A iminente apreciação dos Temas Repetitivos 1.154 (REsp 1.963.433/SP, REsp 1.963.489/MS e REsp 1.964.296/MG) e 1.241 (REsp 2.059.576/MG e REsp 2.059.577/MG) pelo Superior Tribunal de Justiça desperta grave preocupação no campo da Teoria Geral da Constituição e da legalidade penal. O ponto central em debate — a possibilidade de o Judiciário modular a aplicação da causa de diminuição do §4º do artigo 33 da Lei de Drogas com base em critérios objetivos como quantidade ou variedade da substância apreendida — ultrapassa os limites interpretativos admissíveis no regime constitucional vigente.
A Lei nº 11.343/2006 nasceu de um processo legislativo minucioso, iniciado com o PLS 115/2002, apresentado pelo então senador Ramez Tebet. Durante a tramitação, foram incorporadas diversas propostas legislativas (PLs 6.108/2002 e 7.134/2002), consolidando um texto que buscou equilibrar repressão ao narcotráfico com um olhar diferenciado sobre o réu primário, de bons antecedentes e não vinculado a organizações criminosas.
O próprio texto da exposição de motivos do projeto de lei foi categórico:
“Não olvidando a importância do tema, e a necessidade de tratar de modo diferenciado os traficantes profissionais e ocasionais, prestigia estes o projeto com a possibilidade […] de redução das penas […]”.
É nesse ponto que se evidencia a essência normativa da causa de diminuição prevista no §4º do artigo 33: um dispositivo de clemência penal calibrado por critérios subjetivos — primariedade, bons antecedentes, não envolvimento com organização criminosa e não dedicação a atividades criminosas. Nada além disso foi exigido pelo legislador. Portanto, a tentativa de criar um “padrão de modulação” com base quantitativa ou qualitativa, por via judicial, representa indevida extrapolação do papel que a Constituição reserva ao Judiciário.
A Constituição de 1988 delineia com clareza a repartição de funções entre os Poderes (artigo 2º). A competência para legislar sobre matéria penal é exclusiva do Congresso Nacional. O Judiciário, como guardião da Constituição (artigo 102, caput), não pode criar norma penal nova, sob pena de violação direta aos princípios da legalidade estrita (artigo 5º, II) e da reserva legal penal (artigo 5º, XXXIX). Criar um critério novo — como tornar a quantidade da droga um fator isolado para afastar o tráfico privilegiado — equivale, em última análise, a editar nova norma penal sem respaldo do Poder Constituinte Derivado. Isso compromete não apenas a segurança jurídica, mas a própria legitimidade da jurisdição penal.
Mais grave ainda: ao vincular a concessão do tráfico privilegiado a marcos objetivos rígidos, a jurisprudência propõe um verdadeiro rebaixamento da individualização da pena e da isonomia penal. Resta, então, uma política punitiva enviesada, desprovida de base empírica, que trata desiguais como se iguais fossem — primando por um simbolismo penal que não encontra respaldo constitucional nem eficácia real.
A tentativa de fixar balizas quantitativas para o §4º do artigo 33 da Lei nº 11.343/2006 revela um fenômeno perigoso: a judicialização da política criminal em sua forma mais aguda. A jurisprudência deixa de ser instrumento de concretização da norma e se torna mecanismo de criação normativa — invertendo a lógica democrática da separação de Poderes.
Exemplo disso é a atual tramitação no Senado do PLS 4.999/2024, que propõe disciplinar expressamente o uso da quantidade como critério modulador da causa de diminuição. A simples existência do projeto já é suficiente para demonstrar que o Legislativo entende tratar-se de matéria a ele reservada. Caso contrário, não haveria proposta de lei: bastaria aguardar o STJ decidir.
Não há evidência científica sólida, nem mesmo qualquer artigo científico, que assegure que o agravamento da pena, com base na quantidade e variedade da droga, reduza a criminalidade. Ao contrário, o excesso punitivo desarticula políticas públicas mais eficazes e reforça a seletividade penal — direcionada, quase sempre, à população mais vulnerável.
Não se trata, aqui, de negar a gravidade do tráfico de drogas. Mas sim de reafirmar que o combate ao crime deve se dar nos marcos do Estado Democrático de Direito. O Judiciário não pode, sob o pretexto de eficiência punitiva, invadir competência legislativa. Quando o faz, desrespeita a Constituição, viola o pacto federativo e compromete a legitimidade da jurisdição penal.
Extrapolação e fidelidade
A decisão a ser proferida nos Temas Repetitivos 1.154 e 1.241 pelo STJ tem o potencial de redefinir, de forma profunda e controversa, a aplicação do tráfico privilegiado. Ao fazê-lo com base em critérios que extrapolam o texto legal, o Judiciário se aproxima de um legislador positivo — em flagrante descompasso com os princípios estruturantes da Constituição de 1988.
O Direito Penal não pode ser reconstruído por interpretações, ainda que bem intencionadas. A fidelidade ao texto constitucional não é obstáculo à Justiça — é seu fundamento. E a Constituição não autoriza o Judiciário a substituir o Parlamento. Autoriza, apenas, a guardar a Lei Maior.
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