Judicialização de terapias CAR-T: papel do Judiciário no acesso à saúde

A judicialização da saúde vem crescendo no Brasil, tanto no âmbito da saúde pública quanto na suplementar.

Na saúde suplementar, a judicialização possui um papel importante diante das frequentes negativas de cobertura de certos tratamentos pelas operadoras de planos de saúde. Especificamente no campo da oncologia, a judicialização é ainda mais evidente com o surgimento de terapias avançadas, como aquelas com CAR-T (Chimeric Antigen Receptor T-cell therapy).

As negativas de cobertura têm se tornado tão frequentes que aos pacientes não restam alternativas, senão acionar o Judiciário, que vem acertadamente pautando-se no que dispõe a Lei nº 9.656, de 3 de junho de 1998 (Lei dos Planos de Saúde), para garantir o acesso ao tratamento prescrito.

Terapia CAR-T: tratamento inovador não experimental

A terapia CAR-T representa uma abordagem inovadora de tratamento oncológico, envolvendo a alteração genética de células T do próprio paciente, as quais desempenham um papel fundamental na defesa e no combate a doenças, para que elas passem a reconhecer e atacar as células tumorais.

As terapias CAR-T são o resultado de mais de 60 anos de estudos e avanços em imunoterapia e biotecnologia. No Brasil, diversas terapias CAR-T, enquadradas pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) como uma categoria especial de medicamentos novos [1], já passaram por um rigoroso processo de avaliação e aprovação de registro [2] perante a agência até a sua disponibilização no mercado brasileiro.

Assim, o fato de terapias CAR-T já registradas serem resultado de pesquisa e desenvolvimento de novas tecnologias não pode ser confundido com o atributo experimental.

Como se sabe, medicamentos experimentais são aqueles que só podem ser disponibilizados aos pacientes sob condições determinadas, que incluem a participação em pesquisas clínicas, antes da aprovação de seu registro na Anvisa, ou por meio de programas específicos, como o uso compassivo ou acesso expandido. Essas restrições visam garantir o acesso seguro a tratamentos promissores, mas ainda em fase de desenvolvimento — o que não é o caso de terapias CAR-T já registradas.

Obrigação dos planos de saúde

Apesar de diversas terapias avançadas já serem aprovadas pela Anvisa há anos, o que se nota é um movimento das operadoras de negativa de cobertura de tais medicamentos, sob a argumentação de que seriam medicamentos (i) de caráter experimental, (ii) de alto custo e (iii) não previstos no Rol da ANS.

Como mencionado, o primeiro argumento é equivocado em razão do registro das terapias CAR-T na Anvisa. E o segundo argumento não é suficiente nem aceitável para motivar uma negativa de cobertura. [3] Afinal, o teto dos preços de comercialização desses medicamentos no país é definido pela Câmara de Regulação do Mercado de Medicamentos (Cmed). Além disso, o pressuposto econômico da operação de planos e seguros de saúde é justamente pulverizar os riscos dentre uma massa de beneficiários para que o acesso a tratamentos de alto custo para um indivíduo seja acessível àqueles que tiverem prescrição médica e cobertura contratual para tanto.

Por fim, o último argumento também não encontra suporte na legislação. Por se enquadrarem como medicamentos e não possuírem caráter experimental, as terapias CAR-T devem ter sua cobertura assegurada pelas operadoras de planos de saúde, o que inclusive decorre de diversos dispositivos legais da Lei dos Planos de Saúde.

Primeiramente, para os planos que incluem a cobertura de internação hospitalar, o artigo 12, II, “d” [4], da referida lei prevê a cobertura obrigatória dos medicamentos administrados durante a internação conforme prescrição do médico assistente.

Essa previsão é reforçada pelo artigo 8º, III, [5] da Resolução Normativa nº 465/2021 (“RN nº 465/2021”) da ANS, ao estabelecer a obrigatoriedade de cobertura de medicamentos com registro na Anvisa, ainda que não listados expressamente no Rol da ANS, quando (i) utilizados em procedimentos com cobertura obrigatória, no caso de planos de segmentação ambulatorial, ou (ii) ministrados durante o período de internação, quando o plano incluir internação hospitalar, como é o caso da administração das terapias avançadas.

Não bastasse isso, é evidente a intenção, na Lei de Planos de Saúde, de que haja ampla cobertura para tratamentos antineoplásicos, ou seja, oncológicos. Nesse sentido, a Lei estabelece a obrigatoriedade de cobertura de tais tratamentos como exigência mínima tanto nos planos da segmentação ambulatorial (artigo 12, I, “c” [6]), quanto nos planos da segmentação hospitalar (artigo 12, II, “g” [7]).

E essas não são as únicas hipóteses legais que suportam a obrigação de cobertura das terapias CAR-T por operadoras de planos de saúde. Com a alteração legislativa promovida pela Lei nº 14.454/2022, foi acrescentado o §13 ao artig 10 da Lei nº 9.656/1998, que expressamente obriga as operadoras de planos de saúde a cobrir procedimentos/tratamentos fora do Rol da ANS, sempre que prescritos por médicos e atendidos os seguintes critérios: (i) houver comprovação de eficácia com base em evidências científicas e plano terapêutico; ou (ii) houver recomendação da Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no Sistema Único de Saúde (Conitec) ou de órgão internacional de renome, desde que também aprovadas para seus nacionais.

Nesse contexto, inclusive, a jurisprudência [8] do Superior Tribunal de Justiça (STJ) passou a reconhecer que a natureza do Rol de ANS é de taxatividade mitigada.

Diante dessas previsões legais e dos critérios estabelecidos, em caso de negativas abusivas por parte das operadoras, decisões judiciais que determinam o fornecimento de terapias CAR-T não são arbitrárias ou infundadas. Longe disso, estão em consonância com o ordenamento jurídico.

Atuação judicial pautada na legalidade

A análise das demandas envolvendo o fornecimento de terapia CAR-T evidencia que o Poder Judiciário vem atuando de forma técnica e criteriosa, assegurando a efetividade do direito à saúde nos casos em que estão presentes requisitos objetivos para tanto, o que impede decisões arbitrárias e realça o caráter técnico das intervenções judiciais.

Nas decisões que determinam a obrigação de fornecer o medicamento de terapia avançada ao paciente, o Judiciário considera a existência de registro vigente da terapia na Anvisa, o que afasta qualquer alegação quanto ao seu caráter experimental e assegura a sua regularidade para comercialização no mercado brasileiro.

O Judiciário também tem exigido a apresentação de prescrição médica, acompanhada de laudo clínico, que atestem a pertinência da terapia solicitada no caso concreto, considerando a inexistência de alternativas eficazes, especialmente nos casos de doenças raras e refratárias a tratamentos convencionalmente indicados. Isso demonstra a diligência do Judiciário para que a obrigação de fornecimento se dê nos casos devidamente justificados [9].

Soma-se a isso a importância das Notas Técnicas emitidas pelos Núcleos de Apoio Técnico do Poder Judiciário (NatJus), que vêm se posicionando favoravelmente à terapia em diversos casos, com destaque à sua eficácia comprovada em evidências científicas [10].

Outro aspecto examinado pelo Judiciário é a eficácia da terapia CAR-T atestada por outras agências reguladoras como o Food and Drug Administration (FDA) nos Estados Unidos, que aprovou a primeira terapia no país após décadas de estudos com resultados positivos [11].

Por fim, os tribunais também reconhecem que a negativa de cobertura de medicamento registrado na Anvisa pelas operadoras, sem a existência de alternativa terapêutica, consiste em violação ao objeto contratual e ainda coloca o consumidor em extrema desvantagem em ofensa ao Código de Defesa do Consumidor [12].

Todos esses critérios adotados comprovam que a construção das decisões favoráveis ao fornecimento das terapias CAR-T não é aleatória, mas consequência direta de uma análise fundamentada em aspectos legais, técnicos e constitucionais, em especial o direito à vida e à saúde.

Conclusão

Como visto, considerando as previsões e hipóteses da Lei nº 14.454/2022, em especial a evidente intenção do legislador de que haja ampla cobertura de tratamentos antineoplásicos/oncológicos (artigo 12, I, “c” e II, “g”) e o disposto no artigo 12, II, “d”, que já determina o fornecimento de medicamentos durante o período de internação hospitalar, as operadoras devem fornecer obrigatoriamente terapias CAR-T registradas que tenham sido prescritas por médicos aos pacientes, independentemente de sua inclusão específica no Rol da ANS. Ou seja, a obrigação de fornecimento já decorre da leitura da própria Lei dos Planos de Saúde.

Nesse contexto, longe de decisões simplesmente voluntaristas ou meramente dotadas de critérios subjetivos, o Judiciário tem exarado decisões mais técnicas e responsáveis, o que assegura uma assistência mais efetiva à saúde dos cidadãos e maior previsibilidade às operadoras.

___________________________

Referências

[1] Nos termos do inciso XVIII do art. 4º da Diretoria Colegiada nº 505, de 27 de maio de 2021 (“RDC nº 505/2021”).

[2] Terapias CAR-T registradas na ANVISA: Yescarta (registro nº 109290013); Kymriah (registro nº 100681180); Tecartus (registro nº 109290014);

[3] Especialmente porque a Câmara de Regulação do Mercado de Medicamentos (Cmed) – órgão responsável por precificar os medicamentos – adota critérios rigorosos, como a comparação com preços aprovados em outros países e avaliação de impacto orçamentário, propiciando que os preços sejam aprovados de forma compatível ao sistema de saúde brasileiro.

[4] Art. 12.  São facultadas a oferta, a contratação e a vigência dos produtos de que tratam o inciso I e o § 1o do art. 1o desta Lei, nas segmentações previstas nos incisos I a IV deste artigo, respeitadas as respectivas amplitudes de cobertura definidas no plano-referência de que trata o art. 10, segundo as seguintes exigências mínimas:   (…) II – quando incluir internação hospitalar: (…) d) cobertura de exames complementares indispensáveis para o controle da evolução da doença e elucidação diagnóstica, fornecimento de medicamentos, anestésicos, gases medicinais, transfusões e sessões de quimioterapia e radioterapia, conforme prescrição do médico assistente, realizados ou ministrados durante o período de internação hospitalar;

[5] Art. 8º Nos procedimentos e eventos previstos nesta Resolução Normativa e seus Anexos, se houver indicação do profissional assistente, na forma do artigo 6º, §1º, respeitando-se os critérios de credenciamento, referenciamento, reembolso ou qualquer tipo de relação entre a operadora e prestadores de serviços de saúde, fica assegurada a cobertura para: (…) III – taxas, materiais, contrastes, medicamentos, e demais insumos necessários para sua realização, desde que estejam regularizados e/ou registrados e suas indicações constem da bula/manual perante a ANVISA ou disponibilizado pelo fabricante.

[6] Art. 12.  São facultadas a oferta, a contratação e a vigência dos produtos de que tratam o inciso I e o § 1o do art. 1o desta Lei, nas segmentações previstas nos incisos I a IV deste artigo, respeitadas as respectivas amplitudes de cobertura definidas no plano-referência de que trata o art. 10, segundo as seguintes exigências mínimas:

I – quando incluir atendimento ambulatorial:
[…]
c) cobertura de tratamentos antineoplásicos domiciliares de uso oral, incluindo medicamentos para o controle de efeitos adversos relacionados ao tratamento e adjuvantes;

[7] II – quando incluir internação hospitalar:

[…]
g) cobertura para tratamentos antineoplásicos ambulatoriais e domiciliares de uso oral, procedimentos radioterápicos para tratamento de câncer e hemoterapia, na qualidade de procedimentos cuja necessidade esteja relacionada à continuidade da assistência prestada em âmbito de internação hospitalar;

[9] TJSP; Apelação Cível 1169606-97.2023.8.26.0100; Relator (a): Schmitt Corrêa; Órgão Julgador: 3ª Câmara de Direito Privado; Foro Central Cível – 8ª Vara Cível; Data do Julgamento: 03/09/2024; Data de Registro: 03/09/2024

[10] TJSP; Apelação Cível 1061341-64.2024.8.26.0100; Relator (a): Domingos de Siqueira Frascino; Órgão Julgador: Núcleo de Justiça 4.0 em Segundo Grau – Turma IV (Direito Privado 1); Foro Central Cível – 43ª Vara Cível; Data do Julgamento: 28/03/2025; Data de Registro: 28/03/2025

[11] TJSP; Apelação Cível 1035146-28.2013.8.26.0100; Relator (a): João Batista Vilhena; Órgão Julgador: 5ª Câmara de Direito Privado; Foro Central Cível – 27ª Vara Cível; Data do Julgamento: 22/05/2024; Data de Registro: 26/07/2024

[12] Art. 51. São nulas de pleno direito, entre outras, as cláusulas contratuais relativas ao fornecimento de produtos e serviços que: (…) IV – estabeleçam obrigações consideradas iníquas, abusivas, que coloquem o consumidor em desvantagem exagerada, ou sejam incompatíveis com a boa-fé ou a eqüidade; (…)   § 1º Presume-se exagerada, entre outros casos, a vantagem que: (…) II – restringe direitos ou obrigações fundamentais inerentes à natureza do contrato, de tal modo a ameaçar seu objeto ou equilíbrio contratual;

O post Judicialização de terapias CAR-T: papel do Judiciário no acesso à saúde apareceu primeiro em Consultor Jurídico.

Limitação de condenação solidária de empresa consorciada se há boa-fé

No boletim de jurisprudência do Tribunal de Contas da União nº 541 [1] há uma notícia relativa ao acórdão nº 1136/2025 [2], do Plenário daquela Corte de Contas que chama a atenção: “É possível a aplicação do artigo 944 do Código Civil para limitar a condenação solidária de empresa consorciada, se reconhecida a sua boa-fé, à proporção do débito equivalente à sua participação no consórcio, pois há espaço jurídico para tratamento diferenciado aos integrantes de consórcio, de forma a se atender ao princípio da isonomia e a se tratar de forma desigual os desiguais”.

No caso concreto, o Plenário do TCU analisava, por determinação de acórdão anterior (item 9.14.1 do acórdão nº 1361/2021, proferido no TC 027.542/2015-7) o sobrepreço de duas parcelas do Demonstrativo de Formação de Preços (DFP), a saber, “Fornecimentos” e “Subempreiteiros”, relativos ao contrato nº 0800.0053457.09.2, firmado pela Petrobrás e o Consórcio CNCC, cujo objeto era a realização de obras de implantação das Unidades de Coqueamento Retardado (UCR) da Refinaria Abreu e Lima (Rnest), localizada em Ipojuca (PE).

Tanto no acórdão anterior (nº 1.361/2021), como no acórdão ora analisado (nº 1.136/2025), aquele Plenário havia se pronunciado pela limitação da responsabilidade de uma das consorciadas ao limite de sua participação no consórcio (10%), porque: (i) tinha papel secundário no consórcio, contando somente com 10% de participação; (ii) os atos ilícitos que deram causa ao sobrepreço apurado foram de responsabilidade da parte predominante no consórcio, não havendo indicativos de sua participação nesses ilícitos; (iii) ausência de participação na licitação e na elaboração das propostas, pois integrou o consórcio em 2010, quando a execução do contrato já havia iniciado e (iv) inexistência de provas ou indícios de que a sucessão empresarial tenha ocorrido para acobertamento de ilícitos e/ou fuga de responsabilizações.

Os acórdãos, inclusive, defrontam uma possível responsabilização decorrente da inobservância do dever de diligência na análise dos contratos que a sucessora assumiria por consequência da incorporação empresarial, arrogando a si os riscos da contratação em questão. Contudo, foi consignado que o contrato era realmente complexo e a que própria Corte, ao examiná-lo, teve de partir de manifestações de inúmeros auditores para estimar o sobrepreço, de modo que não se deveria considerar da sucessora “que realizasse amplos e custosos estudos para que assumisse a contratação em andamento. Até porque, à época, não havia questionamentos em relação aos preços praticados”.

Nas fundamentações, ainda, ambos os acórdãos se respaldaram não apenas no art. 944, parágrafo único, do Código Civil, mas também no artigo 4º, § 1º da Lei nº 12.846/2013 (Lei Anticorrupção) e em fundamentos da decisão proferida pelo TRF-4 no julgamento do Agravo de Instrumento nº 5046411-08.2016.4.04.0000/PR.

Reflexões

Uma primeira leitura do acórdão pode trazer certo conforto, ante a sensibilidade com que os ministros consideraram as questões fáticas do caso. Entretanto, sob lentes mais questionadoras, parece haver necessidade de se depurar mais o entendimento e, então, arriscamos algumas linhas sobre ele, não para reprová-lo, obviamente, mas para suscitar reflexão.

No caso das contratações administrativas com consórcios de empresas, a solidariedade decorre da própria legislação. Desde a Lei nº 8.666/1993, vigente quando da contratação examinada pelo TCU, a regra da responsabilidade solidária das consorciadas está prevista (artigo 33, V da Lei nº 8.666/1993 e artigo 15, V da Lei nº 14.133/2021). Não bastante, o próprio Regulamento do Procedimento Licitatório Simplificado da Petrobras (Decreto 2.745/1998) também a prevê no item 4.10.1, letra e).

Acerca da solidariedade, prescreve o artigo 264 do Código Civil que “há solidariedade, quando na mesma obrigação concorre mais de um credor, ou mais de um devedor, cada um com direito, ou obrigado, à dívida toda”. E segue o artigo subsequente: “a solidariedade não se presume; resulta da lei ou da vontade das partes”.

Trata-se, evidentemente, de instrumento que “facilita a vida” do credor. Como afirmado por Fabiana Barros de Martin, em sua dissertação de mestrado pela Universidade de São Paulo: [3] “(…) a existência de solidariedade em uma relação obrigacional cria uma maior proteção ao crédito, tornando-se, por consequência, um instrumento de extrema segurança para o credor” e o Tribunal de Contas da União decidiu por afastar essa proteção, em homenagem aos princípios da isonomia, equidade e justiça.

O problema é que a superação de regras por princípios não é tarefa fácil. Isso porque, as regras possuem prevalência sobre princípios, ao menos numa primeira vista, pois são preceitos gerais e abstratos cuja relação de sopesamento e limitação do espectro principiológico já foi realizado aprioristicamente pelo legislador e, portanto, na maioria dos casos, deve haver aplicação da regra em desfavor em desfavor da otimização do princípio, eis que ela se apresenta como limitação ou restrição desta otimização. [4]

É inegável que essa prevalência apriorística dá lugar à aplicação do princípio em algumas situações, como “quando a aplicação da regra […] produz um resultado extremamente indesejado e, até mesmo, incompatível com a ordem constitucional ou mesmo quando há dúvidas quanto à constitucionalidade da regra”. [5] Entretanto, invocar princípios para afastar regras incidentes no caso concreto demanda um esforço argumentativo muito superior àquele natural a qualquer decisão, considerando que a regra, por si só, é um instrumento de maior previsibilidade e estabilidade que os princípios. [6]

Era imprescindível que o TCU, através do exame da adequação, da necessidade e da proporcionalidade em sentido estrito, efetuasse a demonstração da desproporcionalidade da regra legal da solidariedade. [7] Contudo, os acórdãos percorrem a via acima mencionada, indicando dúvida se o TCU teria satisfatoriamente se desincumbido de seu ônus argumentativo para afastar a regra da solidariedade entre consorciadas e mesmo a do artigo 1.116 do Código Civil, segundo a qual a sucessora “herda” todos os direitos e obrigações da sucedida.

Se assim for, não estaria o instituto da solidariedade esvaziado? Afinal, a solidariedade possui alguma relação entre grau de culpa ou se trata de instituto que dá maiores garantias a um credor? Sigamos com as reflexões.

O parágrafo único do artigo 944 do Código Civil permite a redução equitativa da indenização quando o juízo se deparar com uma grande desproporção entre a gravidade da culpa e o dano. O dispositivo, tal como posto, não faz distinção entre a indenização por danos materiais ou imateriais. Tampouco se a redução pode ser aplicada a casos de responsabilidade negocial e/ou extra negocial, [8] subjetiva e/ou objetiva. Dessas particularidades cuidou a doutrina — e com divergência.

Parece mesmo que a análise do grau de culpa sugere que a redução apenas pode ocorrer em casos de responsabilidade subjetiva, ao passo em que a responsabilidade objetiva dispensa a própria existência de culpa.

Quanto ao alcance do dispositivo em relação à espécie de dano causado, convence a tese de que tanto os danos materiais como os imateriais podem ser reduzidos, seja porque a lei não faz qualquer limitação a este respeito, seja porque os bens jurídicos tutelados na indenização por dano material e imaterial têm assento constitucional, revelando-se um nonsense permitir a redução da indenização de um, mas não do outro. Já no que tange aos danos decorrentes da responsabilidade negocial ou extra negocial, tem-se algumas ressalvas a serem formuladas sobre a ampla e irrestrita utilização do dispositivo para reduzir-se a indenização.

Como consignado em nota de rodapé, a responsabilidade negocial se origina no inadimplemento e a extra negocial nos atos ilícitos, propriamente ditos ou assim classificados pelo abuso de direito. Em geral, os negócios jurídicos, ainda que unilaterais, são previamente conjecturados e examinadas todas as suas condições e repercussões. Logo, devem, em regra, ser cumpridos (pacta sunt servanda). A partir dessa perspectiva, aparentemente, reduzir a indenização, cujos termos e razões de ser já estavam previamente ajustados e eram conhecido pelas partes do negócio parece inapropriado, principalmente quando esses termos decorrem da Lei e do Edital de Licitação.

Os acórdãos nos 1361 de 2021 e 1136 de 2025 do TCU examinavam a existência de danos ao erário e, consequentemente, a responsabilidade das consorciadas pelo ressarcimento desses danos. O contrato administrativo tido como pano de fundo do exame realizado pela Corte de Contas decorria de licitação pública realizada, em que as partes se submetem integralmente ao Edital e, obviamente, às normas de Direito Público.

Trata-se, portanto, de um contrato que se inicia com a resignação dos interessados aos termos e condições previstos na Lei e no Ato Convocatório e não nos parece que a sociedade sucessora desconhecia essas circunstâncias quando incorporou a consorciada originária.

Não é que se queira preservar intransigentemente a rigidez contratual, mas a própria segurança jurídica e o interesse do Estado enquanto lesado clamam pela observância da solidariedade, que era desde sempre conhecida por todos os envolvidos.

De outro lado, é apressado limitar a responsabilidade da sucessora no que tange ao ressarcimento do erário à sua participação no consórcio (10%), por força do artigo 4º, § 1º da Lei Anticorrupção. Isso porque, o dispositivo em questão diz: “Nas hipóteses de fusão e incorporação, a responsabilidade da sucessora será restrita à obrigação de pagamento de multa e reparação integral do dano causado, até o limite do patrimônio transferido (…)”.

Logo, a obrigação da reparação do dano ao erário é integral, desde que o patrimônio transferido seja superior a este montante a ser ressarcido, mas, se inferior, estará limitada ao valor deste patrimônio transferido. Porém, os acórdãos não identificam este patamar de limitação da indenização e, evidentemente, se o patrimônio transferido à sucessora tiver sido superior aos 10% do sobrepreço, o Estado está recebendo menos do que deveria receber e, se referido patrimônio tiver valor inferior aos 10% deste sobrepreço, a sucessora que foi responsabilizada por valor superior àquele fixado em lei.

Por fim, acerca do julgamento do Agravo de Instrumento nº 5046411-08.2016.4.04.0000/PR, não há correspondência adequada entre os casos, pois que tratam de matérias distintas.

No paradigma invocado, o objeto de discussão era a prática de improbidade administrativa, cuja responsabilização é subjetiva e na exata medida da culpabilidade pelos atos praticados e, nesta hipótese, o ressarcimento do erário é muito mais uma consequência do ato ilícito doloso (pressuposto da improbidade) que causa lesão ao erário que uma sanção propriamente dita. Tanto assim que, mesmo que inexista o dano ao erário, é possível ser constatada improbidade administrativa e vice-versa. Entretanto, no caso examinado, a responsabilidade solidária é uma consequência do império da lei e da vontade das partes, e diz respeito exclusivamente a questões patrimoniais, que não se inserem nas relações de direito administrativo sancionador, que é o caso da improbidade.

Por todas as razões acima mencionadas, aparentemente o Tribunal de Contas da União afastou incidência de regras relativas à solidariedade entre as consorciadas e, com arrimo em princípios jurídicos, responsabilizou uma das consorciadas pelo ressarcimento ao erário até o limite de sua participação no consórcio (10%) sem, contudo, desincumbir-se de seu ônus de fundamentação, muito mais qualificado em razão desta superação.

Ainda, os dispositivos legais utilizados e o próprio julgado invocado para a limitação da responsabilização da consorciada são de incidência incerta da forma como foram aplicados ao caso e, por essas razões, é necessária a reflexão acerca de ser ou não adequado afastar a responsabilidade solidária em casos em que fique demonstrada a boa-fé de consorciadas em relação a fatos e/ou atos que causem danos ao erário.

_________________ 

1 Disponível aqui.

2 Disponível aqui.

3 Das obrigações solidárias: relação com as obrigações indivisíveis no sistema jurídico romano e reflexo no direito brasileiro. Dissertação – Faculdade de Direito, Universidade de São Paulo, 2015. Disponível aqui.

4 Otimização de princípios, separação de poderes e segurança jurídica: o conflito entre princípio e regra. Dissertação – Faculdade de Direito, Universidade de São Paulo, 2012. Disponível aqui.

5 Ibid., p. 44.

6 Neste sentido, Rafael Scavone Bellem de Lima apud Bustamante: “a existência de uma regra implica, portanto, a existência de uma pretensão de estabilidade para o resultado das ponderações de princípios realizadas pelo legislador, isto é, uma pretensão de que esses resultados tenham caráter definitivo”. (Ibid. p. 68).

7 ÁVILA, Humberto. Teoria dos princípios: da definição à aplicação dos princípios jurídicos. São Paulo: Malheiros. 2021.

8 Segundo lições do Prof. Nelson Rosenvaldi: “Evita-se, aqui, a adoção do par responsabilidade contratual e extracontratual – usualmente adotada em doutrina e tribunais –, pela sua incompletude. O inadimplemento não é um fenômeno restrito aos contratos, mas se estende a qualquer obrigação, tenha ela origem em um contrato ou em um negócio jurídico unilateral. […] Não obstante a consagração pelo uso da expressão responsabilidade contratual, pelas razões técnicas ora suscitadas, optamos pela decomposição do fenômeno da responsabilidade em negocial e extranegocial”.

(Disponível aqui)

O post Limitação de condenação solidária de empresa consorciada se há boa-fé apareceu primeiro em Consultor Jurídico.

A proteção dos consumidores na regulação bancária

O consumo de crédito e de outros serviços financeiros é um tema sensível no Brasil. Mesmo com a incidência do Código de Defesa do Consumidor, pautado nos princípios da boa-fé objetiva e do equilíbrio, as relações entre instituições financeiras e consumidores são marcadas por altíssima litigiosidade. Ano após ano, os relatórios Justiça em Números do CNJ indicam os bancos entre os maiores litigantes, em demandas que discutem desde os abusos em cobranças de dívidas e os pedidos de revisão dos contratos,[1] até os fenômenos mais recentes do superendividamento e a explosão de fraudes bancárias [2].

Com a intensa transformação digital dos serviços financeiros, a proteção dos consumidores exige cada vez mais o conhecimento especializado e multidisciplinar, tanto para compreensão dos novos problemas nas relações bancárias, quanto para construir as respectivas soluções. O Direito Bancário é naturalmente multidisciplinar e dialoga constantemente com outras ciências. Expressões como custo efetivo total, sistema de amortização, capitalização composta de juros, etc., são linguagem corriqueira dos contratos bancários, com conceitos definidos pela Economia ou Matemática Financeira.

O Direito Bancário também se funda em múltiplas fontes, como a Constituição, o direito dos contratos no CDC e no Código Civil, as legislações específicas do sistema financeiro, os precedentes do STJ e STF que interpretam esse arcabouço normativo, a regulação setorial do Conselho Monetário Nacional (CMN) e Bacen, os usos e costumes bancários, as recomendações de soft law e a autorregulação bancária [3].

O CDC, microssistema das relações de consumo, prevê expressamente, em seu artigo 7º, o diálogo das fontes. Esse método possibilita uma visão unitária, sistemática e coerente do direito privado, iluminado a partir da Constituição, para a concretização do direito fundamental de defesa do consumidor [4]. O diálogo entre o CDC e as demais normas que regulam o Sistema Financeiro Nacional foi reconhecido na Adin 2.591/DF, julgamento em que o STF consolidou a aplicação do CDC aos contratos e serviços bancários.

Quase duas décadas depois, o diálogo com a regulação setorial, exercida pelo CMN e Bacen, pode contribuir para o aprimoramento das relações entre bancos e consumidores, em três frentes distintas: (1) a informação adequada sobre os custos e riscos do crédito; (2) a limitação dos juros praticados em operações de alto risco de endividamento, como o cartão de crédito e o cheque especial; e (3) o reforço dos deveres de segurança das transações, para prevenção e reparação das fraudes bancárias.

O detalhamento do custo do crédito se articula com um dos principais direitos do consumidor: o direito básico à informação, artigo 6º, III, CDC, que exige que o consumidor seja informado, de forma prévia e adequada, sobre os elementos dos produtos ou serviços, inclusive a modalidade, riscos e preço. Para que o consumidor compreenda os custos do crédito, o CDC desde sua origem estabeleceu uma série de informações obrigatórias no artigo 52, dentre elas a “soma total a ser paga, com ou sem financiamento”. Ou seja, há mais de três décadas, exige-se que a concessão de crédito ou financiamento esclareça ao consumidor, de forma clara, o valor total devido pelo empréstimo.

Para reforçar a clareza sobre os custos do crédito, a Lei 14.181/2021 introduziu no CDC os artigos 54-B, 54-C e 54-D, com o intuito de prevenir o superendividamento dos consumidores. Desde então, os fornecedores de crédito devem não apenas informar mas também esclarecer os consumidores sobre os custos do crédito e modalidade de contratação, bem como advertir sobre os riscos gerais e específicos da inadimplência. O artigo 54-B especifica que o Custo Efetivo Total (CET) das operações, sintetizado em percentual ao ano, deve compreender todos os valores cobrados do consumidor, “sem prejuízo do cálculo padronizado pela autoridade reguladora do sistema financeiro”. E é justamente nesse cálculo padronizado do CET que a regulação bancária contribui para aprimorar o direito à informação [5].

Resoluções do Conselho Monetário Nacional

O custo das operações foi tratado pelo CMN em três resoluções, publicadas no Dia Mundial do Consumidor (15/3), no ano de 2013. A Resolução CMN 4.196 exigiu que os bancos esclareçam aos consumidores o direito aos serviços essenciais gratuitos nas contas correntes para pessoas físicas, devendo informar que o consumidor não é obrigado a contratar um pacote mensal de tarifas, para abertura e movimentação de contas correntes. Trata-se de dever importante de informação que deve ser atendido pelos bancos, para que a contratação de tarifas em contas correntes não seja imposta em venda casada, prática abusiva vedada pelo artigo 39, I, CDC.

A Resolução 4.198 regula as informações sobre os custos de transações de câmbio. Já a Resolução 4.197, estabeleceu que o Custo Efetivo Total das operações de crédito deve discriminar cada componente (juros, tarifas, IOF, seguros, etc.) em percentual ao ano e em reais. Ou seja, não basta apenas informar as taxas de juros e valores das prestações mensais. Para compreensão adequada do custo do crédito, cada encargo cobrado deve ser detalhado tanto em percentual ao ano, como em valor monetário, permitindo assim que o consumidor avalie com clareza o custo real do crédito. A Resolução CMN  4.881, de 23/12/2020, passou a exigir esse detalhamento do CET também para os contratos de empresários individuais e empresas de micro ou pequeno porte, que podem se enquadrar no conceito de consumidores, ante a vulnerabilidade que notadamente apresentam junto aos bancos [6].

O objetivo de aprimorar as relações entre bancos e clientes se observa também na Resolução CMN 2.878, de 26/7/2021, que estabeleceu que as instituições financeiras devem atuar com transparência nos relacionamentos com seus clientes, assegurando respostas tempestivas a dúvidas, clareza nas informações sobre os custos das operações, em contratos de fácil leitura, fornecendo aos seus clientes os contratos, extratos, demonstrativos de dívidas e demais documentos solicitados. O texto foi alterado pelas Resoluções CMN 3.694, de 26/3/2009, CMN 4.949, de 30/9/2021 e CMN 5.117, de 25/1/2024, e a versão atual exige deveres como adequação dos produtos às necessidades dos clientes, segurança das transações, em uma política de relacionamento cooperativo, equilibrado e justo para os clientes, considerando seus perfis de relacionamento e vulnerabilidades associadas.

Ainda para reforçar a transparência, as Resoluções CMN 5.004, de 24/3/2022 e CMN 5.112, 21/12/2023, estabelecem que a contratação de operações financeiras depende de formalização de instrumento representativo do crédito junto ao cliente. Tal exigência é de suma importância, num cenário em que não raro os consumidores não recebem cópia dos contratos, o que inclusive contribui para a propagação de fraudes bancárias. Essas mesmas resoluções determinam que as instituições financeiras devem fornecer aos clientes, pessoas físicas e empresários individuais, o Documento Descritivo de Crédito, detalhando informações como número do contrato, saldo devedor atualizado e demonstrativo de sua evolução, sistema de pagamento, além de informar o valor para quitação antecipada dos contratos, com o abatimento proporcional dos juros a partir das mesmas taxas contratadas. O Descritivo de Crédito deve ser fornecido imediatamente nos canais de atendimento presenciais, e em até um dia útil nos demais canais de atendimento.

Essas medidas reforçam um dos principais pilares do direito contratual, tanto do CDC, como do Código Civil: a boa-fé objetiva, princípio de ordem pública, fonte dos deveres colaterais de cooperação, transparência e lealdade. As próximas normas que serão abordadas corroboram com outro pilar fundamental do CDC: o princípio do equilíbrio, que reprime a onerosidade excessiva.

A proteção contra onerosidade excessiva em contratos bancários perpassa necessariamente pelo tema das altíssimas taxas de juros praticadas no Brasil. O provisionamento da inadimplência continua sendo a principal justificativa dos bancos para as estratosféricas taxas de juros brasileiras. Tal justificativa é questionada, a partir de estudos que demonstram o crescimento das taxas de juros mesmo em períodos em que a inadimplência se mantém estável [7]. Outras pesquisas identificam que o principal fator para as taxas de juros tão altas é o igualmente elevado spread bancário [8], decorrente da falta de competição no mercado financeiro [9]. O spread bancário do Brasil é o maior do mundo e cerca de 11 vezes o praticado em países desenvolvidos, não havendo diferença significativa entre o spread dos bancos públicos e privados no Brasil[10].

Apesar de todo o tabu que essa discussão enfrenta, o fato é que a Lei Bancária (Lei 4.595/64) atribui ao Conselho Monetário Nacional a competência normativa para limitar os juros praticados pelas instituições financeiras. A limitação é mais frequente nos contratos de crédito direcionado, linhas de crédito específicas, criadas por lei, para a execução de alguma política pública, como o crédito para habitação, financiamento estudantil e crédito rural. Apenas recentemente é que o CMN passou a exercer o seu poder regulatório também em operações de taxas livres, em que não há limitação legal de encargos. E o fez justamente em duas modalidades de concessão de crédito, de altíssimo custo e risco de endividamento: o cheque especial e o cartão de crédito.

A Resolução CMN 4.765, de 27/11/19 limitou em 8% a.m. as taxas máximas de juros cobradas pela utilização de limite de cheque especial, em contas correntes de pessoas físicas e microempreendedores individuais. Dentre as justificativas adotadas pelo Bacen, para estabelecer esse teto inédito de juros, destaca-se a constatação de que “entre 2017 e 2019, a taxa de juros do cheque especial aumentou − a despeito da queda na taxa básica de juros, da manutenção do nível de inadimplência e da queda dos spreads bancários para a quase totalidade das operações de crédito com taxas livremente pactuadas entre instituições financeira e clientes” [11].

Em relação ao cartão de crédito, que segue sendo um dos vilões de endividamento dos consumidores, a Resolução CMN 4.549 de 26/01/17, determinou que: (1) o uso do limite rotativo do cartão de crédito somente poderia ser feito em um mês, evitando que o cliente reiteradamente contrate essa modalidade de crédito de altíssimo custo; (2) a partir do mês seguinte, o banco deve ofertar ao cliente a possibilidade de parcelamento do valor em aberto, com taxas de juros mais baixas, em benefício do cliente. Importante frisar que ofertar uma linha de crédito alternativa, com juros mais baixos, não é o mesmo que impor um parcelamento automático, sem solicitação expressa do cliente, e com taxas muito maiores do que as do crédito pessoal.

Para conter o endividamento excessivo nos cartões de crédito, a Resolução CMN 5.112, de 21/12/2023, estabeleceu que os valores totais de encargos cobrados pelos parcelamentos de faturas de cartão de crédito não poderia ultrapassar o valor emprestado. A partir de janeiro de 2024, os bancos devem respeitar o teto de encargos fixado pelas autoridades monetárias.

As limitações de encargos nos contratos de cheque especial e cartão de crédito são um importante avanço. Entretanto, a regulação do CMN nas operações com “taxas livres” ainda é tímida, com parcimônia e omissão em relação a empréstimos para pessoas físicas, com taxas de juros que alcançam os absurdos patamares de 1000% ao ano. Se na limitação dos encargos a regulação setorial ainda deixa muito a desejar, o campo da segurança e prevenção contra fraudes talvez seja o de maior atuação.

No ano de 2012, a Súmula 479/STJ reconheceu a responsabilidade objetiva das instituições financeiras em reparar os danos causados a consumidores, por fraudes cometidas por terceiros. Trata-se de risco inerente da atividade bancária, que integra o chamado “fortuito interno”.

A regulação bancária permite aprofundar tanto a noção do fortuito interno, quanto as medidas que devem ser adotadas pelos bancos para cumprir os deveres de segurança. A Resolução CMN 4.557, de 23/2/2017 inclui expressamente as fraudes internas e externas como eventos inerentes ao risco operacional da atividade bancária. Em conjunto com a Resolução CMN 5.076, de 18/05/23, esclarecem uma série de falhas que integram o risco das atividades de pagamento, e exigem que a estrutura de gerenciamento de riscos operacionais deve contemplar sistemas, processos e infraestrutura de T.I. para assegurar integridade e segurança nas transações, mecanismos de proteção de redes, monitoramento das falhas de segurança e das reclamações dos consumidores, além de identificar movimentações financeiras e operações atípicas.

As operações atípicas podem ser compreendidas a partir do perfil de movimentação financeira e de uso do crédito de cada cliente da instituição financeira. No âmbito do Pix – pagamento instantâneo brasileiro, a regulação está em constante aperfeiçoamento. A Resolução BCB 142, de 23/9/2021 estabeleceu limites máximos de valores para transações realizadas entre 20h e 6h, bem como prazo mínimo de 24h para aumento de limites de transações a pedido dos clientes. As tentativas de fraudes devem ser registradas diariamente, cabendo aos bancos também discriminar as medidas corretivas adotadas.

A Resolução BCB 103 de 8/6/2021 criou o Mecanismo Especial de Devolução (MED), que pode ser iniciado tanto por iniciativa do usuário pagador, em caso de pagamento indevido ou suspeito de fraude, quanto por iniciativa própria da instituição financeira, que atende o usuário recebedor, em caso de suspeita de fraude. Ambos os processos são implementados por meio do Diretório de Identificadores de Contas Transacionais (Dict).

Já o Bloqueio Cautelar, criado pela Resolução BCB nº 147, de 28/9/21, estabelece a obrigação dos bancos de bloquearem preventivamente as operações, quando as transações destoarem do perfil do cliente e do histórico de transações anteriores, ou quando a chave recebedora dos valores for uma chave suspeita. O bloqueio cautelar deve ser implementado independentemente de solicitação do usuário pagador.

A Resolução Conjunta CMN/BCB 6 de 23/5/2023 e a Resolução BCB 343 de 4/10/2023 determinam aos bancos o compartilhamento de informações sobre suspeitas de fraudes. E a Resolução BCB 457 de 6/3/2025 estabeleceu que serão canceladas as chaves Pix vinculadas a CNPJs e CPFs que estejam irregulares junto à Receita Federal.

Em suma, a regulação bancária atual: (1) reforça a clareza das informações sobre os custos do crédito; (2) impõe limites às taxas de juros, que podem orientar os processos de revisão dos contratos, sobretudo nos casos de superendividamento; e (3) auxilia a identificar as falhas de segurança das transações bancárias, que ensejam o dever de reparação das fraudes. Se outrora houve resistência dos bancos à aplicação do CDC, da regulação setorial os bancos não podem se afastar.


[1] Sobre o tema, vide a robusta pesquisa indicando que, na maioria dos casos, os consumidores de crédito tem razão nos litígios judiciais contra os bancos. GREGORINI, Pedro Augusto. Jurimetria aplicada aos litígios em massa: o perfil dos processos envolvendo os bancos na Justiça Estadual de São Paulo. 2021. Dissertação (Mestrado) – Universidade de São Paulo, Ribeirão Preto, 2021. Disponível em: https://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/107/107131/tde-15082022-114649/. Acesso em: 11 jun. 2025.

[2] Metade dos brasileiros sofreu fraude em 2024, diz Serasa Experian | Agência Brasil. Acesso em 29/03/2025.

[3][3] MIRAGEM, Bruno. Direito Bancário. 2 ed. rev., atual. e ampl – São Paulo: Thomson Reuters, 2018, pp. 85-106

[4] MARQUES, Claudia Lima. Diálogo das fontes: do conflito à coordenação de normas no direito brasileiro / Claudia Lima Marques, coordenação. – São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2012, p. 59-63.

[5] Código de defesa do consumidor comentado / organização de Denise Hammersschmidt / Curitiba: Juruá, 2025. Artigos 54-A a 54-G, Andressa Jarletti Gonçalves de Oliveira / Maria Carla Moutinho, pp. 452-481.

[6] OLIVEIRA, Andressa Jarletti Gonçalves de. Defesa judicial do consumidor bancário. Curitiba: Rede do Consumidor, 2014, pp. 76-94.

[7] CAMARGO, Patrícia Olga. A evolução recente do setor bancário no Brasil. São Paulo: Cultura Acadêmica, 2009, pp. 84-85.

[8]NOGUEIRA, José Jorge Meschiatti. Tabela Price: Mitos e Paradigmas. 3. Ed. Campinas: Millenium Editora, 2013, pp. 208-209.

[9] BELAISCH, Agnès. Do Brazilian Banks Compete? IMF: [s.l.], 2003.

[10] DANTAS, José Alves. MEDEIROS, Otávio Ribeiro de; CAPELLETO, Lucio Rodrigues. Determinantes do spread bancário ex post no mercado brasileiro. RAM, Revista de Administração Mackenzie, v. 13, n. 4. São Paulo, jul./ago. 2012, p. 48-74.

[11] Banco Central do Brasil. Cheque Especial: avaliação do impacto da limitação da taxa de juros. Relatório de Economia Bancária. 2020.

O post A proteção dos consumidores na regulação bancária apareceu primeiro em Consultor Jurídico.

De incêndios à ‘uberização’: os julgados-chave do STF em 2024

Supremo Tribunal Federal julgou 115 mil casos em 2024. As decisões colegiadas somaram 24 mil, tomadas em Plenário e nas duas turmas. Destacaram-se entre os temas de maior repercussão nacional, a determinação para um plano de prevenção e combate a incêndios na Amazônia e no Pantanal, a ilegalidade de abordagem policial e busca pessoal motivadas por raça, sexo, orientação sexual, cor da pele ou aparência física e a responsabilidade estatal por disparo de arma de fogo durante operações policiais.

Esses e outros temas foram selecionados por este Anuário da Justiça, que analisa não só a jurisprudência de temas relevantes julgados pelo Plenário durante 2024, mas também mostra como cada ministro votou – e defendeu seu entendimento – em julgamentos enfrentados nas 1ª e 2ª Turmas. O levantamento qualitativo foi construído com base nos julgados selecionados pela Corte em seu Boletim Informativo e nos processos selecionados pela redação na ferramenta de busca de jurisprudência do site do tribunal.

Litígios da área de Direito do Trabalho, como os que envolvem mudanças promovidas pela reforma trabalhista de 2017 (Lei 13.467) e as relações de trabalho alheias à CLT, continuam revelando as nítidas divergências entre os ministros. A maioria na corte é contra, por exemplo, o reconhecimento do vínculo de emprego entre motoristas de aplicativo e as plataformas. A ‘uberização’ teve repercussão geral reconhecida (Tema 1.291) e o processo envolvendo o caso ainda tramita no Plenário Virtual (RE 1.446.336). A expectativa recai sobre os votos de Flávio Dino, que ainda não se manifestou sobre o tema, e de Edson Fachin, relator do recurso, que tende a levar em conta impactos sociais na análise de matérias que envolvem direitos trabalhistas.

Nv¹: Não votou; IMP²: Impedido; NC e JNC³: Julgamento não concluído. Fonte: Pesquisa do Anuário com base no Informativo STF 2024

Fachin, inclusive, foi um dos que saiu vencido no julgamento em que o STF validou os dispositivos que instituíram o trabalho intermitente. O ministro compôs a corrente que entende que, a despeito de a modalidade assegurar ao trabalhador direitos tradicionais (repouso semanal remunerado, recolhimentos previdenciários e férias e 13º salário proporcionais), o formato de contratação, como foi instituído pela reforma trabalhista, não garante previsibilidade de trabalho e, consequentemente, de salário. Acompanharam essa tese Cármen Lúcia, Rosa Weber (aposentada), Luiz Fux e Cristiano Zanin. Já Nunes Marques (relator), Luís Roberto Barroso, Gilmar Mendes, Alexandre de Moraes, Dias Toffoli e André Mendonça integraram a ala que decidiu que o trabalho intermitente não suprime direitos trabalhistas, nem fragiliza as relações de emprego (ADI 5.826, 5.829 e 6.154).

página 38 - anuário brasil 2025

A posição dos ministros em matéria trabalhista também pode ser medida pelo índice de procedências de reclamações constitucionais, instrumento pelo qual empresas chegam diretamente ao Supremo para reverter decisões da Justiça do Trabalho. Levantamento deste Anuário da Justiça junto ao painel de estatísticas do STF mostra que Gilmar Mendes foi o ministro que mais votou pela procedência (total ou parcial) das 8,8 mil reclamações relacionadas a Direito do Trabalho na corte entre 2024 e 2025: 77%. Na sequência aparecem André Mendonça (74%); Fux (71%); Cármen Lúcia (69%); Zanin (66%); Alexandre (63%); e Nunes Marques (59%). Na outra ponta, estão Edson Fachin, que julgou procedentes 13% dessas reclamações, e Flávio Dino (36%).

página 39 - anuário brasil 2025

Só em 2024, o STF recebeu mais de 10 mil reclamações (de todas as áreas), um salto de quase 40% em relação ao ano anterior. “É uma consequência de o Supremo ter se tornado um tribunal de precedentes, e esses precedentes serem vinculantes, o que justifica o aumento das reclamações”, explica o presidente Luís Roberto Barroso.

No campo do Direito Penal, o Supremo enfrentou temas que evidenciaram posições mais duras dos recém-chegados Zanin e Dino. No julgamento sobre a ilegalidade de abordagem policial motivadas por raça, os dois acompanharam a maioria para denegar Habeas Corpus a um homem condenado por tráfico de drogas.

página 40 - anuário brasil 2025

No caso, o policial que o abordou afirmou em depoimento que avistou “indivíduo de cor negra que estava em cena típica de tráfico”. Gilmar, Toffoli, Nunes Marques e Mendonça também votaram contra o HC, por entender que a revista não foi motivada por filtragem racial. Já Barroso, Fux e Fachin votaram a favor do réu, alegando que a abordagem teria sido motivada unicamente pela cor da pele. “A prisão por 1,5 g de cocaína é muito atí-pica e reveladora, na minha visão, de um perfilamento que, se não for racial, pelo menos é social. Revela o tratamento desequiparado em partes diferentes da cidade”, disse Barroso, em seu voto.

página 40 (2) - anuário brasil 2025

No mesmo julgamento, por unanimidade, o Plenário fixou a tese: “A busca pessoal independente de mandado judicial deve estar fundada em elementos indiciários objetivos de que a pessoa esteja na posse de arma proibida ou de objetos ou papéis que constituam corpo de delito, não sendo lícita a realização da medida com base na raça, sexo, orientação sexual, cor da pele ou aparência física” (HC 208.240).

A tendência de Dino mais favorável à acusação também ficou demonstrada no julgamento em que o STF definiu, por maioria, que cabe recurso de apelação contra decisão do Tribunal do Júri que absolve o réu por quesito genérico (absolvição por clemência), em contrariedade às provas. Zanin, Mendonça e Gilmar foram contra, por entenderem que a possibilidade de apelação esvazia a soberania dos veredictos populares, prevista na Constituição. Prevaleceu o entendimento de Fachin, de que a revisão da decisão nessas situações, com determinação de novo julgamento, não viola a soberania do júri. Foi acompanhado por Dino, Cármen Lúcia, Alexandre, Fux, Toffoli e Barroso.

página 41 - anuário brasil 2025

O post De incêndios à ‘uberização’: os julgados-chave do STF em 2024 apareceu primeiro em Consultor Jurídico.

A montanha-russa regulamentar do Ex-tarifário

O regime de Ex-tarifário instituído pela Lei nº 3.244/1957 é um importante mecanismo de política comercial que permite a isenção ou redução do Imposto de Importação para bens de capital (BK) e bens de informática e telecomunicações (BIT), bem como suas partes, peças e componentes, quando não há produção nacional equivalente, ou esta é insuficiente para atender ao consumo interno. [1]

Sua base normativa encontra-se também no inciso I do artigo 14 do Decreto-Lei nº 37/1966, na Decisão Mercosul/CMC/Dec 34/03, em seu artigo 1º, e no Decreto no 5078, de 11/05/04. Sua importância está sintetizada pelo Ministério de Desenvolvimento, Indústria, Comércio e Serviços (MDIC), como sendo: (i) viabilizar o aumento de investimentos em bens de capital (BK) e de informática e telecomunicação (BIT); (ii) possibilitar o aumento da inovação por parte de empresas, com a incorporação de novas tecnologias inexistentes no Brasil, ampliando produtividade e competitividade; (iii) promover  um efeito multiplicador de emprego e renda da economia nacional.” [2]

Como o imposto de importação atende a objetivos muito diversos do que meramente ser fonte de arrecadação de receitas para o Governo Federal, dentro da sua função regulatória e extrafiscal, promove-se a sua redução por meio da concessão de um regime de exceção tarifária. Esse permite zerar a cobrança do imposto de importação, quando a entrada do produto estrangeiro no território nacional for de interesse do país. Importar máquinas e equipamentos sem produção nacional equivalente estimula o setor produtivo, a inovação, a utilização de tecnologia de ponta, gerando desenvolvimento econômico, social, tecnológico, renda e empregos.

Como o imposto de importação é uma exceção ao princípio constitucional da anterioridade, nos termos do artigo 153, §1º da CF/88, o uso do Ex-tarifário serve legitimamente às políticas de governo, ora se reduzindo, ora se ampliando sua concessão, atendendo a interesse de maior proteção da indústria nacional, ou estímulo às importações.

Para regular a previsão da exceção às tarifas da TEC (Tarifa Externa Comum), o Poder Executivo, através dos Ministérios competentes, da Fazenda (outrora da Economia) e do Desenvolvimento, Indústria, Comércio e Serviços, tem editado resoluções e portarias ao longo dos anos para estabelecer as regras procedimentais para a análise e deferimento dos pleitos de Ex-tarifário.

A aplicação desse benefício a bens usados e destinados à revenda têm sido, nos últimos anos, um ponto de câmbios regulatórios, gerando incertezas para os importadores e acerbas discussões. A análise das normas que regularam o Ex-tarifário nos últimos dez anos revela uma trajetória de idas e vindas e, notadamente quanto à possibilidade de importação de bens usados com o benefício, é possível distinguirmos três momentos principais, a saber: 

1º momento: vedação expressa (Resolução Camex nº 66/2014)

A Resolução Camex nº 66, de 14 de agosto de 2014, nesse período, foi a primeira norma a dispor sobre a redução temporária e excepcional da alíquota do imposto de importação para BK e BIT sem produção nacional equivalente, estabelecendo também as regras procedimentais para se requerer o benefício. Durante sua vigência essa resolução limitava expressamente a concessão dos Ex-tarifários exclusivamente a bens novos, excluindo, portanto, os bens usados, conforme previsão expressa do §3º do seu artigo 1º. Assim, qualquer Ex-tarifário analisado e deferido nesse período não abarcava a importação de bens usados.

2º momento: a abertura e a interpretação da Receita (Portaria ME nº 309/2019 e Soluções de Consulta Cosit)

Em 24 de junho de 2019 foi editada a Portaria ME nº 309/2019 revogando a Resolução Camex nº 66/2014. Uma novidade relevante na nova regulamentação foi que ela não manteve dentre seus dispositivos a vedação expressa à utilização do Ex-tarifário para bens usados, tampouco para bens de consumo. Embora a Portaria Sepec nº 324/2019 orientasse pela recomendação negativa para pedidos visando aplicação a bens usados na análise técnica, conforme disposição do seu artigo 3º, essa recomendação não possuía caráter vinculante, conforme entendimento 6ª Turma do TRF 3ª Região estabelecida no julgamento da apelação em remessa necessária, no 50018206720204036104 SP, Relator: Desembargador Federal Luís Antonio Johonsom Di Salvo, publicada em 18/02/2021. [3]

Diante da ausência de previsão normativa no texto da Portaria ME nº 309/2019 vedando a aplicação do Ex-tarifário a bens usados, a Receita Federal, respondendo a questionamento de um interveniente, publicou a Solução de Consulta Cosit nº 122/2020 consignando que o Ex-tarifário concedido nos termos da Portaria ME nº 309/2019 seria aplicável tanto à importação de bens novos, quanto de bens usadosincluindo os remanufaturados ou “refurbished[4]

A Solução de Consulta Cosit nº 122/2020 analisou especificamente um caso em que um Ex-tarifário, inicialmente concedido sob a Resolução Camex nº 90/2017 (que se submetia à vedação da Resolução Camex nº 66/2014), foi prorrogado pela Portaria Secint nº 461, de 26 de junho de 2019, já sob a égide da Portaria ME nº 309/2019. A Receita entendeu à época que deveria prevalecer o regramento procedimental vigente quando da concessão, ou prorrogação, do benefício e que, portanto, esse Ex-tarifário poderia ser aplicado a bens usados. Essa interpretação foi reafirmada de modo ainda mais claro na Solução de Consulta Cosit nº 174, de 18 de setembro de 2023, que reiterou a aplicabilidade do Ex-tarifário, indistintamente, a bens novos e usados, bem como para bens de consumo, isso em relação àqueles concedidos sob a Portaria ME nº 309/2019, dentro do prazo de vigência do ato concessório.

3º momento: o retorno à vedação e a proteção das expectativas legítimas. (Resolução Gecex nº 512/2023 e Solução de Consulta Cosit nº 76/2024)

Em 18 de agosto de 2023, foi publicada a Resolução Gecex nº 512, de 16 de agosto de 2023, que revogou as Portarias ME nº 309/2019 e Sepec nº 324/2019. Essa nova resolução voltou a prever, nos mesmos moldes da Resolução Camex nº 66/2014, a vedação da aplicação do Ex-tarifário para bens usados, conforme se verifica na disposição do seu art. 2º, §2º, inciso II.

A partir da publicação da Resolução Gecex nº 512/2023, em resposta a outra consulta de um importador, a Receita Federal estabeleceu sua interpretação das normas por meio da Solução de Consulta Cosit nº 76, de 09 de abril de 2024. Essa esclareceu que até 17 de agosto de 2023 (ou seja, para Ex-tarifários concedidos sob égide da Portaria ME nº 309/2019), a redução de alíquota podia ser utilizada para importação de bens novos e usados.

Contudo, a partir de 18 de agosto de 2023, com a publicação da Resolução Gecex nº 512/2023, o benefício não se aplicaria mais a importação de bens de capital usados e de consumo, restando prejudicado o entendimento exposto na Solução de Consulta Cosit nº 122/2020. [5]

É fundamental ressaltar que essa mudança não possui efeito retroativo, sendo inservível para interpretar e aplicar as exceções tarifárias concedidas anteriormente e com prazo fixo, inclusive prazo fixo posterior à data de publicação da Resolução Gecex nº 512/2023. [6] Ex-tarifários concedidos e válidos sob a vigência da Portaria ME nº 309/2019 podem e devem continuar a ser aplicados para bens usados e independente de sua destinação.

A não retroatividade da nova orientação procedimental da Resolução Gecex nº 512/2023, norma destinada à análise de novos pedidos de Ex-tarifário, é um imperativo legal, sob pena de violação do art. 178 do Código Tributário Nacional (CTN) e do artigo 24 da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (Lindb).

O artigo 178 do CTN estabelece que a isenção, salvo se concedida por prazo certo [7] e em função de determinadas condições, pode ser revogada ou modificada por lei a qualquer tempo, mas o benefício concedido por prazo certo passa a ser um direito e uma expectativa legítima do contribuinte. Além disso, a Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (Lindb), em seu artigo 24, proíbe que a autoridade dê aplicação retroativa a uma nova interpretação ou critério jurídico, vedando a declaração de invalidade de situações plenamente constituídas com base em mudança posterior de orientação geral. Princípios magnos como da segurança jurídica, da boa-fé objetiva e da confiança legítima do administrado nos atos da administração são pilares do Estado Democrático de Direito e garantem a estabilidade das situações jurídicas conformadas sob sua vigência.

Nesse quadro, qualquer tentativa de impedir o desembaraço aduaneiro de bens importados com Ex-tarifário válido, sob o fundamento de vedação de sua aplicação a bens usados e importados para revenda, hipóteses previstas na Resolução Gecex nº 512/2023, quando o benefício tenha sido concedido sob vigência da norma anterior, ou seja da Portaria ME nº 309/2019, constitui uma ofensa clara a tais princípios essenciais da ordem jurídica, em confronto com a  jurisprudência já firmada sobre o tema. A título de ilustração, tome-se a decisão do eg. TRF 6ª Região por sua 3ª Turma, no AI nº 6000696-85.2024.4.06.0000, publicado no D.E. 05/02/2024 [8], cujos principais pontos do venerando acórdão, destacamos:

Concessão válida do ex-tarifário antes da nova restrição normativa
A impetrante obteve regularmente, em 04/08/2023, a concessão do benefício ex-tarifário para a importação de bem usado (um bulldozer), antes da entrada em vigor da Resolução Gecex nº 512/2023 (de 16/08/2023), que passou a vedar o benefício a bens usados.

Registro da Declaração de Importação posterior à concessão
O registro da Declaração de Importação (DI) ocorreu em 26/12/2023, ou seja, após a vigência da Resolução GECEX nº 512/2023. Contudo, como o benefício foi concedido antes disso, deve prevalecer a norma vigente à época da concessão do ex-tarifário.

Prevalência de jurisprudência e orientação da PGFN
O acórdão destaca a jurisprudência pacificada do STJ (REsp 1.821.992/RS e outros) e a posição da PGFN (Nota SEI nº 28/2019), que reconhecem que os efeitos do ex-tarifário concedido antes da importação estendem-se até o desembaraço aduaneiro, mesmo para bens usados.

Caráter não retroativo das Resoluções Gecex/Camex
A Resolução Gecex nº 512/2023 não pode retroagir para prejudicar concessões anteriores. Como a concessão do benefício se deu antes da publicação da nova norma, não se aplica a vedação posterior.

Conclusões

A jornada regulatória do Ex-tarifário para bens usados e destinados à revenda é um exemplo claro da necessidade de se conhecer os princípios e regras aplicáveis a cada área e tema do Direito, sendo eles sensíveis para assegurar a previsibilidade nas relações entre a Aduana e os intervenientes, e como as mudanças, ainda que legítimas, do ponto de vista das fontes normativas e autoridades competentes, provocam incertezas e dúvidas que desestimulam a produção e novos investimentos.

Embora a legislação tenha oscilado entre a vedação e a permissão, a interpretação consolidada pela Receita Federal, reiterada em diversas soluções de consulta, é de que a regra aplicável à interpretação é aquela vigente no momento da concessão, ou prorrogação, do Ex-tarifário.

Isso significa que, mesmo com a atual e vigente Resolução Gecex nº 512/2023 vedando a importação de bens usados com aplicação de exceção tarifária, os benefícios que tenham sido concedidos sob a Portaria ME nº 309/2019 — que permitia tal importação, como vimos de ver — permanecem válidos, enquanto perdurar o prazo do ato concessório.

Impedir o desembaraço aduaneiro, ou exigir tributos, em casos de Ex-tarifário concedido sob o regramento anterior configura afronta aos princípios da irretroatividade, segurança jurídica e confiança legítima, garantias fundamentais para o Estado democrático de Direito, para o ambiente de negócios e a relação entre a Administração Pública e os administrados, cabendo ao administrado, se necessário, buscar amparo para o seu direito junto ao judiciário.

A compreensão e o respeito a essa linha temporal de vigência das diferentes normas e aos princípios constitucionais aplicáveis são essenciais para se evitar litígios desnecessários, assegurando um ambiente de negócios estimulante à produção, pautado no respeito às normas vigentes.

No que se refere aos pedidos de renovação de Ex-tarifário, comunicado do site do MDIC [9] estabelecendo o prazo limite até o dia 30 de junho de 2025 para protocolo do pedido em relação àqueles vigentes até 31/12/2025, está em flagrante conflito com o prazo previsto no artigo 5º da Resolução Gecex no 512/2023, que dispõe, ipsis litteris: Os pleitos de renovação de Ex-tarifários concedidos poderão ser solicitados dentro do período de vigência do Ex-tarifário, com antecedência máxima de 180 (cento e oitenta) dias do seu vencimento.

A mudança do prazo em desafio à norma procedimental também ofende expectativa legítima das empresas interessadas em investir na modernização do seu parque industrial. A ilegalidade merece corrigenda com base no princípio da autotutela administrativa, sem que seja necessária a judicialização da controvérsia. É o que se espera possa ocorrer o quanto antes, restabelecendo-se o prazo previsto no artigo 5º da Resolução Gecex no 512/2023.

___________________________________________

[1] Sobre o tema Ex-tarifário recomendamos a leitura do artigo publicado na coluna por nossa colega Fernanda Kotzias. Disponível em: link . Acesso em 13/06/2025.

[2] Disponível em: link . Acesso em 13/06/2025.

[3] Entendimento firmado pela RFB na Solução de Consulta Cosit n76/2024, em seus itens 10 a 14. Disponível em: link. Acesso em 13/06/2025.

[4] Segue trecho da Solução de Consulta n 122/2020 nesse sentido:  -se que não mais consta como requisito à concessão do Ex-tarifário que o bem importado seja novo, requisito existente quando em vigor a Resolução Camex nº 66, de 2014, que, no § 3º do art. 1º, que determinava que a redução da alíquota do Imposto de Importação fosse concedida exclusivamente para bens novos.  (…) quanto a se o bem remanufaturado é novo ou usado. Desde que o bem importado corresponda à descrição do bem constante do Ex-tarifário, terá direito à alíquota reduzida prevista para esse Ex-tributário.

[5] O colega de coluna Leonardo Branco defendeu a ilegalidade da restrição a importação de bens usados incluída na Resolução 512/2023, posição com a qual concordamos. Recomenda-se a leitura do artigo. Disponível em: link Acesso em 13/09/2025.

[6] No mesmo sentido, já escreveu Thales Belchior. Disponível em: link. Acesso: 13/09/2025.

[7] “Trata-se de uma isenção do imposto, concedida por prazo certo, com fundamento no art. 4º da Lei nº 3.244/1957, na redação do Decreto-Lei nº 63/1966:(…)”, in SEHN, Solon. Curso de Direito Aduaneiro. 3ª ed. São Paulo: Ed. Forense, 2025, p. 131.

[8] TRF6, AI 6000696-85.2024.4.06.0000, 3ª Turma, Relator Álvaro Ricardo de Souza Cruz, D.E. 05/02/2024

[9] Disponível em: link . Acesso em 13/06/2025.

O post A montanha-russa regulamentar do Ex-tarifário apareceu primeiro em Consultor Jurídico.

União tenta reverter coisa julgada e ameaça setor sucroalcooleiro

usina de açúcar

Das causas que opõem o governo ao setor produtivo brasileiro, uma delas está na pauta do Superior Tribunal de Justiça. Trata-se da discussão sobre os prejuízos causados pela União ao setor sucroalcooleiro. Em julgamento, a indenização devida aos produtores de açúcar e álcool — o que foi reconhecido pelo Judiciário há 26 anos.

Para esquivar-se da obrigação, o braço jurídico do governo vem protelando uma questão já pacificada. O litígio se encontra no Recurso Especial 2.202.015/DF, de relatoria do ministro Afrânio Vilela.

O julgamento, iniciado na semana passada com as sustentações orais das partes, foi suspenso com pedido de vista regimental feito pelo próprio relator. O que se examina é um paradigma já estabelecido pelo Supremo Tribunal Federal, com efeitos de repercussão geral.

Histórico do caso

O processo tem origem em uma ação de conhecimento ajuizada em 1990 contra a União. No mérito, busca-se indenização pelos prejuízos causados pela política de preços do setor sucroalcooleiro, por meio do extinto Instituto do Açúcar e do Álcool (IAA).

A decisão de mérito da ação de conhecimento transitou em julgado em 1999. Inconformada, a União ajuizou uma ação rescisória com o objetivo de desconstituir a sentença. A tentativa também fracassou: a rescisória foi definitivamente rejeitada, com trânsito em julgado no STF em 2017, o que confirmou de forma irrevogável a condenação.

Depois de 20 anos do trânsito em julgado da ação de conhecimento, quando o processo finalmente chegou à fase de cumprimento de sentença, a União interpôs agravo de instrumento contra a decisão que rejeitou sua impugnação.

A Justiça homologou os cálculos apresentados, fixou novos honorários e determinou a expedição de precatório. O Tribunal Regional Federal da 1ª Região não conheceu do recurso. A corte reconheceu que o meio adequado seria a apelação, não o agravo de instrumento — um erro grosseiro, já reconhecido reiteradamente pela jurisprudência.

Valores depositados afastam os argumentos da União

Os valores devidos já foram objeto de precatório e encontram-se depositados em conta vinculada ao juízo de origem, reforçando o caráter terminativo da decisão atacada.

O dado colide com o argumento da União quanto ao alegado risco ao erário, ausência de dotação orçamentária ou qualquer outra justificativa econômica ou fiscal. O dinheiro está depositado, à disposição do juízo, aguardando apenas o cumprimento pelo Estado quanto ao dever de indenizar.

Jurisprudência consolidada

A jurisprudência do STJ sobre a matéria é não apenas pacífica, mas consolidada. O entendimento da corte é claro: o recurso cabível contra a decisão que homologa os cálculos e determina a expedição de requisição de pequeno valor ou precatório é o de apelação.

A 2ª Turma do STJ tem aplicado esse entendimento. No julgamento do AgInt no REsp 2.120.344/PI, julgado em 13 de novembro de 2024, a ministra Maria Thereza de Assis Moura foi categórica:

“O recurso cabível contra decisão que homologa os cálculos apresentados e determina a expedição de precatório ou RPV, declarando extinta a execução, é o de apelação”.

O mesmo entendimento foi reafirmado no AgInt no AREsp 2.408.476/PR, julgado em 21 de fevereiro de 2024, quando se estabeleceu que “constitui erro grosseiro a interposição de agravo de instrumento” contra decisão que encerra a execução com expedição de precatório.

Distinguish em relação ao precedente citado pela União

Nas sustentações orais, a União invocou precedente da 1ª Turma (AREsp 2.569.918/MA) para justificar sua estratégia recursal. Contudo, a análise dos autos demonstra não haver semelhança entre os casos.

No precedente citado, o juízo de primeiro grau “apenas resolveu um incidente na fase de execução de sentença, sem pôr fim à execução”. A expedição dos requisitórios estava condicionada à preclusão da decisão — ou seja, não houve encerramento efetivo da fase executiva.

No caso, a situação é diferente. Houve expressa determinação de expedição imediata dos precatórios, condenação em honorários de sucumbência, encerramento definitivo da execução, sem qualquer atividade jurisdicional pendente. Mais relevante ainda: os precatórios já foram expedidos e os valores encontram-se depositados, reforçando de forma inequívoca o caráter terminativo da decisão.

A própria 1ª Turma tem reiterados precedentes na linha do que foi decidido pela 2ª Turma. No AgInt no Aresp 2.280.425/PE, o ministro Paulo Sérgio Domingues dispôs na ementa que, pela jurisprudência do STJ, “o recurso cabível contra decisão que homologa os cálculos e põe fim à execução, tendo em vista a sua natureza definitiva, é considerado erro grosseiro a interposição de agravo de instrumento”.

Óbices incontornáveis

O recurso da União enfrenta óbices processuais que, por si sós, impedem seu conhecimento, como a Súmula 83 do STJ, que impede conhecimento de recurso especial quando o acórdão recorrido está em consonância com a jurisprudência dominante da corte.

As Súmulas 282 e 356 do STF determinam que a ausência de prequestionamento, já que o TRF-1 não analisou o mérito, limita-se à rejeição do recurso inadequado (agravo de instrumento).

Tema 613 dos Recursos Repetitivos (EDs-REsp 1.347.136/DF): reafirma que a apuração dos valores deve seguir, rigorosamente, os critérios fixados no título executivo, sem reinterpretações posteriores ou rediscussões.

Afronta à coisa julgada

A estratégia processual do governo é a de relativizar a coisa julgada. Ao buscar reabrir discussões sobre critérios de liquidez, metodologia de apuração e até o período de indenização — todos já definidos no título executivo desde 1999 e reafirmados na ação rescisória encerrada em 2017 —, a União investe contra um dos pilares mais fundamentais do sistema jurídico: não se escolhe que sentenças se quer ou não cumprir.

Precedente do próprio relator

O próprio ministro relator, Afrânio Vilela, já decidiu questão idêntica no AREsp 2.841.063, poucos dias antes do julgamento do caso. Na ocasião, reconheceu expressamente que:

“O recurso cabível contra decisão homologatória de cálculos em execução, e com a correspondente expedição de precatório, é o de apelação, haja vista a sua natureza definitiva, e não o de agravo de instrumento”.

A decisão foi publicada no DJEN de 12 de maio deste ano, demonstrando a consolidação do entendimento e também a ausência de dúvida objetiva sobre o tema.

Padrão preocupante

O caso é mais do que um litígio isolado: é a expressão de um padrão reiterado de comportamento da União em processos indenizatórios do setor sucroalcooleiro.

Mesmo após decisões transitadas em julgado há décadas, confirmadas pelo STF, e com os valores já depositados, a Fazenda Nacional insiste na procrastinação do cumprimento do dever — argumento frequentemente usado pela União na cobrança dos deveres de contribuintes.

A documentação processual revela que a União continua sustentando teses como “incompatibilidade entre a decisão agravada e o que fora julgado nos embargos à execução” e questionamentos sobre “a liquidez do título exequendo e o período da indenização” — temas absolutamente superados desde 1999 e, posteriormente, reafirmados no trânsito em julgado da ação rescisória de 2017.

Riscos sistêmicos para a segurança jurídica

Especialistas alertam que, se essa postura for chancelada pelo STJ, o precedente que se formará ameaçará de forma estrutural o sistema de Justiça brasileiro.

Encoraja o descumprimento sistemático de decisões judiciais definitivas.

Compromete a credibilidade do sistema judicial e da própria autoridade do STJ e do STF, já que a matéria de fundo já foi resolvida em sede de julgamento com repercussão geral.

Efeitos do paradigma

O caso enquadra-se na moléstia detectada da litigância protelatória, quando o devedor perseguido é o contribuinte. Aplicado ao capítulo do sistema de precatórios, reforça a cultura de que o Estado só tem direitos e a sociedade, apenas obrigações.

Na dimensão temporal, o processo tem impacto econômico-social. O caso escancara de forma dramática o uso da morosidade do sistema judicial como um truque.

Uma ação ajuizada em 1990, com trânsito em julgado em 1999, confirmada em ação rescisória em 2017, e com os valores já depositados, configura deslealdade processual. No caso concreto, a resistência da União em 2025 — 35 anos depois do início da demanda e 26 anos após a formação da coisa julgada. Um estupro jurídico.

O prolongamento desse litígio, além de ferir o Estado de Direito, causou sérios impactos econômicos ao setor sucroalcooleiro, levou empresas à insolvência e impôs um ônus inaceitável aos credores, que aguardam há mais de três décadas o adimplemento de uma obrigação reconhecida judicialmente — com julgamento de mérito resolvido em repercussão geral pelo Supremo.

Perspectivas e o que está em jogo

O julgamento do REsp 2.202.015/DF, inicialmente pautado para 10 de junho passado, foi suspenso após pedido de vista regimental do ministro relator. A decisão final será muito mais do que a solução do processo específico. Ela definirá: os limites da atuação da Fazenda Pública frente à coisa julgada; a aplicação ou não da fungibilidade recursal diante de erro grosseiro; a efetividade da execução contra a Fazenda Pública; e a integridade do sistema de precatórios.

Não se trata apenas de um processo corriqueiro, mas, sobretudo, da credibilidade do próprio Estado de Direito no Brasil.

Caso a tese da União prospere, o precedente formado não impacta apenas um dos setores produtivos mais relevantes para a economia brasileira — mas a reputação do poder público, de forma generalizada. O fundamento de que a União, como devedora, pode escolher quais sentenças deseja ou não cumprir compromete o equilíbrio natural do sistema, ao revogar, de forma irreparável, o conceito de coisa julgada.

Afinal, se o Estado valida o argumento de que não precisa pagar, se o custo “compromete a governabilidade”, o contribuinte poderia sonegar, se o tributo compromete sua capacidade financeira.

Acompanhe a saga do caso:

1990: Ajuizamento da ação de conhecimento;

1999: Trânsito em julgado da sentença condenatória da ação de conhecimento;

2017: Trânsito em julgado da ação rescisória no STF, confirmando a condenação;

2025: A União ainda questiona a execução, mesmo com valores já depositados.

A cronologia mostra a resistência da Fazenda Pública em cumprir decisões judiciais definitivas, mesmo quando confirmadas pelas mais altas instâncias do Judiciário, em 35 anos de tramitação.

Na visão do tributarista Igor Mauler Santiago, “o poder público, no Brasil, é mau perdedor. Maldiz a litigância predatória, o devedor contumaz, o abuso nos recursos, mas não se olha no espelho. Coisa julgada ainda é coisa séria”.

O constitucionalista Georges Abboud não prensa diferente: “O Brasil tem vivenciado há anos governos nacionais, em maior ou menor medida, irresponsáveis do ponto de vista fiscal e orçamentário”, diz ele.

Para Abboud, “é um reflexo da desorganização fiscal e da sanha processual predatória praticada pela União Federal”. O caso, analisa, “é exemplo dessa prática, em que se litiga de forma descontrolada, busca-se superação de precedentes, violação de garantias fundamentais dos particulares, sempre com base em argumentos ad terrorem”.

O post União tenta reverter coisa julgada e ameaça setor sucroalcooleiro apareceu primeiro em Consultor Jurídico.

Conselho Superior do CG-IBS sem municípios e erosão federativa

Desde 2019 [1], temos sustentado que a criação de um Imposto sobre Bens e Serviços (IBS) compartilhado entre os entes subnacionais, nos moldes aventados pela PEC 45, continha vício federativo de origem. Demonstramos que o modelo retirava competências tributárias próprias e exclusivas dos estados e municípios e violava o núcleo intangível do pacto federativo.

Prova disso, por exemplo, é o disposto no artigo 104, IV, do ADCT, que permite, em caso de não pagamento de precatórios, sejam retidos os valores de IBS pertencentes aos municípios (§§ 1º e 2º do artigo 158 da CF), conforme alertou Caio Costa e Paula [2]. Se o tributo fosse, verdadeiramente, de competência municipal, ainda que compartilhada com o Estados, conforme prevê o artigo 156-A da Constituição, esse tipo de “retenção” não poderia ocorrer, dado que o conceito de “repasse” supõe transferências financeiras oriundas de participação em tributos que pertencem a outros entes federativos (como a União), não a tributos próprios.

Após a promulgação da EC 132/2023 e edição da LC 214/2025, evidenciamos que os entes periféricos perdiam também capacidade tributária ativa, pois tudo o que antes cada ente federativo fazia isoladamente — arrecadar, fiscalizar, julgar, e interpretar — agora teria de fazer em grupo [3]. Isso, em razão da exigência de regulamento único e deliberação colegiada acerca de todos esses aspectos em Comitê Gestor cujo desenho institucional favorece o poder da União e fragmenta o poder dos demais. Advertimos que a exigência de unanimidade, aliada à distribuição desigual de votos e à representação indireta dos entes subnacionais, tornaria o órgão inoperante ou suscetível à captura pelo poder central [4].

Para tornar tudo ainda mais complexo, recentemente, houve a instalação do Conselho Superior do Comitê Gestor do IBS sem a presença dos representantes municipais, o que também comprova, no plano fático, algumas das advertências a respeito da funcionalidade e constitucionalidade do novo sistema. A reunião de instalação, conduzida virtualmente e composta apenas por representantes estaduais e do Distrito Federal, consagra um arranjo decisório no qual mais de 5.500 municípios ficaram à margem. Ou seja, nem mesmo o que era previsto para ser realizado em grupo pôde ser feito do ponto de vista da representação dos municípios.

A ausência dos Municípios decorre de litígio entre a Frente Nacional de Prefeitos (FNP) e a Confederação Nacional de Municípios (CNM), que discutem, no âmbito do TJ-DFT [5], quem pode credenciar candidatos, quais os requisitos de elegibilidade e se a eleição virtual atende ao princípio da representação paritária. Enquanto isso, o conselho inicia atividades com um vácuo deliberativo que deslegitima qualquer ato subsequente.

Se a instalação dos representantes dos municípios é condição para o funcionamento do Comitê Gestor, formá-lo sem a participação daqueles entes implica inconstitucionalidade. Qualquer ato normativo ou interpretativo emanado do conselho, enquanto estiver sem a representação adequada dos municípios, será inválido.

Mesmo em um cenário de colegialidade plena advertíamos que os entes subnacionais não teriam maioria, nem possibilidade de representação adequada de seus interesses. Afinal, enquanto a União forma um bloco monolítico, com interesses claramente alinhados e representação de 50% nos comitês de harmonização (4 representantes, todos indicados pelo ministro da Fazenda — artigo 320, III da LC 214/25), os 27 estados e DF (dois representantes — 25%) e os mais de 5.570 municípios (dois representantes – 25%), que possuem uma pluralidade de interesses regionais/locais, inclusive antagônicos entre si (conforme, aliás, demonstra a disputa entre CNM e FNP), respondem, juntos, pelos demais 50%. Portanto, os entes subnacionais nem sequer possuem maioria na representação de seus interesses nos comitês.

Agora constata-se situação ainda mais grave: os municípios nem sequer estão no grupo, já que o comitê foi criado sem eles. Mas, mesmo se os municípios vierem a participar do Comitê por meio de representação da CNM, possivelmente não haverá representação dos pequenos municípios, conforme alerta a FNP. O Comitê Gestor tornou-se, de saída, um condomínio inconstitucional em que apenas os Estados ocupam o salão de assembleias, enquanto os municípios aguardam na antessala, disputando direito de ingresso.

Reforma ameaça converter estados e municípios em autarquias da União

Por outro lado, a União, que já detém metade dos assentos nos fóruns e comitês de harmonização e exerce papel central na definição das normas e procedimentos do IBS e da CBS, vê seu poder amplificado. Sem a participação efetiva dos municípios, a representatividade da União, que já era dominante, torna-se mais preponderante, reduzindo substancialmente o poder de influência dos entes subnacionais e tornando o sistema decisório ainda mais centralizado, o que compromete o equilíbrio federativo que deveria nortear a gestão do novo tributo.

Esse déficit de representatividade viola frontalmente o artigo 156-B da Constituição, que exige atuação integrada e paritária de estados, Distrito Federal e municípios na administração do IBS. Viola também a ratio decidendi dos precedentes do Supremo Tribunal Federal que qualificam a repartição de competências e de receitas como pilar da autonomia dos entes e não permitem a criação de estruturas administrativas que esvaziem o poder decisório dos entes federados (ADIs 2.024, 4.228 e RE 591.033). Se, por emenda constitucional, já era duvidoso reduzir a capacidade de autodefinição dos entes, mais temerário é prosseguir na implementação prática quando um dos pilares da tríplice engrenagem federativa está ausente.

A comparação internacional confirma a inconstitucionalidade do modelo [6]. No Canadá, a harmonização do GST/HST foi voluntária e gradativa: províncias aderiram por negociação bilateral, mantendo competência plena sobre alíquotas e fiscalização local. Na Índia, o conselho atribui 2/3 dos votos aos Estados, exigindo maioria qualificada de 75 %. No Brasil, a União não apenas participa de fóruns de harmonização com metade dos assentos, como estes já funcionam mesmo quando a cadeira municipal permanece vazia.

Tudo, em síntese, vem a confirmar nossa hipótese: o desenho adotado para o novo sistema tributário reduziu competência tributária, capacidade ativa e, agora, possibilidade de efetiva representação dos interesses subnacionais, mesmo em grupo. Se já era difícil conceber um órgão que exigisse unanimidade entre quase 6 mil entes, mais impraticável é fazê-lo funcionar sem a representação dos municípios. O resultado previsível é a prevalência dos interesses da União — bloco monolítico dotado de iniciativa legislativa e poder de fato – sobre uma federação enfraquecida e desarticulada. A reforma tributária ameaça converter estados e municípios em meras autarquias administrativas da União, conforme bem observado por Fernando Facury Scaff [7], fato que desfigura a forma de Estado federal, cláusula pétrea na Constituição.


[1] SOUZA, Hamilton Dias; CARRAZZA, Roque Antonio & ÁVILA, Humberto. A reforma tributária de que o Brasil precisa. In: Polifonia – Revista Internacional da Academia Paulista de Direito, n. 3., p. 284-305. Disponível aqui.

MARTINS, Ives Gandra da Silva; SOUZA, Hamilton Dias de; ÁVILA, Humberto & CARRAZZA, Roque Antônio. Relatório sobre as propostas da Câmara para a reforma tributária – Partes I e II. Portal Consultor Jurídico. Disponível aqui e aqui

SOUZA, Hamilton Dias de. A falsa dualidade da PEC 45/2019. Portal Consultor Jurídico. Disponível aqui

[2] PAULA, Caio Costa e. Encruzilhada federativa: municípios superendividados e a ameaça da reforma tributária. Revisa Consultor Jurídico. Disponível aqui

[3] SOUZA, Hamilton Dias de; SZELBRACIKOWSKI, Daniel Corrêa. Comitê gestor do IBS, harmonização e Federação – parte 1. JOTA. 14 de março de 2024. Aqui

[4] SOUZA, Hamilton Dias de; SZELBRACIKOWSKI. Reforma Tributária e federação, um diálogo com Fernando Scaff. Portal Consultor Jurídico. Disponível aqui

[5] Processo n.º 0714569-22.2025.8.07.0000.

[6] SOUZA, Hamilton Dias de; SZELBRACIKOWSKI, Daniel Corrêa. Reforma, harmonização e federação: o não adotado modelo indiano. São Paulo: JOTA, 2 de fevereiro de 2025. Disponível aqui​.

SOUZA, Hamilton Dias de; SZELBRACIKOWSKI, Daniel Corrêa. Reforma, harmonização e federação: o não adotado modelo canadense. JOTA. 12 de março de 2025. Aqui

[7] SCAFF, Fernando Facury. A Federação da União e suas autarquias: diálogo com Hamilton Dias de Souza. Aqui

O post Conselho Superior do CG-IBS sem municípios e erosão federativa apareceu primeiro em Consultor Jurídico.

Boa-fé e nulidade no projeto de reforma do Código Civil

A utilização codificada das técnicas de cláusulas gerais é constante desde o século passado, mas exige um extremo cuidado e pode ser objeto de críticas.

Uma das críticas decorre da própria indeterminação e vagueza que potencializa conflitos, uma busca por sentido que esbarra em um Judiciário que enfrenta dificuldades pelo poder-dever de atender e responder a todo e qualquer conflito que lhe é apresentado.

Ademais, essas cláusulas exercem uma tripla função: interpretativa, corretiva e supletiva, que exigem do intérprete e do aplicador um esforço interpretativo e argumentativo exacerbado.

Assim, a responsabilidade por redigir o título preliminar de um código que siga essa premissa requer do legislador técnica e parcimônia, pois será a porção em que serão encontrados os alicerces do sistema jurídico e conceitos genéricos de sobredireito aplicáveis ao ordenamento jurídico como um todo.

Boa-fé objetiva

A boa-fé objetiva, por exemplo, consagrada em pelo menos três dispositivos no Código Civil de 2002 (artigos 113, 187 e 422), careceu de definição dogmática, sem que isso possa ser encarado como uma omissão legislativa. Em verdade, representou um comportamento proposital do legislador que permite ao magistrado avaliar a conduta das partes de acordo com os padrões de lealdade e cooperação exigidos pelas especificidades do caso concreto [1].

Essa flexibilidade é essencial para garantir a atualidade das decisões diante da dinamicidade social. Afinal, é a estrutura da Parte Geral que atuará como sustentáculo dos demais livros, sempre num feixe irradiante. Caso ela fosse repleta de conceitos detalhistas e específicos, a reestruturação frequente do código se tornaria inevitável diante do “efeito cascata” que o título preliminar exerce sobre a parte especial, gerando constante insegurança jurídica.

Da mesma forma, também não é interessante que essas cláusulas gerais de sobredireito sejam utilizadas para disciplinar questões demasiadamente objetivas e que requeiram um preciosismo técnico não apenas do legislador, mas dos aplicadores do direito.

Aquele que se propõe a legislar diante dessa técnica tem que ter a habilidade de identificar o que pode e deve ser tratado de maneira genérica e o que exigirá maior concretude.

Em algumas passagens do projeto de Código Civil, infelizmente, o ponto ótimo entre a concretude e a disciplina geral não foi alcançado.

Fraude à norma de ordem pública

Percebe-se, por exemplo, a utilização indiscriminada das expressões “norma de ordem pública” e “boa-fé” ao decorrer do texto reformista. Em particular, destacou-se dentre as mudanças da Parte Geral a nova redação do artigo 166, inciso VI, para incluir a “fraude à norma de ordem pública” como hipótese de nulidade dos negócios jurídicos, bem como a inclusão de um artigo 422-A que expressamente classifica a boa-fé como norma de ordem pública. Em outras palavras, a violação à boa-fé passaria, então, a ter o status de hipótese de nulidade negocial.

A questão que se põe não é se a utilização de um conceito demasiadamente abstrato deveria constar em um rol tão específico como é o das nulidades, mas sim se a reforma do Código Civil teria verdadeiramente inovado ao estabelecer, em interpretação conjunta, a fraude à boa-fé como hipótese de nulidade, ao invés de aproveitar a oportunidade para corrigir tal descompasso.

Não custa lembrar que a nulidade, diferentemente da anulabilidade, é matéria cognoscível de ofício pelo juiz, pronunciável a qualquer tempo, não se sujeitando à convalidação pela vontade dos agentes ou pelo decurso do tempo. Somente essas diferenças seriam suficientes para se restringir a declaração de nulidade a situações pontuais e já consolidadas dentro do ordenamento jurídico.

Mas ao contrário do que foi propagado, a violação à boa-fé já constava como causa de nulidade dos negócios jurídicos no “velho” Código Civil, ainda que pouco — ou nada — utilizada na prática forense, quer por descuido, quer por estratégia. Como já advertia Clóvis do Couto e Silva, a boa-fé possui natureza multifacetada e, tal qual a norma de ordem pública, resiste a uma definição estática:

A boa-fé possui múltiplas significações dentro do direito. Refere-se, por vezes, a um estado subjetivo decorrente do conhecimento de certas circunstâncias, em outras, diz respeito à aquisição de determinados direitos, como o de perceber frutos. Seria fastidioso enumerar as diferentes formas de operar desse princípio nos diversos setores do direito. O princípio da boa-fé contribui para determinar o que e o como da prestação, e ao relacionar ambos os figurantes do vínculo, fixa também, os limites da prestação. [2]

Mudança que não inova

A novidade legislativa, nesse ponto, mais repete do que inova. De fato, a análise sistemática dos artigos 166, inciso VII, e 187 do próprio Código de 2002 já permitia, antes mesmo da reforma, situar a boa-fé objetiva no plano das nulidades.

O artigo 187 qualifica como ato ilícito o exercício de um direito que exceda manifestamente os limites impostos pela boa-fé, pelos bons costumes ou pela função social. Há, portanto, um claro juízo de reprovabilidade jurídica em relação a condutas que, embora formalmente fundadas em prerrogativas legais, degeneram em abuso pela forma como são exercidas. Se a ilicitude está reconhecida no exercício abusivo, e se o negócio jurídico correspondente for estruturado sobre esse abuso, ele incorre em violação de uma norma proibitiva. Seria o caso, por exemplo, de um contrato de prestação de serviços advocatícios para ingressar com demandas judiciais visivelmente classificáveis como “litigância abusiva”, um manifesto excesso do direito legítimo de acesso à justiça.

É aqui que entra a utilidade do artigo 167, inciso VII, que considera nulo o negócio jurídico que a lei proíba a prática sem cominar sanção. Em outras palavras, ainda que a boa-fé não tenha sido qualificada expressamente como norma de ordem pública — como se pretende com a inclusão do artigo 422-A do projeto —, o regime de nulidade já se impunha por meio dessa construção sistemática. A ausência de uma sanção expressa no texto do artigo 187 não esvazia a sua natureza proibitiva. E onde há proibição sem sanção tipificada, incide a sanção da nulidade.

Reforma não ‘inventou a roda’

Portanto, a tentativa de afirmar que a reforma inovou ao prever a violação à boa-fé como hipótese de nulidade ignora que tal possibilidade já era juridicamente fundada. A mudança, ao invés de representar um avanço substancial, evidencia a hesitação do jurista reformador em assumir que os instrumentos já estavam postos e operacionais, ainda que em estado latente. Fato é que o projeto do Código Civil não “inventou a roda” ao trazer a boa-fé para o campo das nulidades, mas “perdeu o timing” por não aproveitar o espírito reformista para apaziguar tal insegurança — seja consolidando o entendimento doutrinário e jurisprudencial, seja oferecendo critérios mais objetivos para a sua aplicação.

Ao invés disso, a reforma se limitou a reafirmar, com roupagem diferente, aquilo que já se encontrava normativamente acessível, sobretudo a manter ipsis litteris o inciso VII do artigo 166. E ao fazer essa “muda de roupa” de maneira genérica, sem oferecer parâmetros interpretativos minimamente objetivos, contribuiu para o incremento da insegurança jurídica que deveria combater. A inserção de dispositivos como o novo artigo 422-A revela uma técnica legislativa vacilante: ao invés de clarificar a aplicação da boa-fé no plano das nulidades, acabaram por reiterar comandos já implicitamente extraíveis do sistema. Se a redundância já denota um descuido em situações ordinárias, quanto mais em um diploma do calibre do Código Civil.

Em termos práticos, a positivação explícita da boa-fé como norma de ordem pública — e, por extensão, como causa de nulidade — não resolve a dificuldade hermenêutica de sua aplicação. Ao contrário, pode até acentuá-la, uma vez que desloca para o julgador a responsabilidade de delimitar, caso a caso, o conteúdo jurídico da boa-fé em situações que demandariam maior densidade normativa. Como distinguir, no plano prático, a violação à boa-fé que enseja mera ineficácia relativa daquela que contamina o negócio com nulidade absoluta? A reforma, ao invés de responder a essa indagação, desloca o problema sem solucioná-lo.

Boa-fé de maneira superficial

Assim, a crítica que se impõe não é à consagração da boa-fé como vetor interpretativo e estruturante do sistema, mas à forma superficial e desarticulada como essa consagração foi operada na proposta de reforma. Afinal, transformar um princípio em fundamento de nulidade exige mais do que proclamá-lo “norma de ordem pública”: exige delinear com clareza os limites entre o razoável e o abusivo, entre o cumprimento imperfeito e o inadimplemento doloso, entre a irregularidade formal e a corrupção do negócio em sua essência.

Da mesma forma que um colega de classe que empresta a lição para o outro adverte “copia, só não faz igual”, parece que tal ressalva foi feita aos autores do projeto ao reformarem a Parte Geral. A dúvida que permanece é se tal redundância permanecerá na (provável) espinha dorsal do direito privado.


[1] “O resultado da compreensão superadora da posição positivista foi a preferência dada às normas ou cláusulas abertas, ou seja, não subordinadas ao renitente propósito de um rigorismo jurídico cerrado, sem nada se deixar para a imaginação criadora dos advogados e juristas e a prudente, mas não menos instituidora, sentença dos juízes. […] Como se vê, a boa-fé não constitui um imperativo ético abstrato, mas sim uma norma que condiciona e legitima toda a experiência jurídica, desde a interpretação dos mandamentos legais e das cláusulas contratuais até as suas últimas consequências.” (REALE, Miguel. A boa-fé no Código Civil. Disponível em: miguelreale.com.br/artigos/boafe.htm. Acesso em: 26 dez. 2024).

[2] COUTO E SILVA, Clóvis V. do. A obrigação como processo. 2ª ed. Rio de Janeiro: FGV Editora, 2006.

O post Boa-fé e nulidade no projeto de reforma do Código Civil apareceu primeiro em Consultor Jurídico.

Câmara aprova projeto que permite cancelamento online de contribuição sindical

Câmara dos Deputados aprovou nesta terça-feira (10/6) um projeto que revoga trechos desatualizados da Consolidação das Leis do Trabalho (Decreto-Lei 5.452/1943) e prevê mecanismos digitais de pedido de cancelamento de contribuição sindical. A proposta será enviada ao Senado.

De autoria do deputado Fausto Santos Jr. (União Brasil-AM), o Projeto de Lei 1.663/2023 foi aprovado com um substitutivo do relator, deputado Ossesio Silva (Republicanos-PE). De acordo com o texto, será revogado, por exemplo, o artigo sobre os direitos do trabalhador a invenções suas feitas enquanto está empregado, tema regulado atualmente pelo Código de Propriedade Industrial (Lei 9.279/1996).

Revisando a CLT

Outros pontos da CLT revogados pelo projeto são relativos à organização sindical, como a criação de sindicatos em distritos e a definição da base territorial da entidade por parte do ministro do Trabalho.

Nesse assunto, é excluída da CLT a necessidade de regulamentação ministerial de requisitos (como duração do mandato da diretoria e reunião de, pelo menos, um terço da categoria para o registro sindical, itens atualmente previstos em outra lei).

Também acaba a necessidade de o ministro do Trabalho autorizar a criação de sindicato nacional.

Na organização da Justiça do Trabalho, o projeto transfere e atualiza atribuições das extintas juntas de conciliação e julgamento, remetendo-as às varas trabalhistas.

Contribuição sindical

O ponto que provocou mais polêmica em plenário foi a aprovação de uma emenda do deputado Rodrigo Valadares (União Brasil-SE), por 318 votos a 116, que prevê os mecanismos digitais de pedido de cancelamento de contribuição sindical.

O texto da emenda permite o comunicado por e-mail ou por aplicativos de empresas privadas autorizadas para serviço de autenticação digital. “Chega de filas quilométricas, e sim à renúncia online. É dignidade para o trabalhador brasileiro”, disse Valadares.

A emenda prevê o uso de aplicativos oficiais, como o Gov.br, que mantêm conexão apenas com serviços públicos, e também determina aos sindicatos que disponibilizem aos trabalhadores o cancelamento digital do imposto sindical em suas plataformas, com prazo máximo de dez dias úteis para confirmar o pedido a partir do recebimento, sob pena de cancelamento automático. Com informações da Agência Câmara.

PL 1.663/2023

O post Câmara aprova projeto que permite cancelamento online de contribuição sindical apareceu primeiro em Consultor Jurídico.

De grandes fortunas a racismo, STF acumula ações que discutem omissão do Congresso

Tramitam no Supremo Tribunal Federal 12 ações diretas de inconstitucionalidade por omissão (ADOs) pendentes de julgamento, nas quais se alega omissão do Congresso na criação de leis para fazer valer normas constitucionais. Esse cenário em que os comandos não são detalhados na legislação traz prejuízos para a efetivação de políticas públicas e contribui para a instabilidade política e jurídica do país, dizem especialistas entrevistados pela revista eletrônica Consultor Jurídico.

As ações discutem temas que são frequentes na Justiça e nos debates entre o governo federal e parlamento, como o imposto sobre grandes fortunas (artigo 153, inciso VII, da Constituição) e o crime de negar ou impedir emprego em empresa privada em razão da raça ou cor (artigo 5º, inciso XLII).

Fachada do Congresso

Em toda a sua história, o STF recebeu um total de 93 ADOs. Entre aquelas ainda não julgadas no mérito, há também algumas com alegações de omissão dos Legislativos estaduais, do Executivo nacional e até da Agência Nacional de Aviação Civil (Anac).

Mas o maior volume histórico sempre foi direcionado ao Congresso, responsável direto pelo texto da Constituição e cuja atuação impacta o país inteiro.

Omissões enfraquecem regras

“A Constituição de 1988 foi construída com uma série de mandamentos que deveriam ser posteriormente regulamentados por meio de leis complementares e ordinárias. Isso já estava previsto desde o início e essa, de fato, foi a intenção do constituinte, para diversos temas”, explica o procurador federal André Rufino do Vale, professor de Direito Constitucional do Instituto Brasileiro de Ensino, Desenvolvimento e Pesquisa (IDP).

Mas, segundo ele, a “inação legislativa”, quase 37 anos depois, “deve ser encarada como omissão institucional, para a maioria dos temas carentes de regulamentação”.

Na visão de Vale, “uma Constituição que carece de regulamentação forma um ordenamento jurídico lacunoso e que dificulta a concretização de direitos e de políticas públicas importantes”.

Para o advogado Georges Abboud, também professor de Direito Constitucional do IDP, as omissões do Congresso mostram “indubitavelmente déficits de normatividade da Constituição e da execução de seu programa político”. Ou seja, “se os projetos da Constituição não são implementados por lei, há, em algum grau, defasagem na vinculação do próprio texto constitucional”.

Ele afirma que os parlamentares não podem adotar a ideia de que alguns dispositivos constitucionais são “mais obrigatórios do que outros”, pois essa mentalidade “favorece o clientelismo e a permanência de formas oligárquicas de pensar o país”.

Desde o momento em que entram em vigor, todos os trechos constitucionais têm “alguma eficácia imediata” — ainda que seja apenas “destinada a mandar que algo seja feito”. Assim, os congressistas não podem “decidir quais pontos da Constituição devem ou não ser realizados”, porque tais escolhas já foram feitas quando esses pontos foram aprovados.

Enquanto não há “sanção efetiva” das promessas constitucionais, de acordo com Abboud, “as questões omissas acabam ficando ao sabor dos ventos políticos ou até mesmo regulamentadas pelo STF, que posteriormente recebe, inevitavelmente, críticas muitas vezes injustas”.

A advogada constitucionalista Vera Chemim concorda que as lacunas mantidas “são responsáveis pela não efetivação dos direitos constitucionais, principalmente os direitos fundamentais individuais e coletivos”. A falta da legislação exigida pela Constituição também “prejudica a sua efetividade e enfraquece a sua força normativa”.

A situação ainda “embaraça a gestão pública, provocando a sua ineficácia, ineficiência e inefetividade no alcance dos seus objetivos e resultados”. Outro efeito, segundo a  advogada, é “o agravamento da instabilidade política e jurídica já reinante na conjuntura brasileira”

Confira a lista das 12 ADOs sobre possível omissão do Congresso ainda pendentes de julgamento:

Número da ação Dispositivo constitucional não regulamentado Tema
ADO 40 Artigo 98, inciso II Criação da Justiça de paz*
ADO 47 Artigo 32, § 4º Regras sobre uso das polícias e do Corpo de Bombeiros Militar pelo governo do DF
ADO 55 Artigo 153, inciso VII Instituição do Imposto sobre Grandes Fortunas
ADO 62 Artigo 245 Assistência do poder público a herdeiros e dependentes carentes de vítimas de crimes dolosos
ADO 69 Artigo 5º, inciso XLII Falta de previsão de pena de prisão para o crime de negar ou impedir emprego em empresa privada em razão da raça ou cor
ADO 70 Artigo 18, § 4º Período em que os estados podem criar, incorporar, fundir e desmembrar municípios
ADO 73 Artigo 7°, inciso XXVII Direito dos trabalhadores à proteção em face da automação
ADO 77 Artigo 243 Expropriação de propriedades com exploração de trabalho escravo para destinação à reforma agrária e a programas de habitação popular, além de confisco de bens apreendidos
ADO 81 Artigo 7º, inciso I Direito dos trabalhadores à proteção do emprego contra despedida arbitrária ou sem justa causa
ADO 83 Artigo 7º, inciso XX Direito à proteção do mercado de trabalho da mulher
ADO 84 Artigo 5º, incisos X e XII Uso de ferramentas e programas de monitoramento secreto de aparelhos de comunicação pessoal por órgãos e agentes públicos
ADO 86 Artigo 231, § 6º Falta de definição sobre o que configura “relevante interesse público da União” nos processos de reconhecimento, demarcação, uso e gestão de terras indígenas
*A alegação é de omissão tanto do Congresso quanto das Assembleias Legislativas estaduais e dos Tribunais de Justiça

À mercê do Congresso

A falta de regulamentação de trechos da Constituição passa pelo jogo de interesses da política. Chemim aponta que o Legislativo vive diversos conflitos internos e externos com o Executivo.

O grande número de partidos políticos contribui para a falta de consenso e dificulta a formação de maioria para aprovação de leis, diz. Cada partido pressiona para que temas de seu interesse particular ou demandas populares de determinadas regiões sejam pautadas. Muitas vezes, isso atropela “outras necessidades nacionais que demandam uma legislação não priorizada por falta de interesse político”.

Outro fator, na visão da advogada, é a falta de conhecimento dos próprios parlamentares sobre a importância da regulamentação de “dispositivos constitucionais que são determinantes para o desenvolvimento social, político, cultural e econômico do país”.

Ela cita ainda a falta de recursos e de tempo, que afeta o funcionamento ideal da Câmara e do Senado. Atualmente, as omissões também são perpetuadas devido ao “cenário de instabilidade política e econômica decorrente da polarização político-ideológica e do recrudescimento do conflito entre o Poder Legislativo e o STF”.

Os motivos para a falta de regulamentação podem variar conforme o tema. No caso da ADO 73, que questiona a omissão do Legislativo com relação à proteção dos trabalhadores diante da automação (direito previsto no inciso XXVII do artigo 7º da Constituição), Georges Abboud entende que a resistência remete “a posturas que nossas classes altas guardam como heranças de comportamentos senhoris de épocas em que o trabalho pouco qualificado era abundante e largamente utilizado”.

Algumas lacunas se relacionam, segundo ele, com “posturas corporativistas”. É o caso da ADO 40, que trata da criação da Justiça de paz — voltada a promover conciliações e, por exemplo, celebrar casamentos. Embora ela esteja prevista no inciso II do artigo 98, nunca foi implementada.

Outras omissões “carregam as marcas do nosso passado (e presente) oligárquico”. O constitucionalista cita como exemplo a ADO 86, na qual se discute o que seria interesse público para fins de demarcação e uso de terras indígenas; e a ADO 55, que contesta a falta de criação do Imposto sobre Grandes Fortunas (IGF).

“Em muitos momentos da nossa história, como é de sabença, projetos nacionais foram preteridos em favor de projetos de elites regionais”, completa.

ADO 70 discute o período em que os estados podem criar, incorporar, fundir e desmembrar municípios. Abboud indica que ela “tem contornos eleitorais, tributários e orçamentários”, além de gerar disputas entre entes federativos — afinal, “um município é sempre uma peça nova no tabuleiro político”.

Problema histórico

Há ainda questões com “antecedentes históricos nas desigualdades sociais que atravessam o Brasil desde sempre”, que “prestam homenagem ao nosso passado escravista, excludente, patrimonialista e sempre autoritário em potência”.

É o caso da ação sobre o IGF; da ADO 69, que contesta a falta de pena de prisão para quem nega emprego em razão da raça ou cor; e da ADO 83, que busca incentivos específicos direcionados à proteção do mercado de trabalho da mulher, prevista no inciso XX do artigo 7º da Constituição.

“Apesar de todas as omissões serem lamentáveis, aquelas referentes a questões de gênero e cor, bem como as questões indígenas, são particularmente problemáticas porque se referem a mazelas sociais antigas do nosso país e impedem que, por aqui, as promessas da modernidade se cumpram efetivamente”, diz o advogado.

Chemim entende que o Congresso deixou alguns temas “para serem regulamentados em momentos oportunos do ponto de vista político e social”.

Para a constitucionalista, a depender do assunto, o Legislativo “deverá sentir a temperatura junto à sociedade, verificando se aquela legislação encontrará eco suficiente, no que se refere ao grau de maturidade do ponto de vista social e a consequente acolhida favorável àquela regulamentação”. Isso é o que acontece, segundo ela, com o IGF.

Por outro lado, na sua visão, a proteção do trabalhador em face da automação é “um tema atual e de grande repercussão social, por se destinar a uma minoria que precisa desse tipo de proteção que deveria ser urgentemente disciplinada em lei, por razões óbvias”.

André do Vale acredita que o artigo 5º da Constituição já deveria ter sido regulamentado por inteiro (todos os seus incisos). “Da mesma forma, os direitos sociais dos trabalhadores (dos setores público e privado), assim como dos indígenas, há muito deveriam ter regulamentação completa”, conclui.

Correndo atrás

O saldo de 12 ADOs sobre omissão do Congresso pendentes de julgamento só não é maior porque o Supremo intensificou a análise de ações do tipo nos últimos anos. Só neste ano, duas foram julgadas. Desde 2023, foram sete no total.

Na decisão mais recente, do último mês de maio, o Plenário do STF reconheceu a omissão do Congresso por não classificar como crime em lei a conduta de retenção dolosa de salário do trabalhador. Os ministros também estipularam um prazo de 180 dias para que os parlamentares preencham a lacuna.

Já em fevereiro, a corte mandou os congressistas regulamentarem em até dois anos o direito dos trabalhadores à participação, de forma excepcional, na gestão das suas respectivas empresas.

No último ano, os magistrados estipularam um prazo de 18 meses para o Legislativo federal aprovar uma lei que garanta a proteção do meio ambiente na exploração de recursos do Pantanal mato-grossense. Também em 2024, foi determinado o mesmo prazo para a regulamentação do adicional de penosidade (benefício para quem atua com trabalhos extremamente árduos e desgastantes, seja física ou psicologicamente) para os trabalhadores.

Em 2023, o Supremo ordenou aos parlamentares a regulamentação da licença-paternidade em até 18 meses; a criação do Fundo de Garantia das Execuções Trabalhistas (Funget), formado por multas decorrentes de condenações trabalhistas e da fiscalização do trabalho, no prazo de dois anos; e o reajuste da proporção do número de vagas na Câmara em relação à população de cada estado, até o final deste mês de junho de 2025.

O post De grandes fortunas a racismo, STF acumula ações que discutem omissão do Congresso apareceu primeiro em Consultor Jurídico.