Retrospectiva tributária e a padronização dos critérios de modulação do STF

Em 2024, o Supremo Tribunal Federal julgou relevantes questões tributárias. A seguir analisaremos algumas dessas decisões com destaque para a — ainda — necessária padronização dos critérios de modulação de efeitos no tribunal.

Em fevereiro, o STF declarou inconstitucional adicional de 0,2% sobre operações interestaduais e de exportação de produtos de origem vegetal, mineral ou animal, destinado ao Fundo Estadual de Transporte (FET), estabelecido por Tocantins. Apesar da alegação do Estado de que o adicional seria um preço público pelo uso de rodovias, concluiu-se que a cobrança tinha natureza de imposto, com base de cálculo e fato gerador idênticos ao ICMS, o que violava o artigo 155 da Constituição (ADI 6.365).

A instituição de adicionais ou contribuições destinados a fundos estaduais tendo as mesmas características de impostos existentes é, de fato, inconstitucional. A questão, no entanto, permanece em aberto, em razão do artigo 136 do ADCT, introduzido pela recente reforma tributária (EC 132/23), que buscou constitucionalizar essas cobranças. Embora o STF tenha afirmado o prejuízo de algumas ações diretas que discutem tais contribuições em razão da aludida “modificação no contexto dos parâmetros de controle” (ADIs 7.363 e 6.420), o tribunal pode vir a ser demandado em relação à própria constitucionalidade da referida disposição transitória.

Em março, o STF declarou parcialmente inconstitucionais taxas municipais relacionadas ao Corpo de Bombeiros, ao fundamento de que os serviços de combate a incêndios são indivisíveis e, portanto, não passíveis de tributação por taxa (ADPF 1.030). O entendimento segue a posição histórica fixada pela corte na ADI 4.411.

Em abril, a corte concluiu o julgamento da eficácia temporal das decisões do tribunal sobre a coisa julgada em relações tributárias de trato sucessivo (Temas 881 e 885). Prevaleceu a tese do ministro André Mendonça, segundo a qual os efeitos da decisão seriam modulados apenas para afastar as multas impostas aos contribuintes que deixaram de recolher a CSLL por possuírem coisa julgada, vedada a restituição de valores.

Apesar disso, a não concessão de efeitos prospectivos contrariou a segurança jurídica, pois criou passivos até então inexistentes, inclusive em relação a tributos que não estavam em discussão no caso concreto, e gerou assimetrias quanto ao tratamento concedido à Fazenda Pública e aos contribuintes em casos de modulação de efeitos. Basta rememorar que, no julgamento do tema 69, o STF modulou a decisão em favor da Fazenda em razão de julgamento repetitivo do STJ, o que, nada obstante também existente nos casos dos temas 881 e 885, não foi suficiente para o tribunal aplicar ao caso a mesma ratio decidendi.

No mesmo mês, o STF declarou constitucional a incidência do PIS/Cofins sobre receitas de locação (Temas 630 e 684). Mesmo não havendo prestação de serviço clássico ou venda de mercadoria, considerou-se que a locação integraria o conceito de faturamento e o pedido de modulação foi negado, dado o suposto entendimento consolidado sobre o tema.

Ocorre que o julgamento do Tema 372, em 2023, inovou ao expandir o conceito de faturamento para além da receita com vendas ou prestação de serviços. Como os embargos de declaração lá aviados não foram apreciados, a modulação poderia ter sido concedida ou o julgamento, no mínimo, sobrestado até a finalização do tema 372 por uma questão de segurança jurídica.

Em maio, o STF declarou a constitucionalidade da incidência de ICMS sobre a prestação de serviços de transporte interestadual e intermunicipal por via marítima (ADI 2.779), o que encerra disputa histórica.

Em junho, o STF atribuiu eficácia prospectiva à decisão que julgou constitucional a incidência de contribuição sobre o terço constitucional de férias (Tema 985). Trata-se de importante modulação realizada em prol dos contribuintes em função de ter havido posição do STJ, em precedente repetitivo, favorável à não incidência das contribuições.

O fundamento adotado é coerente com o que fora utilizado na modulação da chamada “tese do século” (PIS/Cofins sobre ICMS), naquela ocasião em favor do Fisco, porém divergente com o supracitado caso relacionado à coisa julgada nas relações de trato sucessivo, disparidade que exige atenção do Tribunal para a aplicação dos mesmos critérios de modulação de efeitos em casos similares. Além disso, chamou a atenção neste julgamento a discussão lateral sobre a possibilidade de o STF mudar, no futuro, o marco temporal das modulações para a data de reconhecimento da repercussão geral.

No mesmo mês, o STF reafirmou a validade dos adicionais de ICMS instituídos pelos estados e pelo Distrito Federal para financiar os Fundos de Combate e Erradicação da Pobreza, conforme o artigo 4º da EC 42/2003 (Tema 1.305) e referendou a cautelar concedida na ADI 7.370, que questiona as hipóteses de exclusão de contribuintes do Refis devido a parcelas mensais consideradas ínfimas pela Receita. Quanto ao último processo, a Corte confirmou a cautelar para determinar tanto a vedação da exclusão de contribuintes adimplentes e de boa-fé que seguiram as regras do programa, quanto a reinclusão daqueles excluídos injustamente até o julgamento de mérito, o que preserva a segurança jurídica.

Em agosto, o STF assentou que “É infraconstitucional a controvérsia sobre a incidência de PIS e Cofins sobre juros de mora e correção monetária (taxa Selic) recebidos em repetição de indébito tributário” (Tema 1.314). A Primeira Seção do STJ já havia definido, no Tema Repetitivo 1.237, a incidência do PIS/Cofins sobre tais valores.

A posição do STF surpreende por contrariar os Temas 808 e 962, em que a Corte não apenas afirmou a natureza constitucional da discussão, como também entendeu ser inconstitucional a incidência do imposto de renda sobre juros de mora devidos pelo atraso no pagamento de remuneração por exercício de emprego e do IRPJ e da CSLL sobre a Selic recebida pelo contribuinte na repetição de indébito.

No mesmo mês, o STF retomou a discussão sobre a exclusão do ISS da base de cálculo do PIS e da Cofins (Tema 118). O julgamento foi reiniciado presencialmente, mantendo-se os votos dos ministros Celso de Mello, Rosa Weber e Ricardo Lewandowski, favoráveis à exclusão.

O ministro André Mendonça alinhou-se a esse entendimento, ante a semelhança com o Tema 69, bem como destacou a necessidade de modulação de efeitos para evitar cobrança retroativa e impactos sobre créditos tributários extintos. Os ministros Dias Toffoli e Gilmar Mendes divergiram, em razão de supostas diferenças entre ICMS e ISS na apuração e transferências ao consumidor final. O julgamento foi suspenso e aguarda nova pauta. Por coerência, o STF deveria aplicar a mesma lógica do Tema 69, dada a similaridade dos casos.

Também em agosto, o STF apreciou a constitucionalidade da redução dos percentuais do Reintegra pelo Poder Executivo (ADIs 6.055 e 6.040). Prevaleceu o entendimento do ministro Gilmar Mendes, de que o Reintegra é um benefício fiscal para incentivar exportações e que a definição das alíquotas se insere nas competências do Executivo. Divergiram os ministros Luiz Fux e Edson Fachin, que sustentaram que a redução prejudica a imunidade tributária das exportações garantida pela Constituição.

A decisão destoa de precedentes do Tribunal (ADI 4.735 e RE 759.244), nos quais a corte reconheceu um princípio constitucional amplo em favor da desoneração de exportações, alinhando-se à finalidade da norma imunizante. O tribunal deixou de observar, ainda, que as alterações do Reintegra pelo Executivo devem respeitar os objetivos do artigo 21 da Lei 13.043/14, segundo o qual o programa se destina a devolver o resíduo tributário remanescente na cadeia de produção de bens exportados. Alterações na alíquota só são justificáveis se houver mudança na carga tributária da fase pré-exportação. No entanto, os decretos reduziram as alíquotas com o único propósito de equilibrar as contas públicas, objetivo alheio ao programa, o que caracterizou desvio de finalidade e vício de motivação.

Ainda em agosto, o STF decidiu questões relacionadas à incidência do PIS/Cofins em receitas financeiras de seguradoras e instituições financeiras. No Tema 1.309, a corte reconheceu a repercussão geral da discussão em torno da constitucionalidade da incidência de PIS e Cofins sobre as receitas financeiras oriundas de aplicações financeiras das reservas técnicas de empresas seguradoras. No Tema 372, por sua vez, o relator, ministro Dias Toffoli, determinou a suspensão dos processos que discutem a exigibilidade do PIS e da Cofins sobre receitas financeiras de instituições financeiras.

A medida visa evitar a prolação de decisões conflitantes antes do julgamento dos embargos de declaração aviados no aludido processo. Trata-se de importante medida de cautela, pois muitas instituições tiveram de recolher valores elevados atinentes a essa discussão sem que ela estivesse finalizada na Suprema Corte.

Em setembro, o STF reconheceu a repercussão geral no RE 1.310.691 (Tema 1.320), que questiona a incidência da contribuição ao Senar sobre receitas de exportação. O ministro André Mendonça destacou a importância da matéria, que envolve a imunidade tributária sobre exportações e um impacto arrecadatório do julgamento futuro. A corte deveria manter a coerência com precedentes que classificaram a contribuição ao Senar como contribuição social geral (Temas 801 e 651) e, consequentemente, reconhecer a imunidade prevista no artigo 149, § 2º, I, da CF/88. Qualquer decisão que venha a alterar a natureza jurídica já declarada pela corte criará um descompasso interpretativo, além de prejudicar os exportadores.

Em outubro, o STF referendou a medida cautelar na ADI 7.633, que questionava a prorrogação da desoneração da folha de pagamentos, o que envolveu diálogo institucional com o Congresso e resultou na promulgação do regime de transição constante da Lei nº 14.973/2024.

O STF decidiu, ainda, que a repristinação das alíquotas integrais do PIS e da Cofins pelo Decreto nº 11.374/2023 não está submetida à regra de anterioridade nonagesimal (Tema 1.337). A tese reafirma a jurisprudência do STF firmada na ADC 84, cujo exame de mérito foi concluído em agosto. Como já afirmamos [1], a relativização da anterioridade, direito fundamental do contribuinte, constitui um equívoco, pois se sopesou a aplicação dessa regra a partir de condição nela não prevista.

No mesmo mês, o STF entendeu admissível o ajuizamento de ação rescisória para ajustar decisões transitadas em julgado à modulação de efeitos fixada no Tema 69 atinente à incidência do PIS/Cofins sobre o ICMS (Tema 1.338).

O ministro Roberto Barroso ressaltou que a autoridade das decisões do STF deve prevalecer, desde que a adequação seja realizada por meio de rescisória. A solução contraria a segurança jurídica, pois admite a revisão da coisa julgada anterior à fixação do precedente, em contrariedade à Súmula 343/STF, que restringe tal possibilidade em casos de controvérsia interpretativa à época da decisão.

Além disso, o tribunal deixou de fazer a necessária distinção entre o que se decidiu no plano da validade e o que fora decidido apenas no plano da eficácia (modulação de efeitos) no tema 69. Essa distinção era fundamental para demonstrar que a AR, que visa atingir o plano de validade de uma sentença, seria incabível na hipótese, pois, no mérito, a decisão estava de acordo com — e não contrária à — orientação de fundo do STF.

A corte declarou inconstitucional a sujeição dos rendimentos de aposentadoria e pensão pagos a residentes no exterior ao imposto de renda (Tema 1.174). A decisão estabelece o respeito ao princípio da isonomia, tendo em vista que a sistemática destoava do tratamento dado aos rendimentos de residentes, que estavam sujeitos à tabela progressiva do imposto de renda.

O STF também estabeleceu os limites da multa fiscal qualificada por sonegação, fraude ou conluio à luz da vedação constitucional ao efeito confiscatório (Tema 863). O relator, ministro Dias Toffoli, fixou o limite da multa qualificada em 100% do débito tributário, permitindo a aplicação de até 150% apenas em casos de reincidência ou indícios claros de fraude. Foram ressalvadas as ações judiciais, processos administrativos pendentes e fatos geradores anteriores à lei. A solução é importante por estabelecer balizas objetivas às autuações fiscais.

Em novembro, o STF reafirmou sua jurisprudência histórica pela inconstitucionalidade da compensação automática de dívidas tributárias com precatórios (Tema 558).

Em dezembro, retomou-se o julgamento do Tema 1.214, envolvendo a incidência do ITCMD sobre valores de planos VGBL e PGBL. O relator, ministro Dias Toffoli, afastou a tributação, ressaltando que esses planos têm natureza de seguro de vida, excluída da herança, sendo acompanhado, até o momento, pela maioria do Pleno. O entendimento do relator é correto, pois evita a exigência de cobrança sobre valores que não se transmitiriam causa mortis, ante a natureza de seguro dos contratos pactuados.

Prosseguiu-se, ainda, na discussão acerca da incidência do PIS/Cofins sobre receitas financeiras de entidades fechadas de previdência complementar em período anterior à EC nº 20/98 (Tema 1280). O relator, ministro Dias Toffoli, defendeu a não incidência das contribuições, porém ficou vencido pela divergência inaugurada pelo ministro Gilmar Mendes, para quem os rendimentos de aplicações financeiras estão vinculados às atividades precípuas das EFPCs, a atrair a incidência de PIS e Cofins.

A posição contraria o conceito de faturamento adotado para o período anterior à EC 20/98, considerado o decorrente de vendas ou prestação de serviços, e desconsidera a particularidade dessas receitas atípicas enquanto necessárias à execução dos planos previdenciários.

As decisões de 2024 levantam reflexões sobre segurança jurídica, em especial nos casos que envolvem modulação de efeitos.

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Imunidade parlamentar impede o crime contra a honra?

Uma das premissas fundamentais do conflito político em sociedades regidas por regulações constitucionais democráticas é a ampla liberdade de expressão de pensamento e de opiniões. O cumprimento das competências parlamentares de forma independente exige a previsão de regras protetivas que busquem limitar ou impedir perseguições e pressões indevidas. O ponto central aqui é assegurar a liberdade política e a representação democrática.

Congresso nacional

 

É dentro desse cenário que encontramos as imunidades presentes na Constituição de 1988, entre elas a inviolabilidade, civil e penal, de deputados e senadores por suas opiniões, palavras e votos (artigo 53, Redação dada pela Emenda Constitucional nº 35/2001). Essa imunidade de caráter material procura conferir maior segurança e independência aos membros do Congresso no exercício de suas atribuições, particularmente na crítica, fiscalização e enfrentamento político-ideológico.

Naturalmente, a inviolabilidade quanto a opiniões, palavras e votos não é absoluta. A questão é: como definir os limites da imunidade considerando o risco de abrir brechas e caminhos para perseguições políticas ofensivas à Constituição? Essa não é uma questão jurídica simples de resolver, especialmente quando levamos em conta os variados ambientes em que ocorrem.

O Supremo Tribunal Federal já possui alguns entendimentos sobre o tema. Assim, por exemplo, o STF compreende que a imunidade parlamentar material, expressa no artigo 53 da Constituição, somente é aplicável “no caso de as manifestações guardarem conexão com o desempenho da função legislativa ou que sejam proferidas em razão desta; não sendo possível utilizá-la como verdadeiro escudo protetivo para a prática de atividades ilícitas”. Portanto, a manifestação do deputado ou senador deve estar diretamente vinculada ao exercício da função, o que justifica a própria existência da imunidade.

Diante desse posicionamento de nossa Corte Maior, podemos concluir que, por exemplo, os atos de difamação, calúnia e injúria, manifestados em situações estranhas ao exercício das competências parlamentares, não estariam acobertados pela imunidade do artigo 53 da Constituição. Mas surge a indagação: uma vez relacionada à sua atuação, pode o congressista dizer tudo o que quiser? Estaria, nesse caso, abrangido pela imunidade material em relação às suas palavras e opiniões? Essa pergunta também não admite resposta simples.Histórico constitucional brasileiro pode nos ajudar a compreender melhor a questão

Desde a Constituição monárquica, temos a previsão de imunidades materiais; assim, seu artigo 26 ditava que os “membros de cada uma das Câmaras são invioláveis pelas opiniões que proferirem no exercício das suas funções”. Com pouca diferença redacional, essa tradição continuou nas constituições de 1891 (artigo 19), 1934 (artigo 31), 1946 (artigo 44) e 1967 (artigo 34). Vale ressaltar que, quanto a esse último texto constitucional, vivíamos sob uma ditadura militar-empresarial, e a cassação de parlamentares e perseguições era a regra, não a exceção.

Convém destacar que na Constituição de 1937, instituída durante a ditadura Vargas (1937-1945), a regra da imunidade assumiu outros contornos. O artigo 43 desta Carta Política previu que “só perante a sua respectiva Câmara responderão os membros do Parlamento nacional pelas opiniões e votos que emitirem no exercício de suas funções; não estarão, porém, isentos da responsabilidade civil e criminal por difamação, calúnia, injúria, ultraje à moral pública ou provocação pública ao crime.”

Por fim, a Emenda Constitucional 01 de 1969, aprovada ainda durante a ditadura militar (1964-1985), determinou em seu artigo 32 que “deputados e senadores são invioláveis no exercício do mandato, por suas opiniões, palavras e votos, salvo no caso de crime contra a honra”.

Como se pode observar, a restrição das imunidades parlamentares à possibilidade de responsabilização criminal e civil é uma linha tendencialmente adotada por textos constitucionais surgidos em contextos ditatoriais e autoritários, o que serve como alerta quanto a interpretações jurídicas nesse sentido.

Por outro lado, não devemos ignorar os riscos e ameaças decorrentes do abuso doloso do poder de palavra por parte de agentes políticos que tentam utilizar a imunidade parlamentar e sua posição na esfera institucional como meio para atacar o próprio regime democrático e os direitos fundamentais. Nesse caso, dependendo da situação e do contexto analisado, será necessário adotar uma interpretação jurídica condizente com a defesa dos princípios e valores da Constituição de 1988.

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Dia Internacional dos Direitos Humanos: você tem fome de quê?

Como celebramos há 75 anos, neste 10 de dezembro de 2024, a Declaração Universal de Direitos Humanos (DUDH) completará mais um capítulo de sua história marcada por enorme resiliência, o reiterado começar de novo e a resistência de uma humanidade que, compelida pelas atrocidades da Segunda Guerra Mundial, estabeleceu o mínimo civilizatório em nome da vida e da necessidade de uma convivência racionalmente sustentável.

Eleanor Roosevelt, então presidente da Comissão de Direitos Humanos da ONU, em 1948

Assim nasceu a Declaração Universal de Direitos Humanos como uma carta jurídica de princípios distribuídos em 30 artigos que posteriormente foram ancorados no Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos e no Pacto Internacional de Direitos Econômicos e Sociais de 1966, dando a consistência necessária para uma relação de exigibilidade contra os Estados signatários e responsáveis pelo desenvolvimento das cidadanias, observando-se a universalidade, a indivisibilidade e a relativização cultural dos diversos modelos e padrões de sociedade mundo afora.

Coube e caberá à Organização das Nações Unidas (ONU) fazer a gestão de efetividade da Declaração Universal de Direitos Humanos, vencendo, inclusive, sua própria crise enquanto maior referência multilateral entre os Estados no mundo, entregando o que se espera efetivamente, reequilibrando as forças econômicas e políticas dos países e promovendo um redesenho que traduza o novo mundo que tem fome de direitos humanos.

Neste contexto se insere o Brasil, signatário da Declaração Universal de Direitos Humanos que, na história mais recente, desde 1988 com a Constituição e o processo de redemocratização, adotou uma postura proativa de prospectar direitos humanos nas relações internacionais como uma estratégia de se consolidar como uma democracia moderna, que pudesse entre outros objetivos, se colocar no cenário internacional influenciando em alto nível os espaços multilaterais como a ONU.

Se no campo internacional foram muitos os compromissos e avanços, internamente, muitos desafios ainda seguem colocados em processos em curso na construção de um mínimo civilizatório de direitos humanos que possa denominar como uma Política Nacional de Direitos Humanos.

E é sobre essa fome de direitos humanos que o Estado brasileiro deve se dedicar como um termômetro do que somos e o que podemos oferecer a sociedade brasileira.

Afinal de contas, qual o tamanho da “Era de Direitos” brasileira anunciada em inúmeras leis internas sancionadas após o processo de redemocratização e as dezenas de tratados internacionais de direitos humanos assumidos em especial nos organismos multilaterais da Organização das Nações Unidas e na OEA-Organização dos Estados Americanos?

Sobre isso é importante registrar que neste contexto o Estado brasileiro contou com um Programa Nacional de Direitos Humanos que, em sua última versão, se consolidou por meio do Decreto nº 7.037/2009, o denominado PNDH-3.

Após a consolidação desse documento jurídico interno o fato mais importante a se destacar no cenário nacional, em termos da política nacional de direitos humanos, foi o atravessamento do Princípio do Retrocesso Social que se impôs em 2018, jogando o pouco que se consolidou com a nova democracia, desde 1988, num abismo de regressões que ainda são sentidas pela sociedade brasileira.

Hoje, ressentimo-nos pela necessidade de uma Política Nacional de Direitos Humanos que seja conduzida estrategicamente pelo Estado com a capacidade de não só recuperar o que foi soterrado, mas apresentar um novo signo de direitos humanos forjado na participação social.

Esse novo desenho terá também que situar o que se consolidou em termos de demanda social no mundo, especialmente pelo documento sombra que foi gerado no G20, pela agenda do G20 Social, destacando-se a necessidade de um enfrentamento à fome ao asseverar: “(…) em caráter de urgência e prioridade máxima, é imperiosa a adesão de todos os países do G20 e outros Estados, à iniciativa da Aliança Global contra a Fome e a Pobreza. Em alinhamento com os Objetivos do Desenvolvimento Sustentável da Agenda 2030 da ONU”.

Importância do Conselho Nacional de Direitos Humanos

Logo, se temos a responsabilidade de desenvolver uma Política Nacional de Direitos Humanos que combine a recuperação do que foi afetado pelo retrocesso social de 2018 com uma nova ordem nacional para este campo de cidadanias, é preciso ouvir as vozes do G20 Social.

Ocorre que, atualmente, o principal órgão da Política Nacional de Direitos Humanos no Brasil, que reúne todos os predicados e pressupostos internacionais para fazer valer esse novo signo, não recebe o tratamento institucional adequado por parte do Estado e, mais que isso, é tido como uma “trincheira de entidades” que podem ameaçar o establishment.

Falamos aqui do Conselho Nacional de Direitos Humanos (CNDH), órgão público do Estado brasileiro, instituído pela Lei Federal nº 12.986/14, composto por representações da sociedade civil eleitas e por representantes do Poder público dos três poderes da República.

O Conselho Nacional de Direitos Humanos, está completando 60 anos de história, sendo repaginado em 2014 e recebendo a atribuição de ser a instância controladora e deliberativa da Política Nacional de Direitos Humanos.

Não há dúvidas na engenharia política e normativa do Estado brasileiro que o caminho para a construção de um novo signo de direitos humanos no Brasil passa pelo reconhecimento institucional do CNDH como Instituição Nacional de Direitos Humanos, com base nos Princípios de Paris, sendo eles:

1. A instituição nacional deve ter uma área de atuação abrangente, prevista na constituição ou em lei; 2. A instituição nacional deve ter uma infraestrutura adequada para o bom desempenho de suas atividades; 3. A instituição nacional deve ter pessoal e instalações próprios, de modo a ser independente do Governo; 4. A nomeação dos membros da instituição deve ser realizada através de um ato oficial, que estabelecerá a duração específica do mandato.

Mas a realidade é outra. Não há na agenda governamental qualquer iniciativa de fazer deste órgão público de participação social uma Instituição Nacional de Direitos Humanos.

Ao contrário, são escassos os recursos orçamentários destinados ao CNDH, não possuindo o mesmo sequer um fundo especial próprio que garanta uma funcionalidade efetivamente autônoma e independente.

Sem recursos orçamentários satisfatórios, o Conselho Nacional de Direitos Humanos se movimenta como um “departamento” do Ministério dos Direitos Humanos e Cidadania, com a resistência dos movimentos sociais e organizações que o integram e que lhe exigem outra postura, sobrevivendo com baixa institucionalidade e sem a força necessária para cumprir seu papel de principal instância da República para o tema.

E quando tratamos de recursos financeiros, é importante recuperar que na repaginação do CNDH, a força do capital se impôs, e foi-lhe retirado a possibilidade de aplicar sanções pecuniárias contra violações estruturais de direitos humanos, restando outras medidas que não tem o condão de impactar uma efetiva responsabilização.

Neste baixo grau de institucionalidade, o CNDH não consegue assumir seu papel de liderança para a construção de uma Política Nacional de Direitos Humanos que possa resultar na normatização de um Sistema Nacional de Direitos Humanos, sincronizando competências e responsabilidades de órgãos públicos e entidades no Estado brasileiro.

Por outro giro, se temos no debate quanto a ponderação de interesses entre as políticas identitárias ou as pautas econômicas numa Política Nacional de Direitos Humanos, somando-se a isso, o desafio do G20 Social quanto ao combate à fome, existe uma pedra no meio do caminho que acende a luz amarela: o discurso de ódio e os ataques institucionalizados contra a democracia no Estado brasileiro.

Hoje, no atual estado da arte no país, no que se refere a construção de uma Política Nacional de Direitos Humanos é urgente a construção de pontes que dialoguem com a sociedade para a criação de entendimentos e ações que possam enfrentar o discurso de ódio, especialmente perpetrado contra grupos minoritários como a comunidade LGBTQIA+, religiões de matriz africana, mulheres e pessoas com deficiência, entre outros.

E não há outro espaço institucional no Estado brasileiro que possa desempenhar esta missão que não seja o Conselho Nacional de Direitos Humanos, necessariamente convertido em Instituição Nacional de Direitos Humanos, considerando seu DNA de participação social dos movimentos sociais, classe trabalhadora e redes nacionais de direitos humanos.

É preciso considerar que as atrocidades da Segunda Guerra Mundial que levaram a humanidade a pactuar uma Declaração Universal de Direitos Humanos como uma resposta objetiva dos Estados, hoje se apresenta com uma nova forma que são os ataques de ódio na sociedade que, no Brasil necessitam de uma resposta institucional no campo das políticas públicas.

E é no aniversário de 76 anos deste importante documento internacional, frente às demandas e desafios colocados, especialmente em construirmos um novo signo que possa ancorar o mínimo civilizatório, que é possível e razoável   afirmar que se tratando de Brasil, não há outro caminho senão avançar na formulação de uma Política Nacional de Direitos Humanos que seja de Estado e não de Governos que se alternam em seus projetos políticos.

Para isso, não há alternativa que não seja a transformação do Conselho Nacional de Direitos Humanos em Instituição Nacional de Direitos Humanos, na forma dos Princípios de Paris, pois os tempos sombrios se reapresentam mundialmente, deixando claro que  quem tem fome de direitos humanos, tem pressa para salvar a democracia e a dignidade civilizatória  na humanidade.

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STJ exclui Difal de ICMS da base de cálculo do PIS/Cofins

Em mais um desdobramento da “tese do século”, a 1ª Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) entendeu que o diferencial de alíquota do ICMS (Difal) não deve ser incluído na base de cálculo das contribuições para o PIS/Cofins. A decisão favorável aos contribuintes foi unânime e se deu no julgamento do REsp 2.128.785/RS.

O Difal do ICMS corresponde à diferença entre as alíquotas interna (estado de destino da mercadoria) e interestadual (estado remetente), referentes às operações interestaduais de transferência de mercadorias a consumidor final localizado em estado diverso do remetente, seja ele contribuinte ou não do ICMS.

A alíquota interestadual é definida pelo Senado. Atualmente, em operações interestaduais cujo estado de origem estiver na região Sul ou Sudeste (exceto Espírito Santo) e o estado de destino estiver na região Norte, Nordeste ou Centro-Oeste (incluindo o Espírito Santo), incidirá uma alíquota de 7%. Nas demais operações incide uma alíquota de 12%.

Tal metodologia de cobrança foi instituída pela Emenda Constitucional 87/2015, que alterou a redação do artigo 155, § 2º, inciso VII e alínea ‘b’ do inciso VIII, da Constituição.

Com essa previsão legal, se estabeleceu que a responsabilidade pelo recolhimento do Difal será do destinatário, quando ele for contribuinte do imposto. Por outro lado, caso o destinatário não seja contribuinte, a responsabilidade recairá ao remetente da operação, conforme previsão contida no artigo 155, §2º, incisos VII e VIII, respectivamente.

Caráter infraconstitucional da questão

O julgamento da matéria pela 1ª Turma do STJ é de extrema importância, pois simboliza uma mudança no entendimento do próprio colegiado quanto ao caráter infraconstitucional da questão.

Até então, havia uma discordância entre as cortes superiores a respeito da competência para julgar a matéria. Enquanto o STF entendia que a controvérsia teria caráter infraconstitucional, a 1ª e 2ª turmas do STJ entendiam que a questão deveria ser analisada pelo Supremo.

Assim, o julgamento do REsp 2.128.785/RS foi o primeiro momento em que o mérito da questão foi devidamente apreciado por qualquer das cortes superiores, o que representa uma grande vitória dos contribuintes, em mais uma discussão envolvendo uma das teses filhotes do emblemático caso da “tese do século” (exclusão do ICMS próprio da base de cálculo do PIS/Cofins).

Na ocasião, os ministros garantiram o direito de uma empresa fabricante de produtos para telecomunicações afastar a exigência do Difal na base de cálculo do PIS/Cofins, além de compensar os valores recolhidos de forma indevida a tal título.

Vitória dos contribuintes

A tese vencedora foi a seguinte: “Inviável a inclusão do ICMS, em quaisquer de suas modalidades — inclusive o Difal —, nas bases de cálculo da contribuição ao PIS e da Cofins”.

Os ministros concluíram que tal entendimento, adotado pelo STF no Tema 69 e pelo STJ no Tema 1.125, também deve ser estendido ao Difal, pois, assim como o ICMS-ST, trata-se de mera modalidade de cobrança do tributo estadual, não tendo natureza de faturamento/receita.

Apesar de ser uma importante primeira vitória para os contribuintes, a discussão ainda não se encerrou, uma vez que o tema ainda deve ser analisado pela 2ª Turma do STJ para que, caso siga o mesmo entendimento, haja uma unificação da jurisprudência nesse sentido.

Ainda é incerto se a 2ª Turma irá alterar o entendimento firmado anteriormente, segundo o qual trata-se de uma questão constitucional.

À espera da 2ª Turma

Em eventual discordância entre as turmas, a matéria será levada para julgamento da 1ª Seção do Tribunal Superior. A expectativa é que não haja divergência quanto ao mérito, pois, como mencionado pela própria ministra Regina Helena Costa, relatora do caso, o tema nada mais é do que um desdobramento do Tema 69 da Repercussão Geral, assemelhando-se ao Tema 1.125/STJ, no qual a Corte afastou a cobrança de PIS/Cofins sobre o ICMS-ST.

Contudo, os contribuintes devem se atentar ao fato de que o julgamento não é de aplicação automática pelos tribunais, por não se tratar de tese fixada em julgamento de recurso especial sob a sistemática dos Recursos Repetitivos — hipótese elencada no rol taxativo do artigo 927 do CPC.

Munidas desse relevante precedente, empresas de diversos setores têm espaço para pleitear a compensação ou a restituição dos valores indevidamente recolhidos nos cinco anos anteriores ao ajuizamento da ação, além do reconhecimento do seu direito à exclusão do ICMS-Difal das bases de cálculo do PIS/Cofins.

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Narrativas do Sul Global sobre mudanças climáticas no Tribunal do Mar

A recente reedição do livro de Guy de Lacharrière de 1980, La politique juridique extérieure, com o prefácio de François Alabrune, embaixador da França nos Países Baixos, reflete a relevância atemporal em compreender o papel e a influência do direito nas relações internacionais.

A “política jurídica exterior” também revela a importância de investigar a maneira como os estados podem fazer uso do direito internacional com o objetivo de promover seus interesses políticos e estratégicos. Entretanto, é particularmente desafiador examinar a interseção entre as dinâmicas jurídica e política dos Estados. O estudo das narrativas surge como uma ferramenta para descobrir, por trás da argumentação jurídica, histórias carregadas de interesses políticos e estratégicos capazes de influenciar o resultado de um caso (Otten, 2016).

O projeto Latin Tales é desenvolvido pelo Centro de Pesquisa em Direito Global da FGV Direito Rio, com o objetivo de perceber as narrativas empregadas pelos estados da América Latina perante cortes e tribunais internacionais, em particular, perante a Corte Internacional de Justiça. O projeto inova ao adotar uma abordagem multidisciplinar e multi-metodológica, com conceitos e métodos do direito internacional, da ciência política e das relações internacionais.

Com vistas a explorar tal objetivo, o projeto piloto do Latin Tales investiga as narrativas dos estados do Sul Global no âmbito do procedimento consultivo sobre mudanças climáticas do Tribunal Internacional do Direito do Mar.

Aumento da participação dos Estados nas CTIs

Casos envolvendo interesses comuns têm sido cada vez mais levados a cortes e tribunais internacionais (CTIs); em procedimentos contenciosos (Ucrânia v. Federação RussaGâmbia v. MianmarÁfrica do Sul v. Israel), e consultivos (Consequências JurídicasMudanças ClimáticasDireito de Greve), os quais contam com crescente participação de Estados que não são partes da controvérsia e atores não estatais.

Isso indica que a comunidade internacional está voltando seus olhos às CTIs para encontrar um equilíbrio entre os objetivos individuais dos Estados e aspirações ligadas aos interesses comuns (Klabbers, 2021).

Dado o aumento da participação estatal e seu poder de influência no resultado final de determinado caso, a investigação das narrativas apresentadas em CTIs adquire extrema importância. Para tanto, deve-se desenvolver uma metodologia consistente que explore o processo por meio do qual uma história é contada.

Como os juristas geralmente empregam narrativas para preencher o direito de significados (Devinat, 2016), a investigação dos fatores políticos que podem influenciar os discursos jurídicos traz grandes contribuições para o estudo dessas histórias.

Articulando discursos políticos e jurídicos

Em 21 de maio de 2024, o Tribunal Internacional de Direito do Mar foi o primeiro órgão judicial internacional a emitir um parecer consultivo sobre mudanças climáticas. Um total de 34 Estados (18 do sul global: Brasil, China; Congo, Indonésia, Egito, Chile, Bangladesh, Nauru; Belize, Guatemala, Serra Leoa, Micronésia, Djibuti, Ruanda, Vietnã, Índia, Moçambique e Maurício), nove organizações internacionais e dez atores não estatais enviaram submissões escritas ao Tribunal do Mar nesse caso.

O número significativo de participantes é reflexo do interesse crescente de vários atores com objetivo de influenciar a interpretação jurídica do tribunal e expressar suas opiniões sobre as mudanças climáticas.

Analisar como a história é contada por determinado grupo de estados (através de tais submissões, por exemplo) pode revelar o processo de criação intencional de narrativas “para persuadir o público com uma leitura específica do direito internacional” (Otten, 2016, tradução dos autores).

Isso é especialmente percebido no caso dos estados do sul global, pois a sua história e as raízes das mudanças climáticas se conectam e podem ser vistas como produtos dos processos políticos de colonização e desenvolvimento econômico capitalista (Murcott e Tigre, 2024).

O termo “colonially-driven environmental change” ilustra que o legado do colonialismo é vinculado ao surgimento da expressão “sul global” e se relaciona intimamente com os impactos diferenciados das mudanças climáticas (Whyte, 2017). Por meio de submissões escritas, o sul global demonstrou uma abordagem abrangente da questão climática e sua interseção com o direito do mar.

A análise desses documentos revelou nuances nas narrativas e a existência de diferentes interesses políticos por trás delas (Miskimmon et al. 2012). Essas narrativas foram investigadas por meio do método de “análise de conteúdo categorial” (Sampaio et al., 2021), que possibilitou a identificação de semelhanças e diferenças. A forma como os argumentos jurídicos foram escolhidos e o peso atribuído a cada um deles fizeram emergir enredos múltiplos em torno do tema das mudanças climáticas.

Considerando que o direito internacional e a política internacional compartilham o mesmo espaço teórico (Slaughter, 2015), a análise das narrativas presentes nas submissões dos estados do Sul global ao Tribunal do Mar no âmbito dos procedimento consultivo sobre mudanças climáticas foi combinada com a investigação da trajetória de seus posicionamentos em fóruns políticos, como as Conferências das Partes (COPs) da Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre Mudança do Clima.

Assim, por meio da articulação de discursos políticos e jurídicos, foi possível perceber duas narrativas principais apresentadas pelos estados do Sul Global. Isso reflete a crescente divisão Sul-Sul (Ferreira, 2018) com suas disparidades em termos de desenvolvimento e vulnerabilidades, principalmente no que diz respeito à urgência climática.

Narrativas que revelam interesses econômicos

Quando se envolvem em procedimentos consultivos, os estados articulam narrativas alinhadas aos seus interesses. Desse modo, é relevante perceber a motivação subjacente e os fatores que influenciam as posições jurídicas dos estados. Os resultados da análise de conteúdo categorial mostraram que, em suas submissões ao Tribunal do Mar, alguns países deram grande importância a discussão sobre o princípio das responsabilidades comuns mas diferenciadas (CBDR-RC), bem como sobre deveres de cooperação e assistência.

BrasilVietnãEgito e Índia foram os países cujas submissões mais destacaram a importância de responsabilidades diferenciadas de acordo com o nível de desenvolvimento. Igualmente, os documentos de BrasilÍndiaEgito e Chile dedicaram muito espaço à necessidade de apoio financeiro e técnico dos países desenvolvidos para enfrentar os desafios climáticos e, ao mesmo tempo, garantir suas necessidades de desenvolvimento.

Essa escolha demonstra como tais países instrumentalizaram a estrutura legal existente, a fim de destacar o impacto econômico que as medidas de combate às mudanças climáticas podem ter em suas economias nacionais.

As contribuições significativas dessas economias emergentes para as mudanças climáticas e suas maiores capacidades financeiras e tecnológicas diferenciam-nas de outros países do sul global (Ferreira, 2018). Nas COPs, alguns de tais Estados deram ênfase à relevância de uma agenda política que engloba demandas por relações econômicas mais justas e oportunidades de desenvolvimento.

O Egito (COPs 27 e 28), a China (COP 28) e o Brasil (COP 28) fizeram referência direta ao princípio das responsabilidades comuns mas diferenciadas como um elemento-chave do Direito Internacional. Assim, as narrativas apresentadas em CTIs devem ser lidas em conjunto com a política internacional, pois podem emergir de um contexto mais amplo em que estratégias políticas são elaboradas e estão em jogo; já que o direito pode ser retratado como uma “luta entre diferentes interesses políticos” (Orakhelashvili, 2005, tradução dos autores).

Narrativas que revelam vulnerabilidades

O poder das narrativas no direito internacional é visto como um relato contra-hegemônico e uma ferramenta transformadora devido à proposição de outras perspectivas (Delgado, 1989). A exposição de experiências individuais relacionadas à crise climática demonstra visões geopolíticas que confrontam a ideia de um enquadramento único da questão (Sultana, 2024).

Vários estados descreveram especificamente suas vulnerabilidades nas narrativas presentes nas submissões ao Tribunal do Mar. Tal fato reflete o argumento segundo o qual as mudanças climáticas geram ameaças existenciais desiguais em várias regiões, sendo que os indivíduos negros e as comunidades vulneráveis as vivenciam mais profundamente (Valayden, 2024).

Os resultados da análise de conteúdo categorial demonstraram que os estados mais vulneráveis do Sul Global articularam suas narrativas em torno de preocupações com os direitos humanos, reforçando o impacto direto infligido à dignidade de sua população. Apesar da singularidade de narrativas distintas moldadas por experiências subjetivas (Otten, 2016), NauruMicronésiaIlhas Maurício e Congo demonstraram maior preocupação com as implicações das mudanças climáticas sobre os direitos humanos e defenderam uma proteção reforçada com base no direito internacional.

O termo “apartheid climático” tem sido usado para enfatizar as diferenças nas causas e nos impactos da urgência climática. Argumenta-se que alguns estados poderiam usar o poder econômico para evitar tais impactos, enquanto outros estariam condenados a suportar e sofrer suas consequências (Long, 2024).

O conceito de urgência contém em si um vocabulário temporal que não é percebido igualmente por todos os atores. A necessidade de uma resposta rápida se faz sentir, sobretudo, por Estados que já sofrem com a gravidade das consequências resultantes das mudanças climáticas.

Nesse contexto, MicronésiaCongoEgitoIlhas Maurício e Ruanda foram os únicos estados cujas submissões abordaram a questão da responsabilidade dos Estados, enfatizando a obrigação de reparar os danos causados pelas mudanças climáticas. Esses países, que figuram entre os mais vulneráveis aos efeitos das mudanças climáticas, priorizaram a sobrevivência de sua população e cobraram a responsabilização daqueles que mais contribuíram para tanto.

Estados altamente vulneráveis à urgência do clima também mobilizaram seus argumentos em fóruns internacionais para defender uma governança climática mais equitativa e justa. Os discursos dos Pequenos Estados Insulares (Small Island States) nas COPs expressam assimetrias dentro do Sul Global e uma maior vulnerabilidade que afeta países menos desenvolvidos.

Por exemplo, Belize, nas COPs 2627 e 28, destacou sua condição de pequeno Estado insular em desenvolvimento [“Small Island Developing State”], que o torna particularmente vulnerável às mudanças climáticas devido às suas características geográficas e econômicas. Tais condições também foram enfatizadas por Nauru e Maurício na COP 26, e pela Micronésia nas COPs 27 e 28.

A conexão identificada entre as posições adotadas por esses países nas COPs e no procedimento consultivo do Tribunal do Mar sobre mudanças climáticas reforça o argumento de que o direito internacional pode representar uma plataforma para que os pequenos Estados expressem seus interesses e sejam ouvidos (Guilfoyle, 2023). É precisamente por meio de narrativas que “a perspectiva do subalterno, do Estado colonizado ou das relações colonializadas” pode atrair a atenção do direito internacional (Otten, 2016).

Conclusão

O papel do direito internacional no que concerne as desigualdades socioeconômicas e políticas deve ser investigado considerando as crescentes disparidades de interesses e valores entre os países do Sul Global (Ferreira, 2018).

Portanto, a análise das submissões escritas ao Tribunal do Mar no âmbito do procedimento consultivo sobre mudanças climáticas retrata a maneira pela qual os diferentes interesses dos estados do sul global podem ser transformados em narrativas apresentadas ao Tribunal.

A apresentação de narrativas perante CTIs contam uma história específica, carregada de contexto e interesses políticos, que podem, em última análise, afetar o resultado das decisões.

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Representatividade de associações civis: quem pode atuar em nome de terceiros

Tema relevante no âmbito do direito processual civil é o conceito de representante adequado da coletividade em processos metaindividuais, nos quais se busca a tutela de interesse que diga respeito à coletividade — ou seja, interesses individuais homogêneos, coletivos ou difusos, na linha do disposto nos artigos 81 e seguintes do Código de Defesa do Consumidor (Lei 8.078/90).

Em tais litígios coletivos, o molde formal clássico da processualística é repensado. Não se trata mais de uma disputa individual (Tício, Mévio e Caio), tampouco da hipótese de litisconsórcio ativo (dois ou mais integrantes reunidos no polo ativo de uma mesma lide proposta em face de terceiro).

Tais propostas, consideradas e adotadas em processos de natureza individual, não abrangem de maneira eficaz a representação prática da coletividade em uma única demanda judicial. Isso ocorre porque, quando se trata de representação para a defesa de interesses coletivos, enfrentamos diversos obstáculos estruturais. Entre esses desafios, destacam-se:

o ajuizamento massivo de demandas idênticas e/ou similares, algumas potencialmente fraudulentas;
a sobrecarga do Poder Judiciário local diante do excesso de litígios;
a formação de litisconsórcios ativos excessivamente numerosos, que frequentemente demandam o desmembramento das ações pelos juízes; e
a lentidão processual decorrente do alto volume de processos pendentes de análise.

Imagine-se, por exemplo, um acidente naval que provoca o derramamento de produtos químicos em uma área de pesca compartilhada por diversas cidades litorâneas, contaminando o local e inviabilizando a atividade pesqueira. O impacto negativo sobre a população e a economia local seria evidente, e cada pescador, comerciante ou proprietário de negócios relacionados à pesca poderia sentir-se no direito de ajuizar uma ação indenizatória contra os responsáveis, buscando reparação pelos prejuízos sofridos.

Contudo, ao analisarmos a questão sob uma perspectiva mais ampla, fica evidente que esse cenário pode gerar consequências contraproducentes: o grande volume de demandas, a falta de sistematicidade nos pleitos, a inconsistência nos relatos dos fatos e a insuficiência estrutural do Judiciário local reduzem significativamente as chances de um desfecho célere e satisfatório. Nesse sentido, o pleito individual, quando analisado de forma fragmentada, pode se tornar um verdadeiro “tiro pela culatra”, comprometendo a efetividade da tutela coletiva.

Lei de ACP

Não é sem razão que o legislador cogitou pela hipótese de substituição processual da coletividade por entes que pudessem ser efetiva e expressamente representativos. [1] Tal realidade foi positivada com a Lei de Ação Civil Pública (Lei 7.347/85), em seu artigo 5º. Nos incisos do referido dispositivo, foram eleitos expressamente os entes considerados aptos a proporem tal ação coletiva, sendo eles o Ministério Público, a Defensoria Pública, os entes federativos, as autarquias, empresas públicas, fundações ou sociedades de economia mista, e as associações civis constituídas há pelo menos um ano e que tenham como finalidade a proteção de direitos coletivos, como o patrimônio público, o meio ambiente, os consumidores etc.

Vê-se, nesse sentido, um esforço do legislador, seguindo orientação internacional, para realizar um controle qualitativo sobre as proposituras de ações coletivas — especialmente as ações civis públicas —, considerando o importante papel social dessa ferramenta jurisdicional e seu impacto prático sobre os envolvidos na situação jurídica que originou o ajuizamento de demandas dessa magnitude. [2]

Assim, com o objetivo de evitar a propositura de demandas inidôneas, o legislador selecionou, previamente, entes que considerou jurídica e tecnicamente aptos a prosseguir com uma ação civil pública. Entendeu-se que esses entes teriam condições de propor a ação, produzir provas, interpor recursos, participar de audiências de conciliação ou mediação, e praticar outros atos processuais legalmente previstos, representando adequadamente a coletividade. Essa coletividade, embora substituída no processo, não é ouvida ou consultada diretamente, o que reforça a importância de se garantir o princípio constitucional do devido processo legal em tais procedimentos (CF, artigo 5º, LIV). [3]

O controle da representatividade adequada irrompe com a função de assegurar que a conduta dos representantes esteja alinhada aos interesses da classe representada e garantir que a decisão proferida ao final, vinculativa da coletividade, não estará sujeita a questionamentos que se fundamentem na falha de representação na demanda de origem. [4] O legislador brasileiro optou por um controle ope legis da adequação da representação de entes representativos da coletividade.

No entanto, doutrina e jurisprudência, percebendo que a mera expressão dispositiva da norma se mostrava insuficiente para a adequada satisfação do direito coletivo a uma adequada e efetiva representação, uma vez que, por exemplo, mesmo associações pré-constituídas há mais de um ano e com finalidade expressa poderiam ajuizar demandas temerárias, [5] pavimentaram o caminho para que fosse repensado o papel dos tribunais no controle da adequação da representação. Ou seja: um controle ope judice da representatividade adequada, e não apenas ope legis[6]

Controle de representatividade de associações civis

Tal controle de representatividade adequada pelos tribunais pátrios mostra-se de extrema relevância, sendo a representatividade o fulcral requisito de admissibilidade das ações coletivas brasileiras. Sem legislação que especifique os critérios práticos que devam guiar os magistrados, os critérios de representação foram construídos ao longo dos anos pela prática forense e doutrina.

No dizer de Diego Santiago y Caldo, são três os requisitos eleitos pelas cortes brasileiras ao regular o controle de representatividade adequada de associações civis, foco do presente artigo: a regular constituição estatutária da associação civil por pelo menos um ano — que pode ser dispensada “quando houver manifesto interesse social, evidenciado pela dimensão ou características do dano, ou pela relevância do bem a ser protegido (artigo 5º, §4º, LACP, e artigo 82, §1º, CDC)” [7], — a coerente pertinência temática entre o objeto da ação ajuizada e os fins institucionais da associação e a permissão estatutária ou assemblear para a associação entrar em juízo, a qual também pode ser mitigada em casos excepcionais. [8]

Os requisitos acima delineados foram não apenas extraídos do texto da lei, considerando-se que o artigo 5º, V da Lei de Ação Civil Pública (Lei 7.347/85) determina que as associações civis aptas a proporem a ação coletiva devem estar pré-constituídas há pelo menos um ano e incluir, dentre as suas finalidades institucionais, “a proteção ao patrimônio público e social, ao meio ambiente, ao consumidor, à ordem econômica, à livre concorrência, aos direitos de grupos raciais, étnicos ou religiosos ou ao patrimônio artístico, estético, histórico, turístico e paisagístico”, mas também moldados pela prática jurídica posterior à sua promulgação.

Os tribunais foram responsáveis por repensar o critério da representatividade adequada, mitigando formalismos que dificultariam o acesso à Justiça por associações civis recém-formadas e exigindo requisitos que corresponderiam a melhores garantias de que a associação verdadeiramente estaria interessada na representação da coletividade — como o é o aprofundamento do requisito da pertinência temática, inclusive pelo próprio STF. [9]

Não é sem razão que, tendo-se em vista a mudança de perspectivas desde a promulgação da lei, que é silente sobre o tema, tramitam junto ao Congresso diversos projetos de lei para reformulá-la, os quais, por sua vez, buscam tratar diretamente do tema da representatividade adequada, de modo a unificar o entendimento adotado pelas cortes e evitar decisões eventualmente díspares sobre um tema ainda não pacificado. [10] Merece destaque, nesse sentido, o chamado Projeto de Lei Ada Pellegrini Grinover (PL 1.641/21).

Legitimar associações civis

O referido projeto busca reformar a Lei de Ação Civil Pública e, no âmbito do controle de representatividade adequada, o exposto no artigo 7º, V, do esboço, legitima as associações civis “que incluam, entre seus fins institucionais, a defesa dos direitos protegidos por esta lei, independentemente de prévia autorização estatutária, assemblear ou individual dos associados”, destacando no §1º que a “adequação da legitimidade ao caso concreto pressupõe que a finalidade institucional da entidade tenha aderência à situação litigiosa ou ao grupo lesado”.

E, no §2º, que na “análise da legitimação do autor, o juiz deverá considerar o grau de proteção adequada do grupo ou do interesse protegido”, avaliando dados como sua credibilidade, capacidade e experiência, histórico na proteção judicial e extrajudicial dos interesses ou direitos previstos em lei, conduta em outros processos coletivos, a pertinência entre os interesses tutelados pelo legitimado e o objeto da demanda, e o tempo mínimo de instituição da associação por pelo menos um ano e a representatividade desta perante o grupo, categoria ou classe.

Ainda, nos parágrafos subsequentes, os requisitos da adequação da representação são mais bem aprofundados. O projeto destaca que os quesitos anteriormente expressos poderiam ser dispensados pelo juiz caso seja evidenciado o manifesto interesse social da causa, podendo ser a legitimação adequada aferida por outros critérios (§3º), que o controle jurisdicional da adequação da legitimidade deverá ser feito durante o decorrer do processo, e não apenas no âmbito da análise de admissibilidade (§4º), que o autor deverá demonstrar na peça inicial porque é um legitimado adequado para a condução do processo (§5º), que uma vez não demonstrada a legitimação adequada, o juiz deverá conceder prazo para eventual emenda ou complementação da petição inicial, nos termos do artigo 321 do CPC (§6º) e que reconhecida a ausência de representação, questão de admissibilidade ou legitimidade adequada, a qualquer tempo ou grau de jurisdição, o juiz deverá promover a sucessão processual do autor, intimando o Ministério Público, a Defensoria Pública ou outros legitimados a assumirem a condução do processo (§7º) e que a decisão sobre a adequação de legitimação é impugnação por meio de agravo de instrumento, salvo se extinguir o processo, com o que tal decisão será impugnável por meio de apelação (§8º). No mais, o artigo 22 do projeto, em seu §1º, II, atribui expressamente ao juiz a função de controlar a adequação da legitimação do autor na decisão de admissibilidade do processo.

Nota-se, nesse sentido, um movimento progressivo (da doutrina, jurisprudência e dos próprios legisladores) no sentido de se exigir um controle jurisdicional da adequação representativa dos legitimados ativos em ações coletivas para cada caso concreto. Na linha de parte da doutrina, “melhor solução é possibilitar ao juiz o controle do real potencial representativo do autor”. [11]

Nesse ínterim, a representatividade adequada pode ser considerada “o mais importante de todos os requisitos gerais de admissibilidade e geralmente consiste no ponto mais controvertido em uma decisão de certificação”. [12]

A evolução doutrinária e jurisprudencial demonstra um esforço em mitigar insuficiências do controle ope legis, promovendo uma análise mais criteriosa e contextualizada pelos tribunais, que assegure uma representação alinhada aos interesses da classe representada.

A tramitação de propostas como o PL 1.641/21 evidencia o reconhecimento de que, apesar dos avanços, a legislação brasileira no tocante aos processos coletivos necessita de aprimoramentos. A função jurisdicional dos tribunais vai além do mero cumprimento de requisitos legais, buscando evitar a instrumentalização inadequada de ações coletivas e promovendo uma tutela mais justa e eficiente dos direitos metaindividuais.


[1] COSTA, Susana Henriques da. O controle judicial da representatividade adequada: uma análise dos sistemas norte-americano e brasileiro. In: SALLES, Carlos Alberto de. (Coord.). As grandes transformações do processo civil brasileiro: homenagem ao professor Kazuo Watanabe. São Paulo: Quartier Latin, 2009, p. 2-3

[2] Ainda que se fale de eficácia erga omnes da coisa julgada apenas na hipótese de o resultado da demanda ser positivo à coletividade (art. 18 da Lei 4.717/65), aponta-se um discutido efeito negativo da improcedência meritória de ações coletivas, qual seja, a impossibilidade de repropositura da ação com base no mesmo acervo fático-probatório utilizado quando da propositura da demanda original, caso inócua por eventual insuficiência técnica ou jurídica dos patrocinadores da causa.

[3] VASCONCELOS, Andre. Class actions. Ações coletivas nos Estados Unidos: o que podemos aprender com eles? Salvador: JusPodivm, 2013, p. 131.

[4] Ibid., p. 133.

[5] STJ, 3ª Turma, REsp 2.035.372/MS, Rel. Min. Marco Aurélio Bellizze, j. 21/11/2023; e STJ, 1ª Turma, AgInt no REsp 1.350.108/DF, Rel. Min. Napoleão Nunes Maia Filho, j. 14/8/2018.

[6] LEONEL, Ricardo de Barros. Manual do processo coletivo. 5ª ed. São Paulo: Malheiros, 2021. pp. 202-203.

[7] CALDO, Diego Santiago y. Ações coletivas: representatividade adequada sob a ótica comparada. Belo Horizonte: Fórum, 2022. p. 211.

[8] Ibid., p. 206-216.

[9] Veja-se: STF, Pleno, ADI nº 1282 QO/SP, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, DJ 29/11/02, p. 17; STF, 1ª Turma, RE nº 196.184/AM, Rel. Min. Ellen Gracie, DJ 18/2/5, p. 6; STF, Pleno, ADI nº 3.059 MC/RS, Rel. Min. Carlos Brito, DJ 20/8/4, p. 36; e STF, Pleno, ADI nº 2.350/GO, Rel. Min. Maurício Corrêa, DJ 30/4/4, p. 28.

[10] Projetos de Lei 4.441/2020, 4.778/2020 e 1.641/2021.

[11] COSTA, op. cit., p. 22. No mesmo sentido, Ricardo de Barros Leonel preleciona que a “realidade do processo coletivo no dia a dia do foro bem como a dinâmica experiência que ele proporciona (…) fortalecem a percepção no sentido de que o controle judicial pode ocorrer” (LEONEL, op. cit., p. 202).

[12] VASCONCELOS, op. cit., p. 134.

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A liberdade de opinião jurídica do advogado e a repulsa ao ‘crime de hermenêutica’

Será lícito punir um advogado (ou qualquer outro operador do Direito) por haver mal interpretado um estatuto normativo, seja ele constitucional ou legal?

Não me parece correto punir, tanto no plano administrativo-disciplinar quanto na esfera penal, o profissional do Direito que haja eventualmente incidido em erro (grosseiro ou não) na exegese de qualquer espécie normativa, sob pena de se criar um novo (e absurdo) tipo penal definidor da esdrúxula e inconstitucional figura do denominado “crime de hermenêutica”!

Ruy Barbosa , em “cause célèbre” por ele submetida em 1896 ao exame do STF, conseguiu que a Corte Suprema absolvesse o juiz gaúcho Alcides de Mendonça Lima , da comarca de Rio Grande (RS), absurdamente acusado de “erro de interpretação” do Direito e de rebeldia jurisdicional em face de sua frontal discordância com o entendimento sustentado e desejado por Júlio de Castilhos, então presidente do estado do Rio Grande do Sul!

Nenhum advogado (ou profissional do Direito) pode ser punido em razão de opiniões jurídicas por ele pronunciadas que reflitam as suas convicções pessoais ou a sua visão doutrinária do tema em discussão , sob pena de afronta aos princípios constitucionais da independência do advogado e de sua consequente liberdade intelectual!

Esse entendimento — de veemente repulsa ao anômalo “crime de hermenêutica” — registrou-se em histórico precedente absolutório do Supremo Tribunal Federal , firmado em 1897, no julgamento plenário do “recurso de revisão criminal nº 215”, e no qual o Supremo Tribunal Federal repudiou, por incompatível com nosso modelo constitucional, a figura que Ruy Barbosa denominara “crime de hermenêutica”!

Em 07/10/1899, a Suprema Corte, reexaminando sua anterior decisão proferida em 1897, reafirmou o juízo absolutório proclamado em favor do magistrado gaúcho que havia sido condenado por “crime de responsabilidade” tipificado no Código Penal de 1890, o primeiro Código Penal da República!

Vê-se , daí que nem a história judiciária de nosso país nem a pena vigorosa e respeitável de Ruy Barbosa, patrono dos Advogados brasileiros (e do Senado), dão razão a quem pretenda punir o advogado em virtude da interpretação, ainda que equivocada, que ele tenha dado a um texto normativo.

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Necessidade de combate à litigância abusiva e efeitos práticos da Recomendação CNJ 159

Em 23 de outubro, o CNJ (Conselho Nacional de Justiça) editou a Recomendação nº 159, que dispõe acerca de medidas para identificação, tratamento e prevenção da litigância abusiva ou predatória.

Papéis, processos, pilha de documentos, contratos, acordos, lentidão da Justiça, morosidade

A litigância abusiva se tornou uma prática cada vez mais comum no sistema judiciário brasileiro, sobretudo em demandas consumeristas, em sua grande parte ajuizadas contra instituições financeiras, empresas de telefonia, concessionárias de energia elétrica, companhias aéreas e grandes varejistas.

Desse modo, o presente artigo tem como objetivo analisar a norma em questão e os impactos a serem por ela causados, principalmente na forma como tal preceito auxiliará o Poder Judiciário e os jurisdicionados no combate a essa prática.

O CNJ, diante da preocupação com o fenômeno da litigância predatória, editou importantes normas. Dentre elas, destaca-se, inicialmente, a Resolução CNJ nº 349/2020, que criou o Centro de Inteligência do Poder Judiciário (CIPJ) e a rede de Centros de Inteligência do Poder Judiciário, com o intuito de “identificar e propor tratamento adequado de demandas estratégicas ou repetitivas e de massa no Poder Judiciário brasileiro.

Além disso, foram editadas a Recomendação CNJ nº 127/2022, que sugere aos tribunais a adoção de cautelas que visem a coibir a judicialização predatória que possa acarretar o cerceamento de defesa e a limitação da liberdade de expressão, e a Recomendação CNJ nº 129/2022, que recomenda aos tribunais a adoção de cautelas visando evitar o abuso do direito de demandar que possa comprometer os projetos de infraestrutura qualificados pelo programa de parcerias de investimentos (PPI), previsto na Lei nº 13.334/2016.

Já a Recomendação CNJ nº 159/2024 tratou, de forma mais aprofundada, o tema e trouxe consigo três anexos, os quais apresentam uma lista exemplificativa de 20 condutas processuais potencialmente abusivas, 17 medidas judiciais a serem adotadas diante de casos concretos de litigância abusiva e 8 medidas administrativas recomendadas aos tribunais.

Litigância abusiva

A norma em comento materializa o conceito dessa prática e define a litigância abusiva como “o desvio ou manifesto excesso dos limites impostos pela finalidade social, jurídica, política e/ou econômica do direito de acesso ao Poder Judiciário, inclusive no polo passivo, comprometendo a capacidade de prestação jurisdicional e o acesso à Justiça”.

Em complemento, ela classifica a litigância abusiva como gênero, de modo que “devem ser consideradas como espécies as condutas ou demandas sem lastro, temerárias, artificiais, procrastinatórias, frívolas, fraudulentas, desnecessariamente fracionadas, configuradoras de assédio processual ou violadoras do dever de mitigação de prejuízos, entre outras, as quais, conforme sua extensão e impactos, podem constituir litigância predatória”.

Dentre as condutas apresentadas na lista exemplificativa, as que mais são verificadas na prática são: o requerimento de gratuidade de justiça sem fundamento; a desistência de ações após o indeferimento de medidas liminares ou da intimação para juntar documentos comprobatórios; o ajuizamento de ações em comarca distinta da parte autora, da parte ré ou do local do fato controvertido; a fragmentação de ações; a distribuição de ações com petições iniciais genéricas ou por padrão, sem a particularização dos fatos do caso concreto; as ações com pedidos vagos, hipotéticos ou alternativos, que não guardam relação lógica com a causa de pedir; o ajuizamento de ações sem menção a processos anteriores extintos, cujos fatos já foram ali analisados; o aforamento de demandas desacompanhadas de documentos comprobatórios essenciais; a existência de grande volume de processos sob o patrocínio dos mesmos profissionais, cuja sede de atuação ou o domicílio da parte são diversos do foro onde propostas; e juntada de instrumento de cessão do direito de demandar ou de eventual e futuro crédito a ser obtido com a ação judicial, especialmente quando conjugada com outros indícios de litigância abusiva.

Já em relação às medidas judiciais a serem adotadas pelos magistrados, importante mencionar: a necessidade de análise criteriosa das ações; a realização de diligências, inclusive probatórias, a fim de averiguar os requisitos da ação; a ponderação criteriosa de requerimentos de inversão do ônus da prova, inclusive nas demandas envolvendo relações de consumo; o julgamento conjunto de ações com relação entre si; a adoção de medidas para evitar o fracionamento de ações e a notificação da OAB.

Recomendações aos tribunais

De outro lado, as medidas recomendadas aos tribunais estão relacionadas, sobretudo, à implementação de sistemas destinados ao monitoramento e tratamento de dados para a criação de relatórios, painéis de informação, consolidação de dados e integração de sistemas e informações entre os tribunais do país, com o intuito de identificar de forma mais eficaz os indícios de litigância predatória, alertar os magistrados e subsidiar o planejamento e as ações preventivas, de correção e avaliação das medidas adotadas no âmbito das unidades e tribunais.

Entende-se que a evolução da tratativa dada à referida prática atentatória à Justiça evidencia o amadurecimento do CNJ quanto ao tema e a relevância que lhe foi atribuída, sendo certo que o órgão de controle do Judiciário explicita que não se devem medir esforços para se rechaçar a prática de litigância predatória.

Desse modo, a Recomendação CNJ nº 159/2024 revela um grande avanço no combate à litigância predatória, uma vez que define de forma concreta o fenômeno, mitiga eventuais dúvidas dos magistrados em relação ao conceito e às suas características, além de dispor sobre medidas a serem adotadas para a sua correta identificação e repressão.

A norma tende a ser uma baliza para o Poder Judiciário na identificação e posterior adoção das medidas cabíveis em face dos responsáveis por esse uso abusivo e desvirtuado do Poder Judiciário.

Além disso, importante destacar que o efeito prático da aplicação dessa norma, à medida que os tribunais adotem as suas recomendações, será uma redução substancial no número de processos e, consequentemente, de custos para o Poder Judiciário e para as partes que são vítimas dessa prática.

Juiz avalia existência de litigância predatória

Outrossim, muitas condutas previstas na norma, se isoladamente consideradas, podem não configurar litigância predatória, de modo que caberá ao magistrado avaliar a existência ou não dos indícios e aplicar as medidas cabíveis, sob pena de violar o direito fundamental de acesso à Justiça.

Nesse sentido, em que pese a existência de diversas previsões na norma do CNJ, sobretudo por não se tratar de rol exaustivo, ainda caberá aos julgadores avaliar as condutas das partes e aplicar as medidas processuais necessárias.

Ainda, a norma tende a promover a proteção aos princípios constitucionais do acesso à justiça (artigos 5º, XXXV, da Constituição e 3º do CPC) e da celeridade processual (artigo 5º, LXXVIII, da Constituição), além do princípio da boa-fé processual (artigo 5º do CPC), e a combater o enriquecimento ilícito dos litigantes de má-fé, na medida em que deixarão de obter proveito econômico indevido com as demandas caracterizadas como abusivas.

Por fim, importante ressaltar a necessidade de que o Poder Judiciário tome medidas em conjunto com as partes, advogados e outras instituições, tais como a Ordem dos Advogados do Brasil, a Defensoria Pública, o Ministério Público, as Procuradorias Estaduais e outras eventualmente responsáveis por defender o direito constitucional de acesso à Justiça, a fim de combater a litigância predatória.

Portanto, a edição da Recomendação CNJ nº 159/2024 é um avanço e uma conquista tanto para o Poder Judiciário quanto para os jurisdicionados, sobretudo para aqueles que mais sofrem os nefastos efeitos da judicialização predatória em massa (instituições financeiras, empresas de telefonia, concessionárias de energia elétrica, companhias aéreas e grandes varejistas), que despendem bilhões de reais por ano com o pagamento de indenizações advindas de ações abusivas.

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Sobre a crise da legalidade penal e das ciências penalísticas

Uma justiça penal sem verdade e sem igualdade

Quero fazer uma reflexão de fundo sobre o estado do nosso direito penal e processual, assim como sobre nossos estudos penalísticos e processualísticos. Não sou penalista. Por isso, meu ponto de vista será externo ao nosso sistema penal e terá por objeto duas graves involuções: a crise da legalidade penal e o crescimento da desigualdade perante a lei.

A primeira involução consiste no colapso da legalidade penal e, consequentemente, da verdade processual. Trata-se de uma crise gerada pela inflação legislativa, no plano quantitativo, e pela disfunção da linguagem legal, no plano qualitativo. Estima-se que, em nosso ordenamento, existam 35 mil tipos penais e milhares de leis penais, a ponto da Corte Constitucional ter sido constrangida, na célebre decisão n.º 364 de 1988, a admitir a escusabilidade por ignorância da lei quando esta, como frequentemente ocorre, for inevitável.

A violação da linguagem penal manifesta-se, por sua vez, em uma anti-linguagem burocrática, presente, sobretudo, nos decretos legislativos, elaborados nos gabinetes administrativos, e geralmente compostos por artigos e parágrafos longos, com palavras obscuras e ambíguas e, principalmente, com inúmeras remissões a artigos e parágrafos de outras leis, criando labirintos normativos indissolúveis e incompreensíveis.

É evidente que esse colapso da legalidade penal equivale ao fracasso dos próprios pressupostos da verdade processual e, com isso, da legitimação política do Poder Judiciário: equivale ao colapso da verificabilidade e falsificabilidade em abstrato, ou seja, dos pressupostos da verdade jurídica, bem como da verificação e falsificação em concreto, ou seja, dos fundamentos da verdade factual. O resultado desse caos é o crescimento do arbítrio judicial e a perda da legitimação da jurisdição.

A segunda involução refere-se à crescente desigualdade dos cidadãos perante a lei penal. Há mais de 30 anos, vem-se desenvolvendo um direito penal da desigualdade: um direito penal mínimo e brando para os poderosos, destinado a garantir sua impunidade; e um direito penal máximo e inflexível para os pobres, acompanhado, por vezes, de uma ostentação de desumanidade, com o objetivo de obter consenso.

Recordemos as inúmeras leis em benefício de Silvio Berlusconi, um verdadeiro corpus iuris ad personam, que o governo atual, aliás, complementou com diversas normas promulgadas ou prometidas: a Lei nº 199 de 30/12/2022, que excluiu do regime de prisão rígida previsto pelo artigo 4-bis apenas os condenados por peculato, concussão e corrupção; a abolição do crime de abuso de autoridade; a limitação das interceptações; e os recorrentes esforços para limitar a independência dos juízes e, sobretudo, do Ministério Público.

Simultaneamente, deu-se vida a um direito penal desigual e desumano, informado pela lógica do inimigo, invariavelmente identificado com os sujeitos mais vulneráveis: em primeiro lugar, os migrantes, que personificam os inimigos ideais, apontados pela demagogia populista e racista como pessoas inferiores e/ou perigosas; em segundo lugar, os detentos, grande parte dos quais submetidos a dois regimes de prisão rígida, ambos, a meu ver, ilegítimos; e, em terceiro lugar, os indivíduos perigosos ou suspeitos, punidos não pelo que fizeram, mas pelo que são — migrantes, mendigos, prostitutas, dependentes químicos, pessoas em situação de rua — por meio de um crescente arsenal de medidas pessoais de prevenção.

Crise da legalidade e ciência penalística italiana

Como a cultura penalística e processualística respondeu à primeira dessas duas involuções, ou seja, à destruição da legalidade? Tenho a impressão de que, diante do “direito penal que muda”, como sugere o título de uma coleção de estudos penalísticos, e do “direito penal em transformação”, como aponta o título de uma conhecida monografia, grande parte da cultura penalística — obviamente com algumas louváveis exceções — em vez de criticar esse desvio e propor as garantias necessárias para impedi-lo, adaptou-se a ela, e por vezes, abandonou os princípios, promovendo uma espécie de regressão ao direito penal pré-iluminista.

A resposta à crise de uma cultura garantista deveria ter consistido na proposta de uma refundação da legalidade penal. Assim como, há quatro séculos, Thomas Hobbes, diante da incerteza e do arbítrio do direito premoderno, provocados pela jurisprudência caótica e desordenada dos juízes, opôs a autoridade da lei, isto é, a reserva de lei em matéria penal, hoje, diante da total incerteza e arbítrio provocados por uma legislação ainda mais caótica e desordenada, o único remédio é a refundação e o fortalecimento da legalidade.

Esse reforço, a meu ver, só pode ocorrer por meio da transformação da reserva de lei em uma reserva de código, estabelecida em nível constitucional — todas as normas e, temas de crimes, processos e penas devem estar nos códigos; nenhuma fora deles — vinculando o legislador à sistematicidade, coerência e capacidade de conhecimento do direito penal.

Somente assim é possível restaurar a sujeição dos juízes à lei e o caráter cognitivo do juízo, baseado justamente no acertamento da verdade processual. Obviamente, essa verdade não é uma verdade absoluta ou objetiva, já que apenas as teses da lógica e da matemática podem sê-lo. Trata-se, antes, de uma verdade relativa.

Precisamente, trata-se de uma verdade opinável em direito, dada a discricionariedade interpretativa que sempre acompanha o acertamento da verdade jurídica, e probabilística em fato, já que a verdade factual não pode ser demonstrada, mas apenas sustentada por uma pluralidade de confirmações e, portanto, exige, como um frágil, mas necessário substituto de uma impossível certeza objetiva, ao menos, a certeza subjetiva, ou seja, o livre convencimento do juiz.

A nossa cultura jurídica, no entanto, aceitou o caos normativo em que se transformou nosso direito penal como se fosse um fenômeno natural. Assim, renunciou, tanto à crítica de seu distanciamento dos princípios, quanto ao planejamento de garantias adequadas para tornar possível um grau aceitável de sujeição dos juízes à lei e um grau plausível de verdade processual. Respondeu a ambas as crises — a da verdade jurídica e a da verdade factual — com uma regressão epistemológica ao direito pré-moderno.

No plano da verdade jurídica e do direito penal substancial, abandonou-se a concepção cognoscitivista da jurisdição, substituída por uma concepção criacionista. O princípio auctoritas non veritas facit legem — que, se a lei é clara e inequívoca, tem como corolário o princípio veritas non auctoritas facit iudicium — foi transformado, graças também às teses cada vez mais difundidas da conexão objetiva entre direito e moral, nos princípios opostos: veritas facit legem auctoritas facit iudicium, ou seja, na ideia de que é a autoridade do juiz que cria o direito, ontologicamente fundado em sua justiça pelo menos tolerável.

Por trás dessa operação está a ideia arcaica e ilusória de uma verdade empírica objetiva, como aquela expressa na imagem do juiz “boca da lei”. Karl Popper distingue entre “verificacionistas iludidos” e “verificacionistas desiludidos”: os primeiros acreditam na possibilidade de alcançar uma verdade empírica objetiva ou absoluta; os segundos, diante da impossibilidade de alcançar essa verdade, acabam por cair no irracionalismo e no ceticismo, ou seja, na ideia de que nenhuma tese empírica é verdadeiramente sustentável.

A mesma distinção pode ser aplicada à verdade processual: os verificacionistas ou iluministas iludidos são aqueles que, tendo, como os iluministas iludidos, uma ideia da verdade processual como verdade absoluta ou objetiva e reconhecendo que tal verdade não é alcançável, caem no criacionismo, ou seja, na concepção da interpretação como a criação de um novo direito. A “interpretação criativa” é uma contradição em termos: onde há interpretação não há criação, onde há criação não há interpretação.

Por outro lado, na esfera da verdade factual e do direito processual penal, vem-se consolidando, entre alguns estudiosos, uma estranha epistemologia baseada em standards probatóriosStandard probatório é, em minha opinião, uma noção inconsistente: quer se entenda tais padrões como padrões objetivos, ou seja, retirados da livre apreciação do juiz, ou como padrões em abstrato, ou seja, independentes da singularidade do caso.

Em todos os casos, são padrões dotados de um valor probatório vinculante, cuja adoção equivale a uma regressão ao sistema de provas legais. Por mais insensata e até então minoritária, essa orientação corre o risco de ser hoje creditada à atração exercida pela aplicação da inteligência artificial à jurisdição, que, por trás da ideia de maior objetividade, imparcialidade e igualdade, ou seja, de uma justiça exata ao invés de uma justiça justa, está inevitavelmente destinada a produzir a homologação de decisões, o rebaixamento das garantias da prova e a estabilização das conotações desiguais e classistas da justiça derivadas dos precedentes judiciais.

Acrescente-se a isso a quebra do processo penal provocada pelas verdades alegadas nos chamados ritos alternativos. Esses ritos equivalem, na realidade, à negação da prova, substituída por uma troca desigual e inquisitorial entre a confissão e a redução da pena, em que a acusação tem a vantagem e, enquanto os poderosos, graças às suas defesas caras, só aceitam a pena negociada se forem culpados, os pobres são forçados a aceitá-la, embora inocentes, como um mal menor, em comparação com a pena maior que sofreriam na ausência de um advogado de defesa, durante a instrução e o julgamento.

De acordo com a bela reportagem de hoje de Malena Pastor, nos Estados Unidos, 98% das condenações resultam de acordos judiciais e apenas 2% resultam de julgamentos. Em Buenos Aires, a porcentagem de condenações resultantes de acordos judiciais é de 83%. Na Itália, graças à obrigatoriedade da ação penal, que não permite a negociação de acusações – e, não surpreendentemente, contestada pelos defensores dos privilégios – essa porcentagem é de apenas 30%.

Direito penal da desigualdade e ciência penalística italiana. Sobre o papel da cultura jurídica

Não menos grave é a involução desigual do nosso sistema punitivo, que se manifesta na legislação contra os migrantes, no aumento desumano das condições carcerárias e no desenvolvimento de um direito penal preventivo, que penaliza não o que se fez, mas o que se é. Essas involuções são acompanhadas pela adoção de um novo método legislativo: o desenvolvimento, a partir de uma lei-base, de uma série ininterrupta de normas — geralmente decretos-lei — que, gradualmente, tem agravado e tornado mais arbitrárias e desumanas as restrições aos direitos dos migrantes, as condições de vida das pessoas privadas de liberdade e os abusos na adoção de medidas preventivas.

No âmbito da imigração, a lei-base foi a lei Turco-Napolitano de 1998, que introduziu uma primeira e limitada “detenção administrativa” dos migrantes, posteriormente agravada pela lei Bossi-Fini de 2002 e atribuída à competência de juízes de paz, em vez de magistrados profissionais, por um decreto-lei de 2004.

Seguiram-se a Lei nº 94 de 2009, que introduziu o crime de entrada clandestina, conferindo ao imigrante irregular o status de “pessoa ilegal”; o Decreto-Lei Minniti de 2017, que ampliou as hipóteses de detenção administrativa e reduziu, ainda mais, as garantias no âmbito do asilo; os Decretos-Lei Salvini, que estenderam a duração da detenção administrativa para 18 meses, suprimiram a permissão de residência por motivos humanitários e ordenaram o fechamento de portos às embarcações de ONGs que resgatam migrantes naufragados no mar; e, finalmente, os Decretos Meloni-Piantedosi de 2023, destinados a impedir ou dificultar os resgates no mar.

No âmbito carcerário, o desenvolvimento de um direito punitivo desumano foi confiado ao agravamento progressivo de dois regimes de prisão rígida: o previsto no artigo 4-bis da Lei Penitenciária de 1991, reiteradamente endurecido, conhecido como “ostativo” (hostil) porque impede a concessão de permissões e benefícios de pena sem a “colaboração com a justiça”; e o regime previsto no artigo 41-bis, introduzido como medida de gestão prisional pela Lei Gozzini de 1986, mas transformado, por meio de uma longa série de leis e decretos-lei subsequentes, em uma “pena dentro da pena”, inacreditavelmente ordenada pelo ministro da Justiça, em flagrante violação à separação dos poderes e aos artigos 13 e 25 da Constituição.

O direito penal da desigualdade — como o direito penal não do fato, conforme exige o artigo 25 da Constituição, mas do autor — finalmente triunfou com o desenvolvimento de medidas preventivas: um conjunto de medidas chamadas administrativas (como a “detenção administrativa” de migrantes), para ocultar seu conflito com os princípios básicos do Direito Penal, como a legalidade e a retributividade.

Essas medidas incluem a vigilância especial, o afastamento obrigatório e o confinamento, aplicados a pessoas consideradas “perigosas” ou “suspeitas”, sem maiores especificações: os “ociosos, vagabundos, mendigos e outras pessoas suspeitas”, de acordo com a lei piemontesa de 1839, que os introduziu pela primeira vez; “as classes perigosas da sociedade”, de acordo com a Lei de Consolidação Zanardelli de 1889; os “inaptos para o trabalho sem meios de subsistência” e as pessoas “suspeitas” ou “perigosas para a ordem pública”, ou aquelas que realizam atividades contra os poderes do Estado, ou seja, antifascistas, de acordo com o texto de segurança pública Rocco de 1931; novamente, os “ociosos, vagabundos, aqueles envolvidos em tráfico ilícito” e aqueles que “habitualmente realizam atividades contrárias à moral pública e aos bons costumes”, de acordo com a lei republicana de dezembro de 1956, ampliada repetidamente nos anos seguintes, legitimada com a inclusão, entre seus destinatários, daqueles suspeitos de atividades mafiosas, e reformulada com a emissão, em 2011, de um verdadeiro código de medidas de prevenção.

A doutrina jurídica ignorou ou, quando muito, ocupou-se apenas marginalmente desse direito penal da desigualdade, que é, em sua maior parte, contrário à letra ou, pelo menos, ao espírito da Constituição. O debate público, por outro lado, voltou a sua atenção, exclusivamente, aos processos contra os poderosos, para os quais o respeito às garantias é legitimamente reivindicado. Todavia, considero um insulto à razão chamar de “garantismo” este garantismo da desigualdade e do privilégio, que ignora os horrores da prisão rigorosa, a vergonha das leis contra os migrantes e a incivilidade das medidas de prevenção.

E considero uma abdicação científica e cívica da razão a teorização do papel criativo da jurisdição e, por outro lado, a renúncia à crítica das violações dos princípios de igualdade, legalidade e retributividade, que formam a alma do garantismo e do constitucionalismo penal.

Concluo, portanto, levantando uma questão fundamental, que diz respeito ao papel e ao estatuto da ciência penalística: se ela deve apenas interpretar o direito vigente, ou, também, criticar sua ilegitimidade jurídica ou política por violação dos princípios teóricos — em grande parte constitucionalizados — do garantismo penal e processual.

Se ela deve ser um saber puramente técnico, ou deve também se questionar sobre os fundamentos de legitimação da justiça penal, com o auxílio da filosofia política, e sobre as razões da distância entre princípios e práticas punitivas, com o auxílio da sociologia do direito. A reflexão sobre os fundamentos foi a base da penalística inaugurada na Itália por Cesare Beccaria e continuada por Gaetano Filangieri, Mario Pagano, Gian Domenico Romagnosi e Francesco Carrara.

No entanto, no início do século passado, houve uma guinada, promovida pelo método técnico-jurídico de Arturo Rocco e Vincenzo Manzini, que defendia a autonomia da ciência penal em relação à filosofia e à sociologia. Mais tarde, nas décadas de 1970 e 1980, redescobriu-se a Constituição, e o garantismo foi retomado como um projeto civilizatório de refundação democrática da justiça penal.

Hoje, tenho a impressão de que se está reafirmando o antigo método técnico-jurídico. A questão que devemos voltar a debater é aquela que sempre dividiu a cultura penalística: se esta deve consistir na mera descrição técnica do direito penal vigente, ou se, a essa descrição, deve acrescentar-se, graças à clara separação entre justiça e direito gerada pelo positivismo jurídico, aquilo que chamarei de “espaço Beccaria” da teoria do garantismo, ou seja, a elaboração de princípios racionais de legitimação do direito penal como guias à crítica do direito existente e à projeção do direito futuro.

*tradução de Ana Cláudia Pinho, doutora em Direito. Professora da UFPA (Universidade Federal do Pará). Coordenadora do Grupo de Pesquisa “Garantismo em Movimento”. Promotora de Justiça do MP-PA.

**texto correspondente à intervenção de Luigi Ferrajoli em uma mesa redonda sobre Justiça Penal, no congresso internacional La verità nel processo penale (Roma-Bologna, 18 a 22 de janeiro de 2024).

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O golpe, o avestruz e o negacionismo jurídico

Dizem que todo brasileiro é um técnico de futebol, a expressão está fora de moda, hoje em dia todo brasileiro é juiz, o pior, entretanto, é que trazem para o campo jurídico a paixão do torcedor, o que nunca dá certo.

Após a publicação do relatório da Polícia Federal sobre o golpe, surgem, agora, as narrativas contrapostas, que são adotadas pelo público de modo irrefletido e sem o mínimo de conhecimento técnico necessário.

Se fosse perguntado a alguém quem é Claus Roxin corria-se o risco de receber como resposta a referência a algum costureiro francês. Somente agora, quanto a Teoria do Domínio do Fato é uma das justificativas para o reconhecimento da malfadada tentativa de golpe, os partidários de lado a lado se lançam em uma disputa político-ideológica de um conceito puramente jurídico.

O jurista alemão Roxin aperfeiçoou um conceito já existente criado por um predecessor também alemão, Hans Welzel, de quem era contemporâneo (Roxin conta hoje com quase 100 anos de idade e Welzel é falecido), que não tem nada de político. O conceito é simples, possui o domínio do fato aquele que tem o controle sobre sua realização, se determinar que ocorra, acontecerá, se determinar que não ocorra, nada se fará.

É a figura do chefe, do líder, do mandante, daquele de cuja vontade dependerá a prática do crime. Quem tem o domínio do fato não precisa (e usualmente não faz) participar dos atos de execução, da ação concreta, do comportamento dito comissivo ou positivo. Aliás, na função de líder normalmente estará longe da prática do fato em si.

Wikimedia commons

Pode agir de modo que o fato ocorra e estar, até mesmo, em outro país, isto nada importa, porque o crime ocorre por força e influência de sua vontade. Esta discussão é um tanto quanto insensata, no Direito Brasileiro prevalece a figura do mandante como autor do crime, tanto assim que no artigo 62, inciso I do Código Penal está descrito que a pena será agravada para quem promove, ou organiza a cooperação no crime ou dirige a atividade dos demais agentes.

Resumidamente, ao mandante será aplicada a pena do crime e mais um pouco ao critério do julgador. Simples assim. Agora, se estivéssemos na Alemanha, onde a Teoria se criou, a discussão teria razão de ser, porque, naquele país, as penas aplicadas a quem tem o domínio do fato (mandante) é diferente daquele que executou (executor) o crime.

O que parece estar por detrás destas questões não é a aplicação da teoria em si, mas da aferição (prova) do agente ter sido o mandante ou não, dele ter o domínio do fato com a poder de determinar que aconteça ou negar que o seja. É aqui que surgem duas narrativas mais efetivas, a primeira é o clássico “eu não sabia de nada”, a segunda é que isto implica em atribuir ao acusado o ônus de produzir a prova impossível de não ter feito nada.

Abelardo Barbosa tinha o jargão “Nada se cria, tudo se copia”, uma paráfrase de Lavoisier, o cientista francês que dizia “Na natureza nada se cria, tudo se transforma”. Quem diria que Chacrinha fosse um pensador tão profundo. A tese do “eu não sabia de nada” é usada cotidianamente em processos criminais, especialmente nos delitos de sonegação fiscal.

Muito dos artigos sobre responsabilidade penal objetiva e decisões sobre o tema são resultado desta modalidade criminosa. Outra porção vem do crime organizado. Na sonegação de nove em cada dez processos o empresário sonegador se defende dizendo que não tinha conhecimento da fraude fiscal, que era realizada pelo departamento contábil sem sua aquiescência, como método usual de administração cotidiana. Logo, sem saber de nada, não pode ser acusado e muito menos condenado pela acusação.

Curiosamente, também em nove de cada dez processos se afirma que as guias de recolhimento tributário e a documentação fiscal não possuía assinatura dos empresários, que de nada sabiam. Portanto, a falta de uma prova positiva de autoria impediria a condenação. Isto é muito comum também nas hipóteses de furto de água, quando o dono do ponto de consumo diz desconhecer que havia um desvio que permitia o consumo sem remuneração.

Entretanto, dez em cada dez processos deste tipo resultam em condenação, isto porque a sonegação implica em um ganho palpável, um lucro, para o agente, que não poderia passar desapercebido. Mais precisamente, o ganho derivado da sonegação era visível para qualquer um que administrasse a empresa, até porque era evidente a falta de recolhimento tributário.

Avestruz

Diga-se o mesmo, também, da água, cujo desvio leva o consumo para um nível insignificante, é impossível que este fato não seja percebido. De outra banda, agora dentro do aspecto probatório, é costumeiramente adotada a figura da Teoria do Avestruz.

Apesar de num primeiro momento parecer que estamos retomando a folclórica figura do Chacrinha, não é o caso. O Avestruz (aqui grafado em maiúscula) é uma ave simpática, não voadora, que tem o hábito de encostar o rosto no chão primeiro para ouvir a aproximação de algum predador e depois para se disfarçar com a plumagem.

A lenda se alastrou que a ave enterrava a cabeça no chão por medo e assim se popularizou. A Teoria do Avestruz ou Teoria da Cegueira Deliberada é antiga, deita raízes na Inglaterra, século 19, no caso Regina vs. Sleep, onde ficou conhecida também como “Willful Blindness” ou “Conscious Avoidance Doctrine” (Doutrina da Ignorância Consciente) ou, popularmente, “Ostrich Instructions” (Instruções do Avestruz).

Depois se popularizou nos Estados Unidos, acolhida em diversos casos criminais, principalmente de receptação. Podemos definir a Teoria do Avestruz como a ação do agente criminoso que se coloca deliberadamente em uma posição de ignorância em relação a ação criminosa, quando na verdade não somente assumiu o risco, mas se beneficiou ou se beneficiaria da ação criminosa.

O agente declara que nada sabia ou não fez nada, quando tinha todos os indicativos de que a conduta ocorria e de que seria beneficiado, não tendo, todavia, agido de modo direto para tanto. O agente toma conscientemente a decisão de manter-se na ignorância em relação a ação criminosa.

Veja-se a tangência entre a Teoria do Domínio do Fato e a Teoria do Avestruz, como o líder não pratica os atos executórios, sempre pode dizer que de nada sabia, casando as duas linhas de defesa. Resumindo: o agente não tinha domínio sobre o que acontecia porque não mandava ou não tinha como impedir, ao mesmo tempo, não tinha como saber de nada.

Vejamos estes argumentos à luz do informado publicamente pelo relatório da Polícia Federal. O presidente tem nominalmente o comando das Forças Armadas, é o comandante em chefe, logo, tecnicamente, nenhuma ação militar poderia ser desfechada sem sua aquiescência, mais ainda, os chamados golpistas eram membros da sua assessoria direta, ministros, generais, ajudante de ordens, políticos, divulgadores, advogados, almirantes, brigadeiros, deputados, senadores e o candidato a vice, que emplacava quase todas estas denominações.

Todos com vínculo direto e pessoal. Assim, estando em pleno exercício do seu poder de comando, torna-se o responsável pelas ações praticadas. E aqui vai uma observação o específica, dentre os golpistas esta listado o presidente do Partido Liberal, Valdemar da Costa Neto, este, por sua vez, não tinha nenhuma relação ou contato com as carreiras militares, o único vínculo do líder partidário com a esfera militar era justamente o presidente da República e desta forma somente ele poderia fazer a ligação entre ambos.

“Eu não sabia de nada” é uma frase de triste memória, evoca a justificativa e muitos alemães no pós-segunda guerra mundial quanto ao Holocausto. O historiador canadense Robert Gellately, (“Apoiando Hitler” -Editora Record, 2011) destacou que as práticas criminosas eram publicadas em jornais, discutidas claramente e que o extermínio era considerado um fato positivo, que os campos e concentração eram locais de confinamento de judeus sem ordem judicial, por força policial.

Nada era escondido

Da mesma forma que no Brasil se fizeram acampamentos pedindo o golpe, manifestações pedindo que o presidente desse o golpe (eu autorizo), marchas, preces públicas (até para um pneu), imitações de marchas militares (muito à fascista) e outras tantas crises.

Logo, o desconhecimento é uma afirmação temerária. Resta, por último, a questão da prova maldita, ou diabólica, o presidente não poderia provar que não fez, mas o raciocínio é, este sim, perverso, não se trata de provar que não fez, mas de provar que outros o fizeram sem sua concordância, o que, ao que se nos afigura, se torna muito difícil.

Existe o negacionismo climático, agora, parece, estamos defronte ao negacionismo jurídico, uma tentativa de negar o valor dos fatos. Como já anotamos, na história, deu no que deu.

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