As Súmulas 60 e 61 do STF e a assim chamada ‘judicialização da saúde’

O tema da denominada “judicialização da saúde”, aqui abordado com foco na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal (STF) tem ocupado a agenda acadêmica, judiciária, política e midiática já há muito tempo no Brasil. De meados de 1996 a meados de 2000 numa fase mais embrionária, destacaram-se os pleitos bem-sucedidos de medicamentos para portadores de HIV. No período entre 2000 e 2010 se firmou o reconhecimento da saúde como direito subjetivo público e a expansão do objeto deste direito, não mais restrito ao fornecimento de medicamentos. De 2010 em diante, o STF tem investido no estabelecimento de alguns critérios, em especial para demandas por medicamentos.

Não sendo o caso aqui de apresentar um inventário minucioso da jurisprudência da Suprema Corte sobre o direito à saúde (e o sistema de saúde como um todo), aproveita-se, contudo, para referir, em caráter ilustrativo, mas representativo da orientação atualmente prevalente, o julgamento da Suspensão de Tutela Antecipada (STA) 175, relatoria do ministro Gilmar Mendes, em 17 de março de 2010. Neste caso, embora não se tenha tratado de decisão final, já que proferido em sede de STA, confirmando decisão precária das instâncias ordinárias, foram revisitados, agregados e sistematizados importantes argumentos e critérios no que diz com a exigibilidade do direito à saúde como direito subjetivo. Em síntese, podem ser destacados os seguintes pontos:

a) o direito à saúde, na condição de direito subjetivo, assume uma dupla dimensão individual e coletiva (transindividual), cabível, portanto, sua tutela jurisdicional individual, inclusive mediante ação proposta pelo Ministério Público (cuidando-se de direito individual indisponível);

b) a responsabilidade do Estado é solidária, abrangendo todos os entes da Federação;

c) embora em regra o objeto do direito à saúde deva ser estabelecido pelos órgãos politicamente legitimados (Legislativo e Executivo), no sentido de que aos cidadãos é assegurado um acesso igualitário e universal às prestações disponibilizadas pelo SUS, em caráter excepcional, notadamente quando em causa o direito à vida com dignidade, o Estado tem o dever de disponibilizar os bens e serviços correspondentes;

d) a desproporcional afetação do sistema de saúde e o comprometimento da ordem pública (inclusive das diversas dimensões da reserva do possível) devem ser demonstrados pelo poder público;

e) há que distinguir entre medicamento novo e experimental, no sentido de que novo é o medicamento já liberado para comercialização e devidamente testado no país de origem, ao passo que medicamentos experimentais são os que ainda se encontram em fase de testes (protocolos de pesquisa) e não liberados para venda. A partir de tal distinção, o STF entendeu que o medicamento novo, ainda que não tenha sido aprovado pela Anvisa ou inserido na lista pelas autoridades da área da saúde nacionais, poderá, em caráter excepcional (v. item c, supra), ser concedido mediante ação judicial, vedada, todavia, a imposição do fornecimento de medicamento experimental, até mesmo pelo fato de não haver certeza quanto à segurança para o próprio autor da demanda.

‘Pílula do câncer’ e fornecimento de medicamentos sem registro na Anvisa

Aliás, especialmente quanto ao critério acima referido (distinção entre medicamento novo e experimental) e à necessidade, em regra, de análise e autorização pela Anvisa, calha invocar recente e paradigmática decisão do STF (ADI 5.501 MC/DF, medida liminar julgada em 19/5/2016). A referida decisão suspendeu, em sede de liminar e por maioria de votos, a eficácia da Lei 13.269/2016, que autorizava o uso do medicamento fosfoetanolamina (a “pílula do câncer”, como ficou difundido publicamente) por pacientes diagnosticados com neoplasia maligna, a despeito da inexistência de estudos conclusivos no tocante aos efeitos colaterais em seres humanos, bem como da ausência de registro sanitário perante o órgão competente.

Convém sublinhar que tal orientação, em termos gerais – no que diz com a excepcionalidade da imposição ao poder público de prestações (em especial medicamentos) não previstas no sistema de políticas públicas já praticadas (com destaque para a legislação do SUS), tem sido mantida pelo STF, que segue sendo constantemente provocado a se posicionar sobre o tema.

No RE 657.718/MG, julgado em 22/5/2019, esteve em causa a possibilidade de o poder público ser compelido ao fornecimento de medicamentos não previamente aprovados pela Anvisa. Em apertada síntese, por maioria de votos, o STF decidiu que “1. O Estado não pode ser obrigado a fornecer medicamentos experimentais. 2. A ausência de registro na Anvisa impede, como regra geral, o fornecimento de medicamento por decisão judicial. 3. É possível, excepcionalmente, a concessão judicial de medicamento sem registro sanitário, em caso de mora irrazoável da Anvisa em apreciar o pedido (prazo superior ao previsto na Lei 13.411/2016), quando preenchidos três requisitos: (i) a existência de pedido de registro do medicamento no Brasil (salvo no caso de medicamentos órfãos para doenças raras e ultrarraras); (ii) a existência de registro do medicamento em renomadas agências de regulação no exterior; e (iii) a inexistência de substituto terapêutico com registro no Brasil. 4. As ações que demandem fornecimento de medicamentos sem registro na Anvisa deverão necessariamente ser propostas em face da União”.

Note-se, ainda, que – de acordo com o STF no mesmo julgamento – em se tratando de doenças raras e ultrarraras, é possível, em caráter excepcional, que o Estado seja compelido a fornecer o medicamento independentemente do registro, porquanto também se verifica, em muitos casos, que o laboratório não tem interesse comercial em pedir o registro.

Tema 1.234 e as Súmulas 60 e 61

No caso do RE 566.471, cujo julgamento encerrou em 20/9/2024, o STF considerou que, de modo a ser possível obrigar o poder público a prover medicamentos de alto custo não incorporados ao sistema do SUS, devem estar presentes os requisitos da indispensabilidade do medicamento e da incapacidade financeira do autor e de sua família, pois há de ser demonstrado que em causa está a garantia do mínimo existencial. Exige, além disso, a demonstração da efetiva necessidade e impossibilidade de custeio pelo requerente ou familiares (em termos analógicos ao da obrigação alimentar civil), em homenagem ao princípio (e dever) de solidariedade. Ainda, no caso concreto tais requisitos foram atendidos, mas ressaltou que em regra a intervenção do Poder Judiciário nas políticas públicas deve ser mínima e excepcional.

No julgamento houve voto-vista pelo desprovimento do recurso pelo fato de, no curso da ação, o medicamento ter sido aprovado pela Anvisa e incorporado à lista de medicamentos do SUS. Mas frisou que, no caso de medicamentos não incorporados ao sistema, deverá ser observado rigorosamente, para manter o caráter excepcional de tal tipo de situações, um conjunto de critérios materiais e procedimentais. Por sua vez, outro ministro se posicionou pelo parcial provimento do RE, entendendo ser procedente a alegação do estado-membro no sentido de que não poderia ser condenado a custear sozinho o medicamento, sendo necessário que a União integre o polo passivo. Ademais disso, além de sugerir critérios (em parte distintos e complementares daqueles sugeridos pelos Ministros que o antecederam), propôs que fossem preservados os efeitos das decisões prolatadas pelas instâncias ordinárias que versem sobre questão constitucional submetida à Repercussão Geral, inclusive as sobrestadas até a data do respectivo julgamento do mérito, ainda não concluído.

Na mesma ocasião, considerando o julgamento conjunto dos dois recursos, o colegiado do STF, no RE 1.366.243, fixou, em sede de repercussão geral, a sua tese no Tema 1.234, que trata sobre os critérios de custeio dos medicamentos de alto custo ainda não incorporados pelo SUS. A partir desses julgamentos, o STF, publicou duas novas Súmulas vinculantes.

De acordo com a Súmula Vinculante n° 60“o pedido e a análise administrativos de fármacos na rede pública de saúde, a judicialização do caso, bem ainda seus desdobramentos (administrativos e jurisdicionais) devem observar os termos dos três acordos interfederativos (e seus fluxos) homologados pelo Supremo Tribunal Federal, em governança judicial colaborativa, no tema 1.234 da sistemática da repercussão geral”.

A Súmula consolida as teses definidas pelo relator, ministro Gilmar Mendes, estabelecendo que, quando for reconhecida a necessidade de fornecimento, o custeio deverá seguir os seguintes padrões: a) medicamentos não incorporados cujo custo anual unitário seja igual ou superior a 210 salários-mínimos serão custeados integralmente pela União; b) no caso de medicamentos com custo anual unitário superior a sete salários-mínimos e inferior a 210 salários-mínimos, a União custeará 65% do valor; e c) em se tratando de fármacos oncológicos não incorporados o percentual de ressarcimento será de 80% se o custo for superior a sete salários-mínimos.

Já nos termos da Súmula 61, “a concessão judicial de medicamento registrado na Anvisa, mas não incorporado às listas de dispensação do Sistema Único de Saúde, deve observar as teses firmadas no julgamento do Tema 6 da Repercussão Geral (RE 566.471)”. Note-se que de acordo com as teses estabelecidas no Tema 6, o fornecimento de medicamentos mediante ordem judicial somente será possível quando satisfeitos, cumulativamente, os seguintes requisitos: a) negativa administrativa de fornecimento do medicamento pelos canais oficiais do SUS; b) demora na apreciação ou ausência de pedido de incorporação na Conitec; c) impossibilidade de substituição terapêutica; d) comprovação de eficácia e segurança do medicamento por ensaios clínicos randomizados e revisões sistemáticas ou meta-análises; e) imprescindibilidade clínica, demonstrada por laudo médico detalhado que ateste por que o medicamento é essencial para o paciente; e f) comprovação pelo paciente de que não tem condições financeiras de arcar com os custos do medicamento.

Caminho do meio

À vista do exposto, é possível afirmar que os critérios que têm sido estabelecidos pelo STF, asseguram, em princípio, uma orientação mais sólida para os demais juízes e tribunais e tornam (ou pelo menos assim o deveriam) suas decisões em geral mais solidamente fundamentadas, previsíveis e controláveis. Tais aspectos representam um ganho substancial, mas não necessariamente implicam redução do número de ações e nem mesmo afastam a correção de parte das críticas que têm sido esgrimidas em relação à judicialização da saúde.

Registre-se, outrossim, que as objeções/críticas referidas não afastam a possibilidade de se pleitear em juízo a satisfação de bens e serviços destinados a salvaguardar o direito à saúde, mesmo nos casos de medicamentos não incorporados ao SUS e/ou não aprovados pela Anvisa, mas apontam para a necessidade de contínua reflexão e aperfeiçoamento de critérios e instrumentos. De especial relevância são medidas (de todos os atores públicos, mas também da sociedade civil) destinadas a combater a má governança, incluindo a corrupção, o desperdício, a falta de racionalização e de planejamento, o financiamento insuficiente, a falta de informações adequadas e de transparência, entre outros fatores, sem o que uma efetividade desejável do direito à saúde (aliás, de todos os direitos fundamentais) não será jamais – com ou sem atuação do Poder Judiciário – alcançada.

Não seria realista, ao fim e ao cabo, querer a absoluta eliminação das intervenções do Judiciário, mas também não se revelaria razoável apostar em uma política de saúde corrigida e guiada substancialmente por decisões judiciais. O amadurecimento da jurisprudência, por meio do reconhecimento gradual de critérios para a concessão ou denegação de pleitos, demonstra o acerto da opção por um caminho intermediário, de natureza prudencial, que simultaneamente assegure a primazia dos poderes Legislativo e Executivo na matéria, mas que não esvazie o relevante papel do Poder Judiciário, em particular aqui do STF, como guardião da Constituição e dos direitos fundamentais. Nessa perspectiva, parece correto – ao menos é o que se sugere – que as Súmulas 60 e 61, representam um avanço importante para que a judicialização da saúde se torne cada vez mais “saudável”.

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Inconstitucionalidade da alíquota única de 25% de IR sobre aposentadorias de residentes no exterior

Não é incomum encontrar, na Justiça Federal, ações propostas por cidadãos brasileiros que recebem aposentadorias ou pensões e que, por residirem no exterior, ficam sujeitos à retenção de imposto de renda à alíquota de 25% (tributação exclusiva na fonte).

Nessas demandas, eles alegam que tal alíquota única acarreta violação aos princípios da isonomia tributária e da progressividade do referido imposto. Então, postulam o afastamento da exação fiscal, quando o valor recebido se situa na faixa de isenção, ou que seja garantido o respeito à tabela progressiva do imposto, com a restituição dos valores indevidamente retidos.

O artigo 7º da Lei nº 9.779/99, que teve sua redação alterada pela Lei nº 13.315/16, dispõe o seguinte:

“Os rendimentos do trabalho, com ou sem vínculo empregatício, de aposentadoria, de pensão e os da prestação de serviços, pagos, creditados, entregues, empregados ou remetidos a residentes ou domiciliados no exterior, sujeitam-se à incidência do imposto de renda na fonte à alíquota de 25% (vinte e cinco por cento)”.

Entendimento dos TRFs e da TNU

Chamados a julgar esse tipo de conflito entre contribuintes e Estado Fiscal, os Tribunais Regionais Federais consideraram constitucional e legal a retenção de 25% de IR sobre os rendimentos recebidos por contribuintes domiciliados no exterior. A propósito:

“CONSTITUCIONAL E TRIBUTÁRIO. INCIDENTE DE ARGUIÇÃO DE INCONSTITUCIONALIDADE. ART. 7º DA LEI Nº. 9.779/99 COM A REDAÇÃO DADA PELA LEI Nº 13.315/16. IMPOSTO DE RENDA SOBRE RENDIMENTOS OU PROVENTOS DE APOSENTADORIA RECEBIDOS POR RESIDENTES OU DOMICILIADOS NO EXTERIOR. REJEIÇÃO DO INCIDENTE. (…) 2. Caso em que o acórdão da Quarta Turma, entendendo ser inconstitucional o art. 7º da Lei nº. 9.779/99, com a redação dada pela Lei nº 13.315/17, deliberou submeter a questão ao Plenário desta Corte. (…) 4. Não há qualquer laivo de inconstitucionalidade na norma em apreço. Primeiramente, o fato do tributo em testilha não ser progressivo, mas fixado objetivamente em 25% não representa qualquer incompatibilidade com a Constituição Federal. Com efeito, a legislação pátria é prenhe de exemplos de alíquotas fixas, como o lucro incidente sobre a venda de imóveis. Em segundo lugar, não há falar em desproporcionalidade do tributo, afinal, o percentual de 25% é menor que o próprio percentual de 27,5% da última faixa da alíquota normal de imposto de renda, não configurando patamar confiscatório. Por último, ressalte-se que os rendimentos pagos no exterior não são revertidos em proveito do país, o que por si só justifica o tratamento legal diferenciado dado pela norma ora em debate. 5. Equivocada é a pretensão de ver declarada a inconstitucionalidade da norma examinada em face das circunstâncias particulares do caso concreto (contribuinte pobre e proventos equivalentes a um salário mínimo) dado que o incidente em análise deve ser resolvido em tese, desvinculado de qualquer cenário específico, restrito à aferição da compatibilidade da norma hostilizada com a Constituição. (…) 6. Arguição de inconstitucionalidade rejeitada” (TRF da 5ª Região. Apelação cível nº 08119635420164058400. Relator: desembargador federal: Paulo Roberto de Oliveira Lima. Data do julgamento: 30/01/2019).

“TRIBUTÁRIO. IMPOSTO DE RENDA. PESSOA FÍSICA. DOMICÍLIO NO EXTERIOR. ART. 7º DA LEI Nº 9779/99. CONSTITUCIONALIDADE. 1. Conforme o entendimento desta Corte, é legítima a retenção na fonte de imposto de renda sobre os rendimentos recebidos por contribuinte domiciliado no exterior, à alíquota de 25%, na forma do art. 7º da Lei nº 9.779/99. 2. Aos contribuintes maiores de 65 (sessenta e cinco) anos domiciliados no exterior é inaplicável a parcela de isenção do imposto de renda prevista no art. 6º, XV, da Lei nº 7.713/88, pois as disposições da referida Lei referem-se apenas aos rendimentos recebidos por pessoas físicas domiciliadas no Brasil. Precedentes” (TRF-4, AC 5016729-78.2021.4.04.7001, 2ª Turma. Relator: desembargador federal Eduardo Vandré Oliveira Lema Garcia, Data do julgamento: 16/3/2023).

Nessa mesma linha se posicionou a Turma Nacional de Uniformização dos Juizados Especiais Federais, que fixou o entendimento de que, a partir da vigência da Lei nº 13.315/2016, que modificou a redação do artigo 7º da Lei nº 9.779/99, “os rendimentos de aposentadoria e pensão pagos, creditados, entregues, empregados ou remetidos a residentes ou domiciliados no exterior, sujeitam-se à incidência do imposto de renda na fonte à alíquota de 25% (vinte e cinco por cento)” (TNU. Pedilef nº 0008253-71.2017.4.03.6301. Relator: juiz federal Jairo da Silva Pinto. Data do julgamento: 1/9/2021).

Inconstitucionalidade

Em maio de 2021, o assunto chegou ao Supremo Tribunal Federal por meio do ARE nº 1.327.491, e, em outubro daquele ano, foi reconhecida a repercussão geral da questão constitucional suscitada, acarretando o surgimento do Tema 1.174 (relator: ministro Dias Toffoli) com o seguinte objeto: “Incidência da alíquota de 25% do imposto de renda exclusivamente na fonte, sobre as pensões e os proventos de fontes situadas no país, percebidos por pessoas físicas residentes no exterior”.

No dia 18/10/2024, a Corte Suprema concluiu o julgamento da matéria e firmou a seguinte tese: “É inconstitucional a sujeição, na forma do art. 7º da Lei nº 9.779/99, com a redação conferida pela Lei nº 13.315/16, dos rendimentos de aposentadoria e de pensão pagos, creditados, entregues, empregados ou remetidos a residentes ou domiciliados no exterior à incidência do imposto de renda na fonte à alíquota de 25% (vinte e cinco por cento)”.

O julgamento do STF é mais do que acertado. Quando se elabora ou discute uma forma de imposição tributária, a capacidade tributária deve ser o principal critério a ser levado em consideração para eventuais tratamentos distintos entre contribuintes. Na hipótese em discussão, ficou claro o equívoco do legislador, que ignorou o princípio da progressividade fiscal, inerente a esse tipo de imposto (art. 153, III, e § 2º, I, da CF/1988), e elegeu o local de residência do contribuinte (território nacional ou exterior) como motivo para o discrímen, estabelecendo uma tributação exclusiva na fonte, com uma alíquota única de 25%.

O critério geográfico de residência não deveria ter sido invocado para justificar tratamento discriminatório, acentuadamente gravoso, ao aposentado ou pensionista contribuinte que opta por residir no exterior (artigo 19, III, e artigo 150, II, da CF/1988). É verdade que, do ponto de vista jurídico, não se pode dizer que estão em situação similar um contribuinte residente no país e outro domiciliado no exterior, pois não se encontram eles na mesma situação fiscal, vivendo em países diversos. Entretanto, sem embargo disso, a regra questionada é inconstitucional por violar o postulado da progressividade tributária.

A Constituição Federal de 1988 dispõe que o IR “será informado pelos critérios da generalidade, da universalidade e da progressividade, na forma da lei” (artigo 153, III, e § 2º, I). Segundo Eduardo Sabbag [1]“a progressividade do IR prevê a variação positiva da alíquota do imposto à medida que há aumento de base de cálculo”. Assim, como a norma atacada não observa esse critério, estabelecendo uma alíquota única (e não alíquotas diferentes e graduadas), o STF agiu bem ao reconhecer sua inconstitucionalidade.

Carga sem justificativa

Apontando a violação de princípios constitucionais (capacidade contributiva, isonomia progressividade, proporcionalidade e não confisco), o relator do caso em nossa corte máxima de justiça, ministro Dias Toffoli [2], entendeu haver, na situação, uma carga tributária efetiva muito elevada, sem justificativa razoável:

“(…) o imposto de renda é severamente mais gravoso em relação aos aposentados e pensionistas residentes no exterior atingidos pelo art. 7º da Lei nº 9.779/99, com a redação conferida pela Lei nº 13.315/16. Ressalte-se, ainda, que o fato de o contribuinte residir no exterior, por si só, não revela ser ele detentor de maior capacidade econômica do que aquele que aqui reside e recebe aposentadoria ou pensão”.  Eles “(…) ficam sujeitos a uma única e elevada alíquota de 25% incidente sobre a totalidade dos rendimentos de aposentadoria ou pensão, sem poderem, ademais, realizar qualquer dedução.”

Enfim, ainda que as regras-matrizes do IR possam ser organizadas em grupos diferentes (IR-Antecipação, IRF-Exclusivo, IR-Definitivo, IR-Mensal e IR-Anual) [3], em todas elas devem se garantir o respeito ao princípio da progressividade fiscal. Se as instâncias inferiores não fizeram a melhor leitura do problema e não entregaram a solução mais adequada, o STF agora o fez, bem cumprindo o seu papel, como espera a sociedade.


[1] SABBAG, Eduardo. Manual de Direito Tributário. 9. ed. São Paulo: Saraiva, 2017, p. 210.

[2] Voto disponível em: https://www.conjur.com.br/wp-content/uploads/2024/10/6298465.pdf. Acesso em: 21/10/2024.

[3] NOGUEIRA, Julia de Menezes. Imposto de Renda na Fonte. São Paulo: Quartier Latin, 2007, p. 186.

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Exportação, importação e desarmonia de conceitos legais

Uma das patologias que torna o nosso sistema tributário um dos mais complexos do mundo é a desarmonia de conceitos utilizados nas suas normas, associada à polissemia de expressões empregadas pelo legislador.

Conteineres, mercadorias, importação, exportação, logística

São incontáveis as divergências e os litígios daí advindos. O desperdício de tempo, recursos e energia para navegar nesse cipoal é incomensurável. E nem o tempo é capaz de curar essas feridas. Por vezes, polêmicas resolvidas há décadas, repentinamente ressurgem como verdadeiras assombrações de uma sequência de um filme de terror “trash”.

 

No que se refere à tributação de transações com o exterior, dois exemplos são marcantes: (1) a desarmonia quanto ao conceito de exportação de serviços; e (2) a imprecisão de regras para definição do destino da importação de bens e serviços.

O objetivo aqui é mirar o futuro e examinar se estamos caminhando bem ou mal na regulamentação da reforma tributária, à luz do texto do Projeto de Lei Complementar nº 68/2024 aprovado pela Câmara dos Deputados e sob a revisão do Senado.

Com relação às importações de mercadorias, já pudemos demonstrar [1], juntamente com Tatiana Caroline de Mesquita, o quanto oscilou a jurisprudência do Supremo Tribunal ao discutir qual o sujeito ativo do ICMS em importações diretas e indiretas.

Interpretação de conflitos na lei

Encontramos ao menos quatro ciclos de interpretação do texto constitucional pelo STF, até se chegar ao tema de repercussão geral nº 520, no qual se reconheceu que a legislação complementar é insuficiente, havendo ainda hipóteses de conflito não resolvidas [2]. E isto porque a Lei Complementar nº 87/1996 “disse menos do que deveria” ao regulamentar o artigo 155, § 2º, inciso IX, alínea ‘a’, da Constituição.

Olhando para o texto atual do PLP 68, encontramos no seu artigo 68 que, para efeitos do IBS e da CBS sobre as importações de bens materiais, o local da importação corresponderá: (1) ao local da “entrega” dos bens ao “destinatário final”; (2) ao “domicílio principal” do adquirente de mercadoria entrepostada; ou (3) ao local onde ficou caracterizado o extravio.

O artigo 11, no seu inciso I, define que se considera local da operação o local da “entrega” ou da “disponibilização” do bem ao destinatário.  Para esse fim, o § 1º diz que:

(1) no caso de operação não presencial, considera-se como local da entrega ou disponibilização do bem ao “destinatário”, o destino final indicado pelo “adquirente”: (1.1) ao fornecedor, caso o serviço de transporte seja de responsabilidade do fornecedor; ou (1.2) ao terceiro responsável pelo transporte, caso o transporte seja por conta do adquirente;

(2) se a operação envolver a aquisição de veículo automotor, o local da entrega será o local do “domicílio principal” do destinatário; e

(3) se o bem material for adquirido em licitação/hasta pública ou for encontrado em situação irregular por falta de documentação fiscal idônea, o local da “entrega” ou “disponibilização” será aquele em que o bem for encontrado.

Já o § 3º do artigo 11 traz definições detalhadas de que se considera como local do “domicílio principal” do destinatário:

(1) o local constante do cadastro do destinatário como contribuinte de IBS/CBS, devendo esse corresponder: (1.1) no caso de pessoa física, ao local da sua habitação permanente ou, se inexistente ou havendo mais de uma habitação permanente, o local onde as suas relações econômicas forem mais relevantes; e (1.2) para as pessoas jurídicas ou entidades sem personalidade jurídica, o local de cada estabelecimento para o qual seja fornecido o bem;

(2) na hipótese de destinatário não cadastrado, o local que resultar da combinação de ao menos dois dos seguintes critérios, à escolha do fornecedor, desde que não conflitantes: (a) endereço do destinatário declarado ao fornecedor; (b) endereço do destinatário obtido por coleta de outras informações comercialmente relevantes no curso da execução da operação; (c) endereço do adquirente constante do cadastro do arranjo de pagamento usado na operação; e (d) endereço do IP do dispositivo utilizado para a contratação ou obtido por emprego de geolocalização; e

(3) residualmente, o endereço do destinatário declarado ao fornecedor.

Como se vê, o texto do PLP 68 é muito mais detalhado do que a LC 87, o que reforça a conclusão sobre a fragilidade da legislação atual relativa ao ICMS.  Ainda assim, há pontos obscuros relevantes, em especial quando à ausência de definição do conceito de “destinatário final” empregado no artigo 68, como bem apontado por Renata Amarante Bardella [3].

Além de o artigo 3º, do PLP 68, trazer apenas a definição de “destinatário”, sem qualificar quando seria ele “final”, é notável que “destinatário” e “adquirente” (incisos IV e V) são coisas distintas. E tal distinção poderá trazer dificuldades quando se estiver diante uma importação indireta.

Quem é o importador

Com efeito, o parágrafo único do artigo 72 faz referência somente à importação por conta e ordem de terceiros, para ali definir que “o importador… é o adquirente”. Nada diz sobre a importação por encomenda, sendo que, no seu inciso I, estabelece que o importador é “qualquer pessoa que promova a entrada de bens materiais de procedência estrangeira no território nacional”.

Segundo o artigo 68, o local da importação é determinado pela “entrega” do bem ao “destinatário final”, mas o contribuinte do IBS e da CBS é aquele que promove a “entrada” no território nacional ou, no caso específico da importação por conta e ordem, o “adquirente” do bem de procedência estrangeira.  Talvez seja o caso de rever a redação desses dispositivos e contemplar também disposições explícitas para tratar da importação por encomenda.

Agora voltemos os nossos olhos para as operações com serviços e bens imateriais.

Até hoje, é notável a imprecisão da Lei Complementar nº 116/2003 quanto à incidência do ISS na importação de serviços e à desoneração das exportações.

Tentando interpretar, de modo harmônico, os artigos 1º, § 1º, e 2º, inciso I e parágrafo único, é possível extrair que: (i) o serviço é importado quando a sua execução for proveniente ou iniciada no exterior, mas o seu “resultado” se verificar no Brasil; (ii) o serviço é exportado quando a sua prestação provier ou for iniciada no Brasil, com a verificação do seu “resultado” no exterior; (iii) se for integralmente executado no exterior e ali também se verificar o seu resultado, tratar-se-á de serviço alheio à competência tributária brasileira; e (iv) se for integralmente executado no Brasil e aqui se verificar o resultado, tratar-se-á de serviço prestado internamente e sujeito normalmente à incidência do ISS.

Competência para o ISS

A competência tributária ativa para se exigir o ISS na importação pode ser extraída, indiretamente, da dúbia definição de “responsável” prevista no artigo 6º, § 2º, na qual se afirma que será considerado como tal o tomador ou o intermediário de serviço.

Tendo o serviço sido tomado por uma pessoa em um município, com intermediação de outra pessoa situada noutra cidade, de quem será a competência para exigir o ISS?  A competência é determinada pela residência, pelo domicílio, pelo local do estabelecimento do tomador ou do intermediário?  Ou pelo local do resultado do serviço?

Passados mais de 20 anos, não há respostas claras para essas perguntas.

Já com relação às exportações, a falta de clareza sobre o conceito de “resultado” é gritante e se reflete nas três linhas de interpretação adotadas na jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça: resultado como sinônimo da própria atividade [4]; resultado como utilidade [5]; e resultado como consumo [6].

Não bastasse isso, somos obrigados critérios arbitrários criados pelas administrações municipais, a exemplo do que é feito no Parecer Normativo nº 4/2016, da Secretaria de Fazenda paulistana, obedientemente aplicado pelo Conselho Municipal de Tributos e criticado com consistência e fundamentação no Parecer Normativo Cosit nº 1/2018, da Secretaria da Receita Federal.

Também é notável a falta de harmonização dos conceitos de exportação relativos ao ISS e às contribuições PIS/Cofins-importação, especialmente com a questão do local de onde provém o pagamento, o que é irrelevante para o ISS (artigo 2º, parágrafo único, da LC 116), mas determinante para as duas contribuições (artigos 6º, inciso II, da Lei nº 10.833/2003, e 5º, inciso II, da Lei nº 10.637/2002).

Incertezas em relação ao PLP 68

Olhando para o futuro e para o PLP 68, então, pode-se esperar ainda muitas incertezas, seja para identificar quando haverá exportação fora do alcance do IBS e da CBS, seja para determinar o destino da importação do serviço ou do bem imaterial tributado.  Lado a lado, as operações de exportação e importação são assim tratadas no texto atual do projeto:

 

 

 

Ainda há regras diferenciadas para alguns serviços sujeitos a regimes específicos de incidência do IBS e da CBS, com destaque para a fórmula simplificadora de qualificação da exportação no caso dos artigos 226, 244 e 295, onde os tributos são afastados quando o serviço for prestado a residente ou domiciliado no exterior.  Ainda assim, sem clareza se se está referindo ao destinatário ou ao adquirente do serviço ou bem imaterial.

Todas essas regras, como se nota, repousam sobre um amplo leque de conceitos indeterminados, o que poderá trazer um enorme custo para que possam ser interpretadas e aplicadas sem conflitos entre as partes da relação jurídico-tributária.  Se hoje, em matéria de ISS, esses conflitos seguem não solucionados quanto ao conceito de “resultado”, imagine-se o que nos aguarda quando discutirmos as expressões “utilização”, “exploração”, “aproveitamento”, “fruição” e “acesso”, para saber se o consumo do serviço ou do bem imaterial ocorre no Brasil ou no exterior.

Caracterização do consumo

Por fim, não se pode deixar de notar a dessintonia entre esses elementos caracterizadores do consumo do bem imaterial ou do serviço, em comparação às normas do artigo 11, segundo o qual se considera como local da operação, no caso de:

(1) serviço prestado fisicamente sobre a pessoa física ou fruído presencialmente por pessoa física: o local da prestação do serviço;
(2) serviço de planejamento, organização e administração de feiras, exposições, congressos, espetáculos, exibições e congêneres: o local do evento a que se refere o serviço;
(3) serviço prestado fisicamente sobre bem móvel material e serviços portuários: o local da prestação do serviço;
(4) serviço de transporte de passageiros: o local de início do transporte;
(5) serviço de transporte de carga: o local da entrega ou disponibilização do bem ao destinatário;
(6) serviço de exploração de via, mediante cobrança de valor a qualquer título, incluindo tarifas, pedágios e quaisquer outras formas de cobrança: o território de cada Município e Estado, ou do Distrito Federal, proporcionalmente à correspondente extensão da via explorada;
(7) serviço de telefonia fixa e demais serviços de comunicação prestados por meio de cabos, fios, fibras e meios similares: o local de instalação do terminal; e
(8) demais serviços e demais bens móveis imateriais, inclusive direitos: o local do domicílio principal do destinatário.

O local do “consumo” do serviço ou bem imaterial deve coincidir com o “local da operação”?  Se for isso, na hipótese residual referida no item (8) acima, o local do “consumo” equivalerá ao local do domicílio principal do destinatário, utilizando-se para tanto as regras do artigo 11, § 3º?

São perguntas para as quais o Senado talvez deva voltar a sua atenção ao rever o texto aprovado na Câmara, para quiçá simplificar e harmonizar os conceitos empregados e, com isso, tornar mais clara a futura submissão de importações e exportações aos novos tributos criados na reforma.

 


[1] Sujeito ativo do ICMS-Importação: repercussões do Tema nº 520/STF.  Revista Fórum de Direito Tributário – RFDT.  Belo Horizonte, ano 18, n. 107, p. 53-84, set./out. 2020.

[2] Dentre elas: a importação por pessoa física não contribuinte, com mais de uma residência, em mais de uma Unidade da Federação; e a importação por pessoa jurídica não contribuinte, de itens de uso e consumo, destinados a estabelecimentos situados em diferentes pontos do território nacional ou a funcionários residentes em diferentes Unidades da Federação, com entrega direta do exterior mediante regime de courier.

[3] IBS-Importação: insuficiência do PLP 68 para dirimir conflitos de competência.  Consultor Jurídico, 15 de agosto de 2024.  Disponível em https://www.conjur.com.br/2024-ago-15/ibs-importacao-insuficiencia-do-plp-68-para-dirimir-conflitos-de-competencia/.

[4] Recurso Especial nº 831.124-RJ (1ª Turma, Rel. Min. José Delgado, j. em 15.8.2006) e Recurso Especial nº 2.075.903-SP (2ª Turma, Rel. Min. Francisco Falcão, j. em 8.8.2023).

[5] Agravo em Recurso Especial nº 587.403-RS (1ª Turma, Rel. Min. Gurgel de Faria, j. em 18.10.2016), Agravo Interno no Agravo em Recurso Especial nº 1.446.639-SP (2ª Turma, Rel. Min. Mauro Campbell Marques, j. em 19.9.2019), Agravo em Recurso Especial nº 1.150.353-SP (1ª Turma, Rel. Min. Gurgel de Faria, j. em 4.5.2021), Agravo Interno no Recurso Especial nº 1.996.935-SP (1ª Turma, Rel. Min. Benedito Gonçalves, j. em 26.9.2022), Agravo Interno no Agravo em Recurso Especial nº 1.931.977-RS (1ª Turma, Rel. Min. Benedito Gonçalves, j. em 29.8.2022) e Agravo em Recurso Especial nº 2.039.633-SP (2ª Turma, Rel. Min. Herman Benjamin, j. em 06.6.2023).

[6] Recurso Especial nº 1.805.226-SP (1ª Turma, Rel. Min. Sérgio Kukina, j. em 19.11.2021).

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Niilismo jurídico à brasileira

O direito pressupõe uma premissa fundamental. Deve existir uma norma que vincule o modo de decidir do juiz. É necessário que exista um texto o qual, ainda que passível de diferentes interpretações, estabeleça condicionantes prévias que necessariamente vinculam o conteúdo das decisões judiciais.

O juiz forma suas decisões, necessariamente, olhando para este texto. Não pode decidir de acordo com sua vontade, de acordo com sua visão a respeito da melhor decisão para o caso.

Mais do que isso. Os juízes, em uma democracia, devem ser treinados a decidirem — se necessário — mesmo em contrariedade com suas visões de mundo, suas vontades, intenções, afetos, alinhamentos, ou mesmo ideologias. Se esta foi a determinação do direito no caso.

Não se está aqui a negar os meandros da interpretação ou da hermenêutica. É evidente que todo texto precisa ser interpretado, e que nesse processo de interpretação os sentidos construídos a partir do texto serão permeados e influenciados pelas perspectivas únicas e individuais de cada intérprete.

 

Não existe um exercício autômato de transcendência entre texto e norma. Cada texto normativo precisa ser construído e reconstruído para que se amolde ao caso concreto. No entanto, acreditar que essa interpretação do texto poderia, em tese, levar a qualquer resultado interpretativo seria defender a inviabilidade hermenêutica do próprio direito.

Niilismo jurídico

O direito que não impõe limite ao decisor é um não-direito. Um mero legitimador do poder bruto. Da força. Um niilismo jurídico o qual, muito mais comum por conveniência do que por convicção acadêmica, cada vez mais ganha adeptos no Brasil.

O novo conceito de direito haveria de assim ser enunciado: direito é aquilo que cada juiz, ao decidir, declara que o direito é. E decisão é tudo aquilo que — nesse contexto social em que estabelecido — o decisor pode decidir, sem sofrer uma sanção em concreto. Em total desapego ao texto e às normas, que passam a ter uma função meramente heurística.

Daí fica bem simples. Quanto maior o poder do juiz, maior a liberdade para se liberar das amarras do direito. E, por consequência, bibliotecas inteiras — como não é incomum de ver em lojas de decoração — são destinadas a servirem como enfeites de decisões judiciais.  A Constituição, as leis, e depois a doutrina e a jurisprudência, são mero adorno, a faceirar o comando decisório.

O juiz decide e somente depois usa sua psique, inteligência e erudição para criar um carrossel de artigos e citações destinados, apenas, a ludibriar o leitor desavisado e inocente, que ainda acredita no processo inverso. Pressupondo avec naiveté que tudo aquilo usado foi determinante para condicionar o resultado da decisão. Que aquela decisão é proveniente do modelo de Estado de direito, agora em desuso, no qual a norma limita e vincula a decisão judicial, e não o contrário.

Ledo engano. É melhor se atualizar. A fase do niilismo jurídico agora vigora. Sem prazo para acabar.

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AGU apresenta a movimentos sociais nova proposta para repactuação do acordo de Mariana

O advogado-geral da União, Jorge Messias, apresentou à comunidade de Mariana (MG), na sexta-feira (18/10), a proposta do Poder Público para repactuação do acordo pelo rompimento da Barragem de Fundão (MG), em 2015, totalizando investimentos de R$ 167 bilhões, dos quais R$ 130 bilhões serão recursos novos. A apresentação ocorreu durante reunião no auditório do Ministério da Agricultura e Pecuária, em Belo Horizonte.

Distrito de Bento Rodrigues em 2016, um ano após o rompimento da Barragem do Fundão, em Mariana (MG)
Distrito de Bento Rodrigues em 2016, um ano após o rompimento da Barragem do Fundão, em Mariana (MG) – Léo Rodrigues/Agência Brasil

Os valores deverão ser custeados pelas empresas responsáveis pelos danos causados à região da bacia do Rio Doce (Vale, BHP e Samarco). Do conjunto de investimentos previstos, R$ 640 milhões serão destinados ao fortalecimento do Sistema Único de Assistência Social (SUAS) nos municípios da Bacia do Rio Doce. Já a saúde coletiva será contemplada com R$ 12 bilhões, sendo que R$ 3,6 bilhões serão destinados à infraestrutura e equipamentos.

Também foram destacados R$ 7,09 bilhões às ações previstas para a retomada econômica. Entre outros pontos, constam ainda, na nova proposta de repactuação, auxílio financeiro de R$ 1 bilhão às mulheres que foram vítimas de discriminação de gênero durante o processo reparatório; R$ 17,8 bilhões para projetos socioambientais dos Estados; R$ 11 bilhões para um amplo programa de saneamento básico; e R$ 4,6 milhões para recuperação de rodovias, como a BR-262 e BR-365.

O montante total dos investimentos é quatro vezes maior do que os R$ 37 bilhões que as empresas afirmam já ter gasto por meio da Fundação Renova, criada para reparar os impactos negativos causados pelo rompimento da barragem.

“Viemos de forma respeitosa dialogar com os movimentos sociais. Eles precisam ser ouvidos e terem seus pleitos contemplados. Apresentamos um conjunto de investimentos que serão feitos e que vão atender e transformar profundamente a região. Tratamos de olhar em primeiro lugar para as pessoas, em segundo lugar para o meio ambiente e em terceiro lugar para um programa de retomada econômica na região. A repactuação fará uma transformação de verdade na vida das pessoas” disse o advogado-geral da União, Jorge Messias.

Pela nova proposta, parte das obrigações relativas à reparação pela tragédia passa ao Poder Público (União, estados de Minas Gerais, Espírito Santo e municípios), que implementarão ações e programas em prol dos atingidos e para reparar o meio ambiente na região da bacia do Rio Doce com os recursos que serão repassados pelas empresas. Essas últimas permanecem com a obrigação de implementar medidas diversas de caráter reparatório. Dentre elas estão a de finalizar reassentamentos, implantar sistema indenizatório para parte dos atingidos que não conseguirem comprovar documentalmente os danos sofridos, retirar rejeitos, recuperar a floresta nativa e nascentes na Bacia do Rio Doce, dentre outras.

Participantes

Participaram da reunião membros da sociedade civil, representantes dos movimentos sociais organizados, Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB) e os próprios atingidos da bacia do Rio Doce.

Pelo governo federal, além do advogado-geral da União, participaram do encontro o ministro da Secretaria-Geral da Presidência da República, Márcio Macedo; o adjunto do advogado-geral da União, Junior Fideles; e representantes do Ministério do Desenvolvimento Agrário e Agricultura Familiar, do Ministério da Saúde e do Ministério das Minas e Energia.

Os representantes dos movimentos sociais tiveram a oportunidade de avaliar os pontos apresentados e fizeram observações que serão avaliadas e poderão eventualmente integrar o acordo. Com informações da assessoria de imprensa da AGU.

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TST cita negativa de prestação e reconhece necessidade de reanálise de horas extras

Alegando negativa de prestação jurisdicional, a 1ª Turma do Tribunal Superior do Trabalho ordenou que um processo retorne à segunda instância para que as horas extras trabalhadas por um empregado de banco sejam devidamente recalculadas.

Tribunal Superior do Trabalho reconhece necessidade de reanálise das horas trabalhadas e anula acórdão

 

O autor juntou à ação recibos salariais e prints dos cartões de ponto que mostravam que ele fazia duas horas extras por dia durante determinado período, o que não foi levado em conta pelo tribunal de segundo grau.

No caso em discussão, o bancário alegou que, no primeiro dia na função, firmou acordo para trabalhar duas horas extras diárias, fazendo o turno das 9h às 18h. Já o banco sustentou que esse acordo foi firmado um ano depois da contratação, ou seja, ele só teria direito às horas extras pleiteadas depois desse período.

Provocado pelo autor, o tribunal regional não se pronunciou sobre os documentos que mostravam as horas extras devidas e afirmou que os recibos salariais indicados no processo não eram suficientes para comprovar suas alegações.

Ainda na decisão de segundo grau, o relator afirmou que as horas extras requeridas já haviam sido quitadas, e disse que a natureza extraordinária do recurso de revista não permite reexame das provas. O autor, então, ajuizou no TST ação de nulidade por negativa de prestação jurisdicional.

“Diante da afirmação anterior, no sentido de que não seria possível apurar a habitualidade apenas pelos recibos salariais, passou a ser crucial a resposta da Turma Regional para que o autor possa defender a tese de que, apesar da contratação formal apenas no ano seguinte, desde o início do pacto laborativo já havia pactuação de labor em oito horas diárias”, escreveu o ministro Amaury Rodrigues Pinto Junior, relator do caso na corte superior.

Silêncio total

O autor ainda rebateu o argumento de que a sede recursal escolhida não foi a correta, porque mesmo após propor embargos de declaração o referido juízo não se pronunciou sobre as horas extras.

Pinto Junior concordou com o trabalhador. “A omissão impede que o autor defenda sua tese em sede extraordinária, motivo pelo qual é suficiente para caracterizar negativa de prestação jurisdicional.”

“É necessário, portanto, que sejam expressamente extirpadas as omissões apontadas, de forma a esclarecer, nos moldes provocados nos embargos de declaração e reiterados na arguição de nulidade por negativa de prestação jurisdicional, se a jornada de trabalho consignada nos controles de frequência do período anterior ao acordo de prorrogação de jornada é, em média, das 9 às 18 horas de segunda a sexta-feira, conforme alegado pelo demandante”, escreveu o ministro.

Atuou no caso a advogada Tayane Dalazen, sócia do escritório Dalazen, Pessoa & Bresciani Sociedade de Advogados.

Clique aqui para ler a decisão
Processo TST-RR 1000713-76.2019.5.02.0012

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Juros compensatórios em indenização por área desapropriada só incidem após titularidade

A 2ª Turma do Superior Tribunal de Justiça estabeleceu que, no caso de três desapropriações requeridas entre 1974 e 1977 pela Petrobras, os juros compensatórios só devem incidir a partir de 2006, quando uma decisão resolveu a titularidade dos imóveis. A morte do proprietário levou a uma disputa judicial pela herança que durou cerca de 40 anos.

A turma julgadora também estabeleceu o patamar de 6% ao ano para os juros compensatórios, nos termos da decisão do Supremo Tribunal Federal na ADI 2.332 e do entendimento firmado pela 1ª Seção do STJ no julgamento da Pet 12.344, em que foram revisadas teses a respeito das desapropriações.

Os imóveis estão localizados às margens do Rio Caputera (RJ) e foram requeridos pela estatal em razão de obras complementares ao empreendimento do Terminal da Baía da Ilha Grande, em Angra dos Reis (RJ).

Somente em 22 de novembro de 2014 as três ações de desapropriação foram reunidas, com os pedidos julgados procedentes. Atualizado o montante devido e subtraído o depósito referente à oferta inicial da expropriante, de R$ 30 milhões, o valor da indenização ficou estipulado em R$ 27.354.891,25, corrigido desde a data da sentença.

O juízo estabeleceu os juros compensatórios em 12% ao ano, a partir de 30 de março de 1977, e os honorários foram fixados em 5% da diferença arbitrada. Os valores foram mantidos pelo Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, o que levou à interposição do recurso especial pela Petrobras no STJ.

Momento de incidência

Para o relator, ministro Francisco Falcão, a estatal tem razão ao questionar o momento em que passam a incidir os juros compensatórios. Segundo explicou, esses juros têm por objetivo a reposição da perda do rendimento que o capital propiciaria ao seu proprietário, devendo, portanto, incidir a partir do momento em que foi resolvida a discussão sobre a titularidade dos imóveis.

O ministro verificou que também deve ser alterada a taxa dos juros compensatórios, em razão do julgamento da ADI 2.332. Na decisão, o STF declarou a constitucionalidade dos parágrafos 1º e 2º do artigo 15-A do Decreto-Lei 3.365/1941, que trata do percentual de juros de 6% ao ano para remuneração do proprietário pela imissão provisória do ente público na posse de seu bem.

Falcão destacou que, a partir desse julgamento, a 1ª Seção do STJ revisou algumas teses sobre desapropriações para se adequar ao entendimento do STF.

Honorários e valor em juízo

Falcão também lembrou que a 1ª Seção, em julgamento sob o rito dos repetitivos, firmou o entendimento de que os honorários advocatícios em desapropriação devem respeitar os limites de 0,5% e 5% estabelecidos no parágrafo 1º do artigo 27 do Decreto-Lei 3.365/1941.

No caso, o ministro ponderou que, embora os honorários tenham sido fixados dentro do limite legal, o alto valor da base de cálculo torna a verba excessiva, devendo o percentual ser alterado para 3%.

Por fim, o relator analisou qual o momento em que os R$ 30 milhões já depositados em juízo pela Petrobras devem ser considerados para a atualização do montante devido. O TJ-RJ entendeu que esse valor deveria ser considerado apenas no pagamento final — ou seja, posteriormente à incidência dos juros compensatórios sobre o valor integral da indenização fixado na sentença.

Na avaliação do ministro, esse depósito deve ser considerado “pagamento prévio” e deduzido no momento de seu aporte, em 11 de março de 2015, para que os juros compensatórios incidam a partir daí apenas sobre a diferença não depositada e ainda devida. Com informações da assessoria de imprensa do STJ.

REsp 1.645.687

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Nulidade de interrogatório no Júri: renovação apenas do ato ou de toda a instrução?

Partamos de uma hipótese e da consequente indagação: se reconhecida a nulidade do interrogatório no Tribunal do Júri, por ter sido o réu impedido de responder parcialmente às perguntas, deve-se anular todos os atos da sessão ou somente o referido interrogatório?

De maneira bem direta, a anulação somente do interrogatório acarretará sua renovação, mas perante um conselho de sentença diferente daquele perante o qual foi realizada a produção da prova testemunhal da sessão de julgamento anterior, criando a curiosa, mas também ilegal oportunidade, de sete pessoas leigas julgarem com base em prova oral não produzida em suas presenças.

Esta hipótese é objetável porque a sessão de julgamento é una e os jurados que votam os quesitos — que também prestam compromisso de agir com imparcialidade e de acordo com os ditames da Justiça (CPP, artigo 472) — têm de ser os mesmos que acompanham a produção da prova oral, composta pela inquirição do ofendido, se possível, testemunhas arroladas pela acusação (CPP, artigo 473), testemunhas arroladas pela defesa (CPP, artigo 473, §1º), e o interrogatório do acusado (CPP, artigo 474).

A lógica protege-nos neste ponto, já que os jurados agem também como fiscais da produção da prova oral e nesta finalidade podem requerer acareações, reconhecimento de pessoas e coisas e esclarecimento aos peritos (CPP, artigo 473, §3º), bem como fazer perguntas às testemunhas por intermédio do juiz presidente (CPP, artigo 474, §2º). Assim, é até prosaico que não pode o novo conselho de sentença, formado em nova sessão de julgamento, participar apenas da realização do interrogatório para, após os debates, votar os quesitos.

Deve este novo conselho poder exercer o direito que legalmente lhe cabe na produção da prova para, com isso, afastar o odor da parcialidade e do completo desconhecimento sobre a totalidade da prova e da causa.

Nem se argumente que diante do novo conselho de sentença poderia ser exibida, aos jurados, em áudio e vídeo, a prova produzida na sessão anterior.

Esse expediente é uma maneira dúbia e inexitosa de tentar reverter a burla procedimental, já que, como apontado, o novel conselho de sentença estaria impedido de fiscalizar a prova oral cujas audições foram realizadas na sessão anterior, prova esta que, também, estaria validando eventual condenação.

Lições da doutrina

Mittermaier ensina que como, em geral, a prova testemunhal não tem tanto crédito de per si, segue-se que a testemunha deve ser indagada “sobre o fundamento de seu conhecimento dos fatos” [1], ou seja, das razões, subjetivas e objetivas que a levaram a ter ciência do ocorrido, o que só é possível se quem indaga puder acompanhar o depoimento de quem será indagado.

Também pontifica o professor Tedesco que a convicção de quem julga a causa só pode amparar-se na prova oral prestada “em pessoa perante o tribunal [ou juiz] competente”, pois somente assim “se pode e deve-se supor que foram satisfeitas todas as prescrições indispensáveis da lei e da prudência” [2].

Aliás, a doutrina especializada de Mascarenhas Nardelli assevera que o modelo mais adequado de produção de prova oral perante os jurados é o de inquirição cruzada e direta (cross examination e direct examination) — conforme a inspiração da dinâmica anglo-americana em nossa legislação [3] — a qual só é possível se a testemunha for inquirida na presença de quem for lhe julgar e em tempo real.

Consequentemente, percebe-se que o contato extemporâneo dos jurados com a prova oral transforma o depoimento da sessão anterior de julgamento numa espécie de depoimento de primeira fase, já que este sim é que pode ser exibido ao júri para que conheçam do que ocorreu antes da decisão de pronúncia, contudo, veja: mesmo nesta hipótese não está dispensada a obrigatoriedade da repetição do ato testemunhal na segunda fase, ocorrida perante o conselho de sentença e não mais diante do juiz togado.

O destinatário da prova é o juiz, mas não qualquer juiz, e sim aquele que efetivamente irá julgar (CPP, artigo 399, §2º). Há, no júri, a aplicação inconteste do princípio da identidade física, pois se de acordo com a reforma de 2008 a prova a ser valorada pelo juiz é aquela produzida em contraditório, fortalece-se a regra da imediatidade, reforçando-se o sistema da oralidade [4].

Badaró, inclusive, já alertava para a correta interpretação do artigo 399, §2º, do CPP, a fim de que não parecesse haver apenas a vinculação do juiz da instrução à sentença. Diz o mestre paulista que a efetiva oralidade só será permitida, com todas as vantagens dela decorrentes, na interpretação segundo a qual “toda a instrução deve se desenvolver perante um único juiz, que deverá ser o mesmo que sentenciará o feito”.

E quando a concentração dos atos se realizar na forma de sessões consecutivas, “o princípio da oralidade exigirá que se mantenha a identidade física do juiz durante todas as sessões de julgamento, porque senão o ocorrido perante o primeiro juiz chegaria ao conhecimento do segundo somente através das peças escritas nos autos” [5].

O ministro Francisco Campos também alertava nos idos de 1939 sobre a imediatidade e identidade física na Exposição de Motivos do Código de Processo Civil: “O juiz que dirige a instrução do processo há de ser o juiz que decida o litígio. Nem de outra maneira poderia ser, pois o processo visando à investigação da verdade, somente o juiz que tomou as provas está realmente habilitado a apreciá-las do ponto de vista do seu valor ou da sua eficácia em relação aos pontos debatidos” [6].

Percebe-se que o exame direto e cruzado da prova oral, a oralidade e a imediatidade na construção probatória não são possíveis se o ato processual de inquirição da testemunha se desenvolver perante pessoas física diversa daquela que irá julgar [7] e por isso não há cumprimento do devido processo legal quando, nulificado o interrogatório no júri, renove-se apenas este ato e não toda a instrução plenária, perante o novo conselho sentença.


[1] Mittermaier, Carl Joseph Anton. Tratado da prova em matéria criminal. 5 ed. São Paulo: Campinas, 2008, p. 356.

[2] Idem, p. 360.

[3] Mascarenhas Nardelli, Marcella. A prova no tribunal do júri. 1 ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2019, p. 475.

[4] Badaró, Gustavo Henrique. Juiz natural no processo penal. 1 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014, p. 217.

[5] Idem, p. 217-218.

[6] Maya, Andre Machado. Oralidade e Processo Penal. Tirant Brasil, p. 144, 29 dez. 2020. Disponível em: <https://biblioteca.tirant.com/cloudLibrary/ebook/info/9786559080328>

[7] Maya, André Machado. Oralidade e Processo Penal. Tirant Brasil, p. 145, 29 dez. 2020. Disponível em: <https://biblioteca.tirant.com/cloudLibrary/ebook/info/9786559080328>

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Projeto que tem dois donos morre de fome? Uma análise da iniciativa parlamentar

Diz a sabedoria popular que cão que tem dois donos morre de fome. Sem uma definição clara de responsabilidades entre os donos, nenhum deles assume o dever de alimentar o animal. Ambos esperam que o outro vá alimentar o cachorro, que acaba morrendo de fome. Será que essa lógica também valeria para os projetos de lei?

A resposta é não. Já foi diversas vezes demonstrado, em vários contextos, que projetos de lei com mais de um autor têm maior probabilidade de avançaram no processo legislativo — e serem aprovados. Além disso, parlamentares que se engajam em atividades de coautoria tendem a ser mais bem relacionados e ter mais sucesso em seus objetivos (Sciarini et al., 2021; Kirkland, 2011).

Sciarini et al. (2021) demonstraram que quanto maior for o rol de autoria de um projeto, quanto maior for o número de autores, maiores as chances de esse projeto avançar no parlamento da Suíça. Os autores vão além. Demonstraram, também, que projetos com autores de diferentes partidos e diferentes correntes ideológicas (bridging strategy) têm mais chances de ser aprovados do que aqueles cujos autores são do mesmo campo político (bonding strategy).

Parlamentares que se envolvem em bridging strategies buscam apoio de colegas fora de seu partido e campo político e, por isso, criam maiores redes de contato e têm acesso a uma maior quantidade de informações do que aqueles que permanecem restritos a seu grupo político. Rede de contatos e informações são ativos cruciais para o sucesso de qualquer parlamentar. Ademais, um projeto que foi discutido por um amplo espectro político tende a representar um consenso de diferentes visões. Daí o maior sucesso tanto dos parlamentares que se engajam na busca de coautores para seus projetos quanto dos projetos frutos dessa atividade.

Essa lógica também vale para o Congresso Nacional. Em uma análise da 56ª Legislatura da Câmara dos Deputados – 2019 a 2022, demonstrei que quanto maior o número de autores de uma proposição, maiores as chances de essa proposição avançar no processo legislativo (Brito, 2023). Cada autor adicional aumenta as chances de uma proposição chegar ao Plenário da Câmara em 2,18%. Essa análise também mostra que buscar apoio de parlamentares de outros partidos é uma estratégia bastante efetiva. Cada partido adicional representado na autoria da proposição aumenta em quase 30% as chances dessa proposição chegar ao Plenário da Casa.

Portanto, tendo em vista que buscar coautoria é uma maneira de aumentar as chances de sucesso de seus projetos, é de se esperar que essa seja uma atividade frequente e que a maior parte dos projetos apresentados tenham diversos autores, certo? Errado.

Na 56ª Legislatura da Câmara dos Deputados, se considerarmos apenas as Propostas de Emenda à Constituição (PEC), Projetos de Lei (PL), Projetos de Lei Complementar (PLP), Projetos de Decreto Legislativo (PDL) e Projetos de Resolução da Câmara (PRC), foram apresentados 18.320 projetos de autoria de deputados. Destes, apenas 1.835 (aproximadamente 10%) são frutos de coautoria e têm mais de um autor [1]. E das 18.320 proposições analisadas, apenas 448 chegaram aos estágios finais de deliberação – o Plenário da Casa – até o final da Legislatura. Isso representa apenas 2.45%.

Projetos de autoria de deputados 18.320
Projetos com mais de um autor 1.835
Projetos que chegaram ao Plenário 448

Quantidade e qualidade

Parece ser um contrassenso. Proposições com mais de um autor têm maiores chances de avançarem em suas tramitações. No entanto, a grande maioria das proposições apresentadas pelas deputadas e deputados são de autoria individual. O que explica essa situação? Será que os deputados não se importam com a aprovação de seus projetos? Existe um custo muito alto para conseguir apoio às proposições?

Em um texto recente aqui neste espaço, João Trindade Cavalcante Filho apresenta uma possível resposta. Ele trata do que considera um número excessivo de proposições que são apresentadas na Câmara dos Deputados. Ainda segundo ele, a maioria é arquivada sem sequer ter sua constitucionalidade analisada no âmbito da Comissão de Constituição e Justiça.

Ele aponta como um dos motivos a ideia de que a produtividade do Legislativo se mede pela quantidade de projetos aprovados – ou apresentados. Essa ideia é reforçada pelas próprias Casas Legislativas e por “prêmios” de “especialistas” que acabam reforçando e incentivando esse comportamento. Como uma possível solução, sugere a exigência de um requisito de apoiamento mínimo para a iniciativa legislativa. O número sugerido é de um décimo da Casa.

A ideia é que a exigência de um apoiamento mínimo deve forçar os parlamentares a buscar apoio para suas proposições antes de apresentá-las. Isso deve diminuir o número de proposições e, de acordo com as análises aqui apresentadas, aumentar a probabilidade de que essas proposições avancem no processo legislativo.

No entanto, é preciso compreender quais são os incentivos que levam os parlamentares a apresentar um grande número de proposições de autoria individual? Quais são os objetivos dos parlamentares? E se, de fato, a intenção dos parlamentares não for a de aprovar essas proposições?

Um primeiro ponto importante é aquele já levantado por João Trindade: a ideia de que produtividade legislativa se mede pela quantidade de proposições. Essa é uma noção compartilhada e reforçada pelos próprios parlamentares e pelas Casas Legislativas, pela imprensa, por especialistas, e pela sociedade, de uma maneira geral. Obviamente, se o “melhor” parlamentar é aquele que apresenta mais projetos, os parlamentares possuem o incentivo de apresentar mais projetos – que não precisam sequer serem analisados.

Esse ponto levanta uma questão interessante: como avaliar a atuação de um parlamentar? É uma questão que merece um melhor aprofundamento, mas que está além do escopo deste texto.

No entanto, outros incentivos influenciam as atividades dos parlamentares. Seguindo Sciarini et al. (2021), parlamentares são atores estratégicos que perseguem três objetivos: promover boas políticas públicas por meio da definição de agenda e atividade legislativa (orientados para políticas); aumentar as chances de reeleição ao enviar sinais aos eleitores e tentar garantir ganhos eleitorais (orientados para votos); e aumentar o prestígio e a influência institucionais na Casa Legislativa (orientados para cargos).

A apresentação de proposições pode ser utilizada para atingir os três objetivos, de forma conjunta ou isolada. Algumas proposições podem servir apenas para sinalizar preferências e “mostrar trabalho” aos eleitores, com objetivos eleitorais, sem o objetivo de melhorar as políticas públicas. Portanto, o fato de grande parte das proposições não avançarem no processo legislativo não é, necessariamente, um fracasso de seus proponentes. A simples apresentação dessas proposições já cumpriu seu objetivo.

Por outro lado, as proposições que têm como objetivo promover boas políticas públicas, essas sim, precisam ser aprovadas, ou pelo menos incentivar o debate sobre o tema, para cumprir seus objetivos. Podemos supor que nesses casos os parlamentares busquem apoio para seus projetos e que isso se traduza, em alguns casos, em projetos com mais de um autor para terem maiores chances de aprovação.

No entanto, não é tarefa fácil identificar qual é o objetivo de um parlamentar ao propor um projeto de lei – se é que é possível. Ademais, se considerarmos que a apresentação de proposições é utilizada pelos parlamentares como uma maneira de alcançar seus objetivos eleitorais – ser reeleito, e que essa estratégia tem um custo quase zero para eles, podemos esperar uma grande resistência a propostas de limitação da iniciativa parlamentar individual.

E ficam os questionamentos: é legítimo, ou desejável, que o instrumento de iniciativa parlamentar seja utilizado para esses fins? É um problema os parlamentares utilizarem a apresentação de proposições como forma de enviar sinais a seus eleitores? Que outros instrumentos podem ser utilizados para sinalizar preferências aos eleitores e atingir os objetivos eleitorais dos parlamentares?

Entender melhor esses incentivos e os instrumentos disponíveis para a atividade parlamentar pode ser um caminho mais interessante do que simplesmente limitar a iniciativa parlamentar. Disponibilizar e incentivar outros instrumentos pode reduzir a necessidade da utilização da iniciativa parlamentar para objetivos meramente eleitorais. Ademais, melhorar o entendimento da atividade parlamentar e a forma como é avaliada – pelas próprias Casas, pela imprensa, pela sociedade – pode alterar os incentivos que moldam o comportamento dos parlamentares.

Enfim, esse é um tema bastante interessante e que merece mais atenção. Longe de querer apresentar soluções, esse texto tem o objetivo de levantar questionamentos.


Referências

BRITO, Daniel. Agenda Setting in the Brazilian Chamber of Deputies: Assessing the Influence of Political Parties and Legislative Member Organizations. 2023. Master’s thesis (Master of Public Policy) – Hertie School of Governance, Berlin, 2023.

Kirkland, J. H. (2011). The relational determinants of legislative outcomes: Strong and weak ties between legislators. The Journal of Politics, 73 (3), 887–898.

Sciarini, P., Fischer, M., Gava, R., & Varone, F. (2021). The influence of co-sponsorship on mps’ agenda-setting success. West European Politics, 44 (2), 327–353.

[1] Houve um problema com a coleta de dados das PECs. No banco de dados coletado, a maioria das PECs cotinha apenas o primeiro signatário. Apenas 18 PECs apresentavam os dados de todos os autores.

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Instituição e custeio suficiente do Sistema Único de Meio Ambiente

Articular e coordenar os esforços de combate às mudanças do clima com os demais ministérios e entes federados é um desafio tão gigantesco quanto urgente. As mudanças climáticas não são o “novo normal”, são o início de uma era dos extremos que demandam medidas e mudanças igualmente extremas na forma de planejar, articular e financiar as políticas de meio ambiente e clima.

O anúncio da criação da Autoridade Climática, com quase dois anos de atraso, é um alento após sucessivas e trágicas enchentes, como as do Rio Grande do Sul e em outras cidades, e em meio ao fogaréu que faz arder quase todo o país. Mas o Estatuto da Emergência Climática que está sendo anunciado como principal instrumento é pífio frente à magnitude do desafio. O que o referido estatuto busca fazer é tão somente antecipar, ainda que em meses, a “licença para gastar” fora do limite dos gastos primários.

Ao decretar estado de emergência e calamidade, tem-se a liberação legal para edição de créditos extraordinários. Trata-se de um paliativo mal remendado contra o arcabouço das finanças sustentáveis, o qual, na prática, torna insustentável a condução de políticas ambientais e climáticas na escala, velocidade e permanência requeridas para mitigar emissões e prevenir e reduzir os danos causados pelos extremos climáticos.

Não é viável para um país com estas dimensões continentais e de problemas econômicos e sociais – que só se agravarão com os extremos climáticos – construir uma ação articulada, permanente e contundente apoiada em sucessivas antecipações de estados de calamidade, e financeiramente egocentrada no governo federal. Os extremos climáticos serão cada vez mais diversos e intensamente sentidos nos lugares onde as pessoas vivem, em espaços profundamente marcados por desigualdades sociais, de raça e de gênero.

A necessidade de sistema único

E o estado quase permanente de calamidade não poderá ser enfrentado sem ampliação significativa de recursos finalísticos e capacidade estatais em todo o território nacional e em todos os níveis federativos. Está na hora de colocar o discurso do federalismo e da governança climáticos em prática. A Política Nacional de Meio Ambiente (PNMA) e o novo Plano Clima, prestes a ser lançado, precisam resolver o dilema da repartição de responsabilidades e recursos entre os entes. É preciso dar o passo que falta na construção interrompida da Política Nacional de Meio Ambiente, incorporando a dimensão climática junto com o equacionamento da repartição de recursos condicionada a metas estabelecidas nacionalmente e pactuadas entre todos os entes.

Precisamos de um Sistema Único de Meio Ambiente e Clima (Sumac), inspirado e aperfeiçoado a partir do arranjo construído na política de saúde. Com todos os problemas e desafios, temos uma política pública que funciona e salva vidas neste país: o Sistema Único de Saúde (SUS). E faz isso porque viabiliza que responsabilidades e recursos sejam compartilhados entre os entes federativos. No caso do meio ambiente e clima, já temos no Supremo Tribunal Federal (STF) a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) nº 760 e a Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão (ADO) nº 54, as quais estabelecem a vedação ao contingenciamento e a obrigação de destinação de recursos orçamentários suficientes para o enfrentamento da crise climática. Essas decisões são base para que possamos ter um planejamento ambiental e climático com pactuação federativa, capaz de ser implementada efetivamente e estruturalmente.

Não podemos enfrentar esses eventos extremos sem uma política ambiental e climática tão ampla quanto profunda, que esteja pautada na ciência, na fina capacidade de coordenação e cooperação, na divisão de responsabilidades e de recursos. Uma política capaz de fiscalizar e punir, mas também de prever extremos e se antecipar a eles, de regular atividades poluentes e impactantes, de incentivar a preservação e, não menos importante, de mudar mentes incendiárias.

Não serão os créditos extraordinários abertos em Brasília, com a segurança jurídica do Estatuto da Emergência Climática, que resolverão os dilemas da construção interrompida de uma Política Nacional de Meio Ambiente e Clima, cuja fragilidade nos colocou onde estamos, sem ar para respirar.

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