O Imposto Seletivo sobre fantasy sports é constitucional?

Os conceitos de ‘bens’ e ‘serviços’

Como já sustentamos, a delimitação da materialidade constitucional do Imposto Seletivo mostrou-se mal redigida desde o disposto no inciso VIII do artigo 153 da Constituição, incluído pela Emenda Constitucional nº 132/2023 (EC 132).

Em primeiro lugar, a EC 132 incorreu no evitável erro de trazer um texto cheio de conceitos sem a devida definição, o que certamente gerará debates sobre a constitucionalidade de alguns fatos econômicos que pretende tributar.

O exemplo mais claro dessa deficiência é o fato de o IS incidir sobre bens e serviços, sem que o artigo 153 da Constituição esclareça o que são bens e serviços para fins deste imposto, adotando uma abordagem distinta daquela que foi utilizada em relação ao Imposto sobre Bens e Serviços (IBS).

Com efeito, o § 8º do artigo 156-A delegou a definição de bens e serviços para o legislador complementar, já prevendo a possibilidade de se estabelecer que o conceito de serviços seria residual, de modo que qualquer fato econômico que não fosse considerado uma operação com bens poderia ser uma prestação de serviços. Veja-se a redação deste parágrafo:

“§ 8º Para fins do disposto neste artigo, a lei complementar de que trata ocaput poderá estabelecer o conceito de operações com serviços, seu conteúdo e alcance, admitida essa definição para qualquer operação que não seja classificada como operação com bens materiais ou imateriais, inclusive direitos.”

Não existe dispositivo semelhante para o IS. Ou seja, a definição de bens e serviços para este imposto será feita via interpretação.

É possível imaginar que algumas pessoas vão argumentar que as regras constitucionais do IBS sobre o tema poderiam ser utilizadas por analogia para o IS. De certa forma, esta parece ter sido a tentativa do legislador complementar ao estabelecer, no inciso I do artigo 3º da LC 214, que as definições de bens e de serviços ali previstas deveriam ser consideradas “para fins desta lei complementar”.

Contudo, é igualmente possível pensar em uma interpretação em sentido oposto, argumentando que, se o legislador constitucional não quis prever para o IS definição semelhante, não cabe à LC 214 pretender estender o regime constitucional do IBS para o IS.

Chamei a atenção para este “defeito” na redação da EC 132 antes de ela ser publicada. Em um texto veiculado nesta ConJur, comentei que, “diferentemente do que ocorre em relação ao IBS, que expressamente prevê que o conceito de bens inclui intangíveis, inclusive direitos, o IS parece um imposto do século 21 que tem como referencial a economia industrial do século 20. O futuro — talvez  já o presente — é dos intangíveis. Se é mais difícil antever a possibilidade de intangíveis que sejam danosos ao meio ambiente — embora seja surpreendente o que não conseguimos prever —, certamente intangíveis danosos à saúde já são uma realidade”.

Portanto, temos uma primeira questão a ser enfrentada em relação ao Imposto Seletivo. Uma matéria antiga que o legislador constitucional deveria ter evitado que se tornasse controvertida: O que são bens e serviços para fins da materialidade constitucional do IS?

Produção, extração, comercialização ou importação

Outra opção da EC 132 que talvez venha a se mostrar equivocada foi a delimitação dos tipos de operações com bens e serviços que estariam sujeitos à incidência do IS. Estamos tratando apenas da sua “produção”, “extração”, “comercialização” ou “importação”.

A crítica mais óbvia a essa redação do inciso VIII do artigo 153 da Constituição é que, de regra, serviços não são “produzidos” nem “comercializados”, sendo certo que não são “extraídos”. Essa evitável deficiência redacional pode não chegar a tornar inconstitucional a incidência do IS sobre a prestação de serviços, mas já mostra que a técnica redacional falhou em questões mais elementares. Também já havíamos chamado a atenção para esse detalhe em texto publicado antes da promulgação da EC 132.

Nada obstante, não pode haver dúvidas quanto ao fato de que o teste de constitucionalidade das hipóteses de incidência do IS definidas pelo legislador complementar terá como base a interpretação desses conceitos previstos na Constituição. Voltaremos a este tema em colunas futuras, ao comentarmos, por exemplo, a pretensa incidência do IS sobre “da transferência não onerosa de bem produzido”.

Prejudiciais à saúde ou ao meio ambiente

 Este talvez seja um dos temas mais polêmicos do IS, o fato de os bens e serviços só poderem ser tributados se forem prejudiciais à saúde e ao meio ambiente.

Prejudicialidade à saúde ou ao meio ambiente não são conceitos teóricos, mas questões de fato. Em outras palavras, há que haver evidências concretas de que certo bem ou serviço de fato prejudique a saúde ou o meio ambiente.

Segundo vimos defendendo, este é o único teste a que se submete o IS, o que podemos chamar de teste da prejudicialidade efetiva. Como não vemos neste imposto uma finalidade indutora, mas sim uma finalidade arrecadatória, caso a incidência concreta ocorra sobre bens e serviços que efetivamente causem prejuízos à saúde e ao meio ambiente, será constitucional a incidência do IS, independentemente de qualquer relação causal entre a tributação e uma redução de comportamentos individuais considerados nocivos.

Ora, “prejudicialidade efetiva” é uma expressão indeterminada. Certamente ela tem uma enorme zona de penumbra, de modo que podem surgir aqui interpretações diversas. É possível que se sustente, como o fez o professor André Folloni em artigo recente sobre o IS, uma prejudicialidade efetiva “forte”. Em suas palavras:

“Somente podem sofrer a incidência do Imposto Seletivo, em primeiro lugar, aqueles bens e serviços que sejam especial e gravemente prejudiciais à saúde e ao meio ambiente. Considerando que nem todos os bens e serviços prejudiciais podem ser tributados, mas apenas alguns, o critério de escolha de quais sofrerão essa incidência só pode ser o grau de impacto desses bens e serviços na saúde ou no meio ambiente. Por isso, entre todos, são os bens e serviços mais fortemente prejudiciais aqueles que devem ser selecionados para sofrer a incidência do Imposto Seletivo.”[1]

É bastante compreensível a preocupação veiculada por André Folloni. Suas ponderações estão diretamente vinculadas à interação entre o IS e o princípio da isonomia. A provocação do professor paranaense é: como justificar, considerando o referido princípio, que algumas atividades prejudiciais à saúde e ao meio ambiente sejam oneradas pelo IS e outras atividades, igualmente ou mais prejudiciais não o sejam?

Devemos refletir sobre esta provocação de forma detida. Penso que foi exatamente este tipo de questão que me levou, em texto anterior, a defender que o IS deveria simplesmente ter sido excluído da PEC 45 (aqui).

Ou o IS é simplesmente inconstitucional — que parece ser uma tese possível de ser construída a partir do estudo de Folloni, mesmo que o autor não vá nessa direção — ou temos que reconhecer, como vimos sustentando, que ele está baseado em uma prejudicialidade efetiva “fraca”, no sentido de que o bem ou serviço tributado pelo IS deve ser inequivocamente prejudicial à saúde ou ao meio ambiente, sem que a Constituição exija que exista uma prejudicialidade “especialmente grave”.

Essa linha interpretativa torna o IS bem mais abrangente, de fato, e nos obriga e refletir sobre como esta nova tributação interage com o princípio da isonomia. Contudo, ao que nos parece, foi o que a EC 132 introduziu no texto constitucional.

O presente debate sobre o grau de prejudicialidade à saúde ou ao meio ambiente que legitime a incidência do IS está só começando, e certamente não se encerrará com a incidência prevista na LC 214. Afinal, a competência outorgada pelo inciso VIII do artigo 153 da Constituição não se exaure com a edição desta lei complementar, de modo que a qualquer momento o legislador da vez poderá trazer novas hipóteses de incidência para o IS.

Como mencionamos no início deste texto, temos, na LC 214, uma excelente situação para o teste desses debates: a previsão de incidência do IS sobre fantasy sports.

O que são os Fantasy Sports?

Considerando os comentários acima, vamos analisar a incidência do IS sobre os fantasy sports. Devemos começar trazendo a definição legal de fantasy sport, que está prevista no artigo 49 da Lei nº 14.790/2023. Vejamos:

“Art. 49. Não configura exploração de modalidade lotérica, promoção comercial ou aposta de quota fixa, estando dispensada de autorização do poder público, a atividade de desenvolvimento ou prestação de serviços relacionados ao fantasy sport.

Parágrafo único. Para fins do disposto neste artigo, considera-se fantasy sport o esporte eletrônico em que ocorrem disputas em ambiente virtual, a partir do desempenho de pessoas reais, nas quais:

I – as equipes virtuais sejam formadas de, no mínimo, 2 (duas) pessoas reais, e o desempenho dessas equipes dependa eminentemente de conhecimento, análise estatística, estratégia e habilidades dos jogadores do fantasy sport;

II – as regras sejam preestabelecidas;

III – o valor garantido da premiação independa da quantidade de participantes ou do volume arrecadado com a cobrança das taxas de inscrição; e

IV – os resultados não decorram do resultado ou da atividade isolada de uma única pessoa em competição real.”

Essa definição deixa bastante claro que, em primeiro lugar, o fantasy sport não pode ser confundido com “exploração de modalidade lotérica, promoção comercial ou aposta de quota fixa”. Estamos tratando, isso sim, de disputas realizadas em ambientes virtuais, a partir do desempenho de pessoas reais.

Por outro lado, a definição legal também evidencia que não se trata de jogos baseados eminentemente ou exclusivamente na sorte, dependendo a performance dos jogadores “de conhecimento, análise estatística, estratégia e habilidades dos jogadores do fantasy sport”. São exemplos de fantasy sports o Cartola e o Rei do Pitaco.

Seria a incidência do IS sobre fantasy sports constitucional?

Tendo em conta os comentários anteriores, devemos voltar nossa atenção para o artigo 409 da LC 214, que tem a seguinte redação:

“Art. 409. Fica instituído o Imposto Seletivo, de que trata o inciso VIII do art. 153 da Constituição Federal, incidente sobre a produção, extração, comercialização ou importação de bens e serviços prejudiciais à saúde ou ao meio ambiente.

§ 1º Para fins de incidência do Imposto Seletivo, consideram-se prejudiciais à saúde ou ao meio ambiente os bens classificados nos códigos da NCM/SH e o carvão mineral, e os serviços listados no Anexo XVII, referentes a:

I – veículos;

II – embarcações e aeronaves;

III – produtos fumígenos;

IV – bebidas alcoólicas;

V – bebidas açucaradas;

VI – bens minerais;

VII – concursos de prognósticos e fantasy sport.

§ 2º Os bens a que se referem os incisos III e IV do § 1º estão sujeitos ao Imposto Seletivo quando acondicionados em embalagem primária, assim entendida aquela em contato direto com o produto e destinada ao consumidor final.”

caput do artigo 409 basicamente repete a regra de competência prevista no artigo 153, VIII, da Constituição. A seu turno, o seu § 1º pretende listar bens e serviços que sejam prejudiciais à saúde e ao meio ambiente, tendo incluído entre eles, em seu inciso VII, o fantasy sport.

Não é preciso muita reflexão para concluirmos que esse tipo de atividade não tem externalidades negativas para o meio ambiente, de forma que se presume que a sua inclusão na lista do referido § 1º deveu-se à presunção de que o fantasy sport seria prejudicial à saúde.

A maioria das pesquisas sobre os efeitos dos fantasy sports sobre a saúde dos praticantes aponta efeitos positivos (cognitivos, socializantes, ou como meio de distração) e eventuais efeitos negativos, como estresse e impactos emocionais, além de, principalmente nos casos de fantasy games diários, a possibilidade de desenvolvimento de alguma forma de vício no jogo. Se pesquisarmos, vamos encontrar também estudos sobre os riscos para a saúde, inclusive mental, de exercícios físicos como a corrida, que podem levar, inclusive, à dependência e ao vício.

O setor de fantasy sports é muito pequeno no Brasil de modo que não é possível dizer que temos uma crise de saúde pública relacionada a esse tipo de prática. A inclusão dos fantasy sports juntamente com concursos de prognósticos é estranha, afinal, como estabelece a Lei nº 14.790/2023, de concursos de prognósticos não se trata.

Se levarmos esse raciocínio adiante, a própria inclusão de concursos de prognósticos entre bens e serviços prejudiciais à saúde requer uma reflexão. Afinal, se os dados apontam que vivemos uma crise decorrente dos jogos online, não me parece que a aposta nos jogos explorados pela Caixa Econômica Federal, por exemplo, esteja prejudicando a saúde da população.

Nessa linha de ideias, parece-nos que, se partirmos de uma exigência de prejudicialidade efetiva forte, como a defendida pelo professor André Folloni, a incidência do IS sobre fantasy sports e algumas formas de concursos de prognósticos simplesmente não passaria no teste de compatibilidade constitucional.

Esta incidência é interessante para evidenciarmos como a exigência do IS pode se chocar com o princípio da isonomia, na medida em que uma atividade econômica com baixas externalidades negativas em relação à saúde estaria sendo tributada, enquanto atividades econômicas mais prejudiciais ficaram fora do âmbito objetivo do imposto.

O IS é o primeiro imposto na Constituição cujo aspecto material não requer só a ocorrência de um fato presuntivo de capacidade contributiva exigindo também a agregação de um elemento consequencialista, isto é, o fato de o bem ou serviço produzido, comercializado, extraído ou importado ser prejudicial à saúde ou ao meio ambiente.

A prejudicialidade, como vimos, tem que ser efetiva e não meramente presumida, sendo ônus do legislador comprovar que ela está presente quando pretender instituir uma hipótese de incidência do IS.

Seguindo esses entendimentos, a incidência do IS sobre fantasy sports somente será constitucional caso a Constituição exija apenas uma prejudicialidade efetiva fraca, ou seja, caso qualquer prejudicialidade à saúde ou ao meio ambiente seja suficiente para legitimar o incidência do imposto. Sendo este o caso, as possibilidades de incidência do IS serão muito abrangentes.

Conclusão

Este artigo pretendeu demonstrar as deficiências das regras constitucionais sobre o IS e como elas certamente gerarão muitas dúvidas e potenciais litígios sobre situações concretas de incidência deste imposto. Veja-se que nem tratamos neste texto da celeuma sobre a fiscalidade ou extrafiscalidade deste tributo, o que certamente geraria outros debates complexos sobre a constitucionalidade do IS em certos casos.

Usamos como paradigma a incidência sobre os fantasy sports para demonstrar que, no melhor cenário, a incidência do IS neste caso é de constitucionalidade duvidosa e que, dependendo da posição que se tome sobre a inter-relação entre este imposto e o princípio da isonomia, ele será sempre inconstitucional já que, por mais que certa atividades econômicas tenham claras externalidades negativas em relação à saúde e ao meio ambiente, certamente haverá outras tão ou mais prejudiciais, o que transformaria o IS em uma forma de discriminação inconstitucional. O citado artigo do professor André Folloni é um bom ponto de partida para o estudo deste tema.


[1] FOLLONI, André. Competência Tributária do Imposto Seletivo: o Texto e seus Contextos. Revista Direito Tributário Atual, São Paulo, v. 57, 2024, p. 638.

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Desafios da reforma tributária para o setor do gás natural

O gás natural é uma das principais fontes energéticas em ascensão no país, com papel fundamental na transição para uma matriz energética mais sustentável, sendo certo que sua versatilidade e eficiência tem impulsionado sua adoção em diversos setores, como industrial, residencial, comercial e de transporte.

Nos últimos anos, o Brasil tem implementado uma série de políticas e programas destinados a ampliar e modernizar o mercado de gás natural, como por exemplo o programa “Gás para Crescer”, com o objetivo de promover a competitividade do setor, incentivando a entrada de novos agentes e a criação de um mercado livre. A iniciativa busca destravar investimentos em infraestrutura, diversificar os fornecedores e ampliar o acesso ao gás natural, fortalecendo sua relevância na economia nacional.

No entanto, a reforma tributária trazida pela Emenda Constitucional nº 132/2023 e a Lei Complementar nº 214/2025 levanta desafios significativos para a cadeia do gás natural. Tais mudanças exigem atenção para evitar distorções no mercado e assegurar que o gás natural continue a desempenhar papel estratégico na transição energética e no fortalecimento da matriz energética brasileira.

A implementação da Contribuição sobre Bens e Serviços (CBS) e do Imposto sobre Bens e Serviços (IBS) pela reforma tributária do consumo tem como objetivo principal a simplificação de um sistema reconhecidamente complexo, ao mesmo tempo em que busca mitigar conflitos e corrigir distorções existentes na tributação.

Por sua vez, o Imposto Seletivo (IS) foi implementado com o objetivo de onerar bens e serviços que causam impactos negativos à saúde e ao meio ambiente, buscando desestimular o consumo de produtos prejudiciais e incentivando práticas mais sustentáveis e saudáveis.

Regime monofásico para combustíveis

A Emenda Constitucional nº 132/2023 determinou a instituição do regime monofásico da CBS e do IBS para os combustíveis, aplicando alíquotas uniformes específicas por unidade de medida e diferenciadas por produto em todo o território nacional, vedada a apropriação de créditos relacionados às aquisições destinadas à distribuição, comercialização ou revenda desses produtos.

Nesse sentido, a Lei Complementar nº 214/2025 incluiu o gás natural processado e o gás natural veicular no rol de combustíveis sujeitos ao regime de tributação específico da CBS e do IBS. A responsabilidade tributária foi atribuída às unidades de processamento de gás natural, responsáveis pelo refino e adequação do produto ao consumo, cabendo a elas o recolhimento dos tributos incidentes na cadeia.

Atualmente, o gás natural está sujeito ao regime de tributação plurifásico do ICMS e não cumulativo do PIS e da Cofins, desde a extração, passando pelas fases de transporte e distribuição, até o consumidor final.

Portanto, com a vigência da reforma tributária, a lógica de tributação do gás natural será substancialmente alterada, passando a anteceder a prestação de serviços de transporte e distribuição.

Desafios na transição tributária

A mudança trará desafios significativos na implementação do novo regime durante o período de transição, em que o setor operará sob o regime plurifásico e, simultaneamente, sob as alíquotas ad rem na sistemática monofásica, considerando as características específicas da cadeia de circulação do gás natural.

Após a implementação, o regime monofásico será aplicado apenas para venda da molécula do gás natural, mas a cadeia de circulação do produto inclui etapas de transporte entre as unidades de processamento e de distribuição, que permanecerão sujeitas ao ICMS e futuramente ao IBS e CBS no regime normal de crédito e débito. Todavia, os créditos gerados na operação de transporte não poderão ser utilizados na operação subsequente, em razão de vedação legal e pela lógica operacional do regime monofásico, que recolhe os tributos da venda do produto na etapa inicial.

A impossibilidade de aproveitamento de créditos tributários na sistemática monofásica pode resultar em um aumento efetivo da carga tributária ao longo da cadeia do gás natural.

Outro aspecto relevante é que o gás natural processado e o gás natural veicular são essencialmente a mesma molécula, diferenciando-se apenas pelo uso final. O primeiro é voltado para aplicações industriais, residenciais e comerciais, enquanto o segundo é comprimido para uso como combustível automotivo. A Lei Complementar nº 214/2025 trata ambos como produtos distintos. Tal distinção pode gerar inconsistências no regime monofásico, caso se sujeitem a alíquotas ou políticas tributárias distintas, pois a tributação ocorre antes da definição do uso final do produto.

Ou seja, a unidade de processamento de gás natural será responsável por recolher o tributo sem saber qual a destinação final será dada ao produto, que poderá ser diferente para o gás natural processado e o gás natural veicular.

Devolução de impostos

Além destes pontos, a tributação monofásica também apresenta desafios para a operacionalização de políticas de cashback no fornecimento de gás canalizado para famílias de baixa renda. A Lei Complementar nº 214/2025 prevê a devolução integral da CBS e parcial de IBS para essas famílias. A operacionalização desta devolução se dá por meio da concessão de desconto no momento da cobrança pelo serviço de fornecimento de gás natural. Contudo, devido ao recolhimento antecipado do tributo, a concessão destes descontos será de difícil aplicação, de modo que a operacionalização terá que observar procedimentos especiais.

Ademais, em relação ao IS, a Emenda Constitucional nº 132/2023 determinou a incidência sobre a produção, extração, comercialização ou importação de bens e serviços prejudiciais à saúde ou ao meio ambiente, tendo a Lei Complementar nº 214/2025 incluído o gás natural no rol dos bens e serviços sujeitos ao tributo, hipótese em que o fato gerador do imposto ocorre na extração do bem, sendo contribuinte o produtor-extrativista que realiza a extração.

A despeito disso, a lei beneficiou o gás natural destinado à utilização como insumo em processo industrial e como combustível para fins de transporte. Todavia, no momento da extração o produtor não tem conhecimento de qual destinação será dada ao produto ao final da cadeia, o que dificulta a aplicação do benefício concedido em função da destinação dada ao gás natural.

A cobrança do IS tal como previsto na Lei Complementar nº 214/2025, que equipara o gás natural aos óleos brutos petróleo, deixa também de observar a importância da utilização do produto para a transição energética, pois, apesar de ser um combustível fóssil, pode ser usado como alternativa a combustíveis mais poluentes na indústria, contrariando o princípio da defesa do meio ambiente estatuído pela Emenda Constitucional nº 132/2023.

Risco de litígio

Por fim, destaca-se que, caso não seja bem estruturada, a reforma tributária tem grande potencial de alta litigiosidade, especialmente devido ao entendimento do Superior Tribunal de Justiça acerca da legitimidade do consumidor final para ajuizar ações tributárias nas relações jurídicas que envolvem concessões de serviço público, tal como ocorre no setor de gás natural.

Como se vê, as alterações tributárias trarão diversos desafios para a implementação das regras da reforma tributária em relação ao gás natural. É fundamental que o novo modelo tributário preserve o equilíbrio econômico e a eficiência do mercado, garantindo que o gás natural continue contribuindo de maneira efetiva para os objetivos de transição energética do País.

Considerando que o gás natural desempenha um papel estratégico no processo de transição energética, por ser uma fonte menos poluente e altamente versátil, é importante a conformação da legislação tributária para evitar possíveis inconsistências e aumento da carga tributária para o setor.

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Oposição à sustentação oral virtual gera impasse entre advocacia e CNJ

A recente padronização de procedimentos para julgamentos virtuais no Brasil, feita pelo Conselho Nacional de Justiça, está causando um impasse entre advocacia e Poder Judiciário.

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Para os advogados, todo e qualquer pedido de destaque formulado em processos com matéria de mérito e possibilidade de sustentação oral deve obrigatoriamente levar o caso da pauta virtual para a presencial.

Para os magistrados brasileiros, essa hipótese é inviável: não há como os tribunais julgarem presencialmente tantos processos sem prejudicar a duração razoável do processo e a produtividade.

O impasse é amplificado por uma blitz legislativa sobre o tema. O Congresso Nacional tem três projetos de lei, uma proposta de emenda à Constituição e um projeto de decreto legislativo reagindo às determinações da Resolução 591/2024 do CNJ.

A norma padronizou os procedimentos para julgamentos virtuais no Brasil, que já aconteciam de acordo com os desígnios de cada tribunal e foram amplificados desde a crise sanitária da Covid-19, com diferentes níveis de transparência.

O CNJ decidiu que as sessões devem ser públicas e com acesso em tempo real a todos, com possibilidade de manifestação dos advogados, inclusive, para esclarecimento de fatos. O ponto que desagradou à advocacia está no artigo 8º, inciso II, que diz que partes e Ministério Público podem formular pedidos de destaque, para retirada do processo da pauta virtual, os quais precisam ser deferidos pelo relator.

Entidades da advocacia reagiram imediatamente por entender que a resolução viola a prerrogativa de sustentar oralmente de forma presencial. Para constitucionalistas ouvidos pela revista eletrônica Consultor Jurídico, o CNJ extrapolou a própria competência.

Em petição ao CNJ, o Conselho Federal da OAB pediu a mudança da norma para que, nos processos com matéria de mérito e possibilidade de sustentação oral, os pedidos de destaque ao plenário presencial feitos pelos advogados sejam automaticamente acolhidos. Como não cabe recurso contra acórdão do CNJ, o pedido não foi conhecido. Ainda assim, o ministro Luís Roberto Barroso, presidente do conselho, esclareceu que os tribunais têm autonomia para criar mais hipóteses de destaque.

“A sustentação oral só deve ser feita por gravação onde a sustentação presencial crie uma tal disfuncionalidade para o tribunal que isso seja imperativo”, disse Barroso no plenário do CNJ, durante a 1ª Sessão Ordinária de 2025. “A resolução foi para melhorar a vida, e não para piorar a vida dos advogados”, defendeu o ministro. “A regra geral deve ser a sustentação síncrona com a presença do advogado.”

Eugenio Novaes
Beto Simonetti 2025

Para todo mundo não vai dar

A possibilidade de pedidos de sustentações orais presenciais criarem disfuncionalidades para os tribunais brasileiros é bastante plausível e já foi experimentada, depois que foi promulgada a Lei 14.365/2022. A norma alterou o Estatuto da Advocacia para aumentar as possibilidades do uso da sustentação oral para recursos contra decisões monocráticas que julguem o mérito ou não conheçam de recursos ou ações.

Houve, então, uma explosão do número de sustentações orais nas sessões de julgamento por todo o país. No Superior Tribunal de Justiça, as turmas criminais experimentaram sessões com 47 pedidos de manifestação dos advogados. Isso gerou reações. Decidiu-se, por exemplo, que a lei agora permite sustentação oral no agravo interno ou regimental contra a decisão em recurso especial (REsp), mas que isso não vale para o agravo regimental contra o agravo em recurso especial (AREsp).

Outros colegiados do STJ, como a 3ª Turma, passaram a enviar automaticamente para a pauta virtual todos os casos com pedido de sustentação oral em recursos contra decisões monocráticas. Nas turmas criminais, os ministros perceberam uma tendência curiosa: conforme os casos iam sendo enviados para a pauta virtual, o grande interesse da advocacia em fazer sustentação oral diminuía drasticamente.

No Supremo Tribunal Federal, onde o julgamento virtual representou uma revolução em meio à crise da Covid-19, a resistência da advocacia foi sendo vencida com algumas medidas de transparência: os ministros só conseguem votar depois de acessar os arquivos enviados, como a sustentação oral virtual, e os que não se manifestam não têm o voto considerado.

Presidente do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil, Beto Simonetti disse à ConJur que reconhece a importância da eficiência no Judiciário e que a OAB está comprometida em contribuir para a celeridade processual. “No entanto, a sustentação oral não pode ser tratada como um entrave, mas, sim, como um componente essencial para uma Justiça de qualidade.”

“Cabe também ao Judiciário fazer sua parte com maior respeito ao sistema de precedentes e alinhamento com as jurisprudências dos tribunais superiores. Estamos abertos ao diálogo com os tribunais para encontrar soluções que conciliem a agilidade processual com o pleno exercício do direito de defesa. É fundamental, contudo, que a busca por eficiência não ocorra às custas da qualidade e da legitimidade das decisões judiciais”, afirmou ele.

Rafael Luz/STJ
Paulo Sérgio Domingues 2024

Choque de realidade

Outros advogados ouvidos pela ConJur são céticos quanto à utilidade de uma sustentação oral gravada e enviada com antecedência. Eles dizem que não há como saber se o julgador realmente assistiu ou ouviu a fala. E ponderam que o impacto mais grave vai ocorrer nos tribunais de apelação, em que há análise de fatos e provas, e efetiva revisão dos casos concretos.

Já magistrados veem um benefício nas sustentações gravadas: a possibilidade de acompanhar a fala do advogado com calma e no momento oportuno para se debruçar sobre o processo. Em recente palestra na Associação Nacional dos Procuradores dos Estados e do Distrito Federal (Anape), o ministro Paulo Sérgio Domingues, do STJ, disse que o tema vem gerando celeuma exagerada.

Primeiro porque os tribunais julgam muito, o suficiente para tornar impossível o julgamento presencial de todos os processos com sustentações orais de 15 minutos. Segundo porque a resolução do CNJ aumenta a transparência dos julgamentos virtuais, sem afetar em nada as sessões presenciais. “Sustentações são melhores presenciais? São. Mas, em todos os casos, é impossível (fazê-las). Precisamos lidar com dados da realidade”, disse o ministro.

Já na sessão da 3ª Turma do STJ do último dia 4, a ministra Nancy Andrighi tratou do tema ao comentar que a advocacia deveria se preocupar mais com as sessões virtuais em si. “Os advogados estão com o foco errado. A sustentação oral é importante, mas pode ser substituída por bom memorial com duas ou três páginas. Nada é mais importante do que imaginar que eu vou me deparar com cinco dias úteis e ter que debulhar uma pauta virtual de mil processos.”

Beto Simonetti reforçou a posição da OAB na sessão de abertura do ano judiciário no Supremo Tribunal Federal, em fevereiro. “A palavra dita é complementar à palavra escrita e, sem constrangimento, vídeo gravado não é sustentação oral.” À ConJur, ele reforçou ser essencial que o advogado tenha a oportunidade de se manifestar diretamente perante o colegiado julgador, garantindo a efetividade da defesa dos direitos dos cidadãos.

Blitz legislativa

No Tribunal Superior do Trabalho, a pressão da OAB deu algum resultado. O órgão determinou que os processos com pedido de sustentação oral sejam automaticamente transferidos para julgamento presencial para as pautas até 14 de março, prazo final já estendido pelo CNJ para implementação da Resolução 591/2024. A partir daí, será necessária a concordância do relator para o deferimento do destaque.

Há uma ofensiva também no Legislativo. Em agosto de 2024, senadores protocolaram uma proposta de emenda à Constituição (PEC 30/2024) para assegurar que advogados possam apresentar seus argumentos oralmente perante tribunais de todas as esferas, judicial e administrativa, sob pena de nulidade do julgamento. O texto é de iniciativa do senador Castellar Neto (PP-MG), com apoio de outros 26 senadores.

O senador Fabiano Contarato (PT-ES) protocolou o PL 345/2025 para mudar o Código de Processo Civil e o Código de Processo Penal, prevendo que destaques sejam decididos de maneira fundamentada pelo relator, de acordo com a relevância da matéria e a necessidade do julgamento síncrono com sustentação oral. Na fundamentação, ele classifica a resolução do CNJ como uma “limitação abusiva às prerrogativas da advocacia”.

Já na Câmara dos Deputados, a deputada federal Carmen Zanotto (Cidadania-SC) protocolou o PL 4.996/2024, para propor a inclusão no Estatuto da Advocacia da previsão de que todos os casos em julgamento virtual com pedido de sustentação oral sejam pautados para sessões presenciais ou telepresenciais.

Além disso, o deputado federal Tião Medeiros (PP-PR) propôs em outubro um Decreto Legislativo de Sustação de Atos Normativos do Poder Executivo (PDL 371/2024) para sustar os efeitos da resolução do CNJ, por restringir a atuação pleno dos advogados e usurpar a competência do Congresso Nacional.

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Legitimidade da Defensoria para execução individual de título coletivo em favor de vulneráveis etários

Passados quase dez anos da decisão proferida pelo Supremo Tribunal Federal (ADI 3.943), reconhecendo a constitucionalidade da legitimidade da Defensoria Pública para a tutela coletiva, constata-se que a instituição modificou sensivelmente seu perfil de atuação, não mais restrito à representação de interesses individuais, mas extraordinariamente legitimada para defesa dos interesses de vulneráveis.

Dentre os diversos eixos de vulnerabilidade tradicionalmente alvos da atuação institucional (crianças, adolescentes, vítimas de violência doméstica, pessoas com deficiência), a Defensoria Pública vem assumindo um protagonismo na defesa de interesses das pessoas idosas.

Com certa frequência, ações coletivas são ajuizadas contra os entes públicos de modo a assegurar a política de unidades de acolhimento, com pretensão de implantação de instituições de longa permanência, centros dia, centros de acolhida especial e outros equipamentos sociais para pessoas idosas.

Em muitos casos, após a formação do título executivo coletivo, torna-se dificultosa a inclusão das pessoas idosas nesses equipamentos, visto que, não raras as vezes, temos pessoas que possuem problemas de saúde e nem sempre reúnem forças e aptidão para gerir a própria vida sem o apoio de terceiros.

Nem sempre essas pessoas idosas contam com apoio do seio familiar, sendo a institucionalização o último recurso disponível. Isso exige um olhar diferenciado, levando-se em conta as normas de caráter protetivo estampadas na Constituição da República e no Estatuto da Pessoa Idosa (Lei nº 10.741/2003).

O Estatuto da Pessoa Idosa, que trouxe novos parâmetros para a interpretação e aplicação dos direitos dessa parcela de cidadãos, sempre com o objetivo de lhes garantir as mesmas oportunidades, desfrutadas por todos em igualdade de condições, reafirma uma série de princípios, tais como os da dignidade da pessoa humana, da solidariedade, da autonomia e da liberdade de fazer as próprias escolhas, da proteção à vida e à saúde, do acesso à educação, da não discriminação, da acessibilidade, da inclusão social etc.

Procuradora constitucional das pessoas vulneráveis

O reconhecimento desses direitos a essas pessoas idosas, face às desigualdades decorrentes da idade, repousa no princípio da isonomia constitucional, ou seja, assegurar-lhes as mesmas oportunidades.

A luta pela inclusão das pessoas idosas, buscando a efetividade desses direitos, requer, além do envolvimento da sociedade, a cobrança das autoridades para que assumam suas responsabilidades, tomando medidas concretas, objetivando dar sentido prático aos avanços conquistados, cumprindo, enfim, a legislação existente, muitas das vezes mediante provocação jurisdicional.

A previsão contida no artigo 43 da Lei nº 10.741/2003 impõe a necessária adoção de medidas de proteção em hipóteses em que os direitos das pessoas idosas forem ameaçados ou violados, seja pela própria família, pelo Estado ou pela sociedade.

Por essa razão, a Defensoria Pública tem exercido importante papel, buscando em nome próprio a tutela individual de direito de pessoa idosa, visando assegurar o acesso aos recursos necessários ao seu bom convívio social.

Embora não esteja expressamente consolidada no Estatuto da Pessoa Idosa, essa legitimidade está intrinsecamente ligada à missão constitucional de prestar assistência jurídica aos necessitados e de tutela dos direitos dos vulneráveis, na forma do artigo 4º, I, VII, X e XI da LC nº 80/1994.

Já há alguns anos, a Defensoria Pública tem exercido o papel de “procuradora constitucional das pessoas vulneráveis”, tanto do ponto de vista individual quanto do ponto de vista coletivo. Inclusive, reconhece-se a consolidação de um “microssistema processual de proteção dos vulneráveis” (MPPV), com importante contribuição do Superior Tribunal de Justiça, enquanto intérprete nacional da legislação federal. Essa ideia de microssistema processual protetivo é recente [1], mas já alcança o STJ desde 2023 – embora o CPC/2015 somente mencione a vulnerabilidade uma única vez (artigo 190, parágrafo único), ao contrário das numerosas referências na legislação da Argentina.

Para a compreensão desse microssistema, torna-se necessária a presença de, ao menos, três requisitos: (a) constitucionalização do processo, mirando-se o procedimento como desdobramento do direito de ação e à tutela efetiva de direitos, especialmente quanto aos sujeitos protegidos constitucionalmente; (b) circularidade dos planos (do direito material e processual), ampliando-se a proteção e os instrumentos processuais à sua disposição; (c) teoria das vulnerabilidades processuais, útil à compreensão do fenômeno, a qual foi inaugurada mais intensamente por Fernanda Tartuce.

Se já é trágico notar que, em alguns centros de decisão jurídica, o CPC/2015 ainda não “aportou”, mais grave é perceber o esquecimento de uma Lei de 1994 (a Lei Orgânica da Defensoria Pública – LC nº 80/1994). E tudo pode se agravar ainda mais quando a “conversa” entre tais instrumentos legislativos é necessária, como no caso da legitimação extraordinária da Defensoria Pública em hipóteses de proteção individual das pessoas vulneráveis.

Desse modo, a teoria do diálogo das fontes deve incidir nos debates sobre a legitimidade extraordinária do “Estado Defensor” em casos individuais – como também já incidiu, no STJ (AgInt 1.220.572), para confirmar a legitimidade coletiva da Defensoria Pública em prol de coletividade de pessoas idosas, apesar da ausência de menção expressa no Estatuto respectivo.

Assim sendo, o Estatuto da Pessoa Idosa (Lei nº 10.741/2006, artigo 81) e a Constituição da República (artigo 129, § 1º) remetem à convivência entre as legitimidades concorrentes para “ações civis”. Ademais, até mesmo a Lei nº 11.340/2006 (Lei Maria da Penha, artigo 13) abre caminho ao diálogo das fontes “protetivas” – mormente com os Estatutos da Pessoa Idosa e da Criança e do Adolescente.

Portanto, o microssistema processual das pessoas vulneráveis encontra uma ferramenta protetiva útil e constitucional na legitimação extraordinária da Defensoria Pública. Negá-la, porém, remeterá a um quadro inconstitucional de criação de obstáculos artificiais ao acesso à justiça para os cenários extremos da vida humana.

Neste debate, não se pode permitir a invasão do “corporativismo” criando uma inconstitucional “exclusividade” na legitimidade extraordinária, a qual pode resultar em um maquiavélico “pingue-pongue” dos fragilizados entre instituições ou, por vezes, retardar o fim processual esperado, substituindo-o pelo óbito decorrente da espera enquanto perduram discussões sobre a “forma pela forma”. Portanto, deve-se garantir utilidade às ferramentas processuais existentes e, assim, facilitar o acesso à justiça dos mais fragilizados socialmente.

Obviamente, não se fala aqui por uma desnecessária generalização da legitimação extraordinária da Defensoria Pública para casos individuais. Até mesmo porque suas atuações devem ser emancipatórias, distintamente de uma indesejada substituição processual contraposta à vontade livre e declarada do substituído.

Assim sendo, a legitimação extraordinária defensorial deve ser pautada por método seletivodemocrático e racional, “salvando” direitos fundamentais, tais como a vida e a saúde. Um bom exemplo é o projeto da Defensoria Pública do Rio de Janeiro (DP-RJ) denominado “A saúde não pode esperar” – sobre tal projeto, Andrea Carius de Sá, Marilia Gonçalves Pimenta e Cleber Francisco Alves expuseram a utilidade da legitimação extraordinária da Defensoria Pública para resguardar vidas de pessoas em UTIs, quando sem representantes e sem a possibilidade de declarar sua vontade.

Nadar, nadar e morrer na praia

O mesmo raciocínio deve ser aplicado em casos de equipamentos sociais para instalação de instituições de longa permanência para idosos e congêneres. Até porque, ainda valendo-se do exemplo do estado do Rio de Janeiro, a Fazenda Pública tem apresentado oposição a atuação institucional alegando que a instituição: “ao peticionar em nome próprio buscando a tutela de direito individual da idosa, extrapola suas atribuições institucionais e viola princípios basilares do ordenamento jurídico processual. É fundamental compreender que a legitimidade da Defensoria Pública para atuar em juízo está intrinsecamente ligada à sua missão constitucional de prestar assistência jurídica aos necessitados. No caso em tela, observa-se uma distorção desta prerrogativa. A Defensoria não está meramente representando os interesses de uma assistida, mas sim se colocando como parte autora em um procedimento que visa obter um benefício individual específico”.

Ou seja, para a Fazenda Pública talvez seja mais interessante contrariar o “princípio da primazia de mérito” promovendo extinção formal processos (cognitivos ou executivos) e, por via de consequência, expor pessoas vulneráveis (muitas vezes muito adoentadas) à tramitação processual – buscando, assim, manipular o Poder Judiciário à criação de obstáculos de acesso à justiça ou, quem sabe, apostar na “perda do objeto” decorrente da morosidade — pois pessoas idosas ou enfermas não podem esperar para sempre…

Por outro lado, mas ainda sobre a legitimação extraordinária da Defensoria Pública no caso analisado, ao admiti-la na fase de conhecimento coletiva e não estendê-la à fase de execução, gera-se, à pessoa enferma e idosa, a sensação um trágico “nadar, nadar e morrer na praia” — algo indesejado à Constituição fundada na dignidade humana (artigo 1º, III).

Como pressuposto à compreensão da legitimação extraordinária do “Estado Defensor” é necessário aceitar a concorrência de legitimidade com o Ministério Público (Constituição, artigo 129, § 1º), a qual decorre da missão de “custos iuris” diante da indisponibilidade dos direitos envolvidos.

Com efeito, o CPC/2015 (artigo 18) ampliou a denominada legitimação extraordinária para extraí-la de toda ordem jurídica — inclusive da própria Constituição. Nesse ponto, o conceito constitucional amplo de necessitado (artigo 134) — vide STF (ADI nº 3.943) e STJ (EREsp nº 1.192.577) —, e o vínculo expresso da Defensoria Pública com as crianças, os adolescentes, os idosos, as pessoas com deficiência, as mulheres em situação de violência doméstica e com outros grupos vulneráveis merecedores de proteção estatal (artigo 4º, XI da LC nº 80/1994) reforçam a legitimação extraordinária da Defensoria Pública.

Assim, no contexto do CPC/2015 é notória ampliação da legitimação extraordinária como decorrência não somente da “lei” como também do “ordenamento jurídico” e, obviamente, isso alcança a Defensoria Pública.

Há um consenso de que a Defensoria Pública deve exercer tal função muito seletivamente para não ser, logo ela, instrumento de autoritarismo e paternalismo desnecessário com os mais vulneráveis. Em outras palavras, a Defensoria Pública deve exercer tal legitimidade de forma responsável. Trata-se de uma legitimidade social exercida democraticamente à luz da ordem jurídica.

Com efeito, a legitimação extraordinária que salva (a vida e saúde de) pessoas vulnerabilizadas tem raízes históricas (vide a origem brasileira da Defensoria Pública como órgão da Procuradoria de Justiça do Rio de Janeiro nas décadas de 1940/1950) e sementes solidaristas, a partir de pesquisas institucionais com mais de duas décadas.

Portanto, a legitimação extraordinária e protetiva da Defensoria Pública é decorrência óbvia e lógica da Constituição (artigo 134), do CPC/2015 (artigo 18) e da LC nº 80/1994 (artigo 4º, XI). E, nesse cenário, os estatutos protetivos têm especial relevância, como é o caso do Estatuto da Pessoa Idosa, pois mandam o recado normativo: É preciso proteger e facilitar o acesso à justiça dos mais frágeis da sociedade brasileira e, para tanto, a legitimidade defensorial é mais uma ferramenta aberta, útil e possível na ordem jurídica.


[1] Para um pouco mais sobre o tema: ZANETI Jr., Hermes. CASAS MAIA, Maurilio. Microssistema Processual de Proteção Processual dos Vulneráveis: as lentes do Ministério Público e da Defensoria Pública. São Paulo: Tirant Lo Blanch, 2025.

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Armadilhas da eficiência: revisão do processo sancionador da Anvisa

Encontra-se em consulta pública a reformulação das normas que regem o processo administrativo sancionador da Anvisa, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Consulta Pública nº 1.297/24). Dada a natureza punitiva dos processos, a gravidade das sanções aplicáveis e a amplitude das competências da agência sanitária, o tema se apresenta da maior relevância. Afinal, na aplicação de sanções, o Estado exibe seu avesso, pois se organiza para infligir um mal aos particulares. Essa inversão de sua atividade-fim demanda salvaguardas e um processo administrativo que mereça este nome.

A revisão do processo foi provocada pelo onipresente Tribunal de Contas da União (TCU), que diagnosticou a atuação sancionatória da Anvisa — centrada ainda na Lei nº 6.437/77 — como ineficiente, dada a longa duração dos procedimentos e a baixa taxa de conversão e recolhimento de multas.

Em que pese a louvável busca da eficiência — e o interesse geral em processos efetivos e céleres —, o texto sob consulta está aquém do que se pode esperar de um sistema de justiça administrativa compatível com as exigências constitucionais em vigor. A proposta, como se encontra, repete vícios antigos do processo administrativo no país: descompromisso com o contraditório participativo, com a verdade material e com a independência de autoridades julgadoras [1].

De início, preocupa a ausência da identificação dos princípios que devem nortear a interpretação e aplicação da norma. A par disso, ainda nas definições (artigo 2º), deixa a proposta de indicar que a autoridade julgadora será diversa da autuante, estando livre de relação hierárquica com aquela, em atendimento ao contraditório e à imparcialidade. A omissão não é banal. Há décadas, a Corte Europeia de Direitos Humanos impõe a promoção da imparcialidade em julgamentos administrativos, ressaltando que ela deve ser aparente e efetiva [2].

Entendimento nos EUA

Nos EUA, a Suprema Corte entende que o processo contencioso perante as agências deve assegurar que a autoridade julgadora exerça seu juízo de valor de forma independente, livre de pressões e influências das partes ou de outras autoridades [3]. A cumulação de atribuições investigatórias ou acusatórias com competências decisórias acarreta a contaminação do agente, com o desejo, ainda que inconsciente, de ver suas teses confirmadas ao final da relação processual: i.e., a vontade de vencer o processo — “will to win” na expressão da jurisprudência [4].

Quando às provas, a proposta admite uma perigosa materialidade indiciária (artigo 2, XIII) e compreende a comprovação do ilícito como faculdade do agente estatal (artigo 15) — e não como dever inerente ao exercício do poder de polícia, ancorando a aplicação de graves punições em presunções ou ficções jurídicas. É fundamental, aqui, disciplinar de forma clara o dever de a agência fiscalizar seus regulados com respaldo probatório, sem prejuízo de se regular também os casos nos quais a formação de provas ou documentos seja inviável, ao menos no momento da autuação; e o eventual dever de o particular, diante determinadas circunstâncias, produzir as provas requeridas pela Anvisa.

A imposição de sanções fundadas em indícios ou simples declarações das autoridades autuantes — via presunção de veracidade — é, há muito, rejeitada nos demais sistemas da cultura jurídica ocidental [5], pois subverte o conceito de processo, inviabiliza a paridade de armas e impõe ônus da prova de fatos negativos, dentre outros problemas [6]. É dos fatos que decorrem as pretensões tuteladas pelo Estado. A reconstrução crível desses mesmos fatos e sua análise imparcial são requisitos essenciais de um sistema de justiça administrativa democraticamente estruturado.

Processo sancionador da Anvisa

Na prática, a proposta parece reservar ao particular um único direito: apresentar petições escritas, a serem inseridas digitalmente no sistema eletrônico da agência. O procedimento aparece como uma sucessão de atos formais, onde não são exigidas provas do ilícito; o espaço para a sua contraposição é extremamente estreito; não são garantidas oitivas presenciais ou a apresentação de testemunhas; a indicação de peritos ou prazos para a submissão de estudos técnicos; ou mesmo, a imparcialidade das autoridades julgadoras. No julgamento colegiado, quando existente, não se assegura o uso da palavra, idealmente após o voto do relator.

Com tantas deficiências — que passam também pelas regras previstas para a celebração de acordos —, fica difícil compreender o processo sancionador proposto pela Anvisa como uma ferramenta de persuasão, apta a articular um diálogo aberto entre Estado e cidadão, acerca dos direitos e fatos em causa. A participação do particular se limita ao preenchimento de lacunas em uma ciranda de formalidades digitais: um “falar para as paredes”.

É impossível deixar de relacionar as limitações da proposta com o simplismo de seus objetivos: celeridade e eficiência. Ora, o Estado democrático de direito não é, nem promete ser, a forma mais ágil de governo ou administração [7]. Sua lógica de custo-benefício é outra e seus processos não são linhas retas entre o auto de infração e o recolhimento de multas. Devido processo, ampla defesa e contraditório são estradas mais longas, porém, seguras.

Credibilidade do sistema

Garantias processuais impõem custos e demandam tempo. Pode-se argumentar que processos regidos pela supremacia do interesse público, ou por presunções de veracidade, facilitam a atuação estatal, com celeridade e economia. Essa tese, porém, é incompatível com o texto constitucional em vigor. A assimilação da ampla defesa e do contraditório no processo administrativo no rol do artigo 5º da Constituição demonstra a sua centralidade no ordenamento brasileiro, inviabilizando a barganha desses direitos por possíveis — e improváveis — benefícios estatísticos.

Difícil acreditar que uma atuação incontrolável do Estado gere bons frutos, mesmo considerando-se o aspecto quantitativo do problema. A reiterada violação a direitos extrapola a esfera de interesses dos lesados, pois compromete a própria credibilidade do sistema, corroendo sua legitimidade. Um processo administrativo insuficiente, na melhor das hipóteses, acarreta uma judicialização excessiva das pretensões em jogo. Na pior, constitui solo fértil para abusos e desvios, dentro e fora dos autos.

A eficiência tem lugar na lógica processual, mas ele é delimitado: serve à otimização de processos, com o emprego de novas tecnologias de comunicação, apreensão, transmissão e armazenamento de dados. Elas contribuem para uma distribuição mais eficiente dos recursos materiais e humanos da administração, facilitando a apreensão de provas digitais e incrementando a acessibilidade dos procedimentos. Mas, especialmente em processos sancionadores, a eficiência viabilizada pela inovação precisa operar a favor — e não contra — garantias fundamentais.


[1] Há outros problemas na Proposta, tais como a disciplina dos acordos consensuais. Para não cansarmos o leitor, serão deixados para uma oportunidade futura.

[2] Marie-Louise Loyen vs. France, Strasbourg, 5 de julho de 2005. Corte Europeia de Direitos Humanos. A mesma orientação foi adotada em Procola vs. Luxemburgo. Strasbourg, 28 de setembro de 1995; e Kleyn vs. The Netherlands, Strasbourg, 6 de maio de 2003. Neste último caso, a Corte reconheceu a impossibilidade de a autoridade julgadora atuar também como conselheira do Estado nas atribuições da agência ou órgão em questão.

[3] “(…) esse requisito de neutralidade em processos decisórios contenciosos (“adjudicative proceedings”) deixa a salvo as duas preocupações centrais do devido processo legal processual: a prevenção da privação de direitos dos particulares que se apresentem injustificadas ou equivocadas; e a promoção da participação e do diálogo” Marshall vs. Jerico Inc (446, U.S., 238; 1980). No mesmo sentido: Boutz vs. Economou (438, U.S. 478; 1978).

[4] AMAN JR., Alfred C.; MAYTON, William T. Administrative Law. St. Paul: West Group, 2001, p. 248.

[5] Na França, ver as decisões do Conselho de Estado narradas em PLANTEY, Alain. BERNARD, François-Charles. La Preuve Devant Le Juge Administratif. Paris: Economica, 2003, p. 92. Na Espanha, PÉREZ, Jesús Gonzáles. Justicia Administrativa. Madrid: Civitas, 1999, p. 158 e seguintes. Na Itália, Conselho de Estado: Cons. St., IV 24.2.1981 n. 191. Nos EUA, desde a reforma do Administrative Procedure Act. Quando a ação administrativa é intentada ex officio pela agência, por exemplo, em processos restritivos de direitos, a ela incumbe o ônus da prova, com base na regra geral do interesse (APA, 556-d).

[6] Já tratamos do tema em Processo Administrativo e Democracia: uma reavaliação da presunção de veracidade. Fórum: Belo Horizonte, 2007 e, juntamente com outros aspectos da justiça administrativa, Autoritarismo e Estado no Brasil: tradição, transição e processo. FGV: Rio de Janeiro, 2016.

[7] SCHMITTER, Philippe C. e KARL, Terry Lynn. What Democracy is… and is NotJournal of
Democracy, Volume 2, Number 3, Summer 1991, p. 75-88.

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Teoria axiomática-sistêmica: antídoto contra fragmentação e colapso do direito internacional

Em meu artigo recente publicado nesta Conjur, intitulado “A Estupidez como Método: Crônica do Direito Internacional Contemporâneo“, destaquei como o sistema jurídico internacional tem sido progressivamente erodido por interpretações seletivas, manipulações políticas e uma lógica de conveniência que coloca a normatividade em segundo plano. O que deveria ser um sistema jurídico funcional tem sido reduzido a um campo de disputa geopolítica, no qual tratados são seguidos ou ignorados conforme os interesses momentâneos dos estados mais poderosos.

O problema central identificado nesse cenário não é apenas a violação das normas internacionais, mas a normalização dessa violação. Quando a previsibilidade jurídica é substituída pela arbitrariedade, a ordem internacional deixa de ser um sistema normativo autônomo e passa a funcionar sob a lógica da força e da conveniência política. Essa estupidez institucionalizada compromete a própria existência do direito internacional enquanto campo jurídico.

Se essa tendência não for revertida, o direito internacional corre o risco de se tornar uma estrutura retórica sem efetividade, reduzida a um instrumento discursivo para legitimar decisões já tomadas nos bastidores da geopolítica. No entanto, se há um caminho para resgatar a racionalidade do sistema jurídico internacional, ele passa por uma abordagem metodológica que devolva coerência e previsibilidade à ordem global.

É aqui que a Teoria Axiomática-Sistêmica do Direito Internacional, desenvolvida por Wagner Menezes e apresentada em Berkeley em 2024, se apresenta como um antídoto à fragmentação normativa e à instrumentalização política do direito internacional. Em vez de aceitar a desintegração das normas como um fato consumado, essa teoria propõe um modelo normativo estruturado em axiomas fundamentais, que garantem a unidade e a racionalidade do sistema jurídico internacional.

A seguir, explorarei como essa teoria oferece uma resposta concreta aos desafios enfrentados pelo direito internacional contemporâneo, apresentando-se não apenas como uma alternativa teórica, mas como um imperativo metodológico para garantir a funcionalidade e a legitimidade da ordem jurídica global.

Sistema à beira do colapso: falência da normatividade internacional

O direito internacional encontra-se em um estado de entropia. O multilateralismo se desfaz, o uso da força é normalizado e as instituições jurídicas globais são esvaziadas por estratégias de poder cada vez mais sofisticadas. As normas internacionais, que deveriam estruturar um mínimo de previsibilidade nas relações entre os estados, são manipuladas ou simplesmente ignoradas por aqueles que têm o poder de ditar unilateralmente as regras do jogo.

A ONU? Refém do Conselho de Segurança. A Corte Internacional de Justiça? Um órgão consultivo cuja autoridade é tantas vezes suprimida pela geopolítica. A normatividade internacional ainda existe, mas seu caráter vinculante é relativizado sempre que se torna inconveniente para os atores estatais mais poderosos.

A deterioração da ordem jurídica internacional (tal qual a estudamos) não é um fenômeno recente. Ela resulta de um problema estrutural: o positivismo jurídico clássico, alicerçado na primazia da vontade estatal, já não dá conta da complexidade dos tempos modernos. O pluralismo jurídico, por sua vez, dissolveu-se em uma colcha de retalhos normativa, onde regimes jurídicos setoriais competem entre si, ao invés de comporem um sistema funcionalmente integrado. O resultado? A irracionalidade institucionalizada.

Se queremos recuperar a força normativa do direito internacional, é preciso resgatar sua coerência. É neste ponto que a Teoria Axiomática-Sistêmica do Direito Internacional, desenvolvida por Wagner Menezes, se apresenta como um antídoto à atual fragmentação normativa e à crescente instrumentalização do direito pela geopolítica do poder.

Teoria Axiomática-Sistêmica: um modelo estrutural para um direito em colapso

A Teoria Axiomática-Sistêmica parte de um pressuposto incontornável: o direito internacional não pode ser compreendido como um amontoado de normas fragmentadas, mas sim como um sistema estruturado a partir de axiomas fundamentais.

Os axiomas, na definição de Menezes, são princípios jurídicos primários, não derivados de vontades estatais, mas de um consenso normativo mínimo que sustenta toda a ordem internacional. São, em outras palavras, os elementos de racionalidade que garantem a previsibilidade e a continuidade do Direito Internacional como um campo jurídico autônomo.

Entre esses axiomas fundamentais, destacam-se:

Pacta sunt servanda: os tratados devem ser cumpridos. Se os compromissos assumidos pelos Estados não são obrigatórios, o próprio Direito Internacional torna-se uma ficção.

Soberania estatal e igualdade jurídica entre os Estados: sem esse princípio, a normatividade internacional se torna mero instrumento de dominação.

Proibição do uso da força: norma frequentemente violada, mas que, paradoxalmente, sustenta a própria legitimidade do sistema.

Respeito aos direitos humanos: um pilar normativo que, mesmo contestado, segue sendo a base da legitimidade moral do Direito Internacional.

Cooperação internacional como princípio estruturante: o reconhecimento de que, sem coordenação e solidariedade entre estados, a governança global se torna impossível.

Esses axiomas não apenas fundamentam a normatividade internacional, mas conferem coerência ao sistema jurídico global. No entanto, para que sejam efetivos, precisam ser aplicados dentro de uma lógica sistêmica.

Coerência sistêmica e a necessidade de um direito internacional racional

Se há algo que caracteriza o direito internacional contemporâneo, é a sua fragmentação. O fenômeno é bem descrito por Niklas Luhmann: sistemas normativos que perdem a capacidade de coerência interna tendem à imprevisibilidade.

Hoje, essa incerteza se manifesta de forma clara:

  • a) No direito ambiental, tratados climáticos entram em choque com normas da OMC, revelando a ausência de uma visão sistêmica sobre a relação entre meio ambiente e economia global;
  • b) Nos direitos humanos, tribunais internacionais tomam decisões conflitantes sobre garantias fundamentais, enfraquecendo a universalidade desses direitos;
  • c) No direito internacional humanitário, a proibição do uso da força é reiteradamente relativizada, sempre em nome de uma suposta “exceção necessária”.

A Teoria Axiomática-Sistêmica propõe um antídoto: a reinterpretação das normas internacionais a partir dos axiomas fundamentais e da coerência sistêmica. Isso significa que, diante de um conflito normativo, não se deve aplicar critérios meramente formais, mas sim buscar a solução que melhor preserve a integridade do sistema jurídico internacional.

Se os tribunais internacionais aplicassem esse critério, muitas das contradições normativas do direito internacional poderiam ser minimizadas. O sistema jurídico global deixaria de ser um conjunto de ilhas normativas desconectadas e passaria a funcionar como uma estrutura verdadeiramente integrada.

Aplicações concretas da Teoria Axiomática-Sistêmica

A teoria não é uma abstração acadêmica. Pelo contrário, ela fornece um marco metodológico concreto para a reconstrução do Direito Internacional. Entre suas aplicações práticas, destacam-se:

  1. Resolução de conflitos normativos: A aplicação do critério da coerência sistêmica poderia permitir a harmonização entre diferentes regimes jurídicos, reduzindo as contradições e ampliando a efetividade do direito internacional.
  2. Reafirmação de normas imperativas (jus cogens): O modelo axiomático confere solidez à hierarquia normativa, garantindo que direitos fundamentais não sejam relativizados por interesses políticos conjunturais.
  3. Integração da governança global: A teoria auxilia na articulação entre organizações internacionais, evitando a dispersão normativa e promovendo maior eficácia regulatória em temas como mudanças climáticas, comércio global e proteção dos direitos humanos.
  4. Recuperação da legitimidade do sistema: Em tempos de desinformação e manipulação jurídica, o retorno a princípios axiomáticos é essencial para garantir previsibilidade e segurança nas relações internacionais.

Um chamado à racionalidade antes que a estupidez se torne método

Hans Kelsen já advertia que um sistema jurídico sem coerência implode sobre si mesmo. No direito internacional, esse risco se torna mais evidente a cada nova violação impune, a cada nova decisão contraditória, a cada novo tratado que não encontra meios de efetivação.

A Teoria Axiomática-Sistêmica de Wagner Menezes nos recorda de que o direito internacional não pode ser uma estrutura amorfa, sujeita apenas ao jogo de forças momentâneo. Pelo contrário, deve ser resgatado como um sistema jurídico racional, baseado em princípios fundamentais e interpretado à luz de sua coerência interna.

Ignorar essa necessidade é aceitar que o direito internacional siga sendo instrumentalizado, reduzido a um mero argumento retórico para justificar a lógica brutal do mais forte.

Diante desse cenário, a Teoria Axiomática-Sistêmica surge não apenas como uma possibilidade teórica, mas como um imperativo normativo para a sobrevivência do direito internacional.

Persistir na fragmentação normativa e na relativização das regras jurídicas é insistir na estupidez como método. O desafio que se impõe é justamente o oposto: reconstruir um sistema jurídico internacional que não seja refém da irracionalidade, mas sim um espaço de previsibilidade, racionalidade e justiça global.

A história nos ensina que a irracionalidade já destruiu sistemas normativos antes. A questão que se impõe é: teremos a lucidez de aprender com o passado antes que o direito internacional se torne apenas um vestígio de civilidade em meio ao caos?

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O futuro político do imposto seletivo

Em julho de 2024, em texto publicado nesta Conjur, tratei brevemente sobre falhas congênitas ao imposto seletivo a partir da Emenda Constitucional nº 132 e do então Projeto de Lei Complementar nº 68, trazendo algumas ponderações sobre o seu duvidoso sucesso como mecanismo extrafiscal. [1]

Magistrada explicou que crime contra ordem tributária é caracterizado pela presença de dolo e no caso houve mera negligência dos gestores

Concluída a regulamentação, a timidez da sua extrafiscalidade permanece (ainda não há análises de impacto sobre o retorno esperado com a sua implementação e o design constitucional do imposto seletivo impede qualquer previsibilidade na aplicação dos recursos arrecadados), porém, os setores gravados com a sua incidência dispõem de mais clareza quanto a alíquotas, sujeição passiva, cobrança.

À época da sua proposição, o projeto de lei complementar nº 68 capitulava um imposto seletivo diferente da versão final trazida pela Lei Complementar nº 214. Conforme avançavam os trabalhos legislativos, a sua disciplina foi aperfeiçoada, mas alguns pontos seguem pendentes de definição pelo legislador ordinário, como as alíquotas específicas e critérios para gradação da alíquota aplicável a aeronaves e embarcações. Não obstante, as disposições referentes ao imposto seletivo na LC nº 214 ainda deverão ser regulamentadas pelo Poder Executivo da União, como determina o artigo 438.

Embora prematura qualquer avaliação sobre a eficácia da nova exação como política pública, a revisão do seu tratamento legal já se afigura entre as prioridades anunciadas pelos congressistas para 2025 e nos avizinha de um cenário esboçado durante a regulamentação: a peculiaridade de cada hipótese de incidência ensejará a multiplicação de impostos seletivos, de modo que a mineração terá um imposto seletivo, a indústria automotiva outro e assim por diante.

Corrida por imposto sob medida

A corrida setorial para a concepção de um imposto seletivo sob medida é esperada e não deve agravar a complexidade do sistema, como ocorre em outras espécies tributárias, em função da incidência monofásica imposta pela EC nº 132 (artigo 153, §6º, II) e a taxatividade dos bens ou serviços alcançados. Sem embargo, devem ser considerados nesse processo os movimentos pela expansão das hipóteses de incidência do imposto seletivo, vide a inclusão de armas e munições pelo senador Eduardo Braga em seu substitutivo ao PLP nº 68 e a mobilização no mesmo sentido para defensivos agrícolas, que haverão de ser renovados mais cedo ou mais tarde.

É esperado que o imposto seletivo seja, doravante, o foco mais controvertido da reforma tributária em função do seu impacto nos setores afetados e tanto melhor que assim seja para que o regime do IVA dual siga imperturbado pelo ânimo parlamentar.

Regulamentada a reforma tributária, a prioridade do legislador tributário deve ser a irradiação, para todos os tributos que incidirem sobre o consumo durante a transição até 2032, das virtudes introduzidas pela LC nº 214, mas que são restritas ao Imposto sobre Bens e Serviços e à Contribuição sobre Bens e Serviços. Isso, porém, é assunto para o próximo texto.

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Referências

CONGRESSO NACIONAL. Emenda à Constituição nº 132. Brasília, 2023.

BRASIL. Lei Complementar nº 215. Brasília, 2025.

MERHEB, Pedro. Imposto Seletivo: forma e substância de uma novidade ‘made in Brazil’. Conjur, 2024.


[1] MERHEB, Pedro. Imposto Seletivo: forma e substância de uma novidade ‘made in Brazil’. Conjur, 2024.

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Compartimentalização pela indústria e governos inibe enfrentamento do negacionismo climático

Os discursos envolvendo o negacionismo climático ganharam notoriedade recentemente na cultura popular. Os meios de comunicação noticiam constantemente os elevados números de queimadas e desmatamentos na floresta amazônica e em outros biomas sensíveis no Brasil. Por outro lado, observa-se a existência de um intenso aparato voltado também não só a negar estas ocorrências como a minimizar a gravidade dos danos causados. Este cenário, contudo, não se limita às queimadas, estendendo-se também aos impactos ambientais gerados pela indústria de combustíveis fósseis.

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Tal proceder não é inédito na indústria dos combustíveis fósseis, a qual, por pelo menos sete décadas, tem buscado ativamente minimizar os riscos de suas atividades. Durante esse período, o negacionismo climático passou por transformações constantes, reagindo a pressões sociais, moldando narrativas e apaziguando preocupações ambientais. Até a década de 1990, as empresas de combustíveis fósseis não demonstravam constrangimento em discutir o poder e influência de sua capacidade de alterar o clima por meio de tecnologias extrativas em larga escala. Foi somente quando o seu principal modelo de passou a ser ameaçado que elas se voltaram ao negacionismo.

No entanto, durante todo esse período, tanto internamente quanto publicamente, buscaram posicionar seu núcleo empresarial como o ponto de Arquimedes em torno do qual tudo deveria gravitar, em vez de reconhecerem a realidade imposta pelos limites ecológicos da Terra frente à exploração irrestrita. Desde a década de 2010, com o consenso científico consolidado e os impactos das mudanças climáticas cada vez mais evidentes, a negação clássica deu lugar a um “negacionismo brando”, caracterizado por estratégias de adiamento, divisão, distração e pessimismo. Essa abordagem, contudo, mantém a inação climática, mas sem o mesmo nível de reação pública.

Dentro desse quadro, o greenwashing se tornou uma ferramenta central para disfarçar danos ambientais. Empresas utilizam linguagem enganosa, omissões seletivas e distorções retóricas para sustentar uma imagem sustentável enquanto perpetuam práticas destrutivas. Além disso, estratégias mais amplas buscam diluir a responsabilização ao tratar os danos ambientais como externalidades inevitáveis. Isso fragmenta a percepção pública dos impactos ambientais, dificultando respostas coordenadas e diminuindo a responsabilidade dos agentes poluidores.

A ideia de compartimentalização emerge, então, como um padrão estrutural do negacionismo climático e antiambientalismo. Ao tratar cada caso de degradação como algo isolado, governos e corporações enfraquecem esforços coletivos de mitigação. Esse fenômeno redireciona a atenção da ciência e da sociedade das causas estruturais para fatores imediatos, limitando a compreensão dos riscos climáticos e desviando responsabilidades.

Nessa ordem de ideia, o presente artigo analisa a compartimentalização como uma tática-chave do negacionismo climático.

Modos de compartimentalização

A compartimentalização no discurso climático e antiambiental funciona ao separar efeitos complexos em elementos destacados e reprimidos, o que enfraquece a narrativa ambiental. Diferentes formas dessa prática incluem:

1. Setorização: Regulamentar um único químico (exe: PFOA) sem abordar toda a classe a que pertence (PFAS), prolongando exposições desnecessárias.

2. Burocratização: Empresas estatais norueguesas que exploram a Amazônia enquanto este mesmo estado financia o Fundo Amazônia para a sustentabilidade.

3. Deslocamento: Anunciar ‘neutralidade de carbono até 2050’, mas adiando ações concretas até 2049.

4. Análise seletiva de risco: Avaliar apenas ingredientes ativos em produtos químicos, ignorando os impactos da formulação completa (exemplo: testes em glifosato por si só, mas não em RoundUp® como vendido).

5. Distração: Criar narrativas para desviar a atenção de danos ambientais e sociais, abafando críticas com estratégias de relações públicas.

Dividir medições e regulamentos em categorias isoladas impede uma redução real da poluição, promovendo uma “responsabilidade moral”, onde ações ambientalmente positivas são usadas para justificar práticas prejudiciais. Essa lógica também separa justiça social de questões ambientais ao invés de tratá-las como interligadas.

A responsabilidade moral, assim como a compartimentalização, pode até piorar os problemas ambientais. O sentimento de “compensação” leva indivíduos e empresas a adotarem comportamentos antiambientais sob a justificativa de já terem feito algo positivo. Um exemplo clássico é economizar emissões ao não dirigir, mas compensar voando mais. A disseminação do LED reduziu o consumo energético por lâmpada, mas a proliferação dessas luzes aumentou a poluição luminosa, refletindo o paradoxo de Jevons.

Embora o greenwashing envolva engano intencional, a compartimentalização opera de forma mais sistêmica, criando um cenário onde empresas e governos fragmentam custos e benefícios para evitar lidar com as consequências reais de suas ações. Isso permite que empresas promovam credenciais ambientais enquanto mantêm atividades altamente poluentes.

A compartimentalização não é exclusiva do setor privado. Governos também ignoram ou contradizem informações científicas para manter a viabilidade de práticas extrativistas. O conceito de “megamáquina” (megamachine), de Fabian Scheidler, descreve essa relação simbiótica entre Estado e indústria, onde diferentes blocos de poder competem para garantir vantagem comparativa, intensificando a extração de recursos e ampliando zonas de ignorância para justificar danos colaterais.

O sistema internacional recompensa a produção de ignorância quando isso favorece interesses econômicos, criando um acúmulo de crises não resolvidas. O maquinário do negacionismo climático opera em várias dimensões – setorial, narrativa, política e estrutural – com estratégias que incluem compromissos vazios, como aderir ao Acordo de Paris sem investimentos correspondentes, ou empresas de petróleo declarando metas de neutralidade de carbono enquanto omitem suas emissões indiretas (Escopo 3).

O negacionismo climático, assim, faz parte de um sistema maior de defesa industrial, que inclui lobistas, relações públicas e grupos financiados para manipular a percepção pública e proteger lucros. Esse “exoesqueleto corporativo” sustenta a continuidade da exploração ambiental. Para combater essa dinâmica, é necessário descompartimentalizar as conexões entre setores e atores envolvidos, compreendendo a negação climática como um processo coordenado que transcende a indústria de combustíveis fósseis e atinge outras indústrias poluentes.

Origens da compartimentalização

A compartimentalização pode ser entendida como um problema de prestação de contas e responsabilidade: ela isola benefícios em um setor e minimiza custos, mantendo impactos separados de outros setores afetados. Um exemplo disso são diferentes formas de greenwashing que ocultam o real impacto ambiental de um produto ou serviço. No entanto, a compartimentalização vai além do greenwashing, incluindo omissões estratégicas e divulgações seletivas, resultando na supervalorização de compromissos climáticos e na negligência das ações concretas necessárias.

Esse processo permite que metas como “net zero até 2050″ sejam utilizadas para adiar a responsabilidade real. No âmbito da comunicação empresarial e governamental, Habermas distingue entre comunicação voltada à compreensão e comunicação estratégica, que busca o sucesso independentemente da verdade. A compartimentalização se insere nessa segunda categoria, ao minimizar problemas e favorecer discursos convenientes.

No contexto regulatório, esse fenômeno aparece quando agências governamentais analisam produtos químicos isoladamente, sem considerar suas interações no meio ambiente. Além disso, investimentos filantrópicos em iniciativas ambientais muitas vezes mascaram o financiamento simultâneo de atividades extrativistas prejudiciais. Essa assimetria entre sustentabilidade e extração precisa ser abordada para garantir maior transparência.

A compartimentalização também ocorre na responsabilização do consumidor, transferindo para indivíduos a culpa pelos custos climáticos, enquanto grandes corporações mantêm impactos estruturais. Na ciência, observa-se quando financiamentos industriais direcionam pesquisas para favorecer interesses econômicos, ocultando impactos adversos.

Ao fragmentar problemas, a compartimentalização dificulta soluções sistêmicas e sustentáveis para desafios climáticos e ambientais.

Dinâmicas Norte-Sul que exacerbam a compartimentalização do negacionismo climático

As estruturas e discursos contemporâneos do negacionismo climático têm raízes na colonização histórica, quando as nações europeias exploraram outras partes do mundo para obter matérias-primas e disputar supremacia. Essa história de extração das periferias coloniais para os centros imperiais permite que o negacionismo climático se manifeste de maneira única no Sul Global, facilitando práticas poluidoras.

O colonialismo teve um papel importante no subdesenvolvimento do Sul Global. A pobreza não era preexistente, mas causada pela economia de queimada e pela exploração de riquezas, depredando culturas e ecologias. Hoje, as economias globais pós-coloniais são vistas como meritocráticas, mas as cadeias globais de commodities refutam essa narrativa, pois empresas do Norte pressionam fornecedores do Sul, mantendo os preços altos.

O “mito da modernidade” justifica a exploração ao enquadrar os danos ecológicos como preço do progresso. Justificativas de modernização minimizam e ocultam os danos ambientais causados por empresas extrativas, compartimentalizando os prejuízos ao criar legitimidade. Nesse contexto, o negacionismo climático favorece um sistema em que as práticas poluidoras ocorrem sem barreiras. A promessa de desenvolvimento, porém, se torna inatingível devido a condições econômicas impostas, mantendo o Sul Global dependente da exportação de matérias-primas.

Compartimentalização mineração norueguesa e a ecofilantropia no Brasil

O mito da modernidade se manifesta nas operações de corporações transnacionais em regiões empobrecidas do Sul Global, como o Brasil, oferecendo investimentos industriais, empregos e avanços tecnológicos. Diferente das atividades poluidoras realizadas por empresas nacionais, a extração transnacional compartimentaliza os danos ao longo de cadeias de commodities, separando a legitimidade e a validade dos impactos ambientais.

Durante o regime militar brasileiro (1964-1986), o governo focava na exploração dos recursos naturais, especialmente na Amazônia, favorecendo investimentos estrangeiros. Nesse cenário, empresas norueguesas, como a Norsk Hydro, contribuíram para a poluição de biomas sensíveis. A Norsk Hydro, mineradora parcialmente controlada pelo governo da Noruega, está envolvida na poluição por resíduos tóxicos na refinaria de bauxita de Alunorte, na Amazônia. Investigações indicam que a empresa adota padrões ambientais duplos no Brasil, onde as regulamentações são mais flexíveis, em comparação com a Noruega, onde normas mais rigorosas são seguidas.

Em 2024, decisões judiciais no Brasil reconheceram a responsabilidade da empresa pela poluição excessiva na região, destacando as discrepâncias nas práticas ambientais da companhia entre os dois países.

Compartimentalização nas políticas químicas

Investigar danos químicos um por vez reduz a proteção ambiental, atrasa indevidamente o progresso e obscurece padrões de risco. Órgãos reguladores raramente analisam produtos em suas formulações comerciais, focando apenas nos ingredientes “ativos” listados pelas empresas, mesmo quando as misturas químicas representam maiores riscos. Isso ocorre com pesticidas, cujas análises excluem surfactantes, adjuvantes e aditivos presentes nas fórmulas comerciais. Apesar dos avanços em bancos de dados que preveem interações químicas adversas, como Bioregistry e BioGRID, tais conhecimentos ainda não foram plenamente incorporados às políticas regulatórias.

A regulamentação química frequentemente avalia substâncias isoladamente, ignorando efeitos combinados e impactos ecotoxicológicos. Como múltiplas exposições químicas afetam populações com menor poder político e econômico, suas consequências são difíceis de detectar epidemiologicamente devido a desigualdades sociais preexistentes. O conceito de “anestesia política”, de Andrew Szasz, descreve como soluções individuais para problemas coletivos reforçam a desigualdade ambiental, permitindo que setores privilegiados comprem proteção privada contra toxinas, em vez de melhorar opções públicas.

Essa compartimentalização também se manifesta na discrepância entre estudos laboratoriais e exposições reais. Experimentos mostraram que sapos expostos ao herbicida glifosato eram 15 vezes mais vulneráveis quando na presença de predadores, um efeito ignorado nos estudos da Monsanto. A captura regulatória pela indústria química distorce avaliações de risco, favorecendo estudos financiados por empresas em detrimento de pesquisas independentes. Para evitar essa influência, a segregação entre ciência acadêmica e pesquisas patrocinadas pela indústria é essencial.

Conclusão

Na Europa medieval as indulgências permitiam que pecadores ricos pagassem pela absolvição, perpetuando seus erros. Hoje, os créditos de carbono funcionam de maneira semelhante, permitindo que poluidores transfiram sua culpa sem mitigar os danos de forma significativa. Ao utilizarem empresas como intermediárias, os Estados se distanciam da destruição ambiental, evitando responsabilidades diretas e conflitos geopolíticos. Essa compartimentalização possibilita a contínua exploração do Sul Global sob a fachada da sustentabilidade.

A compartimentalização mantém fronteiras artificiais entre dano e benefício, supervalorizando compromissos ambientais enquanto oculta a exposição a poluentes. Ela institucionaliza a negação—afetando normas de segurança química, filantropia corporativa (eco) e arbitragem ambiental. A vergonha pode ser uma força de mudança, como demonstram campanhas que pressionaram empresas como o Burger King a modificar suas cadeias de suprimentos. Boicotes e ativismo financeiro tornam visíveis os danos ambientais.

A injustiça climática se fortalece com visões compartimentalizadas dos problemas ambientais. Enfrentar desigualdades sistêmicas é essencial para fortalecer os movimentos por justiça climática. Empresas de combustíveis fósseis não podem alegar responsabilidade enquanto perpetuam emissões nocivas. Expor os danos ambientais oculta estratégias de negacionismo e reduz as margens para impunidade corporativa e estatal.

Conclusivamente, a sobrevivência da humanidade está condicionada a tornar explícitos e salientes os danos ocultos e complexos dissimulados para manter os status quo corporativos e estatais. Na medida em que pudermos ver e entender melhor as reais complexidades envolvidas na poluição em todos os níveis a máquina de negacionismo climático (climate denial machine) terá menos álibis e menos lugares para se esconder.

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Do regime jurídico da CBS e do IBS

A reforma tributária do consumo é realidade pronta e aprovada há mais de ano e segue instigando os juristas com novidades nunca antes vistas. Definir o regime jurídico da CBS e do IBS está entre as novidades e poderia ser apenas um ensaio para fins acadêmicos, se não estivesse na sua resposta a chave para desbravar o intrigante quebra-cabeça chamado: o novo contencioso da reforma. É neste assunto que pretendo chegar, mas para traçar um raciocínio indutivo, partiremos do regime jurídico da CBS e do IBS.

O artigo 149-B da Constituição, incluído pela Emenda Constitucional nº 132, de 2023, estabelece a base do regime jurídico da CBS e do IBS apontando, à primeira vista, que serão idênticos, à medida que devem observar as mesmas regras em relação a fatos geradores, bases de cálculo, hipóteses de não incidência e sujeitos passivos; imunidades; regimes específicos, diferenciados ou favorecidos de tributação; regras de não cumulatividade e de creditamento.

O regime jurídico, vale dizer, o feixe de normas aplicáveis [1], torna-se quase idêntico quando a norma é lida em conjunto com o disposto no § 16 do artigo 195 da CF, que prevê algumas regras específicas ao IBS, em relação à sujeição ativa, proibição de inclusão do tributo na base de cálculo de outros tributos, competência do Distrito Federal e impacto do cashback para cálculo dos limites de despesas[2].

Além disso, como a CBS é tributo federal, toda sua legislação ficará a cargo do Congresso Nacional, enquanto o IBS será baseado em lei nacional, votada pelo Congresso, com a ressalva de que todos os entes subnacionais (estados, DF e municípios) poderão legislar sobre as alíquotas incidentes em suas respectivas áreas de competência. Dito isso, teremos “pela primeira vez um imposto unificado entre todas as esferas tributantes, algo impensável antes da Proposta de Emenda Constitucional nº 45/2019” [3].

 

Não obstante o regime jurídico quase idêntico da CBS e do IBS, tratam-se, a priori, de espécies tributárias diferentes. Como sabemos, tributo é gênero que comporta várias espécies e, conforme a explicação de Luís Eduardo Schoueri, agrupar tudo num único gênero “não é irrelevante em matéria jurídica, já que, ao identificarem-se diversas figuras como pertencentes a um gênero, afirma-se que todas elas possuem algo em comum, ou melhor, um regime jurídico único” [4].

Quase identidade

Já que pertencem ao mesmo gênero, a eles serão aplicados os mesmos conceitos quanto a fato gerador, lançamento, base de cálculo, entre outros. Por outro lado, apresentarão peculiaridades, à medida que os impostos são tributos não vinculados a uma atividade estatal [5] e que não podem ter destinação específica, enquanto as contribuições devem ser destinadas aos fins que foram propostas.

Além disso, o fato gerador dos impostos deve refletir uma manifestação de capacidade contributiva. Vale dizer, ao contrário do que ocorre com as contribuições, não é possível que a hipótese tributária de um imposto seja algo que não possui conteúdo econômico. Assim, se um imposto é cobrado sobre bens e serviços, esses bens e serviços devem necessariamente indicar que aquele sujeito passivo tem uma determinada riqueza, que reflete na sua capacidade contributiva. Ou seja, existe ali um fenômeno econômico que serve como índice da capacidade contributiva [6].

Portanto, ainda que a Constituição tenha admitido que a CBS e o IBS devem, necessariamente, observar as mesmas regras em relação a fatos geradores, bases de cálculo, hipóteses de não incidência e sujeitos passivos; imunidades; regimes específicos, diferenciados ou favorecidos de tributação; regras de não cumulatividade e de creditamento, o fato é que cada espécie tributária recebe um tratamento jurídico diferenciado, e é essa a razão pela qual classificam-se os tributos em espécies [7].

Assim, é possível dizer que a CBS e o IBS, apesar de irmãos gêmeos, não são o mesmo tributo, pois,

– apresentam fundamentos jurídicos distintos (artigo 156-A e 195, V, da Constituição);

– apresentam capacidade tributária ativa distinta – a União para a CBS e estados e municípios para o IBS;

– alíquotas diferentes.

Inclusive, trata-se de espécies tributárias distintas, eis que a CBS é um contribuição à seguridade social com destinação, portanto, específica e o IBS é um impostos [8].

Apresentando entendimento divergente, o professor Renato Lopes Becho defende que, na verdade, CBS e IBS são dois impostos, com denominações diferentes, já que “sistematicamente, têm havido desvinculação das receitas, o que acaba por fragilizar a distinção. (…) a destinação do produto da arrecadação, assim como o nomen juris, é, nos termos do artigo 4º do CTN, irrelevante para a determinação de sua natureza tributária” [9].

Uma possível solução para apaziguar aqueles que entendem que não são o mesmo tributo, dos que entendem que são, é aceitar a definição proposta por Hugo de Brito Machado, no sentido que todo tributo tem seu regime jurídico, contudo, alguns tributos existem em situações especiais e, assim, possuem um regime jurídico especial [10].

Talvez, seja justamente essa a situação da CBS e do IBS no cenário tributário. Independentemente de serem classificados, ou não, como mesmo tributo, devemos aceitar que existe um regime jurídico especial a eles aplicável, e que precisa considerar que a Constituição determina que diversas regras devem ser iguais para os dois tributos, em que pese desafiarem competências tributárias diversas.

De todo modo, a quase identidade entre os regimes jurídicos da CBS e do IBS, certamente, auxilia na aplicação dos tributos [11], a dificuldade posta diz respeito à definição dos órgãos competentes para julgamento das lides a eles relacionadas, já que a Constituição prevê a competência federal do CBS e a competência compartilhada entre estados, DF e municípios para o IBS, sem que exista, na estrutura atual, qualquer órgão do Poder Judiciário com competência para julgamento simetricamente alinhada às competências tributárias das novas exações. Nas palavras do professor Renato Lopes Becho, “o ponto sensível reside na potencial dissonância entre normas infralegais e administrativas, v.g., e em decisões administrativas, bem como as judiciais opostas para os dos tributos” [12].

Sem dúvida, a transição para o novo modelo tributário ainda é um desafio complexo, que deve ser enfrentado com cautela diante da existência de diferentes sistemas de contencioso em níveis federal, estadual e municipal. É imprescindível que CBS e IBS tenham contenciosos harmônicos e que o novo imposto também tenha validade junto aos meios adequados de solução de conflitos. Esse, será o ponto de partida da nossa próxima reflexão, trazendo pontos de destaque na Lei Complementar nº 214, de 2025, e no Projeto de Lei Complementar nº 108, de 2024, que merecem nossa atenção frente ao novo contencioso da reforma tributária.

 


[1] MACHADO, Hugo de Brito. Curso de Direito Tributário. 42. ed. rev. e atual. São Paulo: Malheiros/JusPodivm, 2022, p. 73.

[2] MCNAUGHTON, Cristiane Pires; MCNAUGHTON, Charles Wiliam. Breves Reflexões sobre o Regime Constitucional do IBS e da CBS. In: OLIVEIRA, Ricardo Mariz de; SILVEIRA, Rodrigo Maito da (Coords.). Direito Tributário: homenagem aos 50 anos do IBDT. São Paulo: IBDT, 2024. pp. 257-271, p. 258.

[3] BECHO, Renato Lopes. A Criação do Imposto sobre Bens e Serviços (IBS) e da Contribuição sobre Bens e Serviços (CBS). In: OLIVEIRA, Ana Claudia Borges de; PURETZ, Tadeu (coords.). Coletânea 100 anos do CARF. São Paulo: NSM Editora, 2024, pp. 91-105, p. 91.

[4] SCHOUERI, Luís Eduardo. Direito Tributário. 13. ed. São Paulo: SaraivaJur, 2024, p. 155.

[5] MACHADO, Hugo de Brito. Curso de Direito Tributário. 42. ed. rev. e atual. São Paulo: Malheiros/JusPodivm, 2022, p. 65.

[6] SCHOUERI, Luís Eduardo. Direito Tributário. 13. ed. São Paulo: SaraivaJur, 2024, p. 203.

[7] SCHOUERI, Luís Eduardo. Direito Tributário. 13. ed. São Paulo: SaraivaJur, 2024, p. 155.

[8] MCNAUGHTON, Cristiane Pires; MCNAUGHTON, Charles Wiliam. Breves Reflexões sobre o Regime Constitucional do IBS e da CBS. In: OLIVEIRA, Ricardo Mariz de; SILVEIRA, Rodrigo Maito da (Coords.). Direito Tributário: homenagem aos 50 anos do IBDT. São Paulo: IBDT, 2024. pp. 257-271, p. 259.

[9] BECHO, Renato Lopes. A Criação do Imposto sobre Bens e Serviços (IBS) e da Contribuição sobre Bens e Serviços (CBS). In: OLIVEIRA, Ana Claudia Borges de; PURETZ, Tadeu (coords.). Coletânea 100 anos do CARF. São Paulo: NSM Editora, 2024, pp. 91-105, p. 94.

[10] MACHADO, Hugo de Brito. Curso de Direito Tributário. 42. ed. rev. e atual. São Paulo: Malheiros/JusPodivm, 2022, p. 73.

[11] MCNAUGHTON, Cristiane Pires; MCNAUGHTON, Charles Wiliam. Breves Reflexões sobre o Regime Constitucional do IBS e da CBS. In: OLIVEIRA, Ricardo Mariz de; SILVEIRA, Rodrigo Maito da (Coords.). Direito Tributário: homenagem aos 50 anos do IBDT. São Paulo: IBDT, 2024. pp. 257-271, p. 259.

[12] BECHO, Renato Lopes. A Criação do Imposto sobre Bens e Serviços (IBS) e da Contribuição sobre Bens e Serviços (CBS). In: OLIVEIRA, Ana Claudia Borges de; PURETZ, Tadeu (coords.). Coletânea 100 anos do CARF. São Paulo: NSM Editora, 2024, pp. 91-105, p. 103.

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Contratos de parceria entre contador, técnico de contabilidade e escritórios

No fim do mês passado, a Câmara dos Deputados informou que a respectiva Comissão de Trabalho aprovou projeto de lei que autoriza escritórios de contabilidade a celebrar contratos de parceria com contadores e técnicos em contabilidade na condição de pessoa física ou jurídica.

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Em consulta do histórico de tramitação, vislumbra-se que o PL 4.463/2021 trouxe como justificativa as mutantes relações de trabalho e o desafio de organizá-las nas atuais relações corporativas e empresariais, em busca de um método mais eficiente de desenvolvimento.

Assim, tendo em vista o entendimento do Supremo Tribunal Federal a respeito da constitucionalidade da Lei de Parcerias entre empresas de beleza e profissionais (ADI 5.625/DF), o PL tem por objetivo adaptar à atual realidade dos escritórios de contabilidade para melhor atendimento aos seus clientes e cumprimento das obrigações acessórias correlatas.

Designada a Comissão de Trabalho, o PL 736/2023 foi apensado ao PL 4.463/2021, sem apresentação de emendas aos projetos. Foi, então, apresentado substitutivo, posteriormente aprovado pela Comissão de Trabalho da Câmara.

De modo geral, o texto prevê as figuras do “escritório de contabilidade” e “profissional-parceiro”, podendo estes exercerem a atividade de “contador” e “técnico em contabilidade”, desde que devidamente registrados em seus conselhos regionais.

Centralizar pagamentos e recebimentos

O PL também estabelece que o “escritório de contabilidade” será o responsável por centralizar os pagamentos e recebimentos decorrentes das atividades de prestação de serviços de contabilidade pelo “profissional-parceiro”, bem como reterá a sua cota-parte estabelecida consensualmente no contrato, com retenção dos tributos e contribuições sociais e previdenciárias devidas pelo profissional-parceiro.

Neste ponto, entende-se que a lei atribuiu ao “escritório contábil parceiro” a responsabilidade tributária de retenção na fonte dos respectivos tributos (artigo 121, parágrafo único, inciso II, do CTN).  Porém, a cota-parte do “profissional-parceiro” não será considerada para o cômputo da receita bruta do “escritório contábil”, ainda que adotado o sistema de emissão de nota fiscal unificada ao consumidor.

O substitutivo apresentado manteve a previsão do texto original de que as responsabilidades e obrigações decorrentes da constituição do escritório de contabilidade continuarão sendo de única e exclusiva responsabilidade do “escritório contábil parceiro”, não lhe sendo transferido o risco do negócio, o que, de forma alguma, se confunde com a responsabilidade na execução do serviço em si aos clientes, hipótese na qual lei expressamente estabeleceu o regime de responsabilidade solidária.

Uma previsão legal (e que vai de afronta à justificativa do PL) é a obrigatoriedade de que o contrato de parceria seja homologado pelo sindicato da categoria de profissional e, na ausência, pelo órgão local competente do Ministério do Trabalho e Emprego.

Soma-se, ainda, a previsão do artigo 3º ao estabelecer hipóteses expressas de reconhecimento de vínculo de emprego especialmente quando “I- não existir contrato de parceria formalizado na forma descrita nesta Lei”, em que pese o reconhecimento do vínculo de emprego dependa de declaração judicial pela Justiça do Trabalho e do preenchimento das hipóteses previstas em lei (artigo 2º e 3º da CLT).

Regulamentação para fiscalização

Ainda que a positivação não fosse expressamente necessária (por se tratar de imperativo lógico decorrente da livre iniciativa e do posicionamento do STF acerca da possibilidade de coexistência de outras formas de associação para o desempenho do trabalho que não unicamente a relação de emprego — vide ratio decidendi firmada no julgamento da ADPF 324/DF, ADI 5625/DF e ADC 48/DF), a exigência contida no artigo 1º, §7º do PL revela o seu real intuito: regulamentar aquilo que dispensa regulamentação para notória fiscalização, sob a justificativa de trazer segurança jurídica ao já tão conhecido contrato de parceria.

Se se permite a celebração de contratos de parceria que possuem o intuito de que as partes, no exercício máximo de suas autonomias de vontade, estabeleçam entre si uma verdadeira relação de coparticipação para a execução de um determinado serviço, razão não há exigir que o seja homologado por sindicato, quiçá pelo Ministério do Trabalho e Emprego.

Se a ideia do legislador com a homologação do contrato é estabelecer a publicidade dos contratos de parceria celebrados entre “escritório contábil parceiro” e “profissional-parceiro”, bem como eventual controle formal das cláusulas contratuais, que o contrato seja averbado à margem do contrato de sociedade da pessoa jurídica perante o respectivo órgão de classe, impedindo-se a averbação de contratos que possuam os requisitos do vínculo de emprego.

Por fim, o substitutivo apresentado alterou significativamente a redação do artigo 4º, ao prever que “os conflitos provenientes do descumprimento do contrato de parceria de que trata a presente Lei serão de competência da Justiça do Trabalho e dirimidos no foro do profissional-parceiro, podendo-se fazer uso da mediação e da arbitragem técnica”.

Reconhecimento da parceria

A antiga redação nos PL’s originariamente apresentados permitia às partes estabelecerem o foro para dirimir eventuais conflitos, a reconhecer o caráter civil do contrato de parceria e justificar a incoerência de homologação em sindicato ou órgão vinculado ao Ministério do Trabalho.

Já a nova redação apresentada, além de trazer mais um entrave à celebração do referido contrato, atribui de forma ampla à Justiça do Trabalho a competência para a análise de contratos cíveis. O legislador não definiu o que se entenderia por “descumprimento de contrato”.

Portanto, da análise que se extrai, o descumprimento decorrente de uma obrigação contratualmente estabelecida ou falta de repasse do valor estabelecido entre as partes submeteria à análise da Justiça do Trabalho, em que pese não se esteja discutindo o reconhecimento de vínculo de emprego. Flagrante a inconstitucionalidade (artigo 114 da Constituição).

Para além, a previsão de submeter eventuais controvérsias à Justiça do Trabalho também se constata de irrelevante normativo, considerando que independentemente do arranjo contratual firmado, qualquer parte pode submeter à Justiça do Trabalho pleito de reconhecimento de vínculo de emprego, ultrapassando, assim, a questão de competência, e partindo à análise do mérito da controvérsia.

Mais confusão ainda se estabelece com a previsão de se permitir a utilização da arbitragem técnica, ao mesmo tempo em que se firma que a competência será da Justiça do Trabalho para dirimir eventuais controvérsias.

O texto substitutivo ainda será analisado por outras Comissões internas da Câmara de Deputados, especialmente de Constituição e Justiça, para posterior aprovação pela Câmara e Senado, nas quais se espera que os pontos acima trazidos sejam levados à discussão para melhor coerência com o atual ordenamento jurídico, sem representar um retrocesso e desestímulo à formulação de novos arranjos contratuais.

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