Direito Penal Tributário: entre infrações fiscais e delitos

Ocorreu nos dias 21 e 22 de maio de 2025 o 3º Congresso Iberoamericano de Direito Penal Tributário, em Bogotá, Colômbia, coordenado por Juan Manuel Álvares Echague, professor de Direito Tributário da Universidade de Buenos Aires, e por José Manuel Almudi Cid, professor de Direito Tributário e atual Diretor da Universidade Complutense de Madrid. A anfitriã foi a Universidade Javeriana da Colômbia, representada pelo professor de Direito Penal José Carlos Prias, que nos recepcionou em conjunto com outros professores, dos quais destaco o tributarista Maurício Plazas.

Estiveram presentes profissionais de direito penal e de direito tributário de 11 países, sendo, do Brasil, eu e Marcelo Campos. Foi um exercício de interdisciplinariedade e reconhecimento dos diferentes estágios das duas disciplinas acerca desse objeto conjunto, no amplo panorama das Américas. Um livro com cerca de 1.400 páginas foi lançado, incluindo textos de autores brasileiros, sendo Marcelo Campos um dos cocoordenadores da obra. [1]

A parte que me coube naquele latifúndio de conhecimentos foi analisar a diferença entre infrações fiscais delitos com referência ao direito brasileiro. Adaptei o texto que lá expus para ser divulgado nesta ConJur em três textos quinzenais nesta coluna Justiça Tributária.

Sendo publicada em partes, fica parecendo uma série de streaming, com três episódios. Aqui vai o primeiro.

As decisões de política governamental

Machado de Assis, um dos maiores escritores brasileiros, publicou em 1882 um conto denominado O Alienista no qual relata o regresso do médico Simão Bacamarte à pequena cidade de Itaguaí, “filho da nobreza da terra e o maior dos médicos do Brasil, de Portugal e das Espanhas”, tendo estudado em Coimbra e em Pádua. Sua especialidade era a psiquiatria e logo passou a observar o comportamento dos habitantes da cidade. Pouco a pouco, foi identificando sinais de loucura em cada um deles, recolhendo-os ao hospício que havia criado, denominado Casa Verde.

“De todas as vilas e arraiais vizinhos afluíam loucos à Casa Verde. Eram furiosos, eram mansos, eram monomaníacos, era toda a família dos deserdados do espírito. Ao cabo de quatro meses, a Casa Verde era uma povoação. Não bastaram os primeiros cubículos; mandou-se anexar uma galeria de mais trinta e sete.”

O número de pessoas consideradas loucas crescia a cada dia, o que ocasionou diversas rebeliões na cidade, todas em vão. Bacamarte recolheu ao hospício até mesmo sua esposa, por ele considerada louca, além de vários políticos. Em determinado momento 80% dos habitantes da cidade estavam recolhidos à Casa Verde.

Após algum tempo de exame dos pacientes, o psiquiatra declarou que diante dessa quantidade de pessoas recolhidas ao hospício, ele assumira a convicção de que a verdadeira doutrina não era aquela que estava professando, mas a oposta, e, portanto, se devia admitir como normal e exemplar o desequilíbrio das faculdades mentais e como loucos todos os casos em que houvesse um equilíbrio dessas faculdades.

Com isso, Bacamarte libertou todos os que estavam recolhidos ao manicômio e, observando-se, “achou em si as características do perfeito equilíbrio mental e moral; pareceu-lhe que possuía a sagacidade, a paciência, a perseverança, a tolerância, a veracidade, o vigor moral, a lealdade, todas as qualidades, enfim, que podem formar um acabado mentecapto”.

Considerou-se, portanto, como sendo o único habitante da cidade com essas características, e decidiu se encarcerar no hospício para estudar a si mesmo e se curar. Faleceu ao final de dezessete meses de autoisolamento.

Este conto de Machado de Assis nos diz muito sobre a diferença entre infrações e crimes. Se toda infração for considerada um crime, as prisões passarão a estar repletas e as ruas vazias. Deve ser adotada com muita cautela a decisão de política governamental que estabeleça a distinção entre o que a sociedade deve considerar como uma infração e como um crime que acarrete o cerceamento da liberdade do indivíduo, e, em alguns casos, até sua vida.

Aqui se identifica um primeiro ponto do problema, que se refere à política governamental: deve-se criminalizar amplamente todas as condutas que violam as normas jurídicas?

Estacionar em local proibido ou não pagar uma conta de energia elétrica são infracções, apenadas com multas ou algum cerceamento de direitos, como se vê na possibilidade de suspensão da carteira de habilitação de motorista ou no cancelamento do fornecimento de energia elétrica. Todavia, se até mesmo essas infrações forem capituladas como delitos e os infratores considerados criminosos e encarcerados, estaremos defronte ao mesmo problema enfrentado pelo psiquiatra do conto O Alienista.

Filosoficamente pode-se afirmar que, se tudo é, nada é. Por outras palavras, se tudo for considerado como crime, sem distinção entre as condutas que atingem de forma mais ou menos intensa alguns direitos, ao final de certo tempo haverá a banalização da prisão, e a ameaça de encarceramento por condutas menos danosas acarretará a necessidade da escalada de maiores penalidades para as condutas mais complexas, fazendo com que o direito penal perca sua função primordial de proteção dos bens jurídicos verdadeiramente essenciais a uma sociedade. [2]

Nesse sentido, um Estado que alarga demais o punitivismo para infrações menores, se constituirá em um Estado policialesco, vigilante ao extremo acerca da conduta de seus cidadãos, sob pena de encarceramento. Em sentido oposto, caso as infrações maiores não sejam devidamente apenadas, haverá um Estado leniente, pois nem mesmo as infrações mais sérias a bens jurídicos sensíveis será considerada como crime.

É necessário fazer distinções de grau infracional, separando as lesões menores das maiores, acarretando que algumas venham a ser punidas com penas mais leves, tão somente pecuniárias (como nas infrações de trânsito), e outras com penas mais severas, como ocorre nos crimes contra a vida, cujo encarceramento é a regra geral em muitos sistemas jurídicos, havendo alguns que atribuem a pena de morte.

Para tanto, existe um limite aplicável aos países que se constituem em verdadeiros Estados Democráticos de Direito, que é o Princípio da Intervenção Penal Mínima, de modo que a atuação do Estado por meio do Direito Penal seja restrita ao mínimo necessário, sendo utilizada apenas quando os demais ramos do Direito se mostrarem insuficientes para proteger os bens jurídicos relevantes. Esse princípio é também conhecido como última ratio e se fundamenta na ideia de que o Direito Penal é a forma mais gravosa de intervenção estatal, evitando o excesso punitivo.

O direito tributário, que regula as relações entre o Fisco e os contribuintes, serve para arrecadar recursos das pessoas privadas, físicas e jurídicas, para os cofres públicos. Sua delimitação encontra-se nos direitos fundamentais dos contribuintes, que podem ser classificados como relativos: (1) à proteção dos contribuintes; (2) ao tratamento isonômico na tributação; (3) à boa administração fiscal, e (4) às garantias para o exercício dos direitos fundamentais.

O principal desses direitos fundamentais de proteção dos contribuintes é a Legalidade, pois a análise de todos os demais parte dele. Fiscalmente é importante o Princípio da Reserva Legal Tributária, que determina que só é possível instituir ou aumentar tributo se lei específica assim o estabelecer. E criminalmente é importante considerar o secular Princípio da Reserva Legal Penal, de que não há crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem prévia cominação legal. Este conjunto de princípios, que se configuram em direitos fundamentais, é imprescindível para a delimitação do que seja uma infração fiscal e do que seja um delito.

Logo, uma primeira distinção entre infrações e crimes deve ser visualizada na política governamental acerca do direito sancionatório em geral, distinguindo o que deve ser protegido sob o manto do direito penal, o mais rigoroso em uma sociedade, pois, no limite, acarreta a perda da liberdade dos indivíduos. E isso deve ocorrer por meio de lei em sentido estrito, a Reserva Legal Penal, observado o Princípio da Intervenção Penal Mínima, cerne do Estado Democrático de Direito.

Normas brasileiras sobre direito penal tributário

Estabelecida a delimitação político-normativa, deve-se analisar as normas introduzidas no direito positivo de cada país.

A Constituição brasileira de 1988 estabelece no artigo 5º, inciso LXVII, que “não haverá prisão civil por dívida, salvo a do responsável pelo inadimplemento voluntário e inescusável de obrigação alimentícia e a do depositário infiel”. Isso aponta para o fato de que são necessárias normas que tipifiquem condutas como crimes, mesmo nos casos de não pagamento de tributos, que se constituem tão somente como dívidas civis, embora tendo como credor o Estado.

No Brasil foram criadas normas específicas para o direito penal tributário, instituídas pela Lei 8.137/1990, que estabelece como delitos as seguintes condutas, obedecendo a Reserva Legal Penal.

O artigo 1º estabelece que “Constitui crime contra a ordem tributária suprimir ou reduzir tributo, ou contribuição social e qualquer acessório, mediante as seguintes condutas …”. Desse comando normativo são tipificadas diversas condutas que exigem dolo específico de reduzir ou suprimir tributo, em cinco incisos:

(I) “Omitir informação, ou prestar declaração falsa às autoridades fazendárias”; que se constitui em um crime formal, pois independe da obtenção do resultado pretendido.
(II) “Fraudar a fiscalização tributária, inserindo elementos inexatos, ou omitindo operação de qualquer natureza, em documento ou livro exigido pela lei fiscal”. Trata-se de crime material, pois depende do resultado, isto é, precisa ter ocorrido a efetiva redução ou supressão de tributo.
(III) “Falsificar ou alterar nota fiscal, fatura, duplicata, nota de venda, ou qualquer outro documento relativo à operação tributável”; que pode ser crime formal ou material, a depender do caso concreto.

(IV) “Elaborar, distribuir, fornecer, emitir ou utilizar documento que saiba ou deva saber falso ou inexato”, que se constitui em um crime material.
(V) “Negar ou deixar de fornecer, quando obrigatório, nota fiscal ou documento equivalente, relativa à venda de mercadoria ou prestação de serviço, efetivamente realizada, ou fornecê-la em desacordo com a legislação”, que se constitui em um crime formal.

Todos esses tipos criminais previstos do artigo 1º da Lei 8.137/90 são apenados com reclusão de dois a cinco anos, e multa.

Existe ainda o artigo 2º da mesma Lei, prevendo crimes tributários culposos ou omissivos impróprios, embora ainda se exija dolo específico para alguns. O artigo 2º é centrado nas obstruções à fiscalização e descumprimento de obrigações acessórias que viabilizam a correta arrecadação tributária. Os diversos incisos dessa norma tipificam condutas específicas que frustram a ação fiscalizatória da Fazenda Pública, com ou sem a intenção de suprimir tributos, sendo considerados crimes formais ou omissivos próprios, com penas mais leves, entre 06 meses e dois anos de detenção.

É previsto no artigo 2°: “Constitui crime da mesma natureza”, daí surgindo os seguintes incisos:

(I) “Fazer declaração falsa ou omitir declaração sobre rendas, bens ou fatos, ou empregar outra fraude, para eximir-se, total ou parcialmente, de pagamento de tributo”.
(II) Deixar de recolher, no prazo legal, valor de tributo ou de contribuição social, descontado ou cobrado, na qualidade de sujeito passivo de obrigação e que deveria recolher aos cofres públicos”. Adiante se analisará a decisão do STF — Supremo Tribunal Federal no RHC 163.334-SC, que estabeleceu o que se deve entender por “tributo descontado ou cobrado” referente ao crime de apropriação indébita fiscal.
(III) “Exigir, pagar ou receber, para si ou para o contribuinte beneficiário, qualquer percentagem sobre a parcela dedutível ou deduzida de imposto ou de contribuição como incentivo fiscal.”
(IV) “Deixar de aplicar, ou aplicar em desacordo com o estatuído, incentivo fiscal ou parcelas de imposto liberadas por órgão ou entidade de desenvolvimento”.
(V) Utilizar ou divulgar programa de processamento de dados que permita ao sujeito passivo da obrigação tributária possuir informação contábil diversa daquela que é, por lei, fornecida à Fazenda Pública.”

Como se verifica, os tipos penais estabelecidos pela legislação brasileira são próprios para condutas fiscais, regulando propriamente o direito penal tributário, sem a utilização direta do Código Penal, o que é diverso do que se verifica em outras jurisdições latino-americanas.

*Tal como uma série de streaming, aguardem a 2ª parte (ou episódio), que circulará em 15 dias neste mesmo espaço da coluna Justiça Tributária.

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[1] ÁLVAREZ ECHAGÜE, Juan Manuel et al. (dir.). Derecho Penal Tributario Latinoamericano: Estudio y análisis comparado de los principales regímenes penales que regulan el delito fiscal. Buenos Aires: Editorial Ad-Hoc, 2025.

[2] Nesse sentido, ver: OLIVEIRA, Regis Fernandes de. Infrações e sanções administrativas. 2ª ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2005.

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O backlash da grande feitiçaria que é a inteligência artificial

Quase todos “os desafios do século 21”, diz Ronai, implicam alguma reflexão sobre as ciências e as tecnologias. A Filosofia tem feito isso, mas, ao menos um dos temas indicados acima, os desafios da IA, é novo para nós.

Ronai faz parte, como eu, de uma geração que pensou sobre a tecnologia usando metáforas, alegorias, metonímias, perguntas e premissas simples… mas complexas.  A principal metáfora foi a do aprendiz de feiticeiro.

A principal pergunta era sobre a natureza das tecnologias, se eram neutras ou não. A principal premissa era a do perigo eminente que elas traziam. Para quem ainda não sabe, Ronai explica a metáfora do aprendiz de feiticeiro, que se refere a situações nas quais, movidos por algum desejo pouco refletido, começamos a fazer algo que, logo a seguir, não conseguimos mais controlar; surgem consequências que não previmos, que podem ser desastrosas.

A história original chama-se exatamente O Aprendiz de Feiticeiro e foi escrita por Goethe, faz mais de 200 anos. Nela, um aprendiz de feiticeiro, na ausência de seu mestre, usa uma fórmula mágica para fazer com que uma vassoura faça o trabalho de limpeza que cabia a ele.

No entanto, o aprendiz não conhece o feitiço para parar a vassoura. Ela segue trazendo água até que a casa fica inundada.

Aprendeu-se essa história sem saber que era de Goethe. Nem Disney contou pra gente. Veja-se o filme Fantasia, em que Mickey era o aprendiz, que tinha que esperar a volta do mestre para resolver o problema. A metáfora firmou-se, pois era boa para falar dos riscos inerentes a novos conhecimentos e tecnologias.

Não quero a volta do lápis. Nem do ábaco. Ou da Olivetti. Lembro de quando escrevi minha dissertação de mestrado. Com uma máquina de escrever. O xerox desbotava, lembram?  Mas daí a que um robô escreva em meu lugar… a distância vai até a vassoura do aprendiz de feiticeiro.

A metáfora do aprendiz de feiticeiro pode ser vista como uma variação sobre um tema filosófico venerável, a questão dos efeitos colaterais da ação humana. As nossas ações não se resumem às intenções declaradas. E acrescenta Ronai: quando compro pão e queijo na padaria da esquina, para ter algo de comer, eu movo a corrente do mundo das vacas, das farinhas, do dinheiro, dos impostos, da minha saúde. O mundo não é movido apenas pelas nossas intenções. A metáfora do aprendiz vale não apenas para os efeitos colaterais das coisas e tecnologias que criamos (a energia nuclear) mas para ações humanas triviais, como dar (ou não) “bom dia” a alguém.

E o tema do perigo? Para Ronai, a metáfora do aprendiz de feiticeiro sugere que podemos desencadear forças que escaparão de nosso controle. É isso mesmo. Cada um de nós já experimentou isso, de alguma forma, de algum jeito. Em certo sentido somos todos aprendizes de feiticeiros.

Exercemos a arte da feitiçaria quando falamos: fazemos coisas com palavras, como no livro de John Austin: promessas, votos, juramentos, declarações, desculpas, apostas, mentiras, perdões, pedidos e dezenas de outras formas de fazer coisas com palavras que sempre tem consequências. E que nem sempre avaliamos bem.

O Direito parece ser o locus privilegiado em que habitam os aprendizes de feiticeiro. E já sentimos o perigo. Picaretagens a mil. Advogados fraudadores querendo enganar os tribunais. Juízes utilizando robôs para limpar a pauta e poder jogar golfe. Estagiários terceirizando trabalho ao ChatGPT. E gente que nunca escreveu um fonograma na vida agora escreve livros… com ChatGPT. Outro dia um italiano enganou o mundo, lançando um novo conceito (hipnocracia). E a malta acreditou. Bem-feito (leiam aqui). Torço para a briga.

Os robôs já podem fazer desenhos tão ou mais bem elaborados que os humanos. Agora surgiu um novo robô da Google. Os chineses também inventaram um novo. Os robôs já fazem dublagem. Imitam vozes. E falam.

No Direito, fazem petições melhores que os advogados, que nem se dão conta de que isso mostra o fracasso da humanidade. Se uma máquina faz coisas melhores que o homem, então teríamos que, até por vaidade, parar para pensar. Eis o paradoxo: se a IA der certo, dará errado. Porque nos ultrapassa(rá).

Lembremos do cão que atirava crianças na água para ganhar suculentos bifes, caso contado por dois cientistas de Oxford no Parlamento britânico e que contei aqui no ConJur. O cachorro também aprendeu de forma generativa.

Por enquanto o robô alucina quando alguém lhe pede pesquisas – afinal, ele precisa dar uma resposta, mesmo que alucinadamente.

Daí a pergunta: e quando o robô conseguir encontrar, por exemplo, no Direito, a resposta certa para os casos mais complexos, buscando os corretos precedentes, com inclusão das técnicas de overruling e distinguishing em dimensão superior a qualquer humano com razoável formação? O que será do Direito? E o que sobrará para os estudiosos, se o robô faz tudo melhor?

Outro dia um querido amigo disse, corretamente, que a doutrina jurídica ainda tinha muito valor; só que ele mesmo dias antes fazia uma ode ao ChatGPT. E aos precedentes (que não são precedentes).

Eis a questão. O perigo está na máxima representada pela alegoria do trapezista que, de tão competente e treinado, achou que poderia voar. E se estatelou no chão. Porque trapezista, por melhor que seja, não sabe voar.

O consolo? Talvez esteja no fato de que robô não desce escada. Por enquanto.

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STJ pode criar regras para o tráfico privilegiado? A resposta está na Constituição

A iminente apreciação dos Temas Repetitivos 1.154 (REsp 1.963.433/SP, REsp 1.963.489/MS e REsp 1.964.296/MG) e 1.241 (REsp 2.059.576/MG e REsp 2.059.577/MG) pelo Superior Tribunal de Justiça desperta grave preocupação no campo da Teoria Geral da Constituição e da legalidade penal. O ponto central em debate — a possibilidade de o Judiciário modular a aplicação da causa de diminuição do §4º do artigo 33 da Lei de Drogas com base em critérios objetivos como quantidade ou variedade da substância apreendida — ultrapassa os limites interpretativos admissíveis no regime constitucional vigente.

A Lei nº 11.343/2006 nasceu de um processo legislativo minucioso, iniciado com o PLS 115/2002, apresentado pelo então senador Ramez Tebet. Durante a tramitação, foram incorporadas diversas propostas legislativas (PLs 6.108/2002 e 7.134/2002), consolidando um texto que buscou equilibrar repressão ao narcotráfico com um olhar diferenciado sobre o réu primário, de bons antecedentes e não vinculado a organizações criminosas.

O próprio texto da exposição de motivos do projeto de lei foi categórico:

“Não olvidando a importância do tema, e a necessidade de tratar de modo diferenciado os traficantes profissionais e ocasionais, prestigia estes o projeto com a possibilidade […] de redução das penas […]”.

É nesse ponto que se evidencia a essência normativa da causa de diminuição prevista no §4º do artigo 33: um dispositivo de clemência penal calibrado por critérios subjetivos — primariedade, bons antecedentes, não envolvimento com organização criminosa e não dedicação a atividades criminosas. Nada além disso foi exigido pelo legislador. Portanto, a tentativa de criar um “padrão de modulação” com base quantitativa ou qualitativa, por via judicial, representa indevida extrapolação do papel que a Constituição reserva ao Judiciário.

A Constituição de 1988 delineia com clareza a repartição de funções entre os Poderes (artigo 2º). A competência para legislar sobre matéria penal é exclusiva do Congresso Nacional. O Judiciário, como guardião da Constituição (artigo 102, caput), não pode criar norma penal nova, sob pena de violação direta aos princípios da legalidade estrita (artigo 5º, II) e da reserva legal penal (artigo 5º, XXXIX). Criar um critério novo — como tornar a quantidade da droga um fator isolado para afastar o tráfico privilegiado — equivale, em última análise, a editar nova norma penal sem respaldo do Poder Constituinte Derivado. Isso compromete não apenas a segurança jurídica, mas a própria legitimidade da jurisdição penal.

Mais grave ainda: ao vincular a concessão do tráfico privilegiado a marcos objetivos rígidos, a jurisprudência propõe um verdadeiro rebaixamento da individualização da pena e da isonomia penal. Resta, então, uma política punitiva enviesada, desprovida de base empírica, que trata desiguais como se iguais fossem — primando por um simbolismo penal que não encontra respaldo constitucional nem eficácia real.

A tentativa de fixar balizas quantitativas para o §4º do artigo 33 da Lei nº 11.343/2006 revela um fenômeno perigoso: a judicialização da política criminal em sua forma mais aguda. A jurisprudência deixa de ser instrumento de concretização da norma e se torna mecanismo de criação normativa — invertendo a lógica democrática da separação de Poderes.

Exemplo disso é a atual tramitação no Senado do PLS 4.999/2024, que propõe disciplinar expressamente o uso da quantidade como critério modulador da causa de diminuição. A simples existência do projeto já é suficiente para demonstrar que o Legislativo entende tratar-se de matéria a ele reservada. Caso contrário, não haveria proposta de lei: bastaria aguardar o STJ decidir.

Não há evidência científica sólida, nem mesmo qualquer artigo científico, que assegure que o agravamento da pena, com base na quantidade e variedade da droga, reduza a criminalidade. Ao contrário, o excesso punitivo desarticula políticas públicas mais eficazes e reforça a seletividade penal — direcionada, quase sempre, à população mais vulnerável.

Não se trata, aqui, de negar a gravidade do tráfico de drogas. Mas sim de reafirmar que o combate ao crime deve se dar nos marcos do Estado Democrático de Direito. O Judiciário não pode, sob o pretexto de eficiência punitiva, invadir competência legislativa. Quando o faz, desrespeita a Constituição, viola o pacto federativo e compromete a legitimidade da jurisdição penal.

Extrapolação e fidelidade

A decisão a ser proferida nos Temas Repetitivos 1.154 e 1.241 pelo STJ tem o potencial de redefinir, de forma profunda e controversa, a aplicação do tráfico privilegiado. Ao fazê-lo com base em critérios que extrapolam o texto legal, o Judiciário se aproxima de um legislador positivo — em flagrante descompasso com os princípios estruturantes da Constituição de 1988.

O Direito Penal não pode ser reconstruído por interpretações, ainda que bem intencionadas. A fidelidade ao texto constitucional não é obstáculo à Justiça — é seu fundamento. E a Constituição não autoriza o Judiciário a substituir o Parlamento. Autoriza, apenas, a guardar a Lei Maior.

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Julgamento virtual sem intimação dos advogados é nulo, diz STJ

É nulo o julgamento de recurso de apelação em sessão virtual realizada sem a intimação dos advogados das partes.

Com esse entendimento, a 3ª Turma do Superior Tribunal de Justiça deu provimento ao recurso especial para anular um julgamento do Tribunal de Justiça de São Paulo.

O caso é de ação de indenização por danos materiais e morais contra uma construtora, por particulares que compraram um apartamento térreo pelo atrativo de ter uma área privativa externa.

A construtora instalou nesse local a caixa de gordura para armazenamento de dejetos de todo o sistema de esgoto do edifício, o que causou transtornos com mau cheiro, infestação de insetos e manutenção periódica para limpeza.

A ação foi julgada procedente para condenar a construtora a pagar indenização pela desvalorização do imóvel, além de R$ 10 mil por danos morais.

Julgamento virtual relâmpago

A apelação foi distribuída ao relator no TJ-SP em 22 de setembro de 2020 e julgada no dia seguinte, de forma virtual e sem intimação das partes. A corte deu provimento ao recurso da construtora e afastou a condenação por danos morais.

O tribunal paulista afastou nulidade pela ausência de prejuízo pelo julgamento virtual. Relator do recurso especial, o ministro Ricardo Villas Bôas Cueva reformou essa posição e anulou o acórdão, determinando novo julgamento.

Para ele, houve violação do artigo 935 do Código de Processo Civil, prevê que entre a data da publicação da pauta e a da sessão de julgamento decorrerá, no mínimo, o prazo de cinco dias.

Prejuízo evidente

O julgamento sem a intimação das partes ainda ofende o artigo 937 do CPC, segundo o qual será dada a palavra aos advogados das partes para oferecerem sustentação oral.

“Diversamente do afirmado pela Corte de origem nos aclaratórios, não há como afastar a existência de prejuízo para os recorrentes, mormente tendo sido provido o recurso da recorrida, sem que lhes fosse oportunizada a devida sustentação oral e a entrega de memoriais”, disse.

“Cumpre assinalar que a celeridade não autoriza o afastamento de regras que garantem a observação do contraditório”, acrescentou o ministro Cueva. A votação na 3ª Turma do STJ foi unânime.

Clique aqui para ler o voto de Villas Bôas Cueva
REsp 2.136.836

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CNJ libera acesso a dados da Central de Escrituras e Procurações

O corregedor Nacional de Justiça, ministro Mauro Campbell Marques, aprovou uma mudança no Provimento 149/2023 do Conselho Nacional de Justiça para permitir a consulta pública a dados básicos da Central de Escrituras e Procurações (CEP).

Agora, qualquer interessado poderá acessar as informações por meio de certificado digital (e-Notariado ou ICP-Brasil) e apresentação de nome completo e número de CPF ou de CNPJ. Antes, a consulta era restrita a tabeliães de notas e oficiais de registro, que poderiam ou não disponibilizá-las mediante solicitação.

Dessa forma, o serviço disponibilizará:

— O nome do cartório em que o ato notarial foi lavrado;

— Os números do livro e das folhas;

— Se é escritura ou procuração pública.

O preço de cada consulta será de R$ 19. O valor foi sugerido pelo Colégio Notarial do Brasil e equivale a 25% da média aritmética dos valores cobrados por certidão notarial nas unidades federativas.

Dados públicos

Campbell Marques aprovou a alteração no âmbito de um pedido de providências formulado pelo advogado Vitor Gomes Rodrigues de Mello. Ele relatou que atua na área de localização de ativos e recuperação de crédito e que teve pedidos de acesso a informação recusados por notários.

O advogado argumentou que a restrição violava o princípio da igualdade, estabelecido pelo artigo 5º, caput, da Constituição. Primeiro, ao permitir que apenas alguns agentes tivessem acesso aos dados. Segundo, porque testamentos, divórcios extrajudiciais, inventários extrajudiciais e diretivas antecipadas de vontade já eram informações de acesso livre.

Ele sustentou ainda que a alteração também adequaria a Central Notarial de Serviços Eletrônicos Compartilhados (Censec) à Lei de Registros Público (Lei 6.015/1973) e à Lei de Acesso à Informação (Lei 12.527/2011).

Em sua decisão, o magistrado observou que a restrição questionada era obsoleta e estava na contramão de normas como a LAI, que garante a proteção de dados pessoais sensíveis. Também observou que as dificuldades encontradas por credores colaboram para os altos índices de congestionamento processual em execuções.

“Facilitar o acesso às bases da CEP, nessa linha, é providência que irá contribuir para facilitação da busca de atos negociais que tenham sido realizados e que possam envolver algum bem, permitindo, com isso, uma maior eficiência na busca patrimonial no bojo dos processos de execução no Brasil”, escreveu.

Clique aqui para ler a decisão
Processo 0003263-30.2024.2.00.0000 

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Honorários contratuais em ações trabalhistas coletivas

Na última semana, circulou nos meios jurídicos a manifestação do ministro Flávio Dino no julgamento de recurso do Ministério Público do Trabalho (AO 2.417) contra decisão que negou ao parquet trabalhista o direito de atuar em um caso envolvendo a cobrança de honorários advocatícios em ações coletivas:

“Creio que ninguém no mundo pode dizer que isto constitui uma lesão ao patrimônio dos advogados: R$ 1 bilhão e 500 milhões de reais provavelmente de honorários sucumbenciais. Nós estamos aqui controvertendo sobre um plus. Como diz o povo da minha terra, um fora parte”.

Bom, esse valor foi arbitrariamente estipulado pelo ministro. É difícil dizer o valor exato ou até aproximado. Mas uma coisa é certa, segundo os advogados do processo: nem de longe é esse o valor; além disso, os honorários são divididos por mais de uma dezena de advogados que, frise-se, trabalha(ra)m no caso há dezenas de anos.  Tem advogado que começou na causa e seus filhos a estão finalizando. Parece bizarra essa demora e, mais ainda, se o desfecho culminar com o descumprimento do dispositivo do Estatuto da OAB que garante esse direito aos causídicos. Demonstrarei na sequência.

A manifestação do ministro deu-se no contexto de divergência com o voto do relator, ministro Nunes Marques, no âmbito de embargos de declaração, quanto à possibilidade de intervenção do MPT em autos de execução trabalhista, com o propósito de obstaculizar a cobrança de honorários advocatícios contratuais acordados entre os patronos da reclamatória, a entidade sindical e os trabalhadores beneficiados.

Explicando: no caso em exame, (1) houve a contratação de advogado para atuar em defesa dos interesses da entidade sindical e seus sindicalizados; (2) ato contínuo, a execução dos honorários contratuais pelos causídicos, nos autos da reclamatória originária; (3) e, em decorrência disso, a intervenção pelo MPT, alegando — manifestamente contra o que aduz lei federal — a impossibilidade de cumulação dos honorários contratuais aos assistenciais e/ou sucumbenciais. Como ocorre seguidamente, é o fiscal da lei a insurgir-se contra a lei porque com ela não concorda.

Pois bem. Ao julgar o mérito da ação, o Plenário do STF decidiu que

“o Ministério Público do Trabalho não possui legitimidade ativa para recorrer de decisão referente a honorários advocatícios que não surjam diretamente da relação de trabalho, por se tratar de direito individual disponível.”

Em face desse acórdão, o MPT opôs embargos de declaração buscando efeitos infringentes. Embargos é aquele recurso que, quando usado pelo advogado no processo criminal, por exemplo, recebe seguidamente a ironia do membro do MP dizendo “o réu quer revolver a prova e mudar o resultado”…

É nessa estreita via que o ministro Flávio Dino reabre a controvérsia: “não se trata apenas de direitos individuais disponíveis”. A questão seria a forma como esse contrato de honorários se desenhou: com anuência da categoria em assembleia geral, e não mediante contratos individuais. Problema: nem a Constituição nem a lei exigem contratos individuais.

Ao contrário: substituição processual existe exatamente para evitar a individualização. Todavia, o entendimento do ministro é de que são indevidos os honorários contratuais firmados pelo sindicato a serem arcados pelo associado, exceto nos casos de contratos individuais regularmente firmados. De novo: tratou-se de substituição processual. O que o ministro Flávio Dino reivindica na sua manifestação em sede de EDs é o contrário do que estabelece a lei. Ele ainda invoca Kelsen, para dizer que, provavelmente, um dos maiores juristas do século 20 não ganhou “tudo isso” ao longo de sua vida.

O caso à luz da teoria da decisão

Se Kelsen ganhou ou não ganhou “tudo isso” em sua vida, difícil dizer. Ou Dworkin. Importa dizer que Kelsen nunca se preocupou com o modo de como os juízes devem decidir. Para ele a decisão jurídica é uma questão de “política jurídica” (TPD, p. 470).

Permito-me dizer que esse problema da adoção de critérios — objetivos — para a decisão jurídica é uma verdadeira batalha epistemológica que se trava no âmbito da busca de decisões adequadas à Constituição — não só no Brasil. Nesse exato sentido, uma lei só pode deixar de ser aplicada em seis hipóteses:

1) quando for inconstitucional, ocasião em que deve ser aplicada a jurisdição constitucional difusa ou concentrada – não é o caso em discussão;

2) quando for o caso de aplicação dos critérios de resolução de antinomias — tampouco há que se falar em lex anteriores ou posteriores etc.;

3) quando for necessário aplicar a interpretação conforme à Constituição (verfassungskonforme Auslegung), ocasião em que se torna necessária uma adição de sentido ao artigo de lei para que haja plena conformidade da norma à Constituição. Nesse caso, o texto de lei (entendido na sua “literalidade”) permanecerá intacto; o que muda é o seu sentido, alterado por meio de interpretação que o torne adequado à Constituição — igualmente não se vislumbra hipótese de se dizer que uma conquista como a substituição processual possa ser confrontada e reintepretada;

4) quando for preciso aplicar a nulidade parcial sem redução de texto — muito menos estamos diante disso que, originalmente, chamou-se de Teilnichtigerklärung ohne Normtextreduzierung;

5) quando for o caso de declaração de inconstitucionalidade com redução de texto, ocasião em que a exclusão de uma palavra conduz à manutenção da constitucionalidade do dispositivo – da mesma forma, não há o que “cortar” do dispositivo da OAB;

6) quando — e isso é absolutamente corriqueiro e comum — for o caso de deixar de aplicar uma regra em face de um princípio, ocasião em que a regra perde sua normatividade em face de um princípio constitucional, entendido este como um padrão, do modo como explicitado em Verdade e Consenso [1] — aqui, não se vislumbra qualquer princípio que poderia ser um obstáculo ao dispositivo da OAB que dá direito aos honorários convencionados.

Fora dessas hipóteses, o juiz tem a obrigação institucional e constitucional de aplicar a lei, porque é um dever fundamental Se o Judiciário achar que a lei não vale, deve então a declarar dentro das seis hipóteses. O Judiciário, quando não aplica lei válida, está legislando na via contrária.

Vejamos os dispositivos envolvidos no caso em discussão: o inciso III do artigo 8º da Constituição é claro em estabelecer a conquista político-jurídica da substituição processual:

“ao sindicato cabe a defesa dos direitos e interesses coletivos ou individuais da categoria, inclusive em questões judiciais ou administrativas.”

Trata-se, assim, de um direito fundamental de acesso à justiça por meio de um atalho institucional que livra o trabalhador/cidadão não somente das agruras de ingressar individualmente com uma demanda, como também o desonera das pressões dos detentores do capital. Repita-se: estamos diante de um direito fundamental!

Esse direito fundamental também é procedimentalizado pelo Estatuto da OAB, no artigo 22, §§ 6º e 7º, ao se conferir à advocacia a garantia de que

“aplica-se aos honorários assistenciais, compreendidos como os fixados em ações coletivas propostas por entidades de classe em substituição processual, sem prejuízo aos honorários convencionais

e que

“os honorários convencionados com entidades de classe para atuação em substituição processual poderão prever a faculdade de indicar os beneficiários que, ao optarem por adquirir os direitos, assumirão as obrigações decorrentes do contrato originário a partir do momento em que este foi celebrado, sem a necessidade de mais formalidades.”

Essa lei federal é válida. E constitucional, até este momento. Lendo o que diz a lei, pergunta-se: qual é o fundamento para exigir a manifestação de vontade individual de cada sindicalizado antes da proposição de ações coletivas envolvendo direitos trabalhistas? Isso esvazia a substituição processual.

O eventual excesso no valor de honorários é um argumento que perigosamente atinge o cerne do sistema de advocacia brasileiro. Imagine-se a advocacia ingressar em juízo contra o valor dos salários (e vantagens) do Poder Judiciário e do Ministério Público, com o argumento de que são elevados?

O instituto da substituição processual e o pagamento de honorários contratuais reveste-se de uma constitucionalidade chapada.  O dispositivo do Estatuto da OAB é claro. A Constituição alberga o poder de os sindicatos atuarem como substitutos processuais.

Mais: recentemente o STF entendeu que é constitucional restringir direitos trabalhistas por meio de acordos coletivos (Tema 1.046).  Então, a autonomia coletiva da vontade do sindicato o autoriza a celebrar acordos que restrinjam direitos trabalhistas, mas não o autoriza a ajuizar ações coletivas para os proteger?

A consequência previsível disso tudo é o enfraquecimento dos sindicatos. Dia a dia o poder dos sindicatos vem sendo fragilizado. Dificilmente causídicos vão se interessar em ajuizar ações coletivas para entidades sindicais. Preferirão ações plúrimas: teremos cem ações com dez pessoas em cada, em vez de uma ação do sindicato em nome de milhares de filiados.

Em síntese, inconstitucional é qualquer limitação a essas normas, pois violaria a decisão do STF sobre a autonomia coletiva da vontade. E, mais do que isso, colocaria um óbice absolutamente indevido ao direito de acesso à justiça, à tutela dos direitos trabalhistas pelo sindicato e à própria autonomia das entidades sindicais.

Logo, com toda lhaneza epistêmica com a qual sempre opero, insisto: a constitucionalidade do pagamento de honorários contratuais em ações coletivas trabalhistas diz respeito à autonomia do Direito. É sobre preservar a advocacia. É sobre proteger o trabalhador.


[1] STRECK, Lenio Luiz. Verdade e Consenso: Constituição, Hermenêutica e Teorias Discursivas. 6. ed. São Paulo: Saraiva, 2017. p. 633 e seg.

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Uma doação confiscatória na reforma do Código Civil?

Continuando a análise das propostas da reforma do Código Civil para a doação [1], passo agora a mais algumas normas. Neste artigo, quero chamar a atenção para três problemas estritamente jurídico-dogmáticos: o incorreto uso da categoria jurídica da ineficácia na doação inoficiosa, uma insólita proposta de doação confiscatória e a imprecisão do termo ajuda patrimonial nas hipóteses de revogação da doação.

Doação inoficiosa

O artigo 549 foi completamente alterado. A doação inoficiosa segue vedada, mas o conceito que instrumentaliza essa proibição foi modificado. O caput atual dispõe que “[n]ula é também a doação quanto à parte que exceder à de que o doador, no momento da liberdade, poderia dispor em testamento”. A Reforma propõe uma alteração no início desse artigo, que rezaria: “[s]alvo na hipótese do art. 544, é ineficaz a doação (…)”. Diretamente ligada a essa alteração está a inclusão de um § 3º, cuja redação proposta é a seguinte: “[n]ão sendo proposta a ação de reconhecimento da ineficácia no prazo de cinco anos, a doação considerar-se-á eficaz desde a data em que foi realizada”. Isto é, trocou-se a noção de nulidade pela de ineficácia. Como o nulo jamais poderia convalescer ex artigo 169, CC, a categoria da ineficácia deve ter parecido à comissão um instrumento apto a instrumentalizar esse resultado.

No entanto, os conceitos dogmáticos não podem ser instrumentalizados de tal maneira. Se a finalidade era estabelecer um limite temporal, quadraria melhor utilizar a noção de anulabilidade, prevendo-se ou a aplicação do prazo decadencial geral, ou a criação de prazo específico. De fato, as anulabilidades têm de ser alegadas dentro de determinado prazo, sob pena de convalidação. Já o regime da ineficácia é muito distinto e não tem, entre seus princípios, a noção de aquisição geral de eficácia pelo decurso do tempo. A noção mesma de uma ineficácia cuja declaração se sujeita a um prazo causa estranheza: não se estaria próximo a uma verdadeira desconstituição? A ineficácia se converteria num direito formativo extintivo?

De fato, a ineficácia é incompatível com a situação. Como regra geral, a ineficácia produz-se inter partes, de modo que, beneficiado pela ineficácia seria apenas o autor da ação declaratória: trata-se de situação semelhante à da fraude à execução, cujo reconhecimento, importando em ineficácia, não faz com o que bem retorne ao patrimônio do executado, mas apenas declara a ineficácia da disposição em face de determinado credor. Esse resultado seria plenamente insatisfatório por duas razões. Em primeiro lugar, privilegiaria um herdeiro em detrimento de outro, desequilibrando os quinhões. Em segundo lugar, constituiria previsão arriscada para os credores. Afinal, “[s]e, somando-se ao que deixou o falecido o em que importaram as doações, há menos do que a soma das dívidas, legitimados ativos também são os credores, uma vez que no Código Civil [de 1916], artigo 1.176, se concebeu a regra jurídica como de nulidade” [2]. Esse esclarecimento de Pontes de Miranda é fundamental: a nulidade, como impede – perante todos – que o bem saia juridicamente do patrimônio do doador, é a categoria correta para tutelar não apenas o conjunto de herdeiros, mas também terceiros credores que eventualmente tenham de declarar a nulidade parcial da doação inoficiosa. É preciso ter extremo cuidado ao trocar categorias conceituais, pois nem todos os resultados podem ser concebidos desde logo.

Passando à aplicação prática de tal princípio, ela causa diversos problemas. Em primeiro lugar, antes da abertura da sucessão, a legitimação como herdeiro é mera expectativa de direito, podendo-se alterar a depender de quando sobrevier a morte para cada pessoa. Em verdade, não há herdeiro de pessoa viva: a legitimidade para suceder apura-se, em regra, no momento da abertura da sucessão. Assim, a legitimidade não seria verdadeiramente atribuída ao herdeiro, mas ao herdeiro presuntivo. A este caberia atuar em benefício dos herdeiros (efetivos) em geral, ainda não determinados; já sua inércia poderia também prejudicar outros herdeiros que, uma vez passado o prazo quinquenal, não teriam mais instrumento para questionar a doação.

O segundo problema prático está em apurar, durante a vida do doador, a inoficiosidade da doação: por vezes, nem mesmo o doador tem plena consciência do montante do seu patrimônio para avaliar a inoficiosidade. Imagine-se, então, que um herdeiro – e, de ordinário, em nítido conflito com o doador – teria de calcular o valor do patrimônio e provar a inoficiosidade em juízo. Considerando que grande parte da documentação dos bens que fazem parte do patrimônio não é pública, e que nem todos os bens permitem fácil estimação pecuniária, qual a probabilidade desse desenho institucional funcionar para além de patrimônios muito limitados, cujos bens sejam facilmente avaliáveis? É por isso que outras normas – como o artigo 550, CC, que trata da doação do cônjuge adúltero ao seu cúmplice – fazem iniciar o prazo de anulabilidade após a dissolução da sociedade conjugal, o que abrange também a morte do autor da herança. Caso se aplicasse a anulabilidade ao caso, conviria ser este o termo inicial do prazo decadencial.

A reforma propõe ainda a inclusão dos §§ 1º e 2º. O § 1º receberia a seguinte redação: “[o] cálculo da parte a ser restituída considerará o valor nominal do excesso ao tempo da liberalidade, corrigido monetariamente até a data da restituição, ainda que o objeto da doação não tenha sido dinheiro”. Já o § 2º teria a seguinte redação: “[e]m casos de doações realizadas de forma sucessiva, o excesso levará em conta todas as liberalidades efetuadas”.

O § 2º traz norma jurídica interessante, pois resolve dúvidas práticas embasadas em estudos doutrinários anteriores [3]. Já o § 1º mostra alguns problemas. Em primeiro lugar, não é preciso explicitar a necessidade de correção monetária, uma vez que, sendo a pretensão aplicável ao caso a do enriquecimento injustificado [4], essa previsão está explícita no artigo 884, parte final, CC. Em segundo lugar, é evidente que a disposição deve se aplicar ainda que a doação não tenha dinheiro por objeto, uma vez que a estimação pecuniária é a forma de avaliação comum a todos os objetos patrimoniais por definição.

Mas há algo mais grave: ao regular o que deve ser devolvido, a norma proposta toma posição a respeito do objeto do enriquecimento injustificado, que não é matéria pacífica no direito brasileiro. No direito estrangeiro, questiona-se se o objeto da pretensão de enriquecimento deve consistir na atribuição realizada, na reversão do efetivo enriquecimento ao patrimônio do donatário, ou em critério misto [5]. Não me parece prudente tomar partido dessa questão sem estudos doutrinários prévios de maior envergadura.

Expropriação confiscatória

O artigo 553, caput, CC, prevê três espécies de doação com encargo, conforme o interesse em sua realização: (a) do doador; (b) de terceiro; (c) do público em geral. Em todos esses casos, pela regulação atual, o donatário é obrigado a cumprir o encargo.

A Reforma amplia essa norma, concedendo ao terceiro interessado e ao Ministério Público não apenas a possibilidade de exigir o cumprimento do encargo em benefício de terceiro e no interesse geral, respectivamente, mas também a de revogar a doação. Assim, prevê o novo § 2º: “[n]as duas últimas hipóteses do caput deste artigo, caberá a revogação da doação pelo Ministério Público ou pelo terceiro beneficiado, e o bem doado será revertido ao fundo gerido por um Conselho Federal ou por Conselhos Estaduais de que participarão necessariamente o Ministério Público e representante da comunidade, nos termos da lei”.

Essa hipótese causa estranhamento, pois o direito formativo de revogação da doação não é nem mesmo exercitável pelos herdeiros, a não ser que continuem na ação já ajuizada pelo doador (cf. artigo 560, CC) ou em caso de homicídio (artigo 561, CC). O que causa ainda maior estranhamento, porém, é tratar-se de uma revogação em benefício de terceiro, já que o objeto doado, após a revogação a pedido do terceiro ou do Ministério Público, não regressará ao patrimônio do doador ou de seus herdeiros, mas será destinado a um conselho estadual ou federal.

A técnica legislativa causa espécie: se o bem não voltará ao patrimônio do doador ou de seu sucessor, de revogação não se trata. Também não se trata de hipótese de desapropriação, na medida em que não há previsão de indenização, como exigido pelo artigo 5, XXIV, CF. Resta apenas categorizá-la como expropriação confiscatória, à semelhança do que se prevê no artigo 243, CF, medida extrema para o caso de bens imóveis utilizados para cultivo de plantas psicotrópicas ou de exploração de trabalho escravo. Existem, de fato, hipóteses de expropriação na legislação ordinária, como o caso dos produtos e instrumentos do crime (artigo 91, CP), mas tal espécie de confisco está implicitamente autorizada no artigo 5, XLV, CF. De fato, em ambas as espécies, a destinação é bastante clara: a União é a destinatária, ainda que, no artigo 243, CF, se explicite que ela deverá empregar os imóveis expropriados para fins de reforma agrária e de programas de habitação popular. Já a reforma se limita a cometer a administração desses bens a um Conselho, cuja caracterização nem sequer se debuxa. Além disso, não se prevê a finalidade de emprego do produto da expropriação. É preciso observar, ainda, que as outras espécies de expropriação decorrem, direta ou indiretamente, de condenação criminal ou de situações criminosas; já o descumprimento do encargo constitui mero ilícito civil.

A categoria da revogação foi indevidamente manipulada neste artigo da Reforma. A revogação constitui direito formativo extintivo, cuja titularidade é, a princípio, do doador. Exercendo-o, o doador retira a vox [6], isto é, a declaração jurídico-negocial, com eficácia ex tunc, e, com isso, perde-se a causa jurídica que sustentava a atribuição que ele fizera ao donatário. Por essa razão, não há uma relação de liquidação após a revogação: o que há é apenas enriquecimento injustificado ou pretensão reivindicatória. E, no caso da primeira, não exatamente a condictio indebiti, mas a condictio ob causam finitam, já que a causa atributiva existiu, mas deixou de existir após a revogação. Como as condicções seguem a ordem da prestação [7] – realizada, por sua vez, entre doador e donatário – não há como o terceiro ser beneficiado: o bem doado tem de regressar ao patrimônio do doador, seja ele titularizado ainda pelo doador ou por seus herdeiros. Logo, uma revogação em benefício de terceiro é um contrassenso jurídico, que viola as regras estruturais de extinção dos negócios jurídicos, bem como as do enriquecimento injustificado. Na verdade, o termo “revogação” está aí apenas como eufemismo: o que há, de fato, é expropriação confiscatória.

Nesse sentido, o regime de execução do encargo torna-se excessivamente rigoroso com a reforma. Na hipótese do interesse ser de terceiro, a previsão carece mesmo de sentido: qual o interesse que o terceiro teria em pedir a revogação da doação, se o bem doado será destinado a um Conselho de que ele nem sequer participará? Haveria muitas outras formas, mais convenientes e eficazes, do que a previsão da expropriação confiscatória – que constitui, a bem da verdade, a forma mais radical para lidar com ilícitos relativos à propriedade. É o caso, por exemplo, da execução específica por meio de astreintes, da previsão de indenização por perdas e danos pela inexecução do encargo ou, mais radicalmente, da execução manu militari dos encargos em que tal espécie couber.

Em conclusão, as alterações propostas para o artigo 553, CC, geram uma espécie de expropriação confiscatória de constitucionalidade bastante duvidosa, sendo melhor manter a previsão genérica do atual artigo 562, CC, que concede ao doador a revogação da doação por inexecução do encargo. Além disso, o conceito de revogação não se presta à intenção da previsão normativa da reforma.

Ajuda patrimonial

O artigo 557, CC, prevê as hipóteses de revogação por ingratidão. A formulação legislativa atualmente vigente implica que as hipóteses de ingratidão são típicas. No entanto, a reforma prevê antepor ao texto atual a seguinte oração: “[e]ntre outras hipóteses de especial gravidade (…)”, explicitando que os fundamentos de revogação passam a constar de rol aberto.

Essa alteração, por si só, já causa estranhamento. Se as razões para revogação são tão graves, como não é possível prevê-las? Aqui se nota mais um problemático aspecto da reforma: o excessivo papel concedido à concretização judicial das hipóteses normativas. Especialmente em casos graves, como a perda de um direito, é conveniente que as hipóteses venham elencadas na lei. Há também falta de sistematicidade: a alteração do inciso II – adicionando que a ofensa física pode se voltar “(…) contra algum membro de sua família” é desnecessária, pois prevista já no artigo 558, CC.

No entanto, o que causa maior estranheza é o conceito empregado no inciso IV: “ajuda patrimonial”. Este conceito visa a substituir a noção de “alimentos”. Aqui há mais um traço comum da Reforma: a substituição de um conceito dogmático com grande densidade por outro sem nenhuma densidade dogmática. Afinal, o que pode ser considerado “ajuda patrimonial”? Se o doador pedir dinheiro mutuado ao donatário, trata-se de ajuda patrimonial? E, se pedir para morar gratuitamente em imóvel desocupado do donatário, o comodato seria ajuda patrimonial? Em rigor, a resposta positiva seria admissível, na medida em que, em ambos os casos, o patrimônio do doador ou aumenta, ou deixa de se reduzir mesmo recebendo uma benesse. Parece, porém, excessivo permitir a revogação da doação diante da negativa do donatário em aceitar a conclusão de tais “contratos”, se é que assim poderiam ser chamados diante da ameaça de revogação em caso de negativa. Já o conceito de alimentos, forjado no binômio possibilidade e necessidade, é muito mais adequado, pois permite ponderar judiciosamente a situação de ambas as partes envolvidas. Com a troca, não apenas não se ganha nada, mas, em verdade, se perde a clareza conceitual.


[1] METTLACH, J. C. A doação na reforma do Código Civil. Conjur, 30/04/2025. Acesso aqui.

[2] PONTES DE MIRANDA, F. C. Tratado de Direito Privado. Vol. XLVI. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2012, p. 330.

[3] Quanto ao § 2º, cf. PONTES DE MIRANDA, F. C., Tratado de Direito Privado. Vol. XLVI. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2012, p. 329.

[4] Emprego o termo enriquecimento injustificado como gênero, abrangendo os capítulos do pagamento indevido e do enriquecimento sem causa, e trato-os como concretizações do mesmo instituto jurídico.

[5] Para um panorama geral, cf. REUTER, Dieter; MARTINEK, Michael. Ungerechtfertigte Bereicherung. Tübingen: Mohr, 1983, pp. 518-20.

[6] PONTES DE MIRANDA, F. C. Tratado de Direito Privado. Vol. XXV. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2012, p. 351.

[7] WIELING, H. J. Bereicherungsrecht. 3ª ed. Berlin: Springer, 2004, pp. 89. As razões são plenamente aplicáveis ao direito brasileiro.

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Aplicação subsidiária da Lei de Recuperação Judicial nas lacunas da Lei do RCE

1. A Lei nº 14.193/2021 — Lei do Regime Centralizado de Execuções (RCE) — foi inspirada na Lei nº 11.101/05 (Lei da Recuperação Judicial), inclusive com informação legislativa de aplicação análoga de seus conceitos primários, consoante parecer da Comissão Especial do Senado Federal.

2. A máxima de ambas as legislações, nesse particular aspecto, é o prestígio aos princípios da preservação e da continuidade da empresa.

3. É natural que o Congresso Nacional não esgote a matéria em suas discussões parlamentares, pois a política nada mais é do que a arte do possível, conciliando todos os pensamentos em torno a uma necessidade social real, premente e concreta.

4. Originalmente o projeto de lei proposto pelo senador Rodrigo Pacheco não previa o regime centralizado de execuções. Todavia, na justificação da criação da norma o embrião dessa tão bem-vinda organização creditícia se fazia presente através do reconhecimento do valor econômico e cultural do desporto. A saber:

“Para além de ser um dos mais importantes fenômenos culturais-sociais deste País, o futebol revelou-se atividade econômica de grande relevância nacional: os principais clubes geram bilhões de reais em faturamento, empregam milhares de pessoas (direta e indiretamente) e movimentam verdadeiras indústrias de bens de consumo e prestação de serviços.

(…)

É preciso, portanto, reconhecer a necessidade de se promover uma verdadeira transformação do regime de tutela do futebol no Brasil, a fim de possibilitar a recuperação da atividade futebolística, aproximando-o dos exemplos bem-sucedidos que se verificaram em países como Alemanha, Portugal e Espanha.”

5. No parecer lavrado pelas mãos do deputado federal Fred Costa, relator do emendado projeto de Lei nº 5.516/2019, o plenário da Comissão Especial assim bem pontuou sobre a inspiração da Lei da S.A.F. na Lei de Recuperação Judicial, com especial ênfase à criação do Regime Centralizado de Execuções:

“Considero meritório e oportuno o projeto ora examinado, tendo em vista que o futebol brasileiro há muito enfrenta desafios com a gestão pouco profissional dos clubes. O formato associativo, predominante na atualidade, não viabiliza um modelo de governança por meio do qual os dirigentes possam ser responsabilizados por suas gestões, além de limitar as formas de financiamento junto ao público, não viabilizar o acesso aos institutos da recuperação judicial e extrajudicial e carecer de um sistema legal de transparência.

(…)

Como forma de solucionar os problemas acima mencionados, o PL 5.516, de 2019, propõe a criação da Sociedade Anônima do Futebol (SAF), um formato de sociedade anônima adaptado às peculiaridades do setor esportivo em que inseridas, as quais serão regidas subsidiariamente pela Lei n. 6.404, de 1976. O PL cria ainda o Regime Centralizado de Execuções, como modo alternativo para pagamento de obrigações pelo clube, regulamento o licenciamento privado das SAF via emissão de debênture-fut, e institui o regime de Tributação Específica do Futebol (TEF).

(…)

Como forma de endereçar a atual crise financeira vivida pelos clubes e a restrição legal de acesso das associações aos institutos recuperacionais da Lei n. 11.101, de 2005, o PL expressamente permite que os clubes escolham por efetuar o pagamento de suas obrigações seja pela recuperação judicial ou extrajudicial seja pelo concurso de credores, por intermédio do Regime Centralizado de Execuções.

5. Esse parecer concluiu pela constitucionalidade, juridicidade e técnica legislativa, acenando positivamente para a aplicação subsidiária da Lei de Recuperação Judicial à Lei do RCE.

6. Prevendo, outrossim, que dessa dissonância haveria lacunas a serem preenchidas, o artigo 4º do Decreto 4.657/42 tratou de dispor que “Quando a lei for omissa, o juiz decidirá o caso de acordo com a analogia, os costumes e os princípios gerais de direito”.

8. De acordo com Serpa Lopes (Curso de direito civil, Rio: Freitas Bastos, 1998, v.I, p.135) “quando a lei não fez distinção o intérprete não deve fazê-la (ubi lex non distinguit nec nos distinguere debemus). Não deve o intérprete criar, na interpretação, distinções que não figuram na lei“.

9. Desta feita, evidencia-se, sem a menor sobra de dúvidas, que na ausência de normas comezinhas sobre o Regime Centralizado de Execuções, caberá o preenchimento desses espaços pela recuperação judicial.

10. É razoável que a Lei do RCE se servirá – mutatis mutandis – no que couber, do arcabouço interpretativo jurisprudencial sobre a Lei da Recuperação Judicial, consoante fixado no parecer da Comissão Especial do Senado que deu azo à conclusão positiva do então projeto de lei.

11. O objetivo primordial da Lei do RCE foi o de outorgar à deliberação das entidades de prática desportiva a construção das condições infraestruturais que lhes permitissem tratar de seus passivos e prover um ambiente seguro de negócios para constituição de uma Sociedade Anônima do Futebol (SAF) a investidores interessados no principal desporto nacional.

12. A blindagem patrimonial prevista no artigo 23 da Lei do RCE e no inciso I, do artigo 6º da Lei da Recuperação Judicial exsurge justamente do princípio da preservação da empresa.

13. Além disso, o Regime Centralizado de Execuções tem por escopo organizar os credores em fila, por ordem preferencial, excluídos os créditos extraconcursais, evitando, outrossim, a indesejável paralisação das atividades pelas mãos da asfixia financeira.

14. A previsão de um plano de pagamento de credores (artigo 16 da Lei do RCE) guarda semelhanças com o plano de recuperação judicial (artigo 53 da Lei da Recuperação Judicial), a saber:

Plano de Pagamento de Credores Plano de Recuperação Judicial
I. Balanço patrimonial; I. Avaliação dos bens e ativos do devedor, subscrito por profissional legalmente habilitado ou empresa especializada;
II. Demonstrações contábeis;
III. Obrigações em fase de execução;
IV. Estimativa auditada das dívidas ainda em fase de conhecimento; II. Laudo econômico-financeiro;
V. Fluxo de caixa e a sua projeção; III. Demonstração de sua viabilidade econômica;
VI. Termo de compromisso de controle orçamentário
VII. Ordem da fila de credores com seus respectivos valores individualizados e atualizados;
VIII. Pagamentos efetuados no período;
IX. Estabelecimento do plano de pagamento de forma diversa IV. Discriminação pormenorizada dos meios de recuperação a ser empregados

15. As semelhanças não param por aí. A ordenação do pagamento no Regime Centralizado de Execuções (artigo17 da do RCE) muito se parece com a classe de credores (artigo 41 da Lei da Recuperação Judicial).

Ordem de Credores Classe de Credores
I. Preferência de créditos trabalhistas; I. Titulares de créditos laborais;
II. Idosos; II. Titulares de créditos com garantia real;
III. Pessoas com doenças graves; III. Titulares de créditos quirografários, com privilégio especial, com privilégio geral ou subordinados;
IV. Crédito inferior a 60 salários mínimos; IV. Titulares de créditos enquadrados como microempresa ou empresa de pequeno porte;
V. Gestantes;
VI. Vítimas de acidentes de trabalho; V. Crédito decorrente de acidente do trabalho
VII. Acordo com redução de 30% da dívida;
VIII. Antiguidade

16. Desde a proposta até a sanção da Lei do RCE foi clara a intenção do parlamento brasileiro em preservar as entidades de prática desportiva, provendo-lhe de meios e instrumentos capazes de gerar uma verdadeira transformação social e adequação a uma nova realidade que se impôs no curso do tempo.


Referências:

BRASIL. Decreto nº. 4.657, de 4 de setembro de 1942. Lei de Introdução às normas do Direito Brasileiro. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 9 set. 1942 – retificado em 8 out.1942 e retificado em 17 jun. 1943.

BRASIL. Lei nº 11.101, de 9 de fevereiro de 2005. Regula a recuperação judicial, a extrajudicial e a falência do empresário e da sociedade empresária. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 9 fev. 2005 – Edição extra.

BRASIL. Lei nº 14.193, de 6 de agosto de 2021. Institui a Sociedade Anônima do Futebol e dispõe sobre normas de constituição, governança, controle e transparência, meios de financiamento da atividade futebolística, tratamento dos passivos das entidades de práticas desportivas e regime tributário específico; e altera as Leis nºs 9.615, de 24 de março de 1998, e 10.406, de 10 de janeiro de 2002 (Código Civil). Diário Oficial da União, Brasília, DF, 6 out. 2021 – Edição extra e retificado no DOU de 21 out. 2021.

BRASIL. Projeto de Lei nº. 5.516/2019. Autor
Senado Federal – Rodrigo Pacheco – DEM/MG. Apresentação
15/06/2021

LOPES, Miguel Maria de Serpa. Curso de Direito Civil Civil. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1998, v. I, p. 135).

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RIFs por requisição direta: STJ fecha a porta à devassa informal

No último dia 14 de maio, a 3ª Seção do Superior Tribunal de Justiça, ao julgar os RHCs 196.150, 174.173 e o REsp 2.150.571, pôs fim à controvérsia sobre o alcance dos relatórios de inteligência financeira (RIFs). Por maioria de seis votos a três, fixou-se tese vinculante segundo a qual é inviável que o Ministério Público ou a Polícia Judiciária requisitem, sem ordem judicial, a remessa de RIFs pelo Coaf.

A decisão do STJ não apenas confirma essa tese: reafirma que, como sustentei em outra passagem nesta ConJur, o combate ao crime não pode sacrificar garantias fundamentais como o sigilo bancário, a intimidade e a ampla defesa. Práticas como a solicitação de RIFs sem autorização judicial, a ampliação indevida de escopos investigativos e a adoção de fishing expeditions colidem com os alicerces do Estado democrático de Direito, pois subvertem a presunção de inocência, vulneram a ampla defesa e contaminam de ilicitude as provas produzidas.

Ao afastar a leitura ampliativa do Tema 990 do STF — que legitima apenas o compartilhamento espontâneo —, o STJ recolocou a reserva de jurisdição no centro do controle das devassas patrimoniais e financeiras, impondo um freio jurídico à prática que, sob o rótulo de “eficiência investigativa”, vinha autorizando pescarias probatórias sem contraditório.

A corte deixou claro que o compartilhamento admitido pelo Supremo não autoriza o movimento inverso, ou seja, a requisição ativa por parte do Ministério Público ou da Polícia Judiciária. Prevaleceu a compreensão de que a eficácia estatal na repressão penal não dispensa a mediação judicial, sendo inaceitável a coleta de dados sensíveis à margem das garantias fundamentais.

Como sustentado no voto do ministro Messod Azulay, não se trata de impedir a produção da prova, mas de reafirmar que sua obtenção há de respeitar os limites constitucionais que distinguem um processo penal civilizado de experimentos inquisitoriais travestidos de modernidade.

A tese assentada é direta e enfática: “A solicitação direta de relatório de inteligência financeira pelo Ministério Público ao Coaf, sem autorização judicial, é inviável. O Tema 990 da repercussão geral não autoriza a requisição direta dos dados financeiros por órgão de persecução penal sem autorização judicial”.

O efeito é imediato e de largo alcance: a partir de agora, ambas as turmas criminais do STJ — que desde 2021 divergiam sobre a validade das requisições proativas — devem submeter-se à diretriz da 3ª Seção, reconhecendo como nulo todo RIF obtido sem prévia autorização judicial, ainda que requerido após a formalização de inquérito policial ou PIC. A decisão encerra a era dos “RIFs por encomenda” e exige, doravante, o indispensável crivo jurisdicional como condição de existência da prova.

Entre a pressão investigativa e o limite constitucional

Durante a sessão de julgamento, os representantes ministeriais defenderam que o enfrentamento ao crime organizado exige mecanismos céleres de investigação patrimonial. Invocaram, como pano de fundo, o colapso da segurança pública no Rio de Janeiro, a ocupação territorial por facções e o fenômeno da “exportação” de lideranças criminosas para outras unidades da federação. A defesa, por sua vez, evidenciou a gravidade do desvio funcional a que os RIFs vinham sendo submetidos.

Demonstrou-se que milhares de CPFs e CNPJs – até 10 mil em um único caso – foram objeto de requisição direta, sem inquérito formal, sem individualização prévia e sem qualquer controle judicial. O caso relatado de um escritório de advocacia alvo de devassa patrimonial por meio de VPI, sem sequer citação do nome em denúncia anônima, expôs o uso dos RIFs como dossiês secretos mantidos em “gavetas investigativas”. Ocultados por mais de um ano da defesa e até do próprio Ministério Público revisor, tais relatórios sustentavam investigações posteriormente legitimadas sob o pretexto de “encontro fortuito”.

A técnica foi denunciada como fraude processual sistêmica, contrariando frontalmente os postulados do devido processo legal e da paridade de armas.

Distinção entre compartilhamento e requisição

Relator da posição vencedora, o ministro Messod Azulay Neto enfatizou, com precisão didática, que o Tema 990 jamais autorizou a via inversa. O precedente do Supremo Tribunal Federal referia-se ao envio espontâneo de informações pela Unidade de Inteligência Financeira (UIF), condicionado a indícios prévios de ilicitude, à existência de procedimento formal e ao controle jurisdicional posterior. Segundo o voto condutor, não há na ordem jurídica qualquer respaldo – legal ou jurisprudencial – à requisição ativa de RIFs por órgãos de persecução penal.

Apenas o compartilhamento espontâneo foi validado pelo STF. Nas palavras do relator o art. 15 da Lei de Lavagem trata apenas do compartilhamento espontâneo. Não há autorização legal nem jurisprudencial para que o Ministério Público ou a polícia, de ofício, exijam o envio de RIFs sem prévia autorização judicial.

Ao contextualizar o cenário normativo e jurisprudencial, o ministro expôs a multiplicidade de entendimentos não apenas no âmbito das turmas do STJ, mas também entre a 1ª e a 2ª Turma do STF — um quadro de instabilidade interpretativa que tornou imperativa a fixação de uma tese unificada. Destacou ainda que, embora a Corte Especial do STJ tenha admitido, por maioria apertada, o acesso extrajudicial a dados cadastrais simples, os relatórios de inteligência financeira guardam conteúdo significativamente mais sensível, por isso submetidos a um regime de proteção qualificado. Para o relator, qualquer devassa em tal esfera exige a intervenção do Poder Judiciário como garantia indeclinável de um processo penal constitucionalmente legítimo.

Barreira contra o abuso institucional

O ministro Sebastião Reis Júnior, ao proferir voto paralelo, destacou com precisão o verdadeiro núcleo do debate: o STJ não está vedando a produção da prova — apenas exigindo que ela passe pelo crivo constitucional da autorização judicial. Em sua análise, os dados constantes nos RIFs não estão sujeitos a perecimento ou volatibilidade que justificasse qualquer alegação de urgência.

Por serem informações estáticas, não há razão legítima para dispensar a intermediação jurisdicional. Sua ponderação desarmou a narrativa fundada no apelo à segurança pública irrestrita, frequentemente usada para justificar mecanismos investigativos informais. “Ninguém está impedindo a produção da prova”, afirmou. “Estamos apenas exigindo que a produção obedeça aos limites legais.”

Ao colocar a exigência de ordem judicial como cláusula de estrutura e não de conveniência, o voto reafirma a centralidade da legalidade estrita no processo penal acusatório, impedindo que o combate ao crime se converta em uma válvula de escape institucional para práticas de exceção. Como assinalou o ministro, o respeito à reserva de jurisdição não enfraquece o Estado investigativo – ao contrário, o fortalece sob a luz do Estado de Direito.

O próprio ministro Reinaldo Soares da Fonseca, ao acompanhar a maioria, reafirmou a coerência de sua posição histórica: a reserva de jurisdição não diminui a legitimidade do Ministério Público, mas a projeta no exato lugar institucional que a Constituição lhe conferiu. Nenhum juiz — asseverou — negará acesso a dados sigilosos quando apresentados elementos mínimos de justa causa. O que se exige, portanto, não é um entrave, mas um filtro civilizatório, próprio de um processo penal que se pretenda democrático.

Em contraponto, os votos vencidos — liderados pelo ministro Og Fernandes e seguidos por Rogério Schietti e Ribeiro Dantas — sustentaram que o Superior Tribunal de Justiça não poderia reinterpretar o alcance do Tema 990, sob pena de afrontar a competência do STF. Ainda que fundamentados em premissas institucionais respeitáveis, esses votos não lograram convencer a maioria, que compreendeu ser inadmissível a omissão diante de um vácuo hermenêutico persistente, agravado por práticas reiteradas de informalidade persecutória.

Em nome da integridade do sistema acusatório, o STJ decidiu não apenas que podia, mas que devia firmar jurisprudência própria até que o STF venha a fixar entendimento definitivo.

Reafirmação do processo penal garantista

A decisão da 3ª Seção atua como verdadeiro antídoto contra a degeneração investigativa que vinha se consolidando nos bastidores da persecução penal. Sustentações orais e manifestações técnicas revelaram, de forma incontornável, que a requisição direta de RIFs havia se convertido em expediente quase automático – sem controle judicial, sem contraditório. Dados trazidos à tribuna apontaram aumento de 1.339% nos pedidos, expondo o uso desenfreado de uma ferramenta concebida para finalidades excepcionais. Transformado em braço informal da repressão estatal, o Coaf passou a alimentar uma arquitetura paralela de vigilância patrimonial, imune a qualquer controle defensivo.

Com a nova tese fixada, a equação jurídica se altera de modo estrutural: RIFs obtidos por requisição direta, mesmo após instauração de inquérito, passam a ser prova ilícita, atraindo a cláusula excludente do artigo 157 do Código de Processo Penal e comprometendo, por derivação, todos os atos subsequentes. Além disso, a prática reiterada por autoridades persecutórias, à revelia da decisão do STJ, poderá ensejar responsabilização funcional por violação do artigo 10 da LC 105/2001 e do artigo 25 da Lei de Abuso de Autoridade (Lei 13.869/2019).

Reafirma-se, assim, o compromisso com um processo penal garantista, no qual a eficácia investigativa não se constrói à custa da legalidade, da paridade de armas ou da cláusula de jurisdição.

Olimite que garante a legitimidade

Esse resultado não tolhe investigações legítimas – apenas lhes devolve o itinerário constitucional. O art. 5º, XII, da Constituição Federal, a Lei Complementar 105/2001 e o art. 3º-B, §1º, do Código de Processo Penal não são obstáculos burocráticos à persecução penal: são garantias estruturantes de um processo penal civilizado. A repressão eficaz ao crime, especialmente ao de natureza econômica e patrimonial, exige inteligência, estratégia e celeridade – mas nenhuma dessas virtudes autoriza o desprezo à reserva de jurisdição, à legalidade estrita ou ao contraditório.

Ao interditar a requisição direta de RIFs sem autorização judicial, o STJ não impõe um obstáculo arbitrário à atuação do Ministério Público ou das polícias. Pelo contrário, reforça a legitimidade de suas atribuições, submetendo-as ao controle judicial prévio, que é a moldura institucional própria de qualquer medida que atinja esferas sensíveis da intimidade financeira dos cidadãos. Não se trata de conferir privilégio a investigados, mas de garantir que, mesmo diante de investigações graves e complexas, a atuação estatal permaneça ancorada na legalidade e sujeita a controle de proporcionalidade.

Reafirma-se, assim, que a eficiência não é um valor absoluto. Quando dissociada da legalidade, converte-se em autoritarismo funcional, ainda que travestido de boa intenção. O que o julgamento da 3ª Seção expõe, com nitidez, é que a eficácia da persecução penal não pode legitimar métodos clandestinos, tampouco naturalizar práticas de exceção. Em matéria de sigilo bancário e financeiro, o controle judicial não é uma formalidade a ser superada: é a cláusula de validade, de legitimidade e de civilidade do processo penal democrático.

A decisão de 14 de maio de 2025 marca, assim, um ponto de inflexão: reequilibra a relação entre poder investigativo e garantias fundamentais, reafirma a centralidade do Judiciário no controle de medidas invasivas e devolve à dogmática processual penal a clareza que a prática vinha solapando. Ao fechar a porta da devassa informal, o STJ não enfraquece o combate ao crime – fortalece a República e o Estado democrático de Direito.

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Há rescisão indireta pela ausência de pagamento de horas extras?

Nos últimos tempos, o Tribunal Superior do Trabalho (TST) tem reafirmado o seu entendimento nos mais diversos assuntos por meio da fixação de teses vinculantes, postura essa condizente de um órgão de uniformização da jurisprudência trabalhista, cujos precedentes buscam, ao final, pacificar os conflitos ainda existentes no âmbito dos Tribunais Regionais do Trabalho, promovendo, assim, maior previsibilidade nas decisões e segurança jurídica.

Neste novo cenário, uma questão que sempre trouxe muita polêmica e debates se refere ao não pagamento das horas extras pelo empregador. Tanto isso é verdade que num levantamento realizado pelo próprio TST, identificou-se que os temas de horas extras e do intervalo intrajornada foram tidos como assuntos mais discutidos nas ações trabalhistas em 2024, sendo que dentre 513 mil processos julgados, 70.508 eram sobre horas extras [1].

À vista disso, questiona-se: se, porventura, o empregador deixar de pagar, de forma reiterada, as horas extras devidas ao trabalhador, tal fato ensejará ruptura contratual pela rescisão indireta? Qual é o posicionamento hoje da jurisprudência à luz do entendimento da Corte Superior Trabalhista?

Por certo, considerando a sensibilidade que gira em torno da matéria, bem como as recentes diretrizes traçadas pelo TST, o assunto foi indicado por você, leitor(a), para o artigo da semana, na coluna Prática Trabalhista da revista eletrônica Consultor Jurídico [2], razão pela qual agradecemos o contato.

Rescisão indireta

Do ponto de vista normativo no Brasil, o artigo 483 da CLT [3] traz as hipóteses em que o contrato de trabalho poderá ser rescindido por iniciativa do trabalhador. A propósito, a temática da falta grave do empregador e a justa causa patronal já foi abordada em outra ocasião nesta coluna [4].

Lição de especialista

Sobre o assunto, oportunos são os ensinamentos de Carlos Henrique Bezerra Leite [5]:

“Na rescisão indireta, também chamada de despedimento indireto, ocorre a extinção do contrato de trabalho por iniciativa do empregado, que tem o ônus de provar a justa causa perpetrada pelo empregador (CLT, art. 483). Nesse caso, se o empregado se desincumbir do referido ônus, terá os mesmos direitos como se a extinção fosse por iniciativa do empregador sem justa causa, inclusive, fazendo jus o empregado ao aviso prévio (CLT, art. 487, § 4º).
(…)
Pensamos, contudo, que o art. 483, d, da CLT deve ser interpretado conforme a Constituição Federal, de modo que, se for comprovada a violação, ainda que parcial, das obrigações de pagar, de fazer ou de não fazer relacionadas aos direitos fundamentais sociais do trabalhador, por exemplo, a falta ou o atraso no pagamento de salários ou do décimo terceiro, a não concessão de férias ou a ausência do recolhimento do FGTS, implicará justa causa perpetrada do empregador, o que autorizará a rescisão do contrato de trabalho pelo empregado. Afinal, nesses casos não haverá apenas a violação aos direitos previstos na lei ou no contrato como também ofensa aos direitos fundamentais insculpidos na própria Constituição da República”.

Portanto, se é verdade que o trabalhador poderá ser dispensado, por justo motivo, caso venha a praticar uma falta grave que torne insuportável a manutenção da relação contratual, de igual modo quando houver desrespeito aos termos e obrigações inerentes ao contrato de trabalho pelo empregador haverá também o término do pacto laboral por justo motivo patronal, devendo o empregado ser indenizado como se tivesse sido desligado imotivadamente.

Tese vinculante

Dito isso, a partir do julgamento do RRAg 1000642-07.2023.5.02.0086 [6] representativo da controvérsia para a reafirmação da jurisprudência do TST, a Corte Superior Trabalhista pacificou o entendimento de que, doravante, o descumprimento contratual contumaz relativo à ausência do pagamento de horas extraordinárias e a não concessão do intervalo intrajornada autoriza a rescisão indireta do contrato de trabalho, na forma do artigo 483, “d”, da CLT.

Vale dizer, a partir da nova tese vinculante (Tema 85), cuja orientação passa a ser de observância obrigatória para os demais órgãos da Justiça do Trabalho, as empresas devem ter maior atenção no cumprimento diário de suas obrigações, sob pena de arcarem com rescisões indiretas contratuais.

Ao definir a tese, o ministro relator ponderou:

“Com efeito, o artigo 483, ‘d’, da CLT faculta ao empregado, no caso de descumprimento das obrigações contratuais por parte do empregador, a rescisão indireta do contrato de trabalho. Ao fazer referência às ‘obrigações do contrato’, o mencionado dispositivo evidencia que as obrigações de empregador alcançam tanto aquelas previstas na legislação trabalhista, como na Constituição Federal. Dentre elas encontra-se a contraprestação pelo trabalho realizado, o que vai além do salário ordinário, pois, igualmente, abarca as horas extraordinárias, sejam decorrentes da prorrogação da jornada normal de trabalho, sejam oriundas do descumprimento do intervalo intrajornada.
Assim, uma vez que tal parcela integra a remuneração, a contumaz supressão do seu pagamento compromete a subsistência do empregado, configurando, pois, falta grave do empregador. Por esse motivo, a mora do empregador em relação à quitação das horas extras, inclusive decorrentes da supressão ou concessão parcial do intervalo intrajornada, autoriza a rescisão indireta do contrato de trabalho.”

No caso em exame, o recurso de revista de que trata o tema afetado para representativo de controvérsia merece ser conhecido, por violação do artigo 483, ‘d’, da CLT, já que a parte logrou demonstrar que, a despeito da comprovação da falta grave praticada pela reclamada, o TRT de origem afastou a rescisão indireta do contrato de trabalho.

Conclusão

De um lado, sabe-se que à luz da Constituição, nos termos do artigo 7º, inciso XIII, o trabalho não poderá exceder 8 horas diárias e 44 semanais, sendo facultada a compensação e redução da jornada por meio de acordo ou convenção coletiva de trabalho; lado outro, a jornada extraordinária sempre foi objeto de muita preocupação, eis que, em certas situações, esse labor excessivo coloca em risco os direitos sociais previstos na Carta Magna, v.g., saúde e lazer, em cujos casos mais graves justifica uma indenização por danos existenciais em razão da privação do descanso e do convívio familiar

Já quanto ao intervalo intrajornada, por certo que sua finalidade é justamente recompor a higidez física e mental do trabalhador, de modo a preservar a saúde e bem-estar. Por isso, a violação de tal direito configura falta grave patronal apta a ensejar o reconhecimento da rescisão indireta.

Em arremate, é importante ressaltar que as normas trabalhistas devem ser analisadas à luz da Lei Maior, preservando, assim, o respeito aos direitos e garantias fundamentais, bem como aos preceitos sociais mínimos e a dignidade do trabalhador. Por certo, o melhor cenário é evitar a submissão recorrente do trabalhador a jornadas extraordinárias, a fim de lhe propiciar uma maior qualidade de vida, mas se o labor extra tiver que ser cumprido, ao menos que seja paga a contraprestação pecuniária correspondente.


[1] Disponível aqui

[2] Se você deseja que algum tema em especial seja objeto de análise pela Coluna Prática Trabalhista da ConJur, entre em contato diretamente com os colunistas e traga sua sugestão para a próxima semana.

[3] CLT, Art. 483 – O empregado poderá considerar rescindido o contrato e pleitear a devida indenização quando: a) forem exigidos serviços superiores às suas forças, defesos por lei, contrários aos bons costumes, ou alheios ao contrato; b) for tratado pelo empregador ou por seus superiores hierárquicos com rigor excessivo; c) correr perigo manifesto de mal considerável; d) não cumprir o empregador as obrigações do contrato; e) praticar o empregador ou seus prepostos, contra ele ou pessoas de sua família, ato lesivo da honra e boa fama; f) o empregador ou seus prepostos ofenderem-no fisicamente, salvo em caso de legítima defesa, própria ou de outrem; g) o empregador reduzir o seu trabalho, sendo este por peça ou tarefa, de forma a afetar sensivelmente a importância dos salários. § 1º – O empregado poderá suspender a prestação dos serviços ou rescindir o contrato, quando tiver de desempenhar obrigações legais, incompatíveis com a continuação do serviço. § 2º – No caso de morte do empregador constituído em empresa individual, é facultado ao empregado rescindir o contrato de trabalho. § 3º – Nas hipóteses das letras “d” e “g”, poderá o empregado pleitear a rescisão de seu contrato de trabalho e o pagamento das respectivas indenizações, permanecendo ou não no serviço até final decisão do processo.

[4] Disponível aqui.

[5] Curso de Direito do Trabalho – 14. Ed. – São Paulo: SaraivaJur, 2022. Página 706/708.

[6] Disponível aqui

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