a ser um direito e uma expectativa legítima do contribuinte. Além disso, a Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (Lindb), em seu artigo 24, proíbe que a autoridade dê aplicação retroativa a uma nova interpretação ou critério jurídico, vedando a declaração de invalidade de situações plenamente constituídas com base em mudança posterior de orientação geral. Princípios magnos como da segurança jurídica, da boa-fé objetiva e da confiança legítima do administrado nos atos da administração são pilares do Estado Democrático de Direito e garantem a estabilidade das situações jurídicas conformadas sob sua vigência.

Nesse quadro, qualquer tentativa de impedir o desembaraço aduaneiro de bens importados com Ex-tarifário válido, sob o fundamento de vedação de sua aplicação a bens usados e importados para revenda, hipóteses previstas na Resolução Gecex nº 512/2023, quando o benefício tenha sido concedido sob vigência da norma anterior, ou seja da Portaria ME nº 309/2019, constitui uma ofensa clara a tais princípios essenciais da ordem jurídica, em confronto com a  jurisprudência já firmada sobre o tema. A título de ilustração, tome-se a decisão do eg. TRF 6ª Região por sua 3ª Turma, no AI nº 6000696-85.2024.4.06.0000, publicado no D.E. 05/02/2024 [8], cujos principais pontos do venerando acórdão, destacamos:

Concessão válida do ex-tarifário antes da nova restrição normativa
A impetrante obteve regularmente, em 04/08/2023, a concessão do benefício ex-tarifário para a importação de bem usado (um bulldozer), antes da entrada em vigor da Resolução Gecex nº 512/2023 (de 16/08/2023), que passou a vedar o benefício a bens usados.

Registro da Declaração de Importação posterior à concessão
O registro da Declaração de Importação (DI) ocorreu em 26/12/2023, ou seja, após a vigência da Resolução GECEX nº 512/2023. Contudo, como o benefício foi concedido antes disso, deve prevalecer a norma vigente à época da concessão do ex-tarifário.

Prevalência de jurisprudência e orientação da PGFN
O acórdão destaca a jurisprudência pacificada do STJ (REsp 1.821.992/RS e outros) e a posição da PGFN (Nota SEI nº 28/2019), que reconhecem que os efeitos do ex-tarifário concedido antes da importação estendem-se até o desembaraço aduaneiro, mesmo para bens usados.

Caráter não retroativo das Resoluções Gecex/Camex
A Resolução Gecex nº 512/2023 não pode retroagir para prejudicar concessões anteriores. Como a concessão do benefício se deu antes da publicação da nova norma, não se aplica a vedação posterior.

Conclusões

A jornada regulatória do Ex-tarifário para bens usados e destinados à revenda é um exemplo claro da necessidade de se conhecer os princípios e regras aplicáveis a cada área e tema do Direito, sendo eles sensíveis para assegurar a previsibilidade nas relações entre a Aduana e os intervenientes, e como as mudanças, ainda que legítimas, do ponto de vista das fontes normativas e autoridades competentes, provocam incertezas e dúvidas que desestimulam a produção e novos investimentos.

Embora a legislação tenha oscilado entre a vedação e a permissão, a interpretação consolidada pela Receita Federal, reiterada em diversas soluções de consulta, é de que a regra aplicável à interpretação é aquela vigente no momento da concessão, ou prorrogação, do Ex-tarifário.

Isso significa que, mesmo com a atual e vigente Resolução Gecex nº 512/2023 vedando a importação de bens usados com aplicação de exceção tarifária, os benefícios que tenham sido concedidos sob a Portaria ME nº 309/2019 — que permitia tal importação, como vimos de ver — permanecem válidos, enquanto perdurar o prazo do ato concessório.

Impedir o desembaraço aduaneiro, ou exigir tributos, em casos de Ex-tarifário concedido sob o regramento anterior configura afronta aos princípios da irretroatividade, segurança jurídica e confiança legítima, garantias fundamentais para o Estado democrático de Direito, para o ambiente de negócios e a relação entre a Administração Pública e os administrados, cabendo ao administrado, se necessário, buscar amparo para o seu direito junto ao judiciário.

A compreensão e o respeito a essa linha temporal de vigência das diferentes normas e aos princípios constitucionais aplicáveis são essenciais para se evitar litígios desnecessários, assegurando um ambiente de negócios estimulante à produção, pautado no respeito às normas vigentes.

No que se refere aos pedidos de renovação de Ex-tarifário, comunicado do site do MDIC [9] estabelecendo o prazo limite até o dia 30 de junho de 2025 para protocolo do pedido em relação àqueles vigentes até 31/12/2025, está em flagrante conflito com o prazo previsto no artigo 5º da Resolução Gecex no 512/2023, que dispõe, ipsis litteris: Os pleitos de renovação de Ex-tarifários concedidos poderão ser solicitados dentro do período de vigência do Ex-tarifário, com antecedência máxima de 180 (cento e oitenta) dias do seu vencimento.

A mudança do prazo em desafio à norma procedimental também ofende expectativa legítima das empresas interessadas em investir na modernização do seu parque industrial. A ilegalidade merece corrigenda com base no princípio da autotutela administrativa, sem que seja necessária a judicialização da controvérsia. É o que se espera possa ocorrer o quanto antes, restabelecendo-se o prazo previsto no artigo 5º da Resolução Gecex no 512/2023.

___________________________________________

[1] Sobre o tema Ex-tarifário recomendamos a leitura do artigo publicado na coluna por nossa colega Fernanda Kotzias. Disponível em: link . Acesso em 13/06/2025.

[2] Disponível em: link . Acesso em 13/06/2025.

[3] Entendimento firmado pela RFB na Solução de Consulta Cosit n76/2024, em seus itens 10 a 14. Disponível em: link. Acesso em 13/06/2025.

[4] Segue trecho da Solução de Consulta n 122/2020 nesse sentido:  -se que não mais consta como requisito à concessão do Ex-tarifário que o bem importado seja novo, requisito existente quando em vigor a Resolução Camex nº 66, de 2014, que, no § 3º do art. 1º, que determinava que a redução da alíquota do Imposto de Importação fosse concedida exclusivamente para bens novos.  (…) quanto a se o bem remanufaturado é novo ou usado. Desde que o bem importado corresponda à descrição do bem constante do Ex-tarifário, terá direito à alíquota reduzida prevista para esse Ex-tributário.

[5] O colega de coluna Leonardo Branco defendeu a ilegalidade da restrição a importação de bens usados incluída na Resolução 512/2023, posição com a qual concordamos. Recomenda-se a leitura do artigo. Disponível em: link Acesso em 13/09/2025.

[6] No mesmo sentido, já escreveu Thales Belchior. Disponível em: link. Acesso: 13/09/2025.

[7] “Trata-se de uma isenção do imposto, concedida por prazo certo, com fundamento no art. 4º da Lei nº 3.244/1957, na redação do Decreto-Lei nº 63/1966:(…)”, in SEHN, Solon. Curso de Direito Aduaneiro. 3ª ed. São Paulo: Ed. Forense, 2025, p. 131.

[8] TRF6, AI 6000696-85.2024.4.06.0000, 3ª Turma, Relator Álvaro Ricardo de Souza Cruz, D.E. 05/02/2024

[9] Disponível em: link . Acesso em 13/06/2025.

O post A montanha-russa regulamentar do Ex-tarifário apareceu primeiro em Consultor Jurídico.