Uma doação confiscatória na reforma do Código Civil?

Continuando a análise das propostas da reforma do Código Civil para a doação [1], passo agora a mais algumas normas. Neste artigo, quero chamar a atenção para três problemas estritamente jurídico-dogmáticos: o incorreto uso da categoria jurídica da ineficácia na doação inoficiosa, uma insólita proposta de doação confiscatória e a imprecisão do termo ajuda patrimonial nas hipóteses de revogação da doação.

Doação inoficiosa

O artigo 549 foi completamente alterado. A doação inoficiosa segue vedada, mas o conceito que instrumentaliza essa proibição foi modificado. O caput atual dispõe que “[n]ula é também a doação quanto à parte que exceder à de que o doador, no momento da liberdade, poderia dispor em testamento”. A Reforma propõe uma alteração no início desse artigo, que rezaria: “[s]alvo na hipótese do art. 544, é ineficaz a doação (…)”. Diretamente ligada a essa alteração está a inclusão de um § 3º, cuja redação proposta é a seguinte: “[n]ão sendo proposta a ação de reconhecimento da ineficácia no prazo de cinco anos, a doação considerar-se-á eficaz desde a data em que foi realizada”. Isto é, trocou-se a noção de nulidade pela de ineficácia. Como o nulo jamais poderia convalescer ex artigo 169, CC, a categoria da ineficácia deve ter parecido à comissão um instrumento apto a instrumentalizar esse resultado.

No entanto, os conceitos dogmáticos não podem ser instrumentalizados de tal maneira. Se a finalidade era estabelecer um limite temporal, quadraria melhor utilizar a noção de anulabilidade, prevendo-se ou a aplicação do prazo decadencial geral, ou a criação de prazo específico. De fato, as anulabilidades têm de ser alegadas dentro de determinado prazo, sob pena de convalidação. Já o regime da ineficácia é muito distinto e não tem, entre seus princípios, a noção de aquisição geral de eficácia pelo decurso do tempo. A noção mesma de uma ineficácia cuja declaração se sujeita a um prazo causa estranheza: não se estaria próximo a uma verdadeira desconstituição? A ineficácia se converteria num direito formativo extintivo?

De fato, a ineficácia é incompatível com a situação. Como regra geral, a ineficácia produz-se inter partes, de modo que, beneficiado pela ineficácia seria apenas o autor da ação declaratória: trata-se de situação semelhante à da fraude à execução, cujo reconhecimento, importando em ineficácia, não faz com o que bem retorne ao patrimônio do executado, mas apenas declara a ineficácia da disposição em face de determinado credor. Esse resultado seria plenamente insatisfatório por duas razões. Em primeiro lugar, privilegiaria um herdeiro em detrimento de outro, desequilibrando os quinhões. Em segundo lugar, constituiria previsão arriscada para os credores. Afinal, “[s]e, somando-se ao que deixou o falecido o em que importaram as doações, há menos do que a soma das dívidas, legitimados ativos também são os credores, uma vez que no Código Civil [de 1916], artigo 1.176, se concebeu a regra jurídica como de nulidade” [2]. Esse esclarecimento de Pontes de Miranda é fundamental: a nulidade, como impede – perante todos – que o bem saia juridicamente do patrimônio do doador, é a categoria correta para tutelar não apenas o conjunto de herdeiros, mas também terceiros credores que eventualmente tenham de declarar a nulidade parcial da doação inoficiosa. É preciso ter extremo cuidado ao trocar categorias conceituais, pois nem todos os resultados podem ser concebidos desde logo.

Passando à aplicação prática de tal princípio, ela causa diversos problemas. Em primeiro lugar, antes da abertura da sucessão, a legitimação como herdeiro é mera expectativa de direito, podendo-se alterar a depender de quando sobrevier a morte para cada pessoa. Em verdade, não há herdeiro de pessoa viva: a legitimidade para suceder apura-se, em regra, no momento da abertura da sucessão. Assim, a legitimidade não seria verdadeiramente atribuída ao herdeiro, mas ao herdeiro presuntivo. A este caberia atuar em benefício dos herdeiros (efetivos) em geral, ainda não determinados; já sua inércia poderia também prejudicar outros herdeiros que, uma vez passado o prazo quinquenal, não teriam mais instrumento para questionar a doação.

O segundo problema prático está em apurar, durante a vida do doador, a inoficiosidade da doação: por vezes, nem mesmo o doador tem plena consciência do montante do seu patrimônio para avaliar a inoficiosidade. Imagine-se, então, que um herdeiro – e, de ordinário, em nítido conflito com o doador – teria de calcular o valor do patrimônio e provar a inoficiosidade em juízo. Considerando que grande parte da documentação dos bens que fazem parte do patrimônio não é pública, e que nem todos os bens permitem fácil estimação pecuniária, qual a probabilidade desse desenho institucional funcionar para além de patrimônios muito limitados, cujos bens sejam facilmente avaliáveis? É por isso que outras normas – como o artigo 550, CC, que trata da doação do cônjuge adúltero ao seu cúmplice – fazem iniciar o prazo de anulabilidade após a dissolução da sociedade conjugal, o que abrange também a morte do autor da herança. Caso se aplicasse a anulabilidade ao caso, conviria ser este o termo inicial do prazo decadencial.

A reforma propõe ainda a inclusão dos §§ 1º e 2º. O § 1º receberia a seguinte redação: “[o] cálculo da parte a ser restituída considerará o valor nominal do excesso ao tempo da liberalidade, corrigido monetariamente até a data da restituição, ainda que o objeto da doação não tenha sido dinheiro”. Já o § 2º teria a seguinte redação: “[e]m casos de doações realizadas de forma sucessiva, o excesso levará em conta todas as liberalidades efetuadas”.

O § 2º traz norma jurídica interessante, pois resolve dúvidas práticas embasadas em estudos doutrinários anteriores [3]. Já o § 1º mostra alguns problemas. Em primeiro lugar, não é preciso explicitar a necessidade de correção monetária, uma vez que, sendo a pretensão aplicável ao caso a do enriquecimento injustificado [4], essa previsão está explícita no artigo 884, parte final, CC. Em segundo lugar, é evidente que a disposição deve se aplicar ainda que a doação não tenha dinheiro por objeto, uma vez que a estimação pecuniária é a forma de avaliação comum a todos os objetos patrimoniais por definição.

Mas há algo mais grave: ao regular o que deve ser devolvido, a norma proposta toma posição a respeito do objeto do enriquecimento injustificado, que não é matéria pacífica no direito brasileiro. No direito estrangeiro, questiona-se se o objeto da pretensão de enriquecimento deve consistir na atribuição realizada, na reversão do efetivo enriquecimento ao patrimônio do donatário, ou em critério misto [5]. Não me parece prudente tomar partido dessa questão sem estudos doutrinários prévios de maior envergadura.

Expropriação confiscatória

O artigo 553, caput, CC, prevê três espécies de doação com encargo, conforme o interesse em sua realização: (a) do doador; (b) de terceiro; (c) do público em geral. Em todos esses casos, pela regulação atual, o donatário é obrigado a cumprir o encargo.

A Reforma amplia essa norma, concedendo ao terceiro interessado e ao Ministério Público não apenas a possibilidade de exigir o cumprimento do encargo em benefício de terceiro e no interesse geral, respectivamente, mas também a de revogar a doação. Assim, prevê o novo § 2º: “[n]as duas últimas hipóteses do caput deste artigo, caberá a revogação da doação pelo Ministério Público ou pelo terceiro beneficiado, e o bem doado será revertido ao fundo gerido por um Conselho Federal ou por Conselhos Estaduais de que participarão necessariamente o Ministério Público e representante da comunidade, nos termos da lei”.

Essa hipótese causa estranhamento, pois o direito formativo de revogação da doação não é nem mesmo exercitável pelos herdeiros, a não ser que continuem na ação já ajuizada pelo doador (cf. artigo 560, CC) ou em caso de homicídio (artigo 561, CC). O que causa ainda maior estranhamento, porém, é tratar-se de uma revogação em benefício de terceiro, já que o objeto doado, após a revogação a pedido do terceiro ou do Ministério Público, não regressará ao patrimônio do doador ou de seus herdeiros, mas será destinado a um conselho estadual ou federal.

A técnica legislativa causa espécie: se o bem não voltará ao patrimônio do doador ou de seu sucessor, de revogação não se trata. Também não se trata de hipótese de desapropriação, na medida em que não há previsão de indenização, como exigido pelo artigo 5, XXIV, CF. Resta apenas categorizá-la como expropriação confiscatória, à semelhança do que se prevê no artigo 243, CF, medida extrema para o caso de bens imóveis utilizados para cultivo de plantas psicotrópicas ou de exploração de trabalho escravo. Existem, de fato, hipóteses de expropriação na legislação ordinária, como o caso dos produtos e instrumentos do crime (artigo 91, CP), mas tal espécie de confisco está implicitamente autorizada no artigo 5, XLV, CF. De fato, em ambas as espécies, a destinação é bastante clara: a União é a destinatária, ainda que, no artigo 243, CF, se explicite que ela deverá empregar os imóveis expropriados para fins de reforma agrária e de programas de habitação popular. Já a reforma se limita a cometer a administração desses bens a um Conselho, cuja caracterização nem sequer se debuxa. Além disso, não se prevê a finalidade de emprego do produto da expropriação. É preciso observar, ainda, que as outras espécies de expropriação decorrem, direta ou indiretamente, de condenação criminal ou de situações criminosas; já o descumprimento do encargo constitui mero ilícito civil.

A categoria da revogação foi indevidamente manipulada neste artigo da Reforma. A revogação constitui direito formativo extintivo, cuja titularidade é, a princípio, do doador. Exercendo-o, o doador retira a vox [6], isto é, a declaração jurídico-negocial, com eficácia ex tunc, e, com isso, perde-se a causa jurídica que sustentava a atribuição que ele fizera ao donatário. Por essa razão, não há uma relação de liquidação após a revogação: o que há é apenas enriquecimento injustificado ou pretensão reivindicatória. E, no caso da primeira, não exatamente a condictio indebiti, mas a condictio ob causam finitam, já que a causa atributiva existiu, mas deixou de existir após a revogação. Como as condicções seguem a ordem da prestação [7] – realizada, por sua vez, entre doador e donatário – não há como o terceiro ser beneficiado: o bem doado tem de regressar ao patrimônio do doador, seja ele titularizado ainda pelo doador ou por seus herdeiros. Logo, uma revogação em benefício de terceiro é um contrassenso jurídico, que viola as regras estruturais de extinção dos negócios jurídicos, bem como as do enriquecimento injustificado. Na verdade, o termo “revogação” está aí apenas como eufemismo: o que há, de fato, é expropriação confiscatória.

Nesse sentido, o regime de execução do encargo torna-se excessivamente rigoroso com a reforma. Na hipótese do interesse ser de terceiro, a previsão carece mesmo de sentido: qual o interesse que o terceiro teria em pedir a revogação da doação, se o bem doado será destinado a um Conselho de que ele nem sequer participará? Haveria muitas outras formas, mais convenientes e eficazes, do que a previsão da expropriação confiscatória – que constitui, a bem da verdade, a forma mais radical para lidar com ilícitos relativos à propriedade. É o caso, por exemplo, da execução específica por meio de astreintes, da previsão de indenização por perdas e danos pela inexecução do encargo ou, mais radicalmente, da execução manu militari dos encargos em que tal espécie couber.

Em conclusão, as alterações propostas para o artigo 553, CC, geram uma espécie de expropriação confiscatória de constitucionalidade bastante duvidosa, sendo melhor manter a previsão genérica do atual artigo 562, CC, que concede ao doador a revogação da doação por inexecução do encargo. Além disso, o conceito de revogação não se presta à intenção da previsão normativa da reforma.

Ajuda patrimonial

O artigo 557, CC, prevê as hipóteses de revogação por ingratidão. A formulação legislativa atualmente vigente implica que as hipóteses de ingratidão são típicas. No entanto, a reforma prevê antepor ao texto atual a seguinte oração: “[e]ntre outras hipóteses de especial gravidade (…)”, explicitando que os fundamentos de revogação passam a constar de rol aberto.

Essa alteração, por si só, já causa estranhamento. Se as razões para revogação são tão graves, como não é possível prevê-las? Aqui se nota mais um problemático aspecto da reforma: o excessivo papel concedido à concretização judicial das hipóteses normativas. Especialmente em casos graves, como a perda de um direito, é conveniente que as hipóteses venham elencadas na lei. Há também falta de sistematicidade: a alteração do inciso II – adicionando que a ofensa física pode se voltar “(…) contra algum membro de sua família” é desnecessária, pois prevista já no artigo 558, CC.

No entanto, o que causa maior estranheza é o conceito empregado no inciso IV: “ajuda patrimonial”. Este conceito visa a substituir a noção de “alimentos”. Aqui há mais um traço comum da Reforma: a substituição de um conceito dogmático com grande densidade por outro sem nenhuma densidade dogmática. Afinal, o que pode ser considerado “ajuda patrimonial”? Se o doador pedir dinheiro mutuado ao donatário, trata-se de ajuda patrimonial? E, se pedir para morar gratuitamente em imóvel desocupado do donatário, o comodato seria ajuda patrimonial? Em rigor, a resposta positiva seria admissível, na medida em que, em ambos os casos, o patrimônio do doador ou aumenta, ou deixa de se reduzir mesmo recebendo uma benesse. Parece, porém, excessivo permitir a revogação da doação diante da negativa do donatário em aceitar a conclusão de tais “contratos”, se é que assim poderiam ser chamados diante da ameaça de revogação em caso de negativa. Já o conceito de alimentos, forjado no binômio possibilidade e necessidade, é muito mais adequado, pois permite ponderar judiciosamente a situação de ambas as partes envolvidas. Com a troca, não apenas não se ganha nada, mas, em verdade, se perde a clareza conceitual.


[1] METTLACH, J. C. A doação na reforma do Código Civil. Conjur, 30/04/2025. Acesso aqui.

[2] PONTES DE MIRANDA, F. C. Tratado de Direito Privado. Vol. XLVI. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2012, p. 330.

[3] Quanto ao § 2º, cf. PONTES DE MIRANDA, F. C., Tratado de Direito Privado. Vol. XLVI. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2012, p. 329.

[4] Emprego o termo enriquecimento injustificado como gênero, abrangendo os capítulos do pagamento indevido e do enriquecimento sem causa, e trato-os como concretizações do mesmo instituto jurídico.

[5] Para um panorama geral, cf. REUTER, Dieter; MARTINEK, Michael. Ungerechtfertigte Bereicherung. Tübingen: Mohr, 1983, pp. 518-20.

[6] PONTES DE MIRANDA, F. C. Tratado de Direito Privado. Vol. XXV. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2012, p. 351.

[7] WIELING, H. J. Bereicherungsrecht. 3ª ed. Berlin: Springer, 2004, pp. 89. As razões são plenamente aplicáveis ao direito brasileiro.

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Aplicação subsidiária da Lei de Recuperação Judicial nas lacunas da Lei do RCE

1. A Lei nº 14.193/2021 — Lei do Regime Centralizado de Execuções (RCE) — foi inspirada na Lei nº 11.101/05 (Lei da Recuperação Judicial), inclusive com informação legislativa de aplicação análoga de seus conceitos primários, consoante parecer da Comissão Especial do Senado Federal.

2. A máxima de ambas as legislações, nesse particular aspecto, é o prestígio aos princípios da preservação e da continuidade da empresa.

3. É natural que o Congresso Nacional não esgote a matéria em suas discussões parlamentares, pois a política nada mais é do que a arte do possível, conciliando todos os pensamentos em torno a uma necessidade social real, premente e concreta.

4. Originalmente o projeto de lei proposto pelo senador Rodrigo Pacheco não previa o regime centralizado de execuções. Todavia, na justificação da criação da norma o embrião dessa tão bem-vinda organização creditícia se fazia presente através do reconhecimento do valor econômico e cultural do desporto. A saber:

“Para além de ser um dos mais importantes fenômenos culturais-sociais deste País, o futebol revelou-se atividade econômica de grande relevância nacional: os principais clubes geram bilhões de reais em faturamento, empregam milhares de pessoas (direta e indiretamente) e movimentam verdadeiras indústrias de bens de consumo e prestação de serviços.

(…)

É preciso, portanto, reconhecer a necessidade de se promover uma verdadeira transformação do regime de tutela do futebol no Brasil, a fim de possibilitar a recuperação da atividade futebolística, aproximando-o dos exemplos bem-sucedidos que se verificaram em países como Alemanha, Portugal e Espanha.”

5. No parecer lavrado pelas mãos do deputado federal Fred Costa, relator do emendado projeto de Lei nº 5.516/2019, o plenário da Comissão Especial assim bem pontuou sobre a inspiração da Lei da S.A.F. na Lei de Recuperação Judicial, com especial ênfase à criação do Regime Centralizado de Execuções:

“Considero meritório e oportuno o projeto ora examinado, tendo em vista que o futebol brasileiro há muito enfrenta desafios com a gestão pouco profissional dos clubes. O formato associativo, predominante na atualidade, não viabiliza um modelo de governança por meio do qual os dirigentes possam ser responsabilizados por suas gestões, além de limitar as formas de financiamento junto ao público, não viabilizar o acesso aos institutos da recuperação judicial e extrajudicial e carecer de um sistema legal de transparência.

(…)

Como forma de solucionar os problemas acima mencionados, o PL 5.516, de 2019, propõe a criação da Sociedade Anônima do Futebol (SAF), um formato de sociedade anônima adaptado às peculiaridades do setor esportivo em que inseridas, as quais serão regidas subsidiariamente pela Lei n. 6.404, de 1976. O PL cria ainda o Regime Centralizado de Execuções, como modo alternativo para pagamento de obrigações pelo clube, regulamento o licenciamento privado das SAF via emissão de debênture-fut, e institui o regime de Tributação Específica do Futebol (TEF).

(…)

Como forma de endereçar a atual crise financeira vivida pelos clubes e a restrição legal de acesso das associações aos institutos recuperacionais da Lei n. 11.101, de 2005, o PL expressamente permite que os clubes escolham por efetuar o pagamento de suas obrigações seja pela recuperação judicial ou extrajudicial seja pelo concurso de credores, por intermédio do Regime Centralizado de Execuções.

5. Esse parecer concluiu pela constitucionalidade, juridicidade e técnica legislativa, acenando positivamente para a aplicação subsidiária da Lei de Recuperação Judicial à Lei do RCE.

6. Prevendo, outrossim, que dessa dissonância haveria lacunas a serem preenchidas, o artigo 4º do Decreto 4.657/42 tratou de dispor que “Quando a lei for omissa, o juiz decidirá o caso de acordo com a analogia, os costumes e os princípios gerais de direito”.

8. De acordo com Serpa Lopes (Curso de direito civil, Rio: Freitas Bastos, 1998, v.I, p.135) “quando a lei não fez distinção o intérprete não deve fazê-la (ubi lex non distinguit nec nos distinguere debemus). Não deve o intérprete criar, na interpretação, distinções que não figuram na lei“.

9. Desta feita, evidencia-se, sem a menor sobra de dúvidas, que na ausência de normas comezinhas sobre o Regime Centralizado de Execuções, caberá o preenchimento desses espaços pela recuperação judicial.

10. É razoável que a Lei do RCE se servirá – mutatis mutandis – no que couber, do arcabouço interpretativo jurisprudencial sobre a Lei da Recuperação Judicial, consoante fixado no parecer da Comissão Especial do Senado que deu azo à conclusão positiva do então projeto de lei.

11. O objetivo primordial da Lei do RCE foi o de outorgar à deliberação das entidades de prática desportiva a construção das condições infraestruturais que lhes permitissem tratar de seus passivos e prover um ambiente seguro de negócios para constituição de uma Sociedade Anônima do Futebol (SAF) a investidores interessados no principal desporto nacional.

12. A blindagem patrimonial prevista no artigo 23 da Lei do RCE e no inciso I, do artigo 6º da Lei da Recuperação Judicial exsurge justamente do princípio da preservação da empresa.

13. Além disso, o Regime Centralizado de Execuções tem por escopo organizar os credores em fila, por ordem preferencial, excluídos os créditos extraconcursais, evitando, outrossim, a indesejável paralisação das atividades pelas mãos da asfixia financeira.

14. A previsão de um plano de pagamento de credores (artigo 16 da Lei do RCE) guarda semelhanças com o plano de recuperação judicial (artigo 53 da Lei da Recuperação Judicial), a saber:

Plano de Pagamento de Credores Plano de Recuperação Judicial
I. Balanço patrimonial; I. Avaliação dos bens e ativos do devedor, subscrito por profissional legalmente habilitado ou empresa especializada;
II. Demonstrações contábeis;
III. Obrigações em fase de execução;
IV. Estimativa auditada das dívidas ainda em fase de conhecimento; II. Laudo econômico-financeiro;
V. Fluxo de caixa e a sua projeção; III. Demonstração de sua viabilidade econômica;
VI. Termo de compromisso de controle orçamentário
VII. Ordem da fila de credores com seus respectivos valores individualizados e atualizados;
VIII. Pagamentos efetuados no período;
IX. Estabelecimento do plano de pagamento de forma diversa IV. Discriminação pormenorizada dos meios de recuperação a ser empregados

15. As semelhanças não param por aí. A ordenação do pagamento no Regime Centralizado de Execuções (artigo17 da do RCE) muito se parece com a classe de credores (artigo 41 da Lei da Recuperação Judicial).

Ordem de Credores Classe de Credores
I. Preferência de créditos trabalhistas; I. Titulares de créditos laborais;
II. Idosos; II. Titulares de créditos com garantia real;
III. Pessoas com doenças graves; III. Titulares de créditos quirografários, com privilégio especial, com privilégio geral ou subordinados;
IV. Crédito inferior a 60 salários mínimos; IV. Titulares de créditos enquadrados como microempresa ou empresa de pequeno porte;
V. Gestantes;
VI. Vítimas de acidentes de trabalho; V. Crédito decorrente de acidente do trabalho
VII. Acordo com redução de 30% da dívida;
VIII. Antiguidade

16. Desde a proposta até a sanção da Lei do RCE foi clara a intenção do parlamento brasileiro em preservar as entidades de prática desportiva, provendo-lhe de meios e instrumentos capazes de gerar uma verdadeira transformação social e adequação a uma nova realidade que se impôs no curso do tempo.


Referências:

BRASIL. Decreto nº. 4.657, de 4 de setembro de 1942. Lei de Introdução às normas do Direito Brasileiro. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 9 set. 1942 – retificado em 8 out.1942 e retificado em 17 jun. 1943.

BRASIL. Lei nº 11.101, de 9 de fevereiro de 2005. Regula a recuperação judicial, a extrajudicial e a falência do empresário e da sociedade empresária. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 9 fev. 2005 – Edição extra.

BRASIL. Lei nº 14.193, de 6 de agosto de 2021. Institui a Sociedade Anônima do Futebol e dispõe sobre normas de constituição, governança, controle e transparência, meios de financiamento da atividade futebolística, tratamento dos passivos das entidades de práticas desportivas e regime tributário específico; e altera as Leis nºs 9.615, de 24 de março de 1998, e 10.406, de 10 de janeiro de 2002 (Código Civil). Diário Oficial da União, Brasília, DF, 6 out. 2021 – Edição extra e retificado no DOU de 21 out. 2021.

BRASIL. Projeto de Lei nº. 5.516/2019. Autor
Senado Federal – Rodrigo Pacheco – DEM/MG. Apresentação
15/06/2021

LOPES, Miguel Maria de Serpa. Curso de Direito Civil Civil. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1998, v. I, p. 135).

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RIFs por requisição direta: STJ fecha a porta à devassa informal

No último dia 14 de maio, a 3ª Seção do Superior Tribunal de Justiça, ao julgar os RHCs 196.150, 174.173 e o REsp 2.150.571, pôs fim à controvérsia sobre o alcance dos relatórios de inteligência financeira (RIFs). Por maioria de seis votos a três, fixou-se tese vinculante segundo a qual é inviável que o Ministério Público ou a Polícia Judiciária requisitem, sem ordem judicial, a remessa de RIFs pelo Coaf.

A decisão do STJ não apenas confirma essa tese: reafirma que, como sustentei em outra passagem nesta ConJur, o combate ao crime não pode sacrificar garantias fundamentais como o sigilo bancário, a intimidade e a ampla defesa. Práticas como a solicitação de RIFs sem autorização judicial, a ampliação indevida de escopos investigativos e a adoção de fishing expeditions colidem com os alicerces do Estado democrático de Direito, pois subvertem a presunção de inocência, vulneram a ampla defesa e contaminam de ilicitude as provas produzidas.

Ao afastar a leitura ampliativa do Tema 990 do STF — que legitima apenas o compartilhamento espontâneo —, o STJ recolocou a reserva de jurisdição no centro do controle das devassas patrimoniais e financeiras, impondo um freio jurídico à prática que, sob o rótulo de “eficiência investigativa”, vinha autorizando pescarias probatórias sem contraditório.

A corte deixou claro que o compartilhamento admitido pelo Supremo não autoriza o movimento inverso, ou seja, a requisição ativa por parte do Ministério Público ou da Polícia Judiciária. Prevaleceu a compreensão de que a eficácia estatal na repressão penal não dispensa a mediação judicial, sendo inaceitável a coleta de dados sensíveis à margem das garantias fundamentais.

Como sustentado no voto do ministro Messod Azulay, não se trata de impedir a produção da prova, mas de reafirmar que sua obtenção há de respeitar os limites constitucionais que distinguem um processo penal civilizado de experimentos inquisitoriais travestidos de modernidade.

A tese assentada é direta e enfática: “A solicitação direta de relatório de inteligência financeira pelo Ministério Público ao Coaf, sem autorização judicial, é inviável. O Tema 990 da repercussão geral não autoriza a requisição direta dos dados financeiros por órgão de persecução penal sem autorização judicial”.

O efeito é imediato e de largo alcance: a partir de agora, ambas as turmas criminais do STJ — que desde 2021 divergiam sobre a validade das requisições proativas — devem submeter-se à diretriz da 3ª Seção, reconhecendo como nulo todo RIF obtido sem prévia autorização judicial, ainda que requerido após a formalização de inquérito policial ou PIC. A decisão encerra a era dos “RIFs por encomenda” e exige, doravante, o indispensável crivo jurisdicional como condição de existência da prova.

Entre a pressão investigativa e o limite constitucional

Durante a sessão de julgamento, os representantes ministeriais defenderam que o enfrentamento ao crime organizado exige mecanismos céleres de investigação patrimonial. Invocaram, como pano de fundo, o colapso da segurança pública no Rio de Janeiro, a ocupação territorial por facções e o fenômeno da “exportação” de lideranças criminosas para outras unidades da federação. A defesa, por sua vez, evidenciou a gravidade do desvio funcional a que os RIFs vinham sendo submetidos.

Demonstrou-se que milhares de CPFs e CNPJs – até 10 mil em um único caso – foram objeto de requisição direta, sem inquérito formal, sem individualização prévia e sem qualquer controle judicial. O caso relatado de um escritório de advocacia alvo de devassa patrimonial por meio de VPI, sem sequer citação do nome em denúncia anônima, expôs o uso dos RIFs como dossiês secretos mantidos em “gavetas investigativas”. Ocultados por mais de um ano da defesa e até do próprio Ministério Público revisor, tais relatórios sustentavam investigações posteriormente legitimadas sob o pretexto de “encontro fortuito”.

A técnica foi denunciada como fraude processual sistêmica, contrariando frontalmente os postulados do devido processo legal e da paridade de armas.

Distinção entre compartilhamento e requisição

Relator da posição vencedora, o ministro Messod Azulay Neto enfatizou, com precisão didática, que o Tema 990 jamais autorizou a via inversa. O precedente do Supremo Tribunal Federal referia-se ao envio espontâneo de informações pela Unidade de Inteligência Financeira (UIF), condicionado a indícios prévios de ilicitude, à existência de procedimento formal e ao controle jurisdicional posterior. Segundo o voto condutor, não há na ordem jurídica qualquer respaldo – legal ou jurisprudencial – à requisição ativa de RIFs por órgãos de persecução penal.

Apenas o compartilhamento espontâneo foi validado pelo STF. Nas palavras do relator o art. 15 da Lei de Lavagem trata apenas do compartilhamento espontâneo. Não há autorização legal nem jurisprudencial para que o Ministério Público ou a polícia, de ofício, exijam o envio de RIFs sem prévia autorização judicial.

Ao contextualizar o cenário normativo e jurisprudencial, o ministro expôs a multiplicidade de entendimentos não apenas no âmbito das turmas do STJ, mas também entre a 1ª e a 2ª Turma do STF — um quadro de instabilidade interpretativa que tornou imperativa a fixação de uma tese unificada. Destacou ainda que, embora a Corte Especial do STJ tenha admitido, por maioria apertada, o acesso extrajudicial a dados cadastrais simples, os relatórios de inteligência financeira guardam conteúdo significativamente mais sensível, por isso submetidos a um regime de proteção qualificado. Para o relator, qualquer devassa em tal esfera exige a intervenção do Poder Judiciário como garantia indeclinável de um processo penal constitucionalmente legítimo.

Barreira contra o abuso institucional

O ministro Sebastião Reis Júnior, ao proferir voto paralelo, destacou com precisão o verdadeiro núcleo do debate: o STJ não está vedando a produção da prova — apenas exigindo que ela passe pelo crivo constitucional da autorização judicial. Em sua análise, os dados constantes nos RIFs não estão sujeitos a perecimento ou volatibilidade que justificasse qualquer alegação de urgência.

Por serem informações estáticas, não há razão legítima para dispensar a intermediação jurisdicional. Sua ponderação desarmou a narrativa fundada no apelo à segurança pública irrestrita, frequentemente usada para justificar mecanismos investigativos informais. “Ninguém está impedindo a produção da prova”, afirmou. “Estamos apenas exigindo que a produção obedeça aos limites legais.”

Ao colocar a exigência de ordem judicial como cláusula de estrutura e não de conveniência, o voto reafirma a centralidade da legalidade estrita no processo penal acusatório, impedindo que o combate ao crime se converta em uma válvula de escape institucional para práticas de exceção. Como assinalou o ministro, o respeito à reserva de jurisdição não enfraquece o Estado investigativo – ao contrário, o fortalece sob a luz do Estado de Direito.

O próprio ministro Reinaldo Soares da Fonseca, ao acompanhar a maioria, reafirmou a coerência de sua posição histórica: a reserva de jurisdição não diminui a legitimidade do Ministério Público, mas a projeta no exato lugar institucional que a Constituição lhe conferiu. Nenhum juiz — asseverou — negará acesso a dados sigilosos quando apresentados elementos mínimos de justa causa. O que se exige, portanto, não é um entrave, mas um filtro civilizatório, próprio de um processo penal que se pretenda democrático.

Em contraponto, os votos vencidos — liderados pelo ministro Og Fernandes e seguidos por Rogério Schietti e Ribeiro Dantas — sustentaram que o Superior Tribunal de Justiça não poderia reinterpretar o alcance do Tema 990, sob pena de afrontar a competência do STF. Ainda que fundamentados em premissas institucionais respeitáveis, esses votos não lograram convencer a maioria, que compreendeu ser inadmissível a omissão diante de um vácuo hermenêutico persistente, agravado por práticas reiteradas de informalidade persecutória.

Em nome da integridade do sistema acusatório, o STJ decidiu não apenas que podia, mas que devia firmar jurisprudência própria até que o STF venha a fixar entendimento definitivo.

Reafirmação do processo penal garantista

A decisão da 3ª Seção atua como verdadeiro antídoto contra a degeneração investigativa que vinha se consolidando nos bastidores da persecução penal. Sustentações orais e manifestações técnicas revelaram, de forma incontornável, que a requisição direta de RIFs havia se convertido em expediente quase automático – sem controle judicial, sem contraditório. Dados trazidos à tribuna apontaram aumento de 1.339% nos pedidos, expondo o uso desenfreado de uma ferramenta concebida para finalidades excepcionais. Transformado em braço informal da repressão estatal, o Coaf passou a alimentar uma arquitetura paralela de vigilância patrimonial, imune a qualquer controle defensivo.

Com a nova tese fixada, a equação jurídica se altera de modo estrutural: RIFs obtidos por requisição direta, mesmo após instauração de inquérito, passam a ser prova ilícita, atraindo a cláusula excludente do artigo 157 do Código de Processo Penal e comprometendo, por derivação, todos os atos subsequentes. Além disso, a prática reiterada por autoridades persecutórias, à revelia da decisão do STJ, poderá ensejar responsabilização funcional por violação do artigo 10 da LC 105/2001 e do artigo 25 da Lei de Abuso de Autoridade (Lei 13.869/2019).

Reafirma-se, assim, o compromisso com um processo penal garantista, no qual a eficácia investigativa não se constrói à custa da legalidade, da paridade de armas ou da cláusula de jurisdição.

Olimite que garante a legitimidade

Esse resultado não tolhe investigações legítimas – apenas lhes devolve o itinerário constitucional. O art. 5º, XII, da Constituição Federal, a Lei Complementar 105/2001 e o art. 3º-B, §1º, do Código de Processo Penal não são obstáculos burocráticos à persecução penal: são garantias estruturantes de um processo penal civilizado. A repressão eficaz ao crime, especialmente ao de natureza econômica e patrimonial, exige inteligência, estratégia e celeridade – mas nenhuma dessas virtudes autoriza o desprezo à reserva de jurisdição, à legalidade estrita ou ao contraditório.

Ao interditar a requisição direta de RIFs sem autorização judicial, o STJ não impõe um obstáculo arbitrário à atuação do Ministério Público ou das polícias. Pelo contrário, reforça a legitimidade de suas atribuições, submetendo-as ao controle judicial prévio, que é a moldura institucional própria de qualquer medida que atinja esferas sensíveis da intimidade financeira dos cidadãos. Não se trata de conferir privilégio a investigados, mas de garantir que, mesmo diante de investigações graves e complexas, a atuação estatal permaneça ancorada na legalidade e sujeita a controle de proporcionalidade.

Reafirma-se, assim, que a eficiência não é um valor absoluto. Quando dissociada da legalidade, converte-se em autoritarismo funcional, ainda que travestido de boa intenção. O que o julgamento da 3ª Seção expõe, com nitidez, é que a eficácia da persecução penal não pode legitimar métodos clandestinos, tampouco naturalizar práticas de exceção. Em matéria de sigilo bancário e financeiro, o controle judicial não é uma formalidade a ser superada: é a cláusula de validade, de legitimidade e de civilidade do processo penal democrático.

A decisão de 14 de maio de 2025 marca, assim, um ponto de inflexão: reequilibra a relação entre poder investigativo e garantias fundamentais, reafirma a centralidade do Judiciário no controle de medidas invasivas e devolve à dogmática processual penal a clareza que a prática vinha solapando. Ao fechar a porta da devassa informal, o STJ não enfraquece o combate ao crime – fortalece a República e o Estado democrático de Direito.

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Há rescisão indireta pela ausência de pagamento de horas extras?

Nos últimos tempos, o Tribunal Superior do Trabalho (TST) tem reafirmado o seu entendimento nos mais diversos assuntos por meio da fixação de teses vinculantes, postura essa condizente de um órgão de uniformização da jurisprudência trabalhista, cujos precedentes buscam, ao final, pacificar os conflitos ainda existentes no âmbito dos Tribunais Regionais do Trabalho, promovendo, assim, maior previsibilidade nas decisões e segurança jurídica.

Neste novo cenário, uma questão que sempre trouxe muita polêmica e debates se refere ao não pagamento das horas extras pelo empregador. Tanto isso é verdade que num levantamento realizado pelo próprio TST, identificou-se que os temas de horas extras e do intervalo intrajornada foram tidos como assuntos mais discutidos nas ações trabalhistas em 2024, sendo que dentre 513 mil processos julgados, 70.508 eram sobre horas extras [1].

À vista disso, questiona-se: se, porventura, o empregador deixar de pagar, de forma reiterada, as horas extras devidas ao trabalhador, tal fato ensejará ruptura contratual pela rescisão indireta? Qual é o posicionamento hoje da jurisprudência à luz do entendimento da Corte Superior Trabalhista?

Por certo, considerando a sensibilidade que gira em torno da matéria, bem como as recentes diretrizes traçadas pelo TST, o assunto foi indicado por você, leitor(a), para o artigo da semana, na coluna Prática Trabalhista da revista eletrônica Consultor Jurídico [2], razão pela qual agradecemos o contato.

Rescisão indireta

Do ponto de vista normativo no Brasil, o artigo 483 da CLT [3] traz as hipóteses em que o contrato de trabalho poderá ser rescindido por iniciativa do trabalhador. A propósito, a temática da falta grave do empregador e a justa causa patronal já foi abordada em outra ocasião nesta coluna [4].

Lição de especialista

Sobre o assunto, oportunos são os ensinamentos de Carlos Henrique Bezerra Leite [5]:

“Na rescisão indireta, também chamada de despedimento indireto, ocorre a extinção do contrato de trabalho por iniciativa do empregado, que tem o ônus de provar a justa causa perpetrada pelo empregador (CLT, art. 483). Nesse caso, se o empregado se desincumbir do referido ônus, terá os mesmos direitos como se a extinção fosse por iniciativa do empregador sem justa causa, inclusive, fazendo jus o empregado ao aviso prévio (CLT, art. 487, § 4º).
(…)
Pensamos, contudo, que o art. 483, d, da CLT deve ser interpretado conforme a Constituição Federal, de modo que, se for comprovada a violação, ainda que parcial, das obrigações de pagar, de fazer ou de não fazer relacionadas aos direitos fundamentais sociais do trabalhador, por exemplo, a falta ou o atraso no pagamento de salários ou do décimo terceiro, a não concessão de férias ou a ausência do recolhimento do FGTS, implicará justa causa perpetrada do empregador, o que autorizará a rescisão do contrato de trabalho pelo empregado. Afinal, nesses casos não haverá apenas a violação aos direitos previstos na lei ou no contrato como também ofensa aos direitos fundamentais insculpidos na própria Constituição da República”.

Portanto, se é verdade que o trabalhador poderá ser dispensado, por justo motivo, caso venha a praticar uma falta grave que torne insuportável a manutenção da relação contratual, de igual modo quando houver desrespeito aos termos e obrigações inerentes ao contrato de trabalho pelo empregador haverá também o término do pacto laboral por justo motivo patronal, devendo o empregado ser indenizado como se tivesse sido desligado imotivadamente.

Tese vinculante

Dito isso, a partir do julgamento do RRAg 1000642-07.2023.5.02.0086 [6] representativo da controvérsia para a reafirmação da jurisprudência do TST, a Corte Superior Trabalhista pacificou o entendimento de que, doravante, o descumprimento contratual contumaz relativo à ausência do pagamento de horas extraordinárias e a não concessão do intervalo intrajornada autoriza a rescisão indireta do contrato de trabalho, na forma do artigo 483, “d”, da CLT.

Vale dizer, a partir da nova tese vinculante (Tema 85), cuja orientação passa a ser de observância obrigatória para os demais órgãos da Justiça do Trabalho, as empresas devem ter maior atenção no cumprimento diário de suas obrigações, sob pena de arcarem com rescisões indiretas contratuais.

Ao definir a tese, o ministro relator ponderou:

“Com efeito, o artigo 483, ‘d’, da CLT faculta ao empregado, no caso de descumprimento das obrigações contratuais por parte do empregador, a rescisão indireta do contrato de trabalho. Ao fazer referência às ‘obrigações do contrato’, o mencionado dispositivo evidencia que as obrigações de empregador alcançam tanto aquelas previstas na legislação trabalhista, como na Constituição Federal. Dentre elas encontra-se a contraprestação pelo trabalho realizado, o que vai além do salário ordinário, pois, igualmente, abarca as horas extraordinárias, sejam decorrentes da prorrogação da jornada normal de trabalho, sejam oriundas do descumprimento do intervalo intrajornada.
Assim, uma vez que tal parcela integra a remuneração, a contumaz supressão do seu pagamento compromete a subsistência do empregado, configurando, pois, falta grave do empregador. Por esse motivo, a mora do empregador em relação à quitação das horas extras, inclusive decorrentes da supressão ou concessão parcial do intervalo intrajornada, autoriza a rescisão indireta do contrato de trabalho.”

No caso em exame, o recurso de revista de que trata o tema afetado para representativo de controvérsia merece ser conhecido, por violação do artigo 483, ‘d’, da CLT, já que a parte logrou demonstrar que, a despeito da comprovação da falta grave praticada pela reclamada, o TRT de origem afastou a rescisão indireta do contrato de trabalho.

Conclusão

De um lado, sabe-se que à luz da Constituição, nos termos do artigo 7º, inciso XIII, o trabalho não poderá exceder 8 horas diárias e 44 semanais, sendo facultada a compensação e redução da jornada por meio de acordo ou convenção coletiva de trabalho; lado outro, a jornada extraordinária sempre foi objeto de muita preocupação, eis que, em certas situações, esse labor excessivo coloca em risco os direitos sociais previstos na Carta Magna, v.g., saúde e lazer, em cujos casos mais graves justifica uma indenização por danos existenciais em razão da privação do descanso e do convívio familiar

Já quanto ao intervalo intrajornada, por certo que sua finalidade é justamente recompor a higidez física e mental do trabalhador, de modo a preservar a saúde e bem-estar. Por isso, a violação de tal direito configura falta grave patronal apta a ensejar o reconhecimento da rescisão indireta.

Em arremate, é importante ressaltar que as normas trabalhistas devem ser analisadas à luz da Lei Maior, preservando, assim, o respeito aos direitos e garantias fundamentais, bem como aos preceitos sociais mínimos e a dignidade do trabalhador. Por certo, o melhor cenário é evitar a submissão recorrente do trabalhador a jornadas extraordinárias, a fim de lhe propiciar uma maior qualidade de vida, mas se o labor extra tiver que ser cumprido, ao menos que seja paga a contraprestação pecuniária correspondente.


[1] Disponível aqui

[2] Se você deseja que algum tema em especial seja objeto de análise pela Coluna Prática Trabalhista da ConJur, entre em contato diretamente com os colunistas e traga sua sugestão para a próxima semana.

[3] CLT, Art. 483 – O empregado poderá considerar rescindido o contrato e pleitear a devida indenização quando: a) forem exigidos serviços superiores às suas forças, defesos por lei, contrários aos bons costumes, ou alheios ao contrato; b) for tratado pelo empregador ou por seus superiores hierárquicos com rigor excessivo; c) correr perigo manifesto de mal considerável; d) não cumprir o empregador as obrigações do contrato; e) praticar o empregador ou seus prepostos, contra ele ou pessoas de sua família, ato lesivo da honra e boa fama; f) o empregador ou seus prepostos ofenderem-no fisicamente, salvo em caso de legítima defesa, própria ou de outrem; g) o empregador reduzir o seu trabalho, sendo este por peça ou tarefa, de forma a afetar sensivelmente a importância dos salários. § 1º – O empregado poderá suspender a prestação dos serviços ou rescindir o contrato, quando tiver de desempenhar obrigações legais, incompatíveis com a continuação do serviço. § 2º – No caso de morte do empregador constituído em empresa individual, é facultado ao empregado rescindir o contrato de trabalho. § 3º – Nas hipóteses das letras “d” e “g”, poderá o empregado pleitear a rescisão de seu contrato de trabalho e o pagamento das respectivas indenizações, permanecendo ou não no serviço até final decisão do processo.

[4] Disponível aqui.

[5] Curso de Direito do Trabalho – 14. Ed. – São Paulo: SaraivaJur, 2022. Página 706/708.

[6] Disponível aqui

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Troca equivocada de termos não compromete validade da petição inicial

A 3ª Turma do Tribunal Superior do Trabalho determinou o retorno de um processo à primeira instância por entender que um erro material no pedido não inviabiliza seu julgamento.

A ação havia sido rejeitada porque o trabalhador usou a expressão “quebra de caixa” quando, na verdade, se referia a “vantagem pessoal”. Mas o erro foi sanado e, para o colegiado, não prejudicou a parte contrária de exercer seu direito de defesa.

No caso, um empregado da Caixa Econômica Federal pedia a integração de diferenças referentes à vantagem pessoal no saldo da sua previdência privada e indenização por perdas e danos decorrentes disso.

No entanto, na petição inicial, foi utilizado equivocadamente o termo “quebra de caixa”. A confusão levou o banco a alegar a inépcia da inicial, falha que impede o prosseguimento do processo.

O argumento foi aceito na primeira instância e confirmado pelo Tribunal Regional do Trabalho da 5ª Região (BA), resultando na extinção do processo sem julgamento do mérito.

Ao analisar o recurso de revista do trabalhador, o relator, ministro José Roberto Pimenta, destacou que a petição inicial continha uma causa de pedir (conjunto de fatos e fundamentos jurídicos que justificam a ação) e um pedido claros, o que afasta a alegação de inépcia.

O erro no termo utilizado foi considerado meramente material e passível de correção sem prejuízo ao contraditório e à ampla defesa.

Princípio da simplicidade

O relator ressaltou ainda que o processo do trabalho segue o princípio da simplicidade e que, em razão do chamado jus postulandi (a capacidade da própria pessoa ajuizar a ação, mesmo sem advogado), não se exige grande rigor técnico na redação da petição inicial.

A seu ver, a exigência de um formalismo excessivo prejudicou o trabalhador na busca do reconhecimento de um direito decorrente do seu contrato de trabalho.

Diante disso, o colegiado deu provimento ao recurso e determinou o retorno do processo à Vara do Trabalho de origem para que o mérito dos pedidos seja devidamente analisado.

A decisão considerou que houve violação ao artigo 840, § 1º, da Consolidação das Leis do Trabalho, que trata da forma da reclamação trabalhista, garantindo que seja analisada com menos rigidez formal. Com informações da assessoria de imprensa do TST. 

Clique aqui para ver o acórdão
Processo 157-91.2021.5.05.0027

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Medida cautelar de suspensão do exercício do mandato parlamentar: o primeiro caso

No último 30 de abril, às vésperas do feriado do Dia do Trabalho, a Mesa Diretora da Câmara dos Deputados entrou com representação em desfavor do deputado Gilvan da Federal (PL-ES), por procedimento incompatível com o decoro parlamentar. Mas diante das várias representações que já tramitaram por aquela Casa Legislativa, o que isso teria de importante?

A resposta não é óbvia, mas tem um aspecto histórico: foi o primeiro caso de aplicação do artigo 15, XXX, do Regimento Interno da Câmara dos Deputados (RICD), que trata da competência da Mesa para propor medida cautelar de suspensão do exercício do mandato parlamentar.

E o motivo desse ineditismo é patente: o dispositivo foi inserido no RICD em junho do ano passado, 2024. A propósito, a esse respeito, interessa ver como se deu sua propositura e tramitação. Lembrando que, como já mencionado em diversas ocasiões nesta coluna Fábrica de Leis, impulsionar uma proposição é algo custoso politicamente falando, necessitando de muita articulação e confluência de interesses.

Em 11/6/2024, foi apresentado o Projeto de Resolução (PRC) nº 32/2024, que alterava o “Regimento Interno da Câmara dos Deputados para dispor sobre medida cautelar de suspensão do exercício do mandato parlamentar”.

Na semana anterior à apresentação do PRC, a Câmara foi palco de diferentes ocorrências. Uma delas aconteceu durante um debate acirrado na Comissão de Direitos Humanos, Minorias e Igualdade Racial (CDHM), ocasião em que a Deputada Luiza Erundina (PSOL-SP), à época com 89 anos, teve um mal-estar e chegou a ser hospitalizada. Noutro episódio, os deputados André Janones (Avante-MG) e Nikolas Ferreira (PL-MG) discutiram no Conselho de Ética e Decoro Parlamentar tendo que ser separados pela polícia legislativa, assessores e outros parlamentares. Estes e outros incidentes provocaram manifestações de lideranças de diferentes partidos demandando limites mais rígidos diante do clima de crescente hostilidade, o que teria culminado na apresentação do PRC.

Na justificação do PRC, foi consignado que o objetivo primordial seria “prevenir a ocorrência de confrontos desproporcionalmente acirrados entre parlamentares, que, em algumas ocasiões, têm culminado inclusive em embates físicos” comprometendo “o funcionamento democrático e a imagem institucional do parlamento”, a proposta buscaria, portanto, implementar mecanismos para “coibir comportamentos agressivos e garantir que as discussões […] ocorram dentro de parâmetros aceitáveis de civilidade e respeito”.

Cronologia

Na sessão do mesmo dia, 11/6/2025, tem-se uma sequência de fatos importantes: (1) foi apresentado requerimento de urgência (artigo 155, RICD), pelo deputado Doutor Luizinho (PP-RJ), do mesmo partido do então presidente, Arthur Lira (PP-AL), subscrito pelo líder do bloco União/PP/Federação PSDB-Cidadania/PDT/Avante/Solidariedade e PRD; pelo líder da federação PT-PCdoB-PV; e pelo líder do bloco MDB/PSD/Republicanos/Podemos, representando, assim, a maioria absoluta da composição da Casa; (2) o requerimento de urgência foi aprovado, retirando a tramitação do PRC da Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania (CCJC), para onde o projeto seria encaminhado, e remetendo a matéria diretamente ao Plenário; (3) o deputado Domingos Neto (PSD-CE), corregedor da Câmara, foi designado relator da matéria no Plenário; (4) foi apresentado o parecer preliminar de Plenário pelo relator.

Originalmente, o projeto autorizava a Mesa a suspender liminarmente o mandato, um grande poder para a Mesa Diretora. Neste sentido, alguns movimentos de obstrução indicam que o PRC não era unanimidade (e.g., apresentação de requerimento de retirada de pauta, pelo PL e pelo Novo; de votação nominal da retirada de pauta, pelo Novo; de votação nominal da matéria, também pelo Novo; e de cinco destaques para emendas e para votação em separado).

Após intensas negociações, no dia seguinte, 12/6/2025 o PRC nº 32/2024 foi discutido, votado e aprovado na forma de subemenda substitutiva global (quando o relator apresenta um texto único em substituição ao originalmente apresentado, refletindo o maior consenso a que se chegou após a discussão da matéria). A votação foi quase unânime, 400 votos sim, 29 não, uma abstenção, num total de 430 votos válidos. Ato contínuo, foi aprovada a redação final; apresentado o autógrafo (documento oficial que representa a versão final do projeto aprovado e que, no caso em questão, segue para promulgação); promulgado o texto na forma da Resolução nº 11/2024, publicado no Diário da Câmara dos Deputados (DCD) no dia seguinte, 13/6/2024. Ou seja, testemunhou-se uma tramitação em tempo recorde do PRC nº 32/2024.

O texto final permite à Mesa Diretora propor a suspensão por até seis meses, por medida cautelar, do mandato de deputado federal por quebra de decoro parlamentar. A Mesa tem o prazo de cinco dias úteis do conhecimento do fato para oferecer a proposta de suspensão. A decisão deverá ser deliberada pelo Conselho de Ética e Decoro Parlamentar em até três dias úteis, com prioridade sobre demais deliberações. Diferente de outras representações, essa não passa pela CCJC. Da decisão cabe recurso ao Plenário apresentado pelo deputado acusado, no caso da decisão pela suspensão; ou pela Mesa, no caso de decisão pela não suspensão (no texto inicial, havia a previsão de recurso apresentado por um décimo dos parlamentares – 52 deputados – ou líderes que representassem esse número). O Plenário aprecia o recurso na sessão imediatamente subsequente, em votação aberta, sendo necessário o quórum qualificado de maioria absoluta (257 deputados) para manutenção da suspensão. Igualmente, caso o Conselho de Ética não decida no prazo previsto, a matéria é enviada ao Plenário, que sobre ela deliberará na sessão imediatamente subsequente, com prioridade.

Pedagogia

Ainda que a decisão em última instância seja do Plenário da Casa, cumpre mencionar que a medida, mesmo após as modificações promovidas na redação original após a discussão da matéria, concentrou poderes nas mãos da Mesa (ainda que tenha excluído a possibilidade de decisão unilateral do presidente da Câmara sobre o tema, o que acontece para outras matérias de competência da Mesa).

O efeito pedagógico imediato da aprovação da Resolução nº 11/2024 pode ser percebido observando-se um breve histórico quantitativo de representações por conduta atentatória ou incompatível com o decoro parlamentar no âmbito da Câmara dos Deputados, no horizonte recente dos últimos seis anos. Em 2019, foram 21 representações. No ano de 2020, quando foi declarada a pandemia de Covid-19, a interrupção das atividades presenciais no Legislativo e, consequentemente, o início dos trabalhos por meio do Sistema Deliberativo Remoto (tratado aqui), não foi apresentada nenhuma representação. Em 2021, os números começaram a voltar a subir, com 12 representações. Em 2022, foram 27. No ano de 2023, totalizaram 29. Entretanto, no ano de 2024, foram apenas cinco representações, todas no primeiro semestre do ano. A representação contra o deputado Gilvan da Federal é a primeira após a promulgação da Resolução nº 11/2024, e isso em quase um ano!

O pedido da suspensão cautelar do mandato do deputado Gilvan da Federal se deu por supostas ofensas à ministra das Relações Institucionais, Gleisi Hoffmann, proferidas durante reunião da Comissão de Segurança Pública e Combate ao Crime Organizado (CSPCCO), na qual havia sido convocado o ministro da Justiça e Segurança Pública, Ricardo Lewandowski, realizada em 29/4/2025.

A representação foi assinada pelo presidente da Casa, Hugo Motta (Republicanos-PB), pelo segundo vice-presidente, Elmar Nascimento (União-BA); pelo primeiro secretário, Carlos Veras (PT-PE); pelo segundo secretário, Lula da Fonte (PP-PE); e pela terceira secretária, Delegada Katarina (PSD-SE). O primeiro vice-presidente, que é do mesmo partido que Gilvan da Federal, não assinou o documento.

O desfecho, conforme o novo rito prevê, foi célere. O relator no Conselho de Ética e Decoro Parlamentar, deputado Ricardo Maia (MDB-BA), inicialmente apresentou parecer favorável à suspensão por seis meses, mas após discurso em Plenário do representado, comprometendo-se a mudar de comportamento, apresentou novo parecer sugerindo a suspensão cautelar do mandato pelo período de três meses. O parecer foi aprovado no Conselho de Ética, em 6/5/2024, por 15 votos favoráveis e quatro contrários. No mesmo dia, o despacho oficializando a suspensão cautelar foi publicado. O deputado Gilvan da Federal teria manifestado que não recorreria da decisão.

E assim parece ter chegado ao fim a primeira aplicação do artigo 15, XXX, do RICD, não em sua totalidade, uma vez que não se chegou a apresentar recurso que levaria a apreciação ao Plenário, mais ainda sim, histórica.

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Regulação no comércio exterior: até onde deve ir a liberdade contratual?

Em tempos de greve da Receita Federal e seus severos reflexos sobre o comércio exterior, mais do que os tempos de despacho e a preocupação com retenções indevidas, é comum que velhos temas voltem ao debate. É o caso, por exemplo, dos altos custos relacionados a cobranças de armazenagem, demurrage e outras taxas e despesas relacionadas.

Nosso intuito em abordar essas questões não é o de trazer conceitos, tampouco é de reacender disputas sobre a abusividade de certas cobranças. O que se busca é discutir qual seria a perspectiva mais adequada para essas questões. São eles temas de direito privado e, portanto, devem se restringir ao olhar concorrencial e contratual do Direito Marítimo e Portuário? Ou se, no fundo, trata-se de questão aduaneira que, como tal, merece um maior cuidado e limitação por parte dos órgãos governamentais?

Aduaneiro, Marítimo ou Portuário?

Oportuno distinguir, de forma breve e sucinta, as principais diferenças entre esses ramos do Direito. Afinal, eles costumam ser agrupados como disciplinas congêneres no âmbito acadêmico por terem, direta ou indiretamente, o comércio exterior como pano de fundo.

Em que pese o “cenário comum” – principalmente no Brasil, em que aproximadamente 90% do total comercializado com o exterior é escoado pela via marítima [1] – existem diferenças significativas entre essas áreas e cujo desconhecimento não apenas dificulta o aprimoramento do conteúdo técnico, mas acaba também refletindo em vácuos de poder e regulação relevantes.

Partindo-se de uma visão pragmática, cabe iniciar as distinções pelo Direito Aduaneiro, foco principal desta coluna, e que é um ramo do Direito Público que se debruça sobre as regras relativas à operacionalização e regulamentação da importação e da exportação de mercadorias, principalmente sob o ponto de vista do controle e da fiscalização das fronteiras nacionais [2].

Já o Direito Marítimo trata das normas que regem as atividades marítimas, envolvendo o transporte de mercadorias e de pessoas e todas as relações jurídicas que ocorrem nos mares e oceanos e, portanto, possui foco nas relações privadas e comerciais que ocorrem neste contexto.

Por fim, o Direito Portuário disciplina as operações que ocorrem dentro dos portos, como a gestão das atividades portuárias, o trabalho realizado nessas instalações e as atribuições dos operadores portuários.

Esses dois últimos ramos têm seu surgimento e muitas de suas premissas derivadas do Direito Público, mas se tratam de disciplinas jurídicas que se desenvolvem no mundo privado e, portanto, possuem grande proximidade com questões civis e contratuais. Talvez por isso sejam comumente chamados de “primos ricos” do Direito Aduaneiro, visto que a liberdade contratual e a existência de regulamentação menos severa fazem com que as quantias envolvidas em atividades e, consequentemente, nas disputas, costumem ser consideráveis.

Autoridades envolvidas

Em termos práticos, o que se verifica é que os temas considerados como “aduaneiros” ou diretamente relacionados à operacionalização do comércio exterior costumam ser direcionados para a competência da Aduana (RFB) ou da Secex. Por sua vez, assuntos voltados à infraestrutura e logística de comércio exterior são normalmente conduzidos por outras autoridades, com destaque para a Agência Nacional de Transportes Aquaviários (Antaq).

Essa divisão, que já vem de muito tempo, possui diversas implicações. Mais do que isso: impõe pesos e medidas completamente distintas para a condução de assuntos e políticas que deveriam, em grande parte, andarem juntas e serem abordadas com um olhar comum.

Enquanto o comércio exterior do mundo aduaneiro é discutido e gerido com vistas ao aumento da transparência e de simplificações e reduções de burocracias que tornem as operações compatíveis e previsíveis independentemente do porto de entrada ou saída em que ocorram, o comércio exterior do mundo portuário e marítimo parece possuir uma filosofia distinta.

Não queremos, de maneira nenhuma, insinuar que as autoridades que gerenciam o universo marítimo e portuário não busquem transparência e previsibilidade, assim como não podemos exaltar as autoridades aduaneiras por efetivamente promoverem e aplicarem esses relevantes princípios, já que o caminho rumo ao sucesso é longo e bastante tortuoso.

Mas é fato que o Direito Aduaneiro possui um modelo de aplicação em que as regras devem ser as mesmas para todos os envolvidos, independente de onde estejam e, com isso, tem-se (ao menos em teoria) uma base de equidade em termos de direitos e deveres de cada interveniente ou operador envolvido.

Já o Portuário e Marítimo, por serem pautados no direito privado, acabam priorizando a bandeira da liberdade contratual e da autorregulação do mercado. Além de que foram sendo construídos e revisados gradativamente ao longo das décadas, à medida que o comércio exterior e às necessidades de infraestrutura e logísticas cresciam.

O resultado dessa expansão passiva, por assim dizer, foi a utilização e a coexistência de diferentes modelos, contratos e estruturas de concessão e permissão, fazendo com que as empresas privadas envolvidas na mesma atividade, mas autorizadas em momentos diversos e por contratos específicos, nem sempre tivesses as mesmas obrigações e/ou cobrassem taxas equivalentes em suas atividades.

Essa falta de uniformidade, à longo de prazo, se tornou um problema. Visto que além dos usuários não poderem contar com os mesmos recursos e funcionalidades a depender do ponto de entrada e saída a que estivessem sujeitos, o valor a ser pago pelos serviços essenciais a serem prestados também poderia variar de forma significativa.

O caso da Antaq

Por exemplo, em 2023, a Antaq apresentou resultado de estudo que visava avaliar os custos imputados a importadores certificados no Programa Operador Econômico Autorizado (OEA) e que usufruíam do chamado despacho sobre as águas. O resultado apresentado buscou comparar os preços praticados por 9 diferentes terminais, localizados em diferentes regiões, incluindo AM, BA, PR, SP, SC, RJ e PE.

O que mais chamou a atenção foi a significativa variação dos preços praticados por esses terminais quanto à prestação de serviços análogos, relativos ao desembarque, movimentação e entrega de mercadorias desembaraçadas sobre águas. Enquanto o menor preço avaliado foi o cobrado por um terminal em Manaus, com valor de R$ 1.257,00 o maior preço identificado se deu em Santos, chegando a R$ 4.137,79. Ou seja, dentre terminais e atividades comparados pelo estudo, verificou-se uma variação de 329%.

Em que pese a existência de esforços contínuos da Antaq para buscar coibir práticas abusivas e lesivas à concorrência, existindo inclusive iniciativas em parceria com o Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade), como o Memorando de Entendimentos nº 01/2021 relativo à análise de cobrança sobre Serviços de Segregação e Entrega de Cargas (SSE), é fato que prevalece neste universo regras em prol da livre concorrência e da contratualidade, fazendo com que o lucro de concessionárias e permissionárias – altamente variável e muitas vezes arbitrário – seja um fator de impacto ao custo total da importação.

Sabe-se que o tema de concessão e permissão de serviços públicos é complexo, visto que o Estado espera que os privados assumam função pública de forma muito mais eficiente do que era feito sob a gestão governamental e tragam investimentos e modernizações para o setor, ao passo que os usuários sempre exigirão que a contraprestação seja mínima e controlada.

Trata-se de uma equação delicada, mas que somente pode ser devidamente balanceada se houver, por um lado, preocupação real com os custos envolvidos e com a necessidade de que os prestadores dos serviços sejam remunerados de forma adequada (nem menos, nem mais do que o aceitável) e que os valores cobrados não sejam abusivos ou altos o suficiente para provocarem distorções sobre os preços de importação e exportação efetivamente praticados.

Como resolver?

O discurso parece ser claro, mas e a prática? Sabemos que os problemas do comércio exterior são complexos e não cabem em um mero artigo de coluna.

Dito isso, artigos como o ora publicado podem não possuir extensão e envergadura para “terminar” um tema, mas possuem, certamente, espaço para lançar ideias e provocações que possam abrir debates sérios, relevantes e possíveis.

Na coluna de 09/08/2022, escrevi sobre Onde fica o Direito Aduaneiro na discussão sobre o THC2? e defendi que Antaq, Cade e TCU esqueciam que o tema, embora enquadrado sob o véu marítimo-portuário, possuía significativos aspectos aduaneiros e, portanto, deveria ser avaliado também sob o prisma das regras das regras da OMC, em especial, do Acordo sobre a Facilitação do Comércio (Decreto nº 9.326/2018) no que se referia a proibição de que as taxas relacionadas a importação fossem arbitrárias e não guardassem relação com o custo dos serviços efetivamente prestados.

Passados quase três anos, a sugestão de que a precificação de serviços essenciais ao comércio exterior e sobre os quais não há forma efetiva de ingerência dos usuários na negociação seja balizada pelo custo do que for efetivamente prestado ainda parece válida.

Afinal, o momento atual engloba diversas situações preocupantes: (1) a greve dos auditores da RFB, que contribui para o aumento dos casos de cobrança de demurrage e taxas extras de armazenagem; (2) a existência de mais de 20 mil ações tramitando no Poder Judiciário discutindo a abusividade do modelo vigente de sobrestadia; (3)  a validação de cobranças de demurrage que superam o próprio valor da carga transportada; e (4) o fato do governo ainda defender que não existem fundamentos sólidos para a imposição, regulamentação e monitoramento dos valores, condições e práticas relativas a esses temas[3].

Alguém já se questionou por que a Antaq é convidada para eventos de comércio exterior, aduaneiros inclusive, que vem negociando participação dentro do Programa OEA-Integrado, mas que nunca ocupou assento no Comitê Nacional de Facilitação do Comércio (Confac)? Que embora diversas agências regulatórias façam parte da lista de intervenientes do comércio exterior, como Anvisa, Anatel, Ancine e ANP e que, em tal condição, sejam chamadas a cooperar com as regras e diretrizes voltadas à facilitação do comércio, da transparência e da redução dos custos de fronteiras, isso não ocorre com a Antaq?

O que isso quer dizer?

Esses questionamentos e preocupações não são uma crítica ao modelo de gestão da Antaq e de outros órgãos envolvidos em seu universo. Sabe-se o quanto a Agência trabalha, dialoga e busca construir pontes com o setor privado em prol de um melhor ambiente regulatório – além de contar com equipe técnica e atualizada. O ponto é que isso é feito de forma completamente isolada dos demais órgãos que interferem no comércio exterior e, consequentemente, sob premissas e regras que, muitas vezes, não estão alinhadas ao que o mundo aduaneiro necessita.

Se o foco de qualquer gestão regulatória, independentemente do assunto, é garantir soluções coordenadas, transparentes e voltadas ao interesse público, torna-se indispensável garantir que todos os elos da cadeia, públicos e privados, estejam alinhados e engajados em torno de princípios, estruturas e objetivos comuns.

O que, por que e para que se regula? No caso do comércio exterior, verifica-se que essas respostas estão longe de serem respondidas de forma coerente e uníssona. E, até que todos os entes envolvidos passem se comunicar e a alinhar condutas e objetivos de forma clara, avanços concretos continuarão a ser apenas promessas.


[1] De acordo com dados oficiais do Comextat, em 2024, 88% do valor em USD comercializado com o exterior foi escoado pela via marítima, ao passo que, quando o parâmetro é peso (kg), o total movido pela via marítima sobre para 98% do total do comércio exterior.

[2] Para discussões mais profundas e versem sobre autonomia do Direito Aduaneiro, recomenda-se as seguintes obras: BASALDÚA, Ricardo. Introduccion al Derecho Aduanero. Buenos Aires: Abeledo Perrot, 2008; BERR, Claude. Introduction au Droit Douanier. Paris: Economica, 2008; PONCE, Andrés. Derecho Aduanero Mexicano. Ciudad de Mexico: ISEF, 2002; e COTTER, Juan. Derecho Aduanero y Comercio Internacional. Buenos Aires: IARA, 2018.

[3] A exemplo do que restou decidido no Acórdão ANTAQ n. 120/2023.

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Comprador de imóvel em leilão não deve pagar dívida tributária anterior

O comprador de um imóvel em leilão não é responsável por dívida tributária anterior ao arremate do bem.

Com esse entendimento, a Vara Única de Porangaba (SP) declarou inexigíveis os impostos referentes aos exercícios anteriores ao arremate de um imóvel em hasta pública. A decisão atendeu ao pedido dos compradores em um mandado de segurança.

Segundo o processo, os autores arremataram o bem em fevereiro de 2022. Embora a carta de alienação tenha sido expedida no mesmo dia, foi registrada na matrícula em setembro daquele ano.

Os compradores relatam que pediram a guia para o pagamento dos tributos devidos a partir da data da arrematação. A prefeitura informou, porém, que só emitiria uma guia com o valor total dos débitos, incluindo os exercícios de 2017 a 2022.

A administração municipal invocou o artigo 130 do Código Tributário Nacional (Lei 5.172 /1966), que prevê a sub-rogação de créditos tributários relativos a impostos sobre a propriedade do imóvel ao comprador.

Cobrança indevida

Em sua decisão, o juiz Mário Henrique Gebran Schirmer argumentou que o parágrafo único do próprio artigo 130 do CTN ampara o pedido dos compradores. O dispositivo afirma que “no caso de arrematação em hasta pública, a sub-rogação ocorre sobre o respectivo preço”, o que isenta o adquirente de responsabilidade por débitos preexistentes.

Conforme lembrou o julgador, o entendimento foi consolidado pelo Superior Tribunal de Justiça no julgamento do Tema 1.134, que fixou a seguinte tese: “Diante do disposto no art. 130, parágrafo único, do Código Tributário Nacional, é inválida a previsão em edital de leilão atribuindo responsabilidade ao arrematante pelos débitos tributários que já incidiam sobre o imóvel na data de sua alienação”.

“Portanto, assiste razão ao impetrante, na medida em que o adquirente não pode ser responsabilizado pelo pagamento dos débitos tributários relativos a fatos imponíveis ocorridos em momento anterior à realização da hasta pública”, escreveu o julgador.

Os advogados Paulo Roberto Athie Piccelli e Alessandra Kawamura, do escritório Paulo Piccelli e Advogados Associados, representaram os compradores do imóvel.

Clique aqui para ler a decisão
Processo 1000971-76.2024.8.26.0470

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Declaração Universal dos Direitos da Humanidade: mudanças climáticas e chamado mudança

Homem passando diante de termômetro de rua indicando temperatura de 40 graus

Paradoxo na civilização: o estado de emergência climática

O mundo atual foi tomado pela mobilização contínua dos termos alarme, urgência, exceção, emergência. Este conjunto de termos é seguido por um outro conjunto de termos: perigo, risco, extremo, epidemia, calamidade, enchente, catástrofe. Aparentemente, está-se diante de um grupo de palavras em circulação no discurso cotidiano. Mas, e o que vem a seguir? Que consequências delas se pode extrair?

Ora, um outro conjunto de palavras: fome, mortes, migrações forçadas, refugiados climáticos. Enfim, diante deste dicionário de termos (da crise climática) e de uma gramática do tempo (da história do presente), forma-se a linguagem e a equação dos de nossos dias. Está-se diante de um conjunto de fatores que esgotam as possibilidades de saída, diante do ponto-de-não-retorno em que nos encontramos. Isto já deveria ter sido suficiente para criar o alarme e, para além dele, tomarem-se as medidas necessárias. O tema tem chamado a atenção, pelas situações extremas enfrentadas pela população e, em artigo recente, o filósofo Vladimir Safatle defendeu a ideia de se decretar um Estado de emergência climática [1].

A ameaça que surge no horizonte (e, não se trata mais de um horizonte distante, mas do horizonte do agora) tem a característica de fazer soar a sirene, na medida em que torna a exceção (catástrofe como acontecimento que escapa ao ordinário) algo duradouro (permanente, constante) [2] e, exatamente por isso, desastroso à capacidade humana de reorganização. Aliás, a qualidade dos eventos excepcionais é exatamente esta, qual seja, o efeito de surpresa provocado pelo caráter não controlado, não previsível e de consequências arriscadas. De certa forma, as “trombetas escatológicas” já soaram e a humanidade não escutou, tendo-se passado a época dos paliativos e medidas de longo prazo. A questão já está posta para o presente (e nem concerne mais, apenas, às futuras gerações).

É por isso que o etnólogo francês Bruno Latour, em sua obra Diante de Gaia, nos convoca a aprender a ouvir, pois o apelo não é desmedido e nem deve ser em vão [3]. O fato é que, debruçados sobre o tempo presente, deveríamos reconhecer que algo deu errado em nossa concepção “civilizatória“. Nada disso é novidade, pois o ambientalismo já vem chamando a atenção para estes riscos desde os anos 1970. A invocação constante do termo “Antropoceno” designa um conjunto de impactos humanos sobre o planeta que não devem ser negligenciados para uma análise mais detida da questão [4]. Em poucas palavras, a transição da ‘civilização do carbono’ a uma ‘civilização de economia verde’ depende de uma severa reversão do estado avançado em que se encontra a degradação ambiental em todo o mundo.

Esgotamento da natureza e os riscos à humanidade

A questão chama a atenção para o papel da reflexão filosófica em tempos de eventos extremos. A equação arriscada do presente aconselha a uma revisão crítica, profunda e consciente — para a qual, através da ideia de sustentabilidade, o filósofo Leonardo Boff já vem chamando há tempos [5] — de qual é, e de qual tem sido, a nossa relação com a natureza, de qual lugar lhe destinamos, de como a abordamos e de que forma temos retribuído à generosidade com a qual ela nos abrigou durante séculos. Se a tudo que contorna o homem se deve chamar (simplesmente) de coisa, então, tudo o que circunda o homem foi tornado (à imagem e semelhança do mercado) objeto, e é exatamente esta a visão de mundo a ser alterada. Impõe-se pensar que humanos e não-humanos formam uma unidade de vida, onde se um sofre, os demais também sofrem [6].

Mudanças climáticas e o chamado à mudança

As mudanças climáticas vieram para ficar e, com seus impactos, elas alteram tudo. Elas são capazes de colapsar a ordem estabelecida. De fato, não é mais possível continuar a insistir no mesmo modelo. A lógica continuísta do sistema econômico insiste num modelo falido e desastroso, na medida em que exploratório e predatório. Os limites planetários já foram rompidos, e, agora, urge reconhecer que a árdua tarefa de reparação, proteção e cuidado demandará esforços significativos para produzir efeitos concretos (de curto, médio e longo prazo).

Assim, as mudanças climáticas contêm em si uma mensagem, qual seja, o chamado à mudança. O chamado à mudança envolve: 1) mudança de consciência; 2) mudança de concepção; 3) mudança de atitude; 4) mudança de políticas; v.) mudanças econômicas. Nestes termos, a mudança hoje não é uma questão de posição de mundo, ideologia política, ou ainda, de opção moral. Antes, ela deve ser capaz de conclamar a todo(a)s por algo de interesse comum. Sem mudança não há futuro possível! A proteção da natureza é hoje a (própria) proteção do homem, na forma da proteção às presentes gerações e, também, às futuras gerações [7].

Palavra de ordem do momento: desaquecimento ou barbárie

imperativo categórico kantiano de nosso tempo não é outro, senão: “Age de modo a preservar o meio ambiente para garantir a sobrevida planetária da humanidade!”. Trata-se de um imperativo que relaciona o eu ao outro, inequivocamente. É isto, ou barbárie. Mais ainda, ao acompanhar o pensamento da filósofa francesa Corine Pelluchon, é para dizer que a palavra de ordem destes tempos é: “Reparemos o mundo!” [8].

Isto significa que não é necessário aguardar o retorno a um estado de natureza hobbesiano — o que implicaria a guerra de todos contra todos (homo homini lupus) — para ter consciente que diante de recursos escassos e condições limítrofes de sobrevivência, a guerra generalizada seria o tônus da coexistência planetária.

A escassez de alimentos, os prejuízos na agricultura, o desaparecimento de espécies e a perda da subsistência para comunidades tradicionais implicam num risco exasperado para a humanidade. Sem nenhum exagero, os dados da Acnur apontam que dos 120 milhões de deslocados forçados do mundo, ¾ são de pessoas que vivem em países atingidos por fortes consequências decorrentes das mudanças climáticas [9].

Ações globais, esforços concertados, mudanças estruturais e políticas públicas são necessárias, devem estar integradas e são de implementação imediata, para que se possa (ao menos) minorar os efeitos daquilo que já está em curso no mundo. De toda forma, torna-se urgente que um paradigma normativo seja votado pela ONU para representar o locus simbólico desta nova fronteira de luta pelo direito e, também, para apontar no sentido de um consenso global sobrea temática, manifestação de uma baliza normativa comum a todos os povos.

Teor normativo da Declaração e a economia verde

Atualmente, o paradigma normativo que pode servir de baliza normativa comum é a Declaração Universal dos Direitos da Humanidade (Déclaration Universelle des Droits de l´Humanité – Paris, 2015). No dia 13 de maio de 2025 (Genebra – Palácio das Nações Unidas), celebrou-se a data em que a Declaração completou 10 anos de existência (2015-2025), tendo sido confeccionada por ocasião da COP 2015, realizada em Paris (França).

O evento celebrativo tem sentido ambíguo, ao menos do ponto de vista jurídico. E isso porque, de um lado, enaltece a sua existência como intenção normativa, mas, de outro lado, cria um ambiente de pressão por sua adoção pela ONU, pois passados 10 anos, luta-se (ainda) por sua transformação num documento que confere complementação e atualidade à Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948), agora sob os desafios diretos das mudanças climáticas.

Em sua tessitura enunciativa, a Declaração Universal dos Direitos da Humanidade está composta por quatro princípios, seis direitos e cinco deveres. Ela inaugura uma visão integrativa entre humanos e não-humanos, em seu artigo 5º [10]. A sua proposta geral está voltada para o estímulo a uma economia verde, de baixo carbono e que valorize a preservação ambiental, o replantio e a conservação dos ecossistemas da biosfera, conectando os interesses das presentes e futuras gerações, bem como as diversas formas de vida que coexistem no planeta. Em verdade, ela é um convite à renovação da esperança em torno da preservação da vida e da integração das diversas formas de vida num único espírito de fraternidade universal. O nosso dever primeiro é o de confirmar a sua importância e suportar a sua aprovação como sendo o documento jurídico símbolo de nossa era.


Bibliografia

ACNUR. Sem escapatória: na linha de frente das mudanças climáticas, conflitos e deslocamento forçado. Novembro, 2024. Disponível em https://www.acnur.org/br/media/sem-escapatoria-na-linha-de-frente-das-mudancas-climaticas-conflitos-e-deslocamento-forcado. Consultado em 28.04.2025.

AGAMBEN, Giorgio. Estado de exceção. Tradução de Iraci D. Poleti. São Paulo: Boitempo, 2004.

ANGUS, Ian. Enfrentando o antropoceno: capitalismo fóssil e a crise do sistema terrestre. Trad. Glenda Vincenzi e Pedro Davoglio. São Paulo: Boitempo, 2023.

BOFF, Leonardo. Sustentabilidade. Petrópolis: Vozes, 2012.

COOKE, Maeve, Reenvisioning freedom : human agency in times of ecological disaster, in Constellations, London, Sage, 30, 2023, p. 119-127.

GORDILHO, Heron José de Santana. Direito ambiental pós-moderno. Curitiba: Juruá, 2009.

KRENAK, Ailton, Ecologia política, in Ethnoscientia, v. 3, n. 2, 2018, ps. 01-02. Disponível em https://periodicos.ufpa.br/index.php/ethnoscientia/article/viewFile/10225/Krenak%202018. Acesso em 01.04.2025.

LATOUR, Bruno. Diante de Gaia: oito conferências sobre a natureza no Antropoceno. Trad. Maryalua Meyer. São Paulo: UBU, 2020.

PELLUCHON, Corine. Reparemos o mundo: humanos, animais, natureza. Trad. Felipe Rodolfo de Carvalho. Porto Alegre: Editora Zouk, 2024.

SAFATLE, Vladimir. Decretar o estado de emergência climática, in Folha de São Paulo, Tendências e Debates, 01 de fevereiro de 2025. Disponível em https://www1.folha.uol.com.br/opiniao/2025/02/decretar-o-estado-de-emergencia-climatica.shtml. Acesso em 27/03/2025.


[1] Safatle, Decretar o estado de emergência climática, in Folha de São Paulo, Tendências e Debates, 01.02.2025.

[2] Cf. Agamben, Estado de exceção, 2004, p. 19.

[3] “As advertências de Cassandra só serão levadas em conta se dirigidas a pessoas que têm ouvido para as trombetas escatológicas” (Latour, Diante de Gaia: oito conferências sobre a natureza no Antropoceno, 2020, p. 248).

[4] A respeito, consulte-se Angus, Enfrentando o antropoceno: capitalismo fóssil e a crise do sistema terrestre, 2023.

[5] “Ela é fruto de um processo de educação pela qual o ser humano redefine o feixe de relações que entretém com o universo, com a Terra, com a natureza, com a sociedade e consigo mesmo dentro dos critérios assinalados de equilíbrio ecológico…” (Boff, Sustentabilidade, 2012, p. 149).

[6] “Da mesma forma, a ecologia, a justiça social e a causa animal estão ligadas, porque elas pressupõem igualmente refletir sobre os limites planetários e sobre o lugar que conferimos, no seio da nossa existência, aos outros, humanos e não humanos” (Pelluchon, Reparemos o mundo: humanos, animais, natureza, 2024, p. 39).

[7] Cf. Gordilho, Direito ambiental pós-moderno, 2009, p. 85 e seguintes.

[8] “Pois a hora da reparação é aquela do evitamento do pior e da superação do caos” (Pelluchon, Reparemos o mundo: humanos, animais, natureza, 2024, p. 20).

[9] A este respeito, consulte-se o Relatório da Acnur. Sem escapatória: na linha de frente das mudanças climáticas, conflitos e deslocamento forçado. Novembro, 2024.

[10] Art. 5º: “L’humanité, comme l’ensemble des espèces vivantes, a droit de vivre dans un environnement sain et écologiquement soutenable”; “A humanidade e todas as espécies vivas têm o direito de viver num ambiente saudável e ecologicamente sustentável”.

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STJ vai fixar tese sobre citação por app de mensagens ou redes sociais em ações civis

A Corte Especial do Superior Tribunal de Justiça vai definir tese vinculante sobre a validade da citação em ações cíveis por meio de aplicativo de mensagens ou de redes sociais.

O colegiado afetou dois recursos especiais ao rito dos repetitivos, sob relatoria do ministro Sebastião Reis Júnior. A previsão regimental é de que o julgamento seja feito em até um ano.

O tema não é novo, mas foi pouco explorado na jurisprudência do STJ. Até hoje, só foi decidido colegiadamente três vezes — duas delas pela 3ª Turma, que julga temas de Direito Privado.

Por esse motivo, os ministros Ricardo Villas Bôas Cueva e Raul Araújo se opuseram à afetação e ficaram vencidos. Para eles, seria necessário mais acórdãos para amadurecimento do debate.

O ministro Sebastião Reis Júnior citou dados da Comissão Gestora de Precedentes, que identificou 76 decisões monocráticas sobre o tema.

“No contexto apresentado, pode-se ter como madura a matéria submetida ao rito do recurso especial repetitivo, circunstância que possibilita a formação de um precedente judicial dotado de segurança jurídica”, disse.

Citação por WhatsApp

Para a 3ª Turma do STJ, a citação por WhatsApp é nula, mas pode ser validada se cumprir seu papel de dar plena e inequívoca ciência ao destinatário sobre a ação judicial da qual é alvo.

Isso implica que a citação seja feita por meio de conteúdo límpido e inteligível, de modo a não suscitar dúvidas no citado.

Como mostrou a revista eletrônica Consultor Jurídico, essa estratégia para citação por vezes causa mais problemas do que soluções, por criar insegurança jurídica e impulsionar nulidades.

De acordo com o Código de Processo Civil, a citação pode ser feita pelo correio, por meio de carta precatória ou rogatória, por oficial de Justiça, em cartório judicial ou por publicação de edital (quando o paradeiro do citando é desconhecido).

Em 2015, foi acoplada ao Código de Processo Civil a hipótese de citação por meio eletrônico (e-mail), mas não existe obrigatoriedade e há uma série de regulamentações que têm de ser cumpridas.

Sinal dos tempos

Fato é que o WhatsApp e aplicativos análogos têm sido cada vez mais incorporados nos atos judiciais — talvez nenhum tão relevante quanto a citação.

O Conselho Nacional de Justiça já autoriza que a intimação seja feita dessa forma — o informe de que houve um novo ou ato em um processo já conhecido e em andamento.

Também têm sido admitidos diversos tipos de notificação, como a feita ao devedor, desde que se comprove o envio e entrega da mensagem — posição recentemente unificada pelo STJ.

A Corte Especial ainda decidiu não suspender os processos ou recursos especiais que tratem sobre o tema enquanto aguarda o julgamento e definição da tese.

Clique aqui para ler o acórdão de afetação
REsp 2.160.946
REsp 2.161.438

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