Contribuições pontuais para celeridade do processo de insolvência

É voz corrente nas lides envolvendo processos de insolvência a questão da delonga na tramitação e na resolução desses feitos, pois nem sempre atingem o escopo a contento; não se consegue, com êxito e rapidez, a satisfação da massa falida subjetiva e/ou o soerguimento da atividade do devedor em crise.

Muitas vezes essa delonga se justifica quando o concurso instaurado diz respeito à sociedade empresária de largo espectro ou grupo de sociedades, nos conglomerados que se espraiam extramuros; nessas situações contendo interesses multifacetados, dispersos por diversas localidades, inclusive no exterior, nem sempre é possível imprimir a celeridade desejada, nada obstante a lei de regência enfatize esse objetivo (artigo 75, inciso II e parágrafo 1º 2º e artigo 189-A, ambos da Lei nº 11.101/2005) [1]

Com esse propósito, algumas das alterações constantes da Lei nº 14.112/2020 vieram reforçar o anseio para a célere resolução das demandas de insolvência.

Como aqui não há palco para esmiuçar essas alterações, somente poucos dispositivos serão ressaltados, não só da modificação promovida pela Lei nº 14.112/2020, mas outros que já vigoravam na Lei nº 11.101/2005 desde 9 de junho de 2005, e que buscam abreviar a resolução dos processos de insolvência, apesar de esquecidos amiúde.

Pretende-se trazê-los à baila como sugestão aos militantes da área; alguns mecanismos estão explícitos, enquanto outros se verificam reflexamente.

Antes de enunciá-los, mas na mesma esteira, destaque-se a providencial alteração constante do artigo 114-A da Lei nº 11.101/2005, introduzida pela Lei nº 14.112/2020, que praticamente repristinou o então derrogado artigo 75 do Decreto-lei nº 7.661/45; referido artigo procura abreviar a resolução das falências negativas, sem bens arrecadados, ou nas em que o ativo se mostre insuficiente para quitação do passivo. Permite-se por meio deste dispositivo a adoção de procedimento simplificado para se encerrar a falência sem delongas [2].

Sobrecarga e limite

No entanto, nas falências envolvendo grandes grupos econômicos não se vislumbra a hipótese da utilização do citado artigo 114-A da Lei nº 11.101/2005.

De fato, nessas se denota, por exemplo, a profusão na instauração de incidentes de habilitação e/ou impugnação de crédito, a impactar sobremaneira na carga de trabalho dos personagens centrais da insolvência, ou seja, o juiz, o administrador judicial, os advogados de todos os interessados e o Ministério Público, além de interferir pesadamente no andamento da máquina judiciária.

Cabe destacar a aberrante quantidade desses incidentes em tramitação nas Varas de Recuperação e Falência da Capital do Estado de São Paulo, pois alberga, em razão do volume de negócios, a distribuição dos mais portentosos feitos de insolvência do Estado, quiçá do país. Há processos de insolvência que congregam centenas ou até milhares desses incidentes. Exemplos não faltam. Basta a consulta ao portal eletrônico-e-SAJ do Tribunal de Justiça.

Assim, em boa hora sobreveio a previsão para reconhecimento da decadência do prazo para apresentação das habilitações de crédito (artigo 10, §10º. da Lei nº 11.101/2005), inexistente no diploma anterior e no derrogado Decreto-lei nº 7.661/45 [3]; anteriormente, não raras as ocasiões em que os atores do processo eram surpreendidos com o surgimento de mais habilitações e/ou impugnações quando o feito estava próximo de seu encerramento e, com isso, postergava-se sua conclusão.

Acertadamente o legislador estabeleceu o limite de três anos a partir da decretação da falência, só aplicável a essas, e não às recuperações; aliás, inviável a interpretação extensiva do dispositivo para atingir créditos em face de sociedade de recuperação, pois a norma tem caráter restritivo, a ser interpretada restritivamente. [4]

Acerca disso, MARIA RITA REBELLO PINHO DIAS e FERNANDO ANTONIO MAIA DA CUNHA assinalam que “a criação de prazo decadencial para apresentação de pedido de habilitação de crédito na falência, ao lado da nova disciplina do fresh start, no artigo 158 da LREF, e a revogação do artigo 157 representam grandes inovações trazidas pela Lei n.14.112/20, as quais contribuem para o aprimoramento da tramitação do processo falimentar. Essas três alterações consistem pilares de um sistema legal de estabilização do passivo na falência, na medida em que permitem a rápida apuração do passivo submetido à falência, trazendo estímulos para que os credores busquem de forma célere a habilitação de seu crédito” [5].

A partir da entrada em vigor da Lei nº 14.112/2020, surgiram decisões monocráticas aceitando a tese da decadência de imediato, a redundar na extinção de muitas habilitações e impugnações manejadas antes da vigência da modificação legal.

Com efeito, embora do artigo 5º da Lei nº 14.112/2020 se possa inferir aplicação imediata, consabido que o instituto da decadência ostenta caráter de direito material e não somente processual [6][7]; ao possuir natureza de direito material, indevida a imposição do decreto de extinção ao credor que, anteriormente à vigência da lei, ajuizou seu pedido.

Noutras palavras, como não havia na lei de regência tal prazo peremptório, os credores com incidentes em andamento antes da vigência da Lei nº 14112/2020 não seriam prejudicados pela decadência, ainda que ultrapassado o prazo de três anos [8].

Frise-se que a interpretação dos tribunais se amoldou à principiologia que norteia o instituto da decadência, lembrando que “a aplicação imediata será sempre a regra do direito comum. A retroatividade, ao contrário, não se presume; decorre de disposição legislativa expressa, exceto no direito penal, onde constitui princípio a retroação da lei mais benéfica, retroatividade da lei não pode ser presumida” [9]; por conseguinte, para os incidentes ajuizados antes da entrada em vigor da nova disciplina não há retroatividade.

Intempestividade das impugnações de crédito

Sedimentada a aplicação do instituto da decadência às habilitações de crédito propostas após a vigência da modificação advinda da Lei nº 14.112/2020 [10], há outros mecanismos pouco utilizados na prática forense, mas que podem auxiliar na resolução rápida dos processos de insolvência.

Nesse âmbito, o reconhecimento da intempestividade das impugnações de crédito, por não observarem o prazo fixado no caput do artigo 8º, da Lei nº 11.101/05 é medida salutar e merece ser relembrada.

Conforme torrente de julgados do STJ e outros tribunais [11], se o impugnante extravasa o prazo em questão, a consequência é a extinção do incidente; assim, curial a verificação do cumprimento desse prazo pelo credor.

O objetivo é que esses incidentes não se eternizem e demandem atividade jurisdicional desnecessária, conquanto retardem a resolução dos processos principais que se relacionam; e os sujeitos proeminentes do processo devem ter em mente o recurso da arguição de intempestividade.

Extintas essas impugnações manejadas a destempo, favorece-se a consolidação mais rápida do quadro geral e o consequente desfecho da causa.

Mencione-se, por outro lado, se o impugnante tem fulminada sua pretensão pela intempestividade, existe a opção da via rescisória para exercitar seu direito de crédito (§6º, do artigo 10, da Lei nº 11.101/05).

ICCP

Há outra singela contribuição ao processo de insolvência, cujo impacto se dá pela via reflexa.

A Lei nº 14.112/2020 promoveu modificações na disciplina do crédito fiscal e estatuiu o incidente de classificação do crédito público (ICCP) — artigo 7º – A da Lei nº 11.101/05.

Sem adentrar em análise mais aprofundada, existe uma medida a ser tomada nesse ICCP que não só acelera a resolução do processo de insolvência — e do próprio ICCP —, mas evita que créditos fiscais insubsistentes ingressem no certame.

Formalizado o ICCP, deve ser feito o exame da certidão da dívida ativa (CDA) que consubstancia o crédito tributário para eventual adequação de seu valor aos ditames do artigo 9º, inciso II da Lei nº 11.101/05. Além disso, ao administrador judicial cabe verificar se o crédito está em consonância com o prazo quinquenal para sua exigibilidade (artigo 174 do CTN).

Se porventura detectado o transcurso do prazo quinquenal para a exigibilidade do crédito fiscal, a todos os partícipes do ICCP cumpre alertar a ocorrência desse óbice, mormente se omisso o administrador judicial.

Verificada a prescrição do crédito fiscal no ICCP e, silente o administrador judicial, este deve ser concitado a veicular essa prejudicial na execução fiscal ajuizada paralelamente; a alegação é de ser formulada perante o juízo da execução porque afastada a competência do juízo da insolvência nesse particular [12].

Como a defesa da massa falida é atribuição do administrador judicial (artigo 22, inciso III da Lei nº 11.101/2005), constatada a ocorrência de prescrição do crédito fiscal, recomendável seja instado no âmbito do ICCP a atuar perante o juízo da execução fiscal e, nessa seara, manifestar-se para ver reconhecida a prescrição da exação reivindicada.

A provocação para a atuação do administrador judicial nas execuções fica patente quando os créditos exigidos no ICCP pertencem à União. Nas execuções fiscais federais não há participação do órgão do Ministério Público oficiante na insolvência — sem atribuição perante a Justiça Federal — tampouco do falido e demais credores; somente o auxiliar do juízo tem legitimidade para alegar a prescrição no juízo em que tramita a execução do crédito fiscal.

E mesmo que a discussão sobre a ocorrência de prescrição não se desenvolva no bojo do ICCP, seu eventual reconhecimento no juízo da execução projeta efeitos para o ICCP que, por sua vez, está atrelado ao processo de insolvência; pela via reflexa evita-se a tramitação em vão do aludido incidente, sem contar o ingresso de crédito insubsistente no concurso falimentar.

Referido mecanismo revela-se útil para o resguardo dos ativos da massa a impedir seu indevido desfalque. Também, serve para acelerar a resolução desse incidente periférico, conquanto da própria falência.

Deste modo, ainda que um tanto prosaicos esses instrumentos, se postulados com razoabilidade e precisão, podem contribuir para acelerar a resolução dos processos de insolvência, além de poupar trabalho desnecessário da tão sobrecarregada máquina judiciária.

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Sigilo do processo não autoriza ocultação do nome do advogado na intimação

A justificativa de sigilo do processo não é suficiente para ocultar os nomes dos advogados na intimação do julgamento, pois essa medida torna inviável que os patronos verifiquem a inclusão do feito em pauta e apresentem defesa.

Com essa conclusão, a 5ª Turma do Superior Tribunal de Justiça deu provimento a um recurso especial para anular o julgamento de um recurso contra a decisão de pronúncia do réu para julgamento pelo Tribunal do Júri.

TJ-RS validou intimação do julgamento com nomes dos advogados ocultados

 

A defesa interpôs recurso em sentido estrito, que foi designado para julgamento virtual pelo Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul. A intimação foi publicada no Diário da Justiça eletrônico sem qualquer menção aos nomes dos advogados.

O documento citou classe do processo, número do processo, número de pauta e relatoria, mas ocultou os nomes das partes e dos patronos devido ao sigilo imposto aos autos. Com isso, o julgamento ocorreu sem conhecimento deles, com desprovimento do recurso.

Ao STJ, a defesa apontou ofensa à Súmula 431 do Supremo Tribunal Federal, segundo a qual “é nulo o julgamento de recurso criminal, na segunda instância, sem prévia intimação, ou publicação da pauta, salvo em habeas corpus”.

Nulidade reconhecida

Relatora da matéria, a ministra Daniela Teixeira deu razão aos defensores e anulou o julgamento do recurso, determinando sua reinclusão em pauta com a correta intimação. A decisão monocrática foi confirmada em julgamento colegiado da 5ª Turma.

Para a magistrada, a justificativa de sigilo nível dois não é suficiente para supressão dos nomes dos procuradores, devendo se guardar sigilo apenas dos nomes das partes. Isso porque se torna inviável a verificação, por parte dos advogados, do dia de inclusão do feito para julgamento.

“A ausência de intimação dos advogados é extremamente prejudicial à defesa do recorrente, pois a defesa técnica perda uma oportunidade relevante de levar seus argumentos defensivos para apreciação dos julgadores do egrégio Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul”, disse Daniela.

AREsp 2.234.661

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STJ discute a natureza jurídica das medidas protetivas de urgência

Tramita no Superior Tribunal de Justiça recurso especial interposto pelo Ministério Público de Minas Gerais, que busca reconhecer a natureza jurídica inibitória das medidas protetivas de urgência previstas na Lei Maria da Penha.

No caso concreto, o Ministério Público se insurge contra a fixação de prazo definido, de 90 dias, para a vigência das medidas protetivas de urgência concedidas pelo Tribunal de Justiça de Minas Gerais em sede de agravo de instrumento, além de a decisão mencionar previamente que a situação de risco à mulher poderia vir a ser reavaliada após o período pré-determinado pelo tribunal.

A evolução da jurisprudência no STJ

Há anos a discussão acerca da natureza jurídica das medidas protetivas de urgência previstas na Lei Maria da Penha acontece na Corte Superior.

De um lado, há quem defenda que as medidas protetivas de urgência possuem natureza de cautelar penal, argumentando que se justificam como um meio para assegurar a eficácia do processo.

Foi justamente nessa linha argumentativa que em diversas ocasiões a 5ª Turma do STJ decidiu por reconhecer a natureza cautelar penal das medidas protetivas de urgência, ao consignar, por exemplo, que sua aplicação seria restrita “a casos de urgência, de forma preventiva e provisória” [1], ou que a imposição de restrições à liberdade dos acusados via medida protetiva de urgência “de modo indefinido e desatrelado de inquérito policial ou processo penal em andamento, significa, na prática, infligir lhe verdadeira pena sem o devido processo legal, resultando em constrangimento ilegal” [2].

Por outro lado, em julgados mais alinhados com a essência da própria Lei Maria da Penha, a 6ª Turma do STJ, mais recentemente, vem reconhecendo que as medidas protetivas de urgência previstas na Lei Maria da Penha detêm natureza inibitória satisfativa.

Esse é o caso do julgamento do RHC 74.395/MG, julgado em 2020, de relatoria do ministro Rogerio Schietti, no qual o STJ reconheceu além da natureza inibitória das medidas protetivas de urgência, o seu caráter de caráter autônomo. Ou seja, o STJ consignou que as medidas protetivas de urgência não se destinam à utilidade e efetividade de um processo específico, mas à proteção da vítima, independentemente da existência de inquérito policial ou ação penal.

Na mesma linha, no Recurso Especial 2.036.072/MG, de relatoria da ministra Laurita Vaz, o STJ firmou o entendimento de que, em razão do reconhecimento da natureza inibitória satisfativas, as medidas protetivas de urgência deveriam perdurar enquanto presente a situação de risco à vítima.

Natureza inibitória versus natureza penal

Para avançar na compreensão de que as medidas protetivas de urgência carregam natureza inibitória e, portanto, (1) não haveria prazo para sua vigência vinculado à duração de inquérito policial ou ação penal; além de que (2) as medidas não estão vinculadas a pré-existência de qualquer procedimento processual penal, é imprescindível que seja compreendida a essência dessa Lei.

Em brevíssimas linhas, criada em 2006, a Lei Maria da Penha instituiu verdadeiro sistema de proteção multidisciplinar à mulher ao prever a integração de políticas públicas com o sistema de justiça, perpassando por mecanismos de educação para prevenção da violência doméstica, além de criar o Juizado de Violência Doméstica com caráter híbrido, ou seja, de competência cível e criminal, e prever as medidas protetivas de urgência.

A Lei 11.340/06 não foi criada ao acaso, mas como consequência das recomendações apresentadas ao Brasil pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos da Organização dos Estados Americanos. A  CIDH condenou o Estado brasileiro, e reconheceu o descumprimento de compromissos internacionais ratificados em convenções internacionais no caso de Maria da Penha Fernandes.

Consequentemente, em 2004, o governo federal estruturou o grupo de trabalho interministerial com fins de discutir e elaborar proposta legislativa para coibir a violência doméstica no Brasil.

A proposta de criação da Lei 11.340/06 foi amplamente discutida por diversas pastas do governo federal, em articulação com organizações não governamentais feministas, e culminou na apresentação do projeto de Lei com uma breve exposição de motivos, descritos no EM nº 016, da Secretaria de Políticas para Mulheres da Presidência da República.

Dentre os motivos, explicações a respeito das medidas protetivas de urgência que importam ao debate sobre a sua natureza jurídica.

Isso porque, o EM nº 016 explicita que as medidas protetivas de urgência “pretendem garantir às mulheres o acesso direto ao juiz, quando em situação de violência e uma celeridade de resposta à necessidade imediata de proteção”, explicitando que se destinam à proteção de mulheres, não de processos.

Esse pensamento está sedimentado na própria estrutura da Lei Maria da Penha, que classifica as medidas protetivas de urgência em dois grupos: as que “obrigam o agressor[3], e as que se destinam “à ofendida” [4].

Ainda, no artigo 4º da Lei 11.340/06 há menção expressa de que “na interpretação desta Lei, serão considerados os fins sociais a que ela se destina, especialmente, as condições peculiares das mulheres em situação de violência doméstica e familiar”.

Logo, se na essência da Lei Maria da Penha está a garantia do implemento sistêmico dos direitos humanos das mulheres, com a articulação de um sistema complexo de proteção e combate a toda forma de violência doméstica, é verdadeiro contrassenso cogitar o caráter puramente acessório dessas medidas, em detrimento do reconhecimento de que as medidas de urgência protegem mulheres em risco.

Outro ponto que merece atenção é a diferenciação das protetivas de urgência das cautelares criminais diversas da prisão.

A Lei Maria da Penha foi criada em 2006. A Lei 12.403/2011, que instituiu as medidas cautelares criminais, foi introduzida em 2011.

Portanto, cinco anos antes da existência das medidas cautelares criminais diversas da prisão, já existia no ordenamento jurídico brasileiro o instituto das medidas protetivas de urgência, com conceito delineado.

As medidas protetivas de urgência tutelam a vida das mulheres, direito fundamental intrínseco à natureza humana, enquanto as cautelares criminais se destinam a assegurar a aplicação da lei penal, garantir o andamento da investigação ou instrução criminal e evitar novas infrações penais. Portanto, naturezas diversas, institutos diversos, os quais podem coexistir em nosso ordenamento jurídico.

No mais, o artigo 22, § 4º da Lei Maria da Penha, dispõe sobre a natureza cível das medidas protetivas, ao mencionar a aplicação do artigo 461 do Código de Processo Civil, que previa a tutela inibitória das obrigações de fazer ou não fazer – tanto que os Tribunais já reconhecem o cabimento de recurso de agravo de instrumento quando da concessão ou indeferimento das medidas protetivas de urgência, a teor do artigo 13 da Lei 11.340/06 c/c os artigos 203, § 2º e 1.015 e ss. do Código de Processo Civil.

Por fim, e de forma a esclarecer eventual dúvida existente entre os aplicadores do Direito, bem como garantir maior proteção à mulher vítima de violência doméstica, é que o legislador acrescentou o artigo 19, § 5º à Lei Maria da Penha.

De acordo com a nova legislação, as medidas protetivas de urgência podem ser concedidas independentemente da tipificação penal da violência, do ajuizamento de ação penal ou cível, da existência de inquérito policial ou do registro de boletim de ocorrência. Além disso, essas medidas protetivas permanecerão em vigor enquanto houver risco à integridade física, psicológica, sexual, patrimonial ou moral da vítima ou de seus dependentes.

Essa mudança legislativa reforça o compromisso do Estado em garantir a segurança e o bem-estar das vítimas, inexistindo mais qualquer dúvida a respeito da natureza de tutela inibitória, não de cautelar penal das medidas protetivas de urgência previstas na Lei Maria da Penha.

A Lei Maria da Penha em essência

Para debater a aplicação da Lei Maria da Penha, é preciso pensar a complexidade da hibridez da Lei Maria da Penha. Para tanto, um brevíssimo ponto parece bastante esclarecedor.

Em 2006, a lei já exemplificava as diversas formas de violência doméstica, em seu artigo 7º.

Dentre as formas de violência lá descritas, está a violência psicológica, que apenas passou a ser criminalizada, no Código Penal, em 2021.

No entanto, seguindo o raciocínio proposto pela lei, desde 2006, a mulher em situação de violência psicológica poderia requerer medida protetiva de urgência.

Não fosse esse o pensamento, estaria explícito na lei a necessidade de existência prévia da tipificação do crime de violência psicológica para a concessão das protetivas de urgência, ou haveria ressalvas quanto a essa concessão específica nos artigos que tratam das medidas protetivas.

Não há. E nunca houve. São incontáveis as mulheres que foram mantidas em contexto de violência psicológica entre os idos de 2006 e 2021 por absoluta relutância do sistema de justiça em aplicar a Lei em essência.

E ainda mais grave, são incontáveis os casos que evoluíram, nesse recorte de tempo, de violência psicológica para crimes mais graves, que poderiam ter sido evitados com a devida concessão das medidas protetivas de urgência.

Por fim

A Lei Maria da Penha é um marco nacional na defesa dos direitos das mulheres em situação de violência doméstica. Apesar de celebrarmos os 18 anos recém completados de promulgação, ainda precisamos pedir o óbvio: que haja perspectiva de gênero na aplicação da própria Lei Maria da Penha.


[1] AgRg no REsp 1.441.022/MS, 5ª Turma, rel. ministro Gurgel de Faria, DJe 2/2/2015.

[2] RHC 94.320/BA, 5ª Turma, rel. ministro Felix Fisher, DJe 24/10/2018.

[3] Artigo 22 da Lei 11.340/06.

[4] Artigo 23 da Lei 11.340/06.

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O artigo 61 da Lei 8.981/1995 e suas controvérsias no Carf

Na coluna de hoje, retomamos o fio que iniciamos em outro texto (aqui [1]), a respeito das controvérsias envolvendo a aplicação do previsto artigo 61 da Lei nº 8.981/95, que prevê a cobrança de um imposto de renda retido na fonte (IRRF) de 35% sobre pagamentos sem causa ou a beneficiários não identificados.

No último artigo, falamos sobre o histórico da tributação na fonte no Brasil, as técnicas que lhe são subjacentes e as finalidades que busca atingir, otimizando a atividade de fiscalização e cobrança pelo Estado, especialmente em contextos nos quais isso seria impossível ou excessivamente custoso, como nos pagamentos feitos a beneficiários não identificados ou fora da jurisdição brasileira. Além disso, analisamos a controvérsia a respeito da possibilidade de cobrança, simultânea, do IRPJ/CSLL decorrente da glosa de uma despesa sem causa, e do IRRF de 35% sobre o valor do dispêndio realizado, para concluirmos que não havia qualquer incoerência nisso.

Segunda questão: é o IRRF uma forma de sanção à fonte pagadora?

É bem sabido que os tributos não podem, conceitualmente, ser sanções de atos ilícitos, como estabelecido no artigo 3º do CTN. Não obstante, especialmente em relação ao IRRF sob análise, é comum o argumento de que ele se trataria de uma forma de penalização do contribuinte por não ter identificado o beneficiário dos pagamentos ou não ter demonstrado a sua causa [2].

Como dizem os franceses: Il y a le nom, il y a le chose. O mero fato de a lei usar a expressão “imposto” não basta para cravar, de maneira definitiva, a sua natureza jurídica – pelo contrário, o alerta do artigo 4º, I do CTN vai no sentido de que cabe ao intérprete ir além do rótulo, para identificar as características de cada cobrança, bem como a sua adequação ao conceito de tributo.

O ponto de partida lógico para determinar uma eventual natureza sancionatória do IRRF é exatamente determinar se ele decorre do descumprimento de um dever jurídicoi.e., se o seu fato gerador é um ato considerado ilícito pelo ordenamento. Nesse ponto, a resposta deve ser negativa: inexiste uma regra geral que determine a obrigação do contribuinte de identificar o beneficiário ou a causa de pagamentos realizados.

Na prática, a fonte pagadora deve assumir o papel de substituta tributária em relação aos pagamentos que opte pela não identificação do beneficiário ou a causa do pagamento, descontando do valor pago o tributo a ser recolhido aos cofres da União. A lógica subjacente a essa tributação exclusiva é que: 1) desconhecendo o beneficiário do pagamento, não será possível à fiscalização verificar o oferecimento desses valores à tributação; e 2) conhecendo o beneficiário, mas desconhecendo a causa desse pagamento, não será possível a identificação de qual será o seu regime jurídico tributário.

Desse modo, optou a legislação pela cobrança de uma alíquota fixa, cobrada da fonte pagadora, que seja elevada o suficiente para não criar um mecanismo a ser explorado pelos beneficiários para redução no pagamento de seus tributos. Esse mecanismo, por si só, nada tem de sancionatório, e em nada difere de outras tributações exclusivas na fonte.

O problema surge nos casos em que há a cobrança do IRRF na fonte depois que o pagamento foi feito sem a retenção, mesmo depois de se verificar a tributação desses valores no beneficiário – essa questão que será endereçada posteriormente. De todo modo, não nos parece que uma aplicação de correção duvidosa da lei seja suficiente para alterar a natureza jurídica do dispositivo.

Um dos argumentos utilizados para justificar a natureza sancionatória desse dispositivo é a sua aproximação com os artigos 43 e 44 da Lei nº 8.541/92 (que já foram objeto de análise em nosso texto anterior) e o entendimento do STJ de que esses dispositivos teriam caráter punitivo, aplicando a retroatividade benigna do artigo 106 do CTN, após a sua revogação (e.g. REsp 1.282.416, REsp 1.106.260, REsp 1.307.351 etc.).

Como já abordamos anteriormente, essa aproximação entre o artigo 44 da Lei nº 8.541/92 e o artigo 61 da Lei nº 8.981/95 é equivocada. O primeiro trata de uma cobrança adicional ao IRPJ (daí a ressalva da sua cobrança se dar “sem prejuízo da incidência do IRPJ”), na hipótese de omissão de receitas por parte da empresa, que passaria a ser presumida como distribuída aos sócios ou acionistas, ao passo que o segundo diz respeito a uma tributação exclusiva na fonte para pagamentos realizados e não omitidos), mas cujo destinatário ou causa não são informados. Não obstante, há acórdãos mais antigos no Carf que aduziam essa aproximação (e.g. acórdão nº 1401-001.344)

Essa diferença entre os dispositivos é, inclusive, relevante para a construção do racional da jurisprudência do STJ, que se baseia nos seguintes argumentos: 1) já existia uma regra que determinava a apuração do IRPJ nos casos de omissão de receitas, de modo que o artigo 44 estabelecia um ônus adicional àquele já estabelecido; 2) o artigo 44 se encontrava dentro do título IV da lei, denominada “Das Penalidades”; 3) ele previa especificamente a incidência conjunta com o IRPJ (e.g. AgRg no REsp 716.208/PR, ministro Castro Meira, DJe de 6/2/2009).

Com a devida vênia, nenhuma das partes da ratio decidendi do STJ é imediatamente aplicável ao artigo 61 da Lei nº 8.981/95, pois ele pressupõe a ignorância quanto à tributação (se e como) desses valores no beneficiário (ainda que uma corruptela na sua aplicação possa atrair o racional do primeiro fundamento). Como bem explicado no acórdão nº 1201-005.574 (j. 20/09/2022), o artigo 61 adota uma presunção de possível omissão de receita por parte do beneficiário não identificado ou do pagamento sem causa, e por isso adota a técnica de substituição tributária na fonte pagadora (diferentemente do artigo 44 do Lei nº 8.541/92, no qual a omissão é verificada no contribuinte). Esse é o racional subjacente a diversas previsões de retenção na fonte, e não configura uma forma de sanção.

Nessa linha tem seguido, de maneira pacífica, e acertada, a jurisprudência da 1ª Seção do Carf, reconhecendo que o referido IRRF não tem natureza de sanção, mas de tributo cobrado sob a sistemática de substituição. Em razão disso, tampouco procede o argumento de que haveria um bis in idem entre o IRRF de 35% e a cobrança da multa de ofício sobre esse crédito, tendo em vista a natureza distinta deles.

Terceira questão: apenas a causa lícita é válida para afastar o IRRF?

Na esteira da questão sobre a natureza sancionatória ou não do artigo 61 da Lei nº 8.981/95, outro ponto bastante controverso diz respeito à licitude da causa do pagamento realizado.

O entendimento prevalecente no âmbito do Carf é no sentido de que a identificação de uma causa ilícita para os pagamentos (e.g., o pagamento de propinas para os beneficiários) deveria ser considerado também como um “pagamento sem causa”, para fins de incidência do IRRF (nesse sentido, e.g. acórdãos nº 1301-003.985, 1102-001.391, 1201-003.307, 1201-006.208 etc.).

No acórdão 1201-003.307, por exemplo, é aduzido que a comprovação da causa deve envolver não apenas a prova da sua efetividade, mas também que a sua causa seja lícita, para que se afaste o IRRF. Afirma o voto que seria um “privilégio” fiscal o afastamento da tributação na fonte em razão da admissão da causa ilícita do pagamento realizado, e que o pagamento de propinas “é ilegal e deve ser combatido pelo ordenamento jurídico”, razão pela qual deve ser tratado como uma “causa inexistente”.

Com a devida vênia, essa posição nos parece ser incoerente com a própria jurisprudência do Tribunal a respeito da natureza do IRRF do artigo 61 como uma regra de tributação, e não sancionatória.

Todas as normas tributárias fiscais têm, essencialmente, a finalidade de estruturar a repartição da carga tributária de maneira equânime entre os contribuintes, atendendo a diversos critérios de justiça compatíveis com as espécies tributárias. No caso específico do IRRF em questão, a sua finalidade é exatamente evitar que o beneficiário pague menos tributo que as demais pessoas que percebam igual tipo de rendimento, seja pela sua ocultação, seja pela ocultação da causa desse pagamento. Trata-se de uma regra evidentemente voltada a garantir uma equidade de ônus tributário sobre todos os beneficiários de rendimentos, mesmo nas hipóteses em que alguns deles não possam ser identificados pela fiscalização.

A correta mensuração da capacidade contributiva do beneficiário depende fundamentalmente da sua própria identificação, enquanto perceptor do rendimento, e da natureza jurídica desse pagamento, para que o regime tributário seja aplicado de maneira adequada. Ausente um desses elementos, e prejudicado o processo de cálculo do correto ônus a ser imposto, passa-se à aplicação de uma regra de substituição tributária que atribui à fonte pagadora o dever de pagar por esse beneficiário, a partir de uma alíquota fixa sobre o valor.

A ideia de “pagamento sem causa” se refere a um ingresso cujo tratamento tributário não possa ser identificado pela fiscalização, para fins de atribuição dos seus efeitos próprios – é apenas nesse contexto que faz sentido a cobrança na fonte pagadora, evitando que o beneficiário se aproveita do desconhecimento do Fisco sobre essa informação.

Em outras palavras, ao utilizar a expressão “causa”, o artigo 61 da Lei nº 8.981/95 não quer se referir à identificação de uma potencialmente longa cadeia de causação que pode ter culminado na realização do pagamento, mas apenas da natureza jurídica dele, para fins tributários. Por exemplo, para fins de atendimento ao artigo 61, é irrelevante que o mecânico tenha consertado um veículo da empresa por um acidente causado pelo funcionário que furou o sinal vermelho ou por terceiro – basta apenas que se demonstre que o pagamento tem natureza jurídica de preço pago, já que decorre de um serviço prestado, para que se possa identificar o tratamento tributário nos beneficiários.

Dito de outro modo, pagamento sem causa, no contexto e escopo do IRRF do artigo 61, é aquele cujo tratamento tributário no beneficiário não possa ser identificado. Essa conclusão evidencia o contrassenso da equiparação da “causa ilícita” à “causa inexistente”, tendo em vista que o ordenamento tributário possui um regime jurídico próprio para a tributação dos rendimentos derivados de atividades ou de transações ilícitas, ou percebidos com infração à lei, prevista no artigo 26 da Lei nº 4.506/64 [3], e aplicável tanto ao IRPJ quanto ao IRPF. Esse regime jurídico está alinhado com a neutralidade valorativa da tributação, adotada no Brasil por força do artigo 118, I, do CTN, que visa estabelecer uma “tributação axiologicamente neutra”, baseada exclusivamente na mensuração da capacidade econômica manifestada.

É contraditório reconhecer que o sistema jurídico atribua um regime tributário próprio para os rendimentos de causas ilícitas, mas ao mesmo tempo reputá-los como pagamentos “sem causa”, para fins do artigo 61 da Lei nº 8.981/95. Na prática, a contradição em questão conduz à conclusão absurda de que todos os pagamentos decorrentes de atos ilícitos deverão estar sempre sujeitos, simultaneamente, ao IRRF, na fonte pagadora, e ao IRPJ/IRPF, no beneficiário (por força do artigo 26 da Lei nº 4.506/64).

Além disso, a própria ideia de rendimento de “causa ilícita” é bastante vaga, pois compreende pelo menos três situações completamente diferentes: 1) que o pagamento decorre de um ato ilícito da fonte pagadora (e.g. multas e indenizações pagas); 2) que o pagamento decorre de um ato ilícito sofrido pela fonte pagadora (e.g. crime de concussão ou excesso de exação) e 3) que o pagamento em si é o ato ilícito (e.g. pagamento de propina e lavagem de dinheiro).

Sob o racional adotado no Carf, o contribuinte que resolva pagar qualquer espécie de multa, indenização, reparação etc., decorrentes de ilícitos por ele praticados, deveriam ser considerados como “pagamentos sem causa”, o que não faz qualquer sentido.

A ideia de que qualquer pagamento de causa ilícita deverá, necessariamente, estar sujeito à sua tributação normal no beneficiário (de acordo com o regime legal) e, também, na fonte pagadora, a título de IRRF, traz imediatamente a memória dos precedentes do STJ a respeito do artigo 44 da Lei nº 8.541/92. Naquele caso, o fundamento determinante foi a existência de um regime tributário próprio do rendimento omitido, de modo que o IRRF seria um ônus adicional, que assume um caráter punitivo, exclusivamente por conta da omissão ilícita do contribuinte.

Ora, a equiparação da causa ilícita à inexistente gera o mesmo “efeito distorcivo punitivo” existente com o IRRF do artigo 44 da Lei nº 8.541/92: há um regime tributário próprio para os rendimentos decorrentes de ilícitos, a ser aplicado, de modo que o IRRF de 35% passa a ser um ônus adicional que decorre justamente da causa ilícita desse pagamento (já que ele não seria cobrado na hipótese de causa lícita), o que tem como efeito uma “dupla tributação” que distorce os critérios de repartição de encargos e – aí sim – assume um caráter de punição.

Conclusões parciais

À luz do que foi exposto acima, se verifica que o IRRF de 35% não possui estruturalmente a natureza de sanção, mas sim de regra de substituição tributária voltada a contornar a possibilidade de omissão de receitas por parte do beneficiário não identificado, ou cujo pagamento não tenha sua causa identificada.

Apesar disso, essa regra de tributação tem sofrido distorções, por força da interpretação no sentido de que “causa ilícita” para o pagamento equivale à “causa inexistente”. Essa equiparação gera um regime de “dupla tributação” necessária, na fonte e no beneficiário, de rendimentos relacionados ou causados por ilícitos, distorcendo o regime tributário desses vários tipos de pagamentos, já previstos na legislação brasileira.

Essa distorção aproxima, nesses casos, o IRRF do artigo 61 da Lei nº 8.981/95 àquele do artigo 44 da Lei nº 8.541/92, fazendo com que ele assuma um caráter punitivo, aproximando-o também da ratio da jurisprudência do STJ sobre esse tema. O tema demanda uma rediscussão técnica e neutra, longe de intenções punitivistas, sob pena de desvirtuá-lo de um instrumento de simplificação tributária em um meio sancionador.

Nas próximas colunas, seguiremos abordando outras polêmicas a respeito desse controverso dispositivo!


[1] Artigo 61 da Lei nº 8.981/1995 e suas controvérsias no Carf (parte 1) (conjur.com.br)

[2] Nesse sentido, por exemplo, MIGUITA, Diego. IRRF sobre pagamentos sem causa: penalidade e qualificação da multa de ofício; disponível em IRRF sobre pagamentos sem causa: penalidade e qualificação da multa de ofício (jota.info)

[3] Art. 26. Os rendimentos derivados de atividades ou transações ilícitas, ou percebidos com infração à lei, são sujeitos a tributação, sem prejuízo das sanções que couberem.

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Fresh start: uma mudança cultural

Os processos de falência, desde a votação do Projeto de Lei 03/2.024 pela Câmara dos Deputados, foram objeto de inúmeras notícias de jornais e trabalhos acadêmicos, os quais abordaram a ineficiência do sistema de insolvência e a baixa taxa de recuperação do crédito concedido às empresas que tiveram a sua falência decretada.

Os trabalhos de jurimetria sobre a eficácia dos processos de falência não são animadores, pois um processo de falência dura, em média, dez anos até o seu encerramento, com os credores recebendo, em média, apenas 6% dos créditos concedidos à empresa falida. [1]

No entanto, é indiscutível que a Lei 14.112/2.020 dará maior celeridade e eficácia aos processos de falência. Ainda assim, os efeitos dessas recentes mudanças não são visíveis na prática cotidiana. Isto porque estas mudanças são novas e os próprios credores, administradores judiciais e membros do Poder Judiciário estão se adaptando as alterações.

Com efeito, apenas a título de ilustração, sabe-se que, após as alterações introduzidas pela Lei 14.112/2020, o administrador judicial deve proceder à venda de todos os bens da massa falida dentro do prazo de 180 dias [2], o credor deve apresentar seu pedido de habilitação ou reserva de crédito no prazo máximo de três anos após a decretação da falência [3], eis que as obrigações do falido se extinguem após este período. [4]

Essas mudanças, em tese, acelerariam o recebimento do crédito dos credores habilitados [5] e permitiriam o encerramento da falência com a extinção das obrigações do falido, reabilitando-o à vida empresarial dentro do prazo de três anos.

A reabilitação do falido e a extinção das suas obrigações, que antes da reforma da LRF de 2020 eram muito lentas, agora podem ocorrer em um período significativamente menor. [6]

Riscos

Contudo, a reforma também trouxe risco aos credores, os quais, caso não habilitem o seu crédito dentro do prazo de três anos a contar da decretação da falência, poderão ser alcançados pela decadência do seu direto. Com efeito, o encerramento das obrigações do falido, nesta hipótese, não decorreria do pagamento das obrigações, mas sim do decurso do prazo de três anos.

Fresh Start nada mais é do que a possibilidade de o falido encerrar seu processo de falência e ter suas obrigações extintas após três anos da decretação da falência. Assim, se aplicado em larga escala pelo Poder Judiciário, esse mecanismo pode implicar em uma profunda mudança cultural e fomentar o empreendedorismo, permitindo a reabilitação rápida do falido à vida econômica, nos termos do inciso III do artigo 75 da LRF.  [7]

Como se sabe, qualquer mudança cultural é um processo de transformação dos valores, crenças e práticas de uma sociedade, sendo estas alterações legislativas o resultado destes legítimos anseios da sociedade quanto a maior celeridade e eficácia nos processos de falência. Isto porque um processo moroso, caro e ineficaz não é do interesse nem do falido, tampouco dos credores.

Estes anseios sociais já são vistos nos processos de falência anteriores a reforma da LRF de 2.020, eis que foram inúmeros casos em que os falidos pediram a extinção das suas obrigações pelo decurso do prazo de três anos.

O Poder Judiciário, infelizmente, não pôde aplicar a extinção das obrigações do falido naqueles processos de falência que foram decretados antes da reforma da LRF de 2020. [8]

Isto porque o Poder Judiciário, em grande parte dos casos, não conseguiu contornar o início da vigência da reforma da LFR de 2020 [9], não podendo o novo artigo referente à extinção das obrigações do falido [10] ser aplicado as falências decretadas antes da vigência da LRF de 2020, sob pena de trazer grande insegurança jurídica ao sistema de insolvência brasileiro. [11]

Todavia, o mais curioso é que, na hipótese dos processos de falência que foram decretados antes da reforma da LFR de 2020, nos quais a arrecadação dos bens foi negativa, o Poder Judiciário poderá aplicar o Fresh Start [12] pela patente ineficácia do processo de falência. [13]

Nesta hipótese, pouco importa se a falência foi decretada ainda na vigência do Decreto Lei 7.661/1945, ou, após a vigência da Lei 11.101/2005, pois, como o processo de falência não teria qualquer utilidade aos credores, este deverá ser encerrado com a reabilitação do falido. [14]

Cumpre notar, entretanto, que qualquer mudança cultural pode encontrar resistência, aqui, nos próprios credores que se insurgirão contra o encerramento mais célere da falência. Essa insurgência não é fenômeno novo no sistema de insolvência brasileiro, pois já ocorreu em vários casos de encerramento do processo de recuperação judicial dois anos após a sua concessão. [15]

Ademais, o próprio fisco é a primeira exceção ao mecanismo de Fresh Start, eis que ele não está sujeito a extinção dos seus créditos pelo decurso do prazo de três anos. Sem um maior aprofundamento sobre o tema, é certo que a extinção do crédito fiscal e a reabilitação do falido deverá ser, no futuro, um relevante ponto a ser tratado pelo Poder Judiciário, pois, em grande parte das falências, a dívida fiscal será um grande empecilho ao restabelecimento empresarial do falido. [16]

Por todo exposto, a Lei 14.112/2020 representa um avanço significativo na modernização do sistema de insolvência brasileiro, especialmente com a introdução do conceito de Fresh Start. No entanto, a plena realização dos benefícios dessa reforma ainda depende de uma adaptação cultural por parte dos credores, dos administradores judiciais e o próprio Poder Judiciário, devendo este último, modernizar a sua posição quanto ao crédito fiscal e o Fresh Start, sob pena de eventual resistência cultural inviabilizar os mecanismos de reabilitação do falido.

____________________________________

[1] Associação Brasileira de Jurimetria, Observatório da Insolvência, Fase 3: Falências no Estado de São Paulo, 29 de abril de 2022.

[2] Letra J, do Inciso III do artigo 22 da LRF

[3] Inciso 10º do artigo 10 da LRF. Ainda neste sentido, Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, Agravo de instrumento número 2060939-72.2024.8.26.0000, Rel. Des. Azuma Nishi e Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo número 2124925-34.2023.8.26.0000, Rel. Des. J.B. Franco de Godoi.

[4] Inciso V do artigo 158 da LRF

[5] Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, Agravo de instrumento número 2141834-25.2021.8.26.0000, Rel. Des. Sérgio Shimura.

[6] Antes da Lei 14.112/2020, a extinção das obrigações do falido poderia ocorrer quando houvesse (i) o pagamento de todos os créditos;(ii) o pagamento, depois de realizado todo o ativo, de mais de 50% dos créditos quirografários; (iii) o decurso do prazo de 5 anos, contados do encerramento da falência, se o falido não tivesse sido condenado por prática de crime previsto na LRF e (iv) o decurso do prazo de 10 anos, contados do encerramento da falência, se o falido tivesse sido condenado por prática de crime previsto na LRF.

[7] Comentários à Lei de Recuperação de Empresas e Falência, Daniel Carnio Costa e Alexandre Nasser de Melo, Ed. Juruá, p. 507.

[8] Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, Apelação número 1007326-19.2021.8.26.0564, Rel. Des. Fortes Barbosa; Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, Agravo de instrumento 0091153-12.2023.8.19.0000, Rel. Des. Maria Helena Pinto Machado; Tribunal de Justiça do Estado do Paraná, Agravo de instrumento número 0038561-72.2023.8.16.0000, Rel. Des. Reis do Amaral.

[9] Artigo 5º da Lei 14.122/20 – Os dispositivos constantes dos incisos seguintes somente serão aplicáveis às falências decretadas, inclusive as decorrentes de convolação, e aos pedidos de recuperação judicial ou extrajudicial ajuizados após o inicio da vigência desta lei: IV – as disposições previstas no inciso V do caput do art. 158 da Lei número 11.101, de 09 de fevereiro de 2005.

[10] Inciso V do artigo 158 da LRF

[11] “Ora, tempus regit actum, isto é, os atos jurídicos se regem pela lei da época em que ocorreram. Com o objetivo de assegurar a segurança, a certeza e a estabilidade do ordenamento jurídico, adotou-se a regra de que a lei nova não será aplicada às situações constituídas sobre a vigência da lei revogada ou modificada.” Tribunal de Justiça de Santa Catarina, Apelação 5052900-25.2021.8.24.0023, Des. Rel. Soraya Nunes Lins.

[12] Inciso 5 do artigo 5 da Lei 14.112/2020, artigo 114-A e Inciso VI do artigo 158 da LRF.

[13] Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, Apelação número 5008959-55.2020.8.21.0019, Rel. Des. Gelson Rolim Stocker.

[14] Artigo 5º da Lei 14122/2020 – O disposto no inciso VI do caput do artigo 158 terá aplicação imediata, inclusive às falências regidas pelo Decreto-lei 7.661, de 21 de junho de 1945.

[15] Neste sentido, artigo 61 LRF e Superior Tribunal de Justiça, Recurso especial número 1.853.347, Rel. Min. Ricardo Cueva.

[16] Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, Apelação número 1066147-50.2021.8.26.0100, Rel. Des. J.B. Paula Lima e Tribunal de Justiça do Estado do Ceará, Apelação número 0285912-04.2021.8.06.0001, Rel. Des. Maria de Fátima de Melo Loureiro.

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Admitir honorários por equidade pela exceção da execução fiscal é indisciplina

Para o ministro Mauro Campbell, do Superior Tribunal de Justiça, admitir a fixação de honorários de sucumbência por equidade nos casos em que alguém é excluído do polo passivo de uma execução fiscal implica ato de indisciplina judiciária.

Mauro Campbell 2024
Campbell propôs desafetação do tema em respeito à aplicação da tese que foi estabelecida pela Corte Especial – Gustavo Lima/STJ

O alerta foi feito aos colegas de 1ª Seção nesta quarta-feira (28/8), ao abrir divergência no julgamento que visa a fixar tese vinculante sobre o tema. O caso foi interrompido por novo pedido de vista, desta vez do ministro Teodoro Silva Santos.

Segundo Campbell, a Corte Especial do STJ tem um julgamento em que afastou o uso da equidade em casos de exclusão do polo passivo da execução fiscal. Haveria, portanto, um desrespeito de um órgão fracionário a outro de hierarquia superior.

O que está em discussão

Os recursos tratam de hipóteses em que a Fazenda Pública ajuíza execução fiscal contra contribuintes e estes, por entender que não deveriam ser alvos da cobrança, usam a exceção de pré-executividade.

 

Se a conclusão do juiz for de que o contribuinte não deve constar no polo passivo da ação, ele é excluído e o processo pode continuar contra os demais executados. Nesse caso, não há debate sobre o valor ou a existência da dívida fiscal, mas apenas sobre quem deve pagá-la.

A dúvida que fica é como calcular os honorários de sucumbência — a remuneração que o advogado da parte vencedora deve receber, a ser paga por quem perde a ação (no caso, a Fazenda Nacional).

Há duas hipóteses. Uma delas é aplicar a regra geral, que está nos parágrafos 2º e 3º do artigo 85 do Código de Processo Civil: honorários de, no mínimo, 10% sobre o proveito econômico, correspondente ao valor da dívida que seria cobrada na execução fiscal.

A outra é aplicar o parágrafo 8º, que prevê o método da equidade: o juiz analisa o trabalho do advogado, a importância da causa e outros fatores para, de maneira livre e desvinculada, mas proporcional, arbitrar um valor para os honorários.

Pode usar equidade

Relator dos recursos julgados na 1ª Seção, o ministro Herman Benjamin propôs que, no caso da exceção de pré-executividade, os honorários sejam fixados pelo método da equidade.

Isso porque não há como estimar o proveito econômico obtido pela exclusão de alguém do polo passivo da execução fiscal. A ausência desse parâmetro autoriza a aplicação do artigo 85, parágrafo 8º, do CPC.

Essa posição já foi aplicada unanimemente pela própria 1ª Seção do STJ, em abril deste ano. Como mostrou a revista eletrônica Consultor Jurídico, ela afeta negativamente o cuidado com que as Fazendas Públicas fazem a cobrança de dívidas tributárias.

A tese sugerida pelo ministro Herman Benjamin foi a seguinte:

Nos casos em que da exceção de pré-executividade resultar tão somente a exclusão do excipiente do polo passivo da execução fiscal, os honorários advocatícios deverão ser fixados por apreciação equitativa nos moldes do artigo 85, parágrafo 8º, do CPC de 2015, porquanto não há como se estimar o proveito econômico obtido com o provimento jurisdicional.

Corte Especial já decidiu

Ao abrir a divergência, o ministro Mauro Campbell observou que a Corte Especial do STJ já afastou essa interpretação. Isso ocorreu no REsp 1.644.077.

Primeiro, o colegiado fixou tese vinculante no Tema 1.076 dos repetitivos para dizer que os honorários por equidade só são possíveis nas exatas hipóteses listadas no parágrafo 8º do artigo 85 do CPC.

Ou seja, a Corte Especial deixou claro que não é permitido o uso dessa técnica quando os valores da condenação, da causa ou o proveito econômico da demanda forem elevados — essa era a principal discussão na ocasião.

No mesmo dia, o colegiado aplicou a tese ao REsp 1.644.077, cujo caso concreto trata de uma decisão que excluiu o contribuinte do polo passivo de uma execução fiscal — exatamente o tema em discussão atualmente na 1ª Seção.

Mais importante ainda é o fato de que foi esse processo que gerou o recurso extraordinário que foi admitido pelo Supremo Tribunal Federal. Reconheceu-se a existência de repercussão geral. Hoje ele está registrado como Tema 1.255, ainda pendente de julgamento.

Por causa disso, o ministro Mauro Campbell propôs a desafetação do julgamento na 1ª Seção e a devolução do caso para o tribunal de origem, para que exerça juízo de retratação e inadequação. Alternativamente, propôs que o colegiado do STJ reafirme a tese da Corte Especial para dizer que ela se aplica, inclusive, aos casos de exceção de pré-executividade.

“A preliminar que trago é de absoluta desobediência ao órgão supremo da nossa corte. Eu até concordo com a tese. A dificuldade é que fixemos isso agora em uma indisciplina judiciária flagrante”, alertou Campbell.

Para ele, a decisão de não aplicar a tese da Corte Especial nos casos de execução fiscal só poderia ser tomada pela própria Corte Especial, superando o precedente do REsp 1.644.077, ou pelo Supremo, ao julgar o tema em repercussão geral.

“Para uma corte que prega respeito ao precedente, tenho dificuldade de sobrepor etapas diante do fato havido aqui”, acrescentou o ministro, que fez sua última participação na 1ª Seção nesta quarta-feira — em 3 de setembro ele assumirá a Corregedoria Nacional de Justiça.

REsp 2.097.166
REsp 2.109.815

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Emendas parlamentares, transparência e controle sob a atual perspectiva

As emendas parlamentares, instrumentos legítimos que permitem o direcionamento de recursos do orçamento público para atender objetivos específicos (por vezes, até aqui, em outras unidades da federação que não a sua), têm sido objeto de intensos debates no cenário nacional.

O impacto dessas ações no plano orçamentário e seus reflexos nas políticas públicas, considerando a definição das prioridades nacionais, vem sendo suscitado desde o advento da Emenda Constitucional nº 105, de 2019. E são extremamente relevantes, porque dizem com custos, critérios, efetividade e resultados alcançados, tudo numa dimensão que precisa considerar planejamento, necessidades e avaliação de tais resultados. Porém, nas limitações deste espaço, e considerando os debates da hora, particularmente se pretende uma breve abordagem relacionada à transparência e ao controle da sua aplicação.

Longo percurso

De fato, a ampla publicidade (princípio constitucional, como sabemos) na execução dessas emendas é fundamental para garantir que os recursos sejam utilizados de maneira eficiente e eficaz, sem desvirtuamentos que possam comprometer o interesse público. A falta de clareza e de mecanismos efetivos de controle sobre essas verbas pode abrir margem para desvios e prejudicar a implementação de programas e projetos no âmbito da federação.

No cenário atual, a preocupação com a falta de transparência na execução das emendas parlamentares tem se mostrado cada vez mais relevante e justificada. Embora alguns progressos tenham sido alcançados, ainda há um longo percurso a ser trilhado para que a sociedade possa acompanhar, de maneira precisa e detalhada, a aplicação desses recursos. Iniciativas de instituições públicas e não governamentais podem contribuir para que se atinja esse objetivo.

Recomendações da Atricon

Nesse sentido, merece destaque a publicação da Nota Recomendatória nº 01/2022 [1] pela Associação dos Membros dos Tribunais de Contas do Brasil (Atricon), por meio da qual a entidade tece diversas orientações às Cortes de Contas quanto à sua atuação em relação às transferências especiais de que trata a citada Emenda nº 105/2019, a começar pelo entendimento no sentido de que cabe às instituições com jurisdição sobre o respectivo ente local o controle externo definido na Lei Maior.

Em seu item 2, o documento recomenda aos tribunais que orientem os gestores dos entes federados beneficiários que, entre outras ações, registrem no Transferegov.br os dados e informações referentes à execução dos recursos recebidos; evidenciem detalhadamente a execução orçamentária e financeira oriundas de transferências especiais nos demonstrativos fiscais; e registrem a receita decorrente de transferência especial conforme classificação definida pelo órgão central do Sistema de Contabilidade Federal.

A propósito, cabe registrar que, em 19/8/2004, foi publicada a Portaria STN/MF nº 1.307, em atendimento às decisões proferidas no âmbito da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) nº 854, que estabelece medidas para aperfeiçoar a execução das emendas parlamentares inseridas no orçamento da União, a Coordenação-Geral de Normas Contabilidade Aplicadas à Federação (CCONF). A normativa tem por objetivo aprimorar as medidas de transparência na execução dos recursos decorrentes das emendas parlamentares, conferindo novas classificações para as rubricas referentes às transferências em foco.

Dados alarmantes

O Programa Nacional de Transparência Pública também tem se consolidado como um importante mecanismo de avaliação e de fomento à transparência nas instituições públicas de todo o Brasil. Trata-se de uma pesquisa, também feita pela Atricon, cujos resultados (os quais podem ser acessados através do sistema Radar) revelam dados preocupantes.

O tema das transferências especiais passou a ser contemplado no estudo a partir de sua segunda edição (2023) e, por meio dele, buscou-se verificar se os portais dos municípios brasileiros identificavam as mencionadas emendas especificando informações sobre a autoria, o valor previsto e o realizado, seu objeto e a respectiva função de governo.

Também foi analisado se o sítio governamental correspondente demonstrava detalhadamente a execução orçamentária e financeira atinente às transferências disciplinadas pela EC nº 105/2019 nos demonstrativos fiscais, isto é, aquelas relacionadas às emendas impositivas, assim chamadas nas hipóteses em que o Executivo é obrigado a executá-las quando aprovadas.

Os resultados da pesquisa são alarmantes: em relação ao primeiro aspecto, observou-se que, em 2023, apenas 1.110 dos 4.045 municípios avaliados (27,5%) exibem, em seus portais, os aspectos exigidos. Essas informações estão atualizadas (ou seja, referem-se a, pelo menos, 2022) em tão-somente 897 sítios.

Em 796, há divulgação de série histórica (isto é, há dados relativos, no mínimo, aos 3 anos que antecedem ao levantamento). Só 804 portais disponibilizam filtros de pesquisa com o objetivo de facilitar a busca de informações, e unicamente 815 permitem a gravação de relatórios em formato aberto.

Quanto ao segundo ponto, as taxas de atendimento são ainda menores. Somente 873 sites (21,6%) divulgam as informações, as quais estão atualizadas em apenas 651. Apenas 571 portais apresentam série histórica. No tocante às facilidades de acesso e manuseio dos dados, há filtro de pesquisa em 595 portais e possibilidade de gravação de relatórios em 609 deles.

Ainda de acordo com o estudo realizado pela Atricon, os municípios dos estados de Goiás, Paraná, Sergipe e Tocantins são os que, na média, apresentam mais transparência em relação ao tema, atingindo, respectivamente, os índices de 41,95%, 34,57%, 33,47% e 29,50%. Já os entes locais de Piauí (7,03%), Amazonas (7,14%), Mato Grosso do Sul (7,97%) e Roraima (8,46%) são os que exibiram os piores resultados.

Nome estado Índice de transparência geral Índice de transparência
emendas parlamentares
Goiás 73,81% 41,95%
Paraná 75,42% 34,57%
Sergipe 58,44% 33,47%
Tocantins 68,38% 29,50%
Ceará 70,10% 26,67%
Rondônia 78,92% 26,15%
Acre 56,57% 25,45%
Pará 77,85% 24,94%
Minas Gerais 74,92% 23,64%
Alagoas 55,84% 20,25%
São Paulo 57,87% 18,20%
Rio Grande do Norte 61,37% 17,69%
Maranhão 63,06% 17,64%
Pernambuco 55,94% 15,38%
Rio de Janeiro 57,94% 15,33%
Espírito Santo 67,52% 14,19%
Mato Grosso 60,15% 13,79%
Bahia 38,30% 13,34%
Santa Catarina 60,94% 11,83%
Paraíba 53,19% 10,51%
Rio Grande do Sul 59,36% 10,14%
Amapá 37,13% 9,38%
Roraima 37,36% 8,46%
Mato Grosso do Sul 52,03% 7,97%
Amazonas 43,74% 7,14%
Piauí 45,29% 7,03%

O Centro-Oeste (27,70%) e o Norte (22,09%) são as regiões que mais divulgam informações sobre emendas parlamentares. Sul (18,92%) e Sudeste (17,41%) apresentam desempenho semelhante. O menor índice, por sua vez, é o do Nordeste (14,07%).

Outra análise possível diz respeito ao nível de transparência de acordo com o porte populacional dos Municípios: quanto menor o ente, em regra, menor é a taxa de divulgação dos informes sobre emendas:

Faixa populacional Índice de transparência Índice de transparência emendas parlamentares
Até 5 mil habitantes 58,94% 16,86%
Entre 5 e 10 mil habitantes 58,97% 18,48%
Entre 10 e 20 mil habitantes 58,04% 18,33%
Entre 20 e 50 mil habitantes 60,66% 19,02%
Entre 50 e 100 mil habitantes 64,64% 22,18%
Entre 100 e 300 mil habitantes 68,44% 25,26%
Entre 300 e 500 mil habitantes 72,78% 34,47%
Acima de 500 mil habitantes 72,57% 37,25%

As situações colocadas exigem uma reflexão profunda e a implementação de ações corretivas urgentes. O fortalecimento do controle exercido pelos Tribunais de Contas é essencial para que possamos avançar em direção a um cenário onde a transparência não seja apenas uma promessa ou um compromisso, mas uma realidade consolidada.

Além disso, é fundamental que a sociedade civil esteja engajada nesse processo, acompanhando e fiscalizando a execução dessas emendas, exercitando o controle social. Mas, para isso, o pressuposto básico é o acesso à informação; afinal, não se controla o que não se conhece.

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Exoneração de pensão alimentícia após a maioridade do filho

A alimentação, alçada como direito fundamental e social pelo artigo 6º da Constituição, está incluída no direito aos alimentos, também conhecidos como “pensão alimentícia”, sendo prestações que visam satisfazer necessidades vitais de quem não pode provê-las. Não é objetivo deste artigo se alongar sobre os aspectos aprofundados da obrigação alimentar, mas sim fornecer um panorama prático sobre o tema da exoneração desta obrigação após a maioridade.

Antes de adentrarmos nesse assunto, é oportuno rememorar quais são os pressupostos da obrigação alimentar, que são: 1) o vínculo que enseja a obrigação alimentar, 2) a necessidade do alimentando e 3) a possibilidade de pagar do alimentante.

O vínculo alimentar, e aqui me refiro apenas aos alimentos de caráter familiar e não aos de aspecto indenizatório, se desdobram também em três: podem advir do poder familiar, da parentalidade ou da solidariedade.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Maioridade do filho

O poder familiar, que a melhor doutrina denomina “autoridade parental”, é aquele exercido pelos pais em relação aos filhos menores de idade. Está conceituado no artigo 1.630 do CC e tem os direitos especificamente discriminados nos incisos artigo 1.634. Todas as obrigações alimentares fixadas em favor de alimentado menor de idade têm por fundamento o poder familiar, além da parentalidade, é claro.

Deste modo, a parentalidade, como fundamento individual para obrigação alimentar, entra em cena individualmente após a maioridade do filho. Automaticamente após o filho completar a maioridade, cessa o poder familiar dos pais (e, portanto, o dever de alimentos decorrente deste poder) e inicia o dever de alimentos decorrente da parentalidade, neste caso apenas existente se houver necessidade da prole.

A necessidade, por sua vez, é presumida pela jurisprudência até os 24 anos, caso a prole nesse período esteja ainda cursando ensino médio, superior, técnico ou profissionalizante. Após os 24 anos ou após a conclusão do curso, o que vier primeiro, a presunção cessa e a obrigação alimentar também deve, em regra, se encerrar.

Entretanto, o encerramento da obrigação alimentar não se dá automaticamente. Para que tenha efeitos jurídicos, o encerramento da obrigação alimentar deve sempre ser determinado pelo juiz, seja em homologação de acordo, seja em ação litigiosa de exoneração de alimentos.

Para que seja possível a exoneração dos alimentos após os 18 anos em sede de liminar, é necessário substancial prova no sentido de o alimentando não preencher mais os pressupostos da obrigação alimentar. Parte da doutrina, inclusive, desaconselha a exoneração em liminar nesta hipótese. Isso porque é grande o risco de deixar a prole, eventualmente necessitada, desassistida.

Cenário atual e necessidade de apresentação de provas

É de se destacar ainda que no contexto social e econômico atual, é cada vez mais frequente que os filhos demandem mais tempo de preparação para começar a prover sua subsistência. Isso se dá pela necessidade de maior qualificação profissional para o exercício do trabalho. É por este motivo que a doutrina entende (e a jurisprudência reconhece, pacificamente) a presunção de necessidade do alimentando que estuda, ao menos até os 24 anos de idade, data limite para presunção.

Para se obter uma decisão liminar após o encerramento do poder familiar, ou seja, após os 18 anos, é necessário, portanto, farta prova de que os filhos não estejam cursando ensino médio, técnico, superior ou profissionalizante. Como essa prova é de considerável dificuldade (haja vista se tratar de prova de fato negativo), entendo que o ônus de provar os estudos sejam do alimentando.

De toda sorte, deve o alimentante provar ao menos indiretamente a capacidade de subsistência dos filhos. Isso pode se dar caso os filhos estejam laborando em tempo integral, sem estarem estudando, por exemplo. Ainda assim, por cautela, é de ser consideravelmente difícil na prática forense obter a tutela de exoneração em sede liminar nesses casos, sendo bastante provável a necessidade de se recorrer ao 2º grau para obtê-lo.

Após os 24 anos, porém, a situação muda de figura. A presunção que antes existia, não mais deve prevalecer. E torna-se ônus do alimentado comprovar a permanência de sua necessidade em continuar recebendo alimentos. A partir desta idade, entendemos que a manutenção dos alimentos só se justifica em casos de deficiência e/ou incapacidade para o labor, situações de evidente necessidade.

Por isso, entendo que a concessão de liminar, neste caso, deve ser a regra.

Solução consensual

Até o momento, vimos situações que envolvem processos contenciosos de exoneração de alimentos, ou seja, quando há necessidade de se ingressar com ação judicial por resistência da parte credora em exonerar o alimentante da obrigação alimentar.

Entretanto, uma via bastante importante para esse tipo de caso, ainda mais se considerando a configuração contemporânea do Direito Processual Civil e o contexto peculiar das demandas familiares, é a tentativa de resolução consensual da demanda.

Além de não deteriorar os frágeis laços familiares, a via consensual tem a vantagem de resolver a demanda com maior celeridade. Bastante que se faça e peça a homologação de acordo de exoneração de alimentos. Aqui, pode os causídicos de ambas as partes trabalhar com os interesses acessórios envolvidos na negociação, como esclarece Willian Ury na metodologia de negociação baseada em princípios. Ou seja, para ficar apenas num simples exemplo, podem as partes tratar não apenas da exoneração dos alimentos em si, mas também, se o caso exigir, numa disposição da parte alimentante de integrar o alimentado no mercado de trabalho.

Considerações finais

De todo modo, se o caso exigir o ajuizamento de processo contencioso para exoneração e não houver concessão de liminar, devem os alimentos serem pagos até que haja sentença exoneratória. Após, os efeitos da exoneração devem retroagir até a data de citação, entretanto, não há que se falar em reembolso dos alimentos pagos, uma vez que é característica da obrigação alimentar a sua irrepetibilidade (Sumula 621 do STJ).

Percebe-se que estas características do obrigação alimentar e os necessários ritos, tanto para a fixação, quanto exoneração desta, abrem margens para possibilidades de evidentes injustiças. Entretanto, no panorama geral, também temos de convir que esse conjunto normativo ainda é o que melhor nos assegura da garantia dos direitos fundamentais e sociais.

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Cooperação, transação e honorários de sucumbência

Semana passada, esta ConJur publicou reportagem de Danilo Vital sobre um caso que se encontra em julgamento pela 1ª Turma do Superior Tribunal de Justiça (Recurso Especial nº 2.032.814), cujo objeto é definir se a desistência de ação no contexto de transação tributária gera, para o contribuinte que desiste e renuncia ao seu direito, a obrigação de pagar honorários advocatícios para a Fazenda Nacional (aqui).

Este processo é originário do Tribunal Regional Federal da 4ª Região, que proferiu decisão reconhecendo que, uma vez que a desistência da ação é uma imposição da própria lei da transação (Lei nº 13.988/2020), não teria sentido a condenação do contribuinte ao pagamento de honorários advocatícios, uma vez que estaria apenas observando determinação legal. Veja-se o seguinte trecho da ementa desta decisão:

“A compreensão acerca do cabimento da verba honorária, no caso específico dos autos, tem a ver, justamente, com o fato de que o contribuinte, para aderir ao parcelamento de que trata a Lei nº 13.988, precisa renunciar ao direito que se funda na ação em que discutidos os débitos a serem incluídos naquele parcelamento. Como a própria lei do parcelamento prevê, além da renúncia, o pagamento de honorários advocatícios pelo devedor no ato de transação, não faz sentido — para evitar o enriquecimento sem causa da Fazenda Nacional —, o arbitramento de mais honorários por conta da extinção do processo judicial que, como visto, é uma imposição prevista naquela lei.”

A matéria chegou, então, ao STJ, no aludido Recurso Especial que se encontra sob a relatoria do ministro Gurgel de Faria que, conforme a matéria a que nos referimos acima, proferiu voto pela procedência do recurso da Fazenda Nacional.

Não é fácil apresentar crítica a uma posição do Ministro Gurgel de Faria, seja pelo respeito acadêmico que nos une, seja pela profunda admiração pessoal que tenho por ele. De toda forma, parece-me que, neste caso, a interpretação do TRF-4 não merece reparo.

Em primeiro lugar, causa-me certo espanto que a Procuradoria da Fazenda Nacional busque uma condenação de pagamento de honorários neste caso. Contudo, como tenho afirmado, o discurso público de cooperação e mudança dos paradigmas da relação entre Fazenda e contribuintes ainda se encontra descasado da realidade, sendo muito mais fácil defender cooperação em discursos do que implementá-la no mundo real. Sobre esta questão, afirmei em publicação recente que:

“[…] por mais que a busca por consenso e a proliferação de novos meios de prevenção e solução de controvérsias sejam, certamente, marcas do Direito Tributário contemporâneo, cremos que estamos mais diante de um processo em andamento do que de algo consolidado. Assim sendo, há ainda muito a se fazer para que a mentalidade de desconfiança que pautou a relação Fisco-contribuinte até aqui seja trocada pela confiança mútua.” [1]

Lei nº 13.988/2020

Voltando ao nosso tema principal, estamos cuidando, neste texto, dos efeitos da transação celebrada entre Fazenda Nacional e contribuinte, com base na Lei nº 13.988/2020. A questão central a ser respondida é: não havendo previsão explícita no acordo celebrado entre as partes sobre o tratamento a ser dispensado aos honorários advocatícios da Fazenda, estes seriam devidos em decorrência da desistência e consequente renúncia ao direito controvertido por parte do contribuinte? Cremos que a resposta a esta questão só pode ser negativa.

A análise desta matéria tem necessariamente que considerar a natureza da transação. Seja no Direito Civil, onde encontramos a origem do instituto da transação, seja no Direito Tributário, onde ela se encontra prevista no CTN desde 1966, podemos destacar como característica central de uma transação a inexistência de vencedor ou perdedor no litígio pela mesma encerrado.

De acordo com o artigo 840 do Código Civil, “é lícito aos interessados prevenirem ou terminarem o litígio mediante concessões mútuas”. Dessas poucas palavras se infere que a natureza da transação é que se trata de um mecanismo de solução de controvérsias por meio do qual as partes acordam que ambas ganham em parte e perdem em parte.

Ao examinarmos como a matéria foi disciplinada no Código Tributário Nacional vamos encontrar um espelho do Código Civil, com o artigo 171 prevendo que “a lei pode facultar, nas condições que estabeleça, aos sujeitos ativo e passivo da obrigação tributária celebrar transação que, mediante concessões mútuas, importe em determinação de litígio e consequente extinção de crédito tributário”.

Concessões mútuas

Nessa linha de ideias, vemos que havendo uma transação entre sujeito ativo e sujeito passivo de uma obrigação tributária, ela refletirá concessões mútuas. Portanto, é simplesmente impossível afirmar que haveria uma parte vencedora na transação. Como já destacava meu saudoso mestre, Ricardo Lobo Torres, “para que se caracterize a transação torna-se necessária a reciprocidade de concessões, com vista ao término da controvérsia. Renúncia ao litígio fiscal sem a correspectiva concessão é mera desistência, e, não, transação”. [2] (Destaque em itálico no original)

Ora, se a reciprocidade de concessões é da própria natureza da transação, a ponto de sua ausência desfigurar o instituto e transformar o ato ou negócio jurídico em outra coisa, que não uma transação, é óbvio que não seria possível apontar um vencedor em um litígio extinto por meio de uma transação.

Dessa forma, segundo vemos, é um erro considerar que em uma transação somente o contribuinte está desistindo da controvérsia e renunciando ao seu direito. A Fazenda Pública está fazendo o mesmo, desistindo e renunciando ao seu direito. Este aspecto da transação foi reconhecido pela inteligência de Bernardo Ribeiro de Moares, que destacava que, na transação “de um lado, a Fazenda Pública abre mão do seu direito de discutir a exigência fiscal; de outro lado, o contribuinte abre mão de seu direito de discutir a exigência fiscal”. [3]

O que talvez gere alguma confusão no campo da transação, especialmente no que se refere à transação por adesão no contencioso tributário de relevante e disseminada controvérsia jurídica, de que trata a Lei nº 13.988/2020 a partir do seu artigo 16, é que a forma de manifestação da desistência das partes é distinta.

Com efeito, diante do princípio da legalidade, esta modalidade de transação tem base na lei, sendo que, a própria publicação do edital de transação pela Procuradoria da Fazenda Nacional/Receita Federal implica na desistência de sua posição processual e na renúncia do respectivo direito pela União. Basta a adesão do sujeito passivo para que desistência e renúncia se consumem.

Assim sendo, é natural que caiba apenas ao contribuinte se manifestar no processo judicial em curso, desistindo e renunciando. A uma porque estamos tratando de ações ativas nas quais o sujeito passivo figura como parte autora; a duas porque a Fazenda Nacional já desistiu — ao menos potencialmente — quando da publicação do edital de transação.

Diante do exposto, parece-nos induvidoso que, na hipótese de uma transação, a não ser que uma das partes tenha expressamente concordado com o pagamento de custas e honorários judiciais, é impossível se cogitar de uma condenação dessa natureza, independentemente de previsão legal ou disposição no edital ou termo de transação.

Estamos diante de conclusão que é uma consequência natural e inafastável da própria natureza da transação. A não ser que se cogitasse de condenações recíprocas em honorários. Afinal, se o sujeito passivo perdeu em parte no litígio, certamente a Fazenda Nacional saiu, igualmente, parcialmente derrotada.

Consequentemente, acredito que a simples aplicação do artigo 90 do Código de Processo Civil neste caso, como se estivéssemos diante de um ato processual unilateral do sujeito passivo tributário ignora o contexto no qual se dá a desistência da ação em uma transação, desconsiderando, igualmente, que a Fazenda Nacional saiu tão derrotada do processo quanto o contribuinte.

Trata-se da aplicação de um dispositivo a partir de mera interpretação gramatical, desconsiderando-se a substância da relação jurídica subjacente e uma interpretação sistemática, teleológica e axiológica do citado dispositivo.

Note-se que não estamos nos referindo, neste texto, aos encargos legais decorrentes da inscrição do crédito tributário na Dívida Ativa da União. Estes, de regra, serão incluídos no cálculo da transação. A questão aqui é se, havendo eventual ação ativa ajuizada pelo contribuinte, que ele deva desistir, se neste caso seriam devidos (novamente) honorários à Fazenda Nacional.

Do modo como vemos, esta controvérsia só tem uma solução jurídica possível, na linha exposta acima. Contudo, o que realmente seria um sinal de esperança na reconstrução de uma relação de confiança entre a Fazenda e os contribuintes [4] era que sequer tivéssemos que aguardar um posicionamento do Poder Judiciário sobre esta matéria.

Ver a Procuradoria da Fazenda Nacional reconhecendo que, nesses casos, não há fundamento para a condenação do sujeito passivo ao pagamento de honorários permitiria acreditar que os muitos discursos que temos ouvido têm eco para além das salas de conferência e dos congressos de Direito Tributário.

___________________________

[1] ROCHA, Sergio André. Fundamentos do Direito Tributário Brasileiro. 3 ed. Belo Horizonte: Casa do Direito, 2024. p. 84. Não se pode perder de vista que a cooperação, agora, é um princípio constitucional explícito, como tratamos em artigo escrito juntamente com Marco Aurélio Greco (GRECO, Marco Aurélio; ROCHA, Sergio André. Vetores do Sistema Tributário Nacional  após a EC n. 132. Revista Direito Tributário Atual, São Paulo, n. 56, 2024, p. 772-773).

[2] TORRES, Ricardo Lobo. Curso de Direito Financeiro e Tributário. 20 ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2018. p. 290.

[3] MORAES, Bernardo Ribeiro de. Compêndio de Direito Tributário. 3 ed. Rio de Janeiro: Forense, 1999. v. 2. p. 457-458.

[4] Sobre o tema, ver: ROCHA, Sergio André. Reconstruindo a Confiança na Relação Fisco-Contribuinte. Revista Direito Tributário Atual, São Paulo, n. 39, 2018, p. 487-506.

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ABA publica cartilha para advogados evitarem ajudar clientes em crimes

O Comitê Permanente sobre Ética e Responsabilidade Profissional da American Bar Association (ABA) divulgou, na sexta-feira (23/8), novas diretrizes sobre a representação de clientes que buscam assistência jurídica para facilitar o cometimento de crimes.

ABA divulgou novas diretrizes sobre a representação de clientes que buscam assistência jurídica para facilitar o cometimento de crimes – 123rf

 

As diretrizes, expressas na Formal Opinion 513, recomendam aos advogados, entre outras coisas, “detectar e evitar envolvimento com atividades criminosas de atuais e, particularmente, de novos clientes” e, se for o caso, rejeitar a representação.

A ABA afirma que a aprovação das diretrizes por seu comitê de ética é necessária para orientar os advogados dos EUA, porque alguns descuidados têm ajudado, talvez inadvertidamente, clientes a “cometer crimes e fraudes”, por não dar a devida atenção ou não fazer a devida diligência sobre certas transações propostas por eles.

Especificamente, o documento cita como exemplo transações efetuadas com fundos vindos do exterior, cuja finalidade era promover lavagem de dinheiro ou financiamento de atividades terroristas.

 

As diretrizes estabelecem que um dos deveres do advogado é “investigar e avaliar os fatos e circunstâncias das situações e circunstâncias reais e potenciais de cada cliente, para se assegurar que a representação não contribua ou promova atividades criminosas”.

Para a ABA, a investigação das pretensões do cliente deve ser “razoável” e não apenas “superficial”. Mas também não precisa ser “do tipo operação policial, para elucidar todos os fatos sobre uma transação proposta pelo cliente”.

“O advogado não precisa resolver todas as dúvidas. Se restar alguma dúvida depois de o advogado realizar uma investigação razoável, ele pode prosseguir com a representação — desde que ele conclua que não está se envolvendo em um esquema criminoso”.

Mas se o advogado tiver conhecimento de que há uma alta probabilidade de que seus serviços jurídicos irão ajudar o cliente no cometimento de crime ou fraude, ele deve rejeitar a representação. Caso contrário, irá prestar assistência consciente e deliberada à realização de um crime.

De acordo com as diretrizes, em algumas circunstâncias o advogado deve interrogar o cliente, solicitar a apresentação de documentos e checar fontes públicas de informação. Se não estiver satisfeito com os resultados desse esforço, “o advogado deve rejeitar ou se retirar do caso”.

Na abertura de sua “Formal Opinion 513”, com o título de “Dever de investigar e avaliar fatos e circunstâncias de cada representação”, o documento resume o texto das diretrizes, dizendo:

“Conforme revisado recentemente, a Regra Modelo 1.16(a) prevê que: ‘Um advogado deve investigar e avaliar os fatos e circunstâncias de cada representação para determinar se pode aceitar ou continuar a representação’. Para reduzir o risco de aconselhar ou auxiliar um crime ou fraude, algum nível de investigação e avaliação é necessário antes de realizar cada representação. Investigação e avaliação adicionais são necessárias quando o advogado toma conhecimento de uma mudança nos fatos e circunstâncias relacionadas à representação, que levanta questões sobre se o cliente está usando os serviços do advogado para cometer ou promover um crime ou fraude.

A investigação e avaliação do advogado serão informadas pela natureza e extensão do risco de que o cliente atual ou potencial busque usar, ou persista em usar, os serviços do advogado para cometer ou promover um crime ou fraude. Se, após ter conduzido uma investigação razoável e baseada em risco, o advogado determinar que a representação provavelmente não envolverá assistência em um crime ou fraude, o advogado pode empreender ou continuar a representação. Se o advogado tiver ‘conhecimento real’ de que os serviços do advogado serão usados ​​para cometer ou promover atividade criminosa ou fraudulenta, o advogado deve recusar ou retirar-se da representação.

Quando a investigação inicial do advogado deixa o advogado com questões de fato não resolvidas sobre se o cliente atual ou potencial busca usar ou persiste em usar os serviços do advogado para cometer ou promover um crime ou fraude, o advogado deve fazer esforços adicionais para resolver essas questões por meio de investigação razoável antes de aceitar ou continuar a representação. O advogado não precisa resolver todas as dúvidas. Em vez disso, se alguma dúvida permanecer mesmo depois que o advogado tiver conduzido uma investigação razoável, o advogado pode prosseguir com a representação, desde que conclua que isso provavelmente não envolverá auxiliar ou promover um crime ou fraude.”

Sobre a obrigação de rejeitar a representação, as diretrizes da ABA dizem textualmente:

“Um advogado normalmente deve recusar ou retirar-se da representação se o cliente exigir que o advogado se envolva em conduta que seja ilegal ou viole as Regras de Conduta Profissional ou outra lei. O advogado não é obrigado a recusar ou retirar-se simplesmente porque o cliente sugere tal curso de conduta; um cliente pode fazer tal sugestão na esperança de que um advogado não seja restringido por uma obrigação profissional. De acordo com o parágrafo (a)(4), a investigação e avaliação do advogado sobre os fatos e circunstâncias será informada pelo risco de que o cliente ou cliente potencial busque usar ou persista em usar os serviços do advogado para cometer ou promover um crime ou fraude.”

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