Empresas devem zelar pela desjudicialização, diz advogado

Seja para escapar dos custos de uma ação judicial, seja para colaborar com a redução do número de processos, as empresas devem evitar acionar o Judiciário para resolver contendas, avalia o diretor executivo jurídico da JBS, Adriano Ribeiro.

“Eu acho que as próprias empresas devem zelar pela desjudicialização. Para o empresário em geral, é muito simples lavar as mãos e apenas esperar uma solução da Justiça. Acho que nas empresas, e em qualquer tipo de relação, seja com o consumidor, seja trabalhista, se for possível não levar para a Justiça, é melhor para todo mundo”, disse o advogado.

Ele tratou do assunto em entrevista à série Grandes Temas, Grandes Nomes do Direito, em que a revista eletrônica Consultor Jurídico ouve alguns dos nomes mais importantes do Direito, da política e do empresariado sobre as questões mais relevantes da atualidade.

Ribeiro observa que, mensalmente, todas as grandes empresas do país recebem milhares de novas ações, o que gera gastos elevados, traz complexidade desnecessária ao negócio e acaba tirando o foco da operação principal.

Diante dessa realidade, defende Ribeiro, cabe às empresas, cada vez mais, conscientizar as pessoas sobre a importância da desjudicializar as demandas.

“Quando me pedem para falar a respeito disso, eu sempre cito como exemplo o Conar (Conselho Nacional de Autorregulamentação Publicitária). Sempre que há uma disputa envolvendo empresas de publicidade ou algo nesse sentido, as pessoas não são levadas normalmente ao Judiciário. Lá, pode-se obter decisões rápidas, eficientes e baratas. E nenhuma das partes vai ao Judiciário depois contestar uma decisão do Conar”, disse Ribeiro.

“Precisamos de mais órgãos do tipo, que possam regular relações privadas, para que não se encha o Judiciário de novas ações.”

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Vicissitudes da operação ‘fonte não pagadora’: compensação de débitos de IRRF e malha fiscal

Para cumprir os princípios informadores da generalidade, da universalidade e da progressividade [1], o regime de tributação da renda das pessoas físicas exige, em regra [2], a consolidação de todos os rendimentos tributáveis na Declaração de Ajuste Anual do Imposto de Renda (DAA), quando calculados de acordo com a tabela progressiva de alíquotas, a fim de apurar o imposto de renda efetivamente devido [3].

As necessidades estatais e a demanda de arrecadação, contudo, não aguardam o encerramento dos exercícios para obter as receitas e o fluxo de caixa necessários para o suprimento de gastos e despesas oriundos das políticas públicas.

Por isso, o legislador tributário adota a sistemática de tributação por antecipação — pay-as-you-earn (paye), a partir da qual os rendimentos do trabalho assalariado e os demais rendimentos pagos por pessoa jurídica a pessoa física passam a estar sujeitos à retenção do imposto sobre a renda devido, no momento do seu pagamento aos beneficiários e titulares do rendimento [4], como salários [5] e remunerações decorrentes da prestação de serviços [6].

Nessa sistemática, a fonte pagadora, geralmente uma pessoa jurídica, ostenta a condição de responsável tributária [7], retendo o imposto sobre a renda na fonte e repassando aos beneficiários apenas o valor líquido.

O valor do imposto retido é considerado mera antecipação do valor do imposto de renda devido por ocasião da DAA, situação em que a pessoa física deverá apurar o saldo do imposto de renda a pagar ou o valor a ser restituído, relativamente aos rendimentos que tenham sido percebidos durante o ano-calendário [8].

Essa delicada relação entre a retenção e o recolhimento de débitos de Imposto de Renda Retido na Fonte (IRRF) promovidos pelas pessoas jurídicas, fontes pagadoras dos rendimentos, e o valor do imposto retido por antecipação e incluído na DAA pelo contribuinte pessoa física, beneficiário do pagamento recebido, é alvo de constantes fiscalizações pela Receita Federal, que, inclusive, possui iniciativas fiscalizatórias próprias para analisar a compatibilidade das informações declaradas por contribuintes e por fontes pagadoras de rendimentos.

Por meio da operação “fonte não pagadora” [9], a Receita realiza fiscalizações com base em indícios de infrações relacionadas ao recolhimento do IRRF, a partir do cruzamento eletrônico de dados declaratórios. A análise verifica a consistência entre as informações prestadas pelas pessoas jurídicas na Declaração do Imposto sobre a Renda Retido na Fonte (Dirf), os documentos relativos à constituição de débitos tributários federais — como a DCTF e a DCTFWeb — e os comprovantes do efetivo recolhimento, como Darfs e eventuais DComps.

Essa iniciativa fiscalizatória pode, inclusive, ensejar a identificação da prática de crime de apropriação indébita tributária, nos casos em que a fonte pagadora efetua a retenção do imposto, repassa o valor líquido ao beneficiário pessoa física, mas deixa de recolher aos cofres públicos o montante retido, descumprindo seu dever legal como responsável tributário.

Constatadas irregularidades ou divergências entre as informações declaradas nas obrigações acessórias, é comum que a Receita comunique as pessoas jurídicas e fontes pagadoras, concedendo prazo para a regularização da situação, sob pena de aplicação das sanções cabíveis. Por sua vez, as pessoas físicas beneficiárias dos rendimentos costumam receber notificações de pendências em procedimentos de malha fiscal logo após a entrega da DAA, que, em regra, exigem a apresentação de esclarecimentos e documentos comprobatórios, tanto para subsidiar o cruzamento de informações realizado pela Receita quanto para viabilizar a restituição de eventuais valores de imposto de renda pagos a maior no decorrer do ano-calendário.

Ocorre que, nos últimos anos, tem se tornado cada vez mais comum a abertura de procedimentos de malha fiscal e a indicação de pendências nas declarações apresentadas por pessoas físicas em razão exclusiva de as pessoas jurídicas e fontes pagadoras dos rendimentos terem optado por quitar os débitos declarados de IRRF por meio de compensação tributária — ou seja, mediante a transmissão de DComps que informam a utilização de créditos para a liquidação do débito —, ainda que não haja qualquer outra divergência quanto aos valores declarados, efetivamente recolhidos ou às informações prestadas nas obrigações acessórias.

Na perspectiva da Receita, o fato de os débitos de IRRF quitados mediante compensação estarem sujeitos à posterior homologação dos créditos indicados nas DComps seria, por si só, suficiente para justificar a abertura de procedimentos de malha fiscal e o apontamento de pendências nas DAAs das pessoas físicas beneficiárias dos rendimentos.

Como consequência, as declarações dessas pessoas físicas permanecem retidas na malha fina até que a Receita conclua a análise dos créditos compensados, procedimento interno sem prazo legal definido. Nesse período, os contribuintes ficam impedidos de receber eventual restituição do imposto de renda e, na prática, ficam à mercê da própria administração tributária. Agrava esse cenário o fato de que, conforme comunicado padrão da Receita, a entrega de documentos comprobatórios via e-CAC para que seja iniciada uma análise sobre a malha somente é permitida a partir de janeiro do ano seguinte, retardando ainda mais a possibilidade de regularização e recebimento da restituição da pessoa física.

Trata-se de um equívoco quanto à sistemática do exercício do direito de compensação tributária. Isso porque a compensação é uma das formas legalmente previstas para a extinção de débitos tributários pelos contribuintes. O artigo 156, inciso II, do Código Tributário Nacional (CTN) expressamente dispõe que a compensação constitui causa de extinção do crédito tributário — ao lado do pagamento, por exemplo —, produzindo os mesmos efeitos jurídicos no que se refere à quitação de débitos fiscais próprios do contribuinte.

No âmbito federal, a própria evolução normativa dos regimes de compensação de débitos administrados pela Receita — resultante das sucessivas alterações na legislação de regência — evidencia o desacerto do entendimento atualmente adotado pelas autoridades fiscais [10].

Originalmente, conforme artigo 66 da Lei nº 8.383/1991 [11], a compensação entre débitos e créditos da mesma espécie de tributo era realizada diretamente pelo contribuinte, independentemente de prévia autorização administrativa, sendo suficiente o registro da compensação na declaração fiscal apresentada pelo próprio sujeito passivo.

Como a compensação é realizada por iniciativa e sob responsabilidade do contribuinte, compete à Receita, no prazo legal de cinco anos, examinar a escrituração fiscal correspondente. Caso não promova a fiscalização nesse período — ou, ao fazê-la, não identifique inconsistências —, considera-se definitivamente extinto o crédito tributário, tendo-se a compensação como homologada tácita e integralmente quitado o débito correspondente.

Com o advento da Lei nº 9.430/1996, e redação original do artigo 74 [12], foi instituído um regime no qual a compensação envolvendo créditos tributários de espécies distintas e/ou com destinação diversa passou a depender de prévio requerimento dirigido à Secretaria da Receita Federal do Brasil, podendo ser formalizado pelo próprio contribuinte.

Embora a Lei nº 9.430/1996 tenha ampliado as possibilidades de compensação entre diferentes espécies de tributos federais, também impôs novas exigências ao contribuinte. O artigo 74 passou a exigir a formulação de um pedido formal de compensação dirigido à Receita, como condição prévia à extinção do crédito tributário. Tal exigência não existia sob a vigência do artigo 66 da Lei nº 8.383/1991, que permitia a compensação direta e automática pelo contribuinte. Na prática, ainda que possuísse créditos líquidos e certos perante o Fisco, o contribuinte ficou impedido de utilizá-los para quitar débitos até que houvesse a análise e aprovação expressa da Receita [13].

Diante da coexistência de dois regimes distintos de compensação de créditos tributários no âmbito federal, o governo federal editou a Medida Provisória nº 66/2002, posteriormente convertida na Lei nº 10.637/2002. Essa norma promoveu a alteração da redação do artigo 74 da Lei nº 9.430/1996, unificando o regime de compensação aplicável aos tributos administrados pela Receita e estabelecendo, de forma definitiva, um procedimento próprio para sua realização [14].

O novo modelo de compensação trouxe duas vantagens relevantes aos contribuintes em comparação aos regimes anteriores. Primeiro, passou a admitir a compensação entre créditos e débitos de naturezas jurídicas distintas ou com destinações constitucionais diversas. Em segundo lugar, instituiu um regime declaratório, que permite a compensação de forma direta, por iniciativa do contribuinte, sem a necessidade de requerimento formal ou de autorização prévia por parte da Receita.

Embora o novo regime não exija mais autorização prévia da Receita para a compensação, a legislação estabelece que o contribuinte deve apresentar uma Declaração de Compensação (DComp). Nesse documento, devem constar de forma expressa o valor do débito a ser quitado, a natureza e a origem dos créditos utilizados, bem como demais informações necessárias à identificação e à validação da operação compensatória.

Ao ser transmitida, essa declaração já produz efeitos de extinção do débito, embora sua validade fique condicionada à homologação posterior por parte da RFB, nos termos do § 2º do artigo 74 da mesma lei [15] — ao prever de forma expressa que a extinção do crédito tributário se sujeita à condição resolutória de ulterior homologação.

Indicação de pendências impõe ônus adicionais

Considerando que as condições resolutórias (ou resolutivas, nos termos do artigo 127 do Código Civil) não impedem a produção de efeitos do negócio jurídico até a sua realização, não se pode negar o efeito extintivo do crédito tributário à compensação tributária no momento transmissão da DComp — e não no posterior momento de sua homologação tácita ou expressa.

Dessa forma, no regime atual de compensação de créditos tributários na esfera federal, todos os efeitos decorrentes da extinção do crédito tributário pelo exercício do direito de compensação — formalizado por meio da elaboração, preenchimento e transmissão da DComp — produzem-se de imediato, independentemente de se aguardar a posterior homologação por parte da Receita.

Eventual não homologação ou a não declaração do DComp transmitido pela fonte pagadora, com a finalidade de compensar o débito de IRRF declarado, gera efeitos exclusivamente em face da própria fonte pagadora, e não do contribuinte pessoa física beneficiário do rendimento. Uma vez comprovada a efetiva retenção do imposto de renda sobre o valor pago, o ônus tributário já foi suportado pelo beneficiário, e a responsabilidade pelo recolhimento do tributo torna-se integral e exclusiva da fonte pagadora, nos termos do Parecer Normativo CST nº 1/2002 [16].

A própria Receita já consolidou o entendimento de que o imposto de renda retido exclusivamente a título de antecipação do tributo devido por pessoas físicas configura débito de responsabilidade da fonte pagadora. Trata-se, portanto, de obrigação própria da fonte, que pode ser extinta mediante compensação. Isso porque, caso a compensação seja considerada não declarada ou não homologada, a cobrança do valor correspondente ao imposto retido e não extinto será direcionada exclusivamente à fonte pagadora. Quanto à pessoa física beneficiária do rendimento, permanece a obrigação de oferecê-lo à tributação na DAA, podendo utilizar o valor efetivamente retido para deduzir do imposto devido [17].

Por essa razão, a indicação de pendências em procedimento de malha fiscal de pessoas físicas, motivada unicamente pela quitação dos débitos de IRRF pelas fontes pagadoras por meio de compensações (DComp), afronta não apenas a própria sistemática de compensação de tributos no âmbito federal, como também impõe indevidamente ônus adicionais a quem já arcou com o imposto retido, seja por meio da burocracia dos procedimentos de malha, seja pela postergação da restituição do IRPF a que faz jus.


[1] Art. 153, § 2º,  I, da CF.

[2] Existem casos de retenção exclusiva do imposto sobre a renda que não são incluídos na declaração de ajuste anual – normalmente existentes por motivações extrafiscais ou indutoras -, que não serão objeto de análise no presente artigo.

[3] Arts. 78 e 79 do RIR/2018.

[4] Art. 22, da IN RFB nº 1.500/2014.

[5] Art. 7º,  I, da Lei nº 7.713/1988 e art. 681 do RIR/2018.

[6] Art. 7º,  II, da Lei nº 7.713/1988 e art. 22, I, da IN RFB nº 1.500/2014.

[7] Art. 121, I, do CTN.

[8] Artigo 78 do RIR/2018.

[9] Aqui.

[10] Donovan Mazza. Manual de compensação tributária. São Paulo: Quartier Latin, 2018, p. 155-160

[13] MOREIRA, André Mendes. Da Compensação de Tributos Administrados Pela Receita Federal – Evolução Legislativa e Modalidades. Revista Dialética de Direito Tributário, São Paulo, n. 95, ago. 2003, p. 12.

[16] “IRRF RETIDO E NÃO RECOLHIDO. RESPONSABILIDADE E PENALIDADE.

Ocorrendo a retenção e o não recolhimento do imposto, serão exigidos da fonte pagadora o imposto, a multa de ofício e os juros de mora, devendo o contribuinte oferecer o rendimento à tributação e compensar o imposto retido.”

[17] Neste sentido: Solução de Consulta Cosit nº 377, de 22 de dezembro de 2014; Solução de Consulta DISIT/SRRF06 nº 6.025, de 20 de maio de 2016.

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IPCA para corrigir depósitos judiciais viola isonomia e deve gerar judicialização

A substituição da taxa Selic pelo IPCA para corrigir depósitos judiciais em ações envolvendo a União, qualquer de seus órgãos, fundos, autarquias, fundações ou empresas estatais federais dependentes viola o princípio da isonomia e deve causar judicialização.

Essa conclusão é de advogados consultados pela revista eletrônica Consultor Jurídico sobre a Portaria MF 1.430/2025, editada pelo Ministério da Fazenda no início do mês.

Ela apenas concretiza uma mudança já prevista pela Lei 14.973/2024. A norma revogou a Lei 9.703/1998, que determinava que os depósitos judiciais seriam corrigidos pela Selic, a taxa básica de juros da economia brasileira. Já o IPCA é o índice que mede a inflação.

O depósito judicial serve como garantia de uma obrigação financeira enquanto tramita um processo que discute a validade dessa obrigação. Em ações contra a União, ele evita sanções como a não emissão de certidão de regularidade fiscal ou o protesto da Certidão de Dívida Ativa.

A partir de 1º de janeiro de 2026, os depósitos judiciais serão feitos exclusivamente na Caixa Econômica Federal e os valores serão repassados à Conta Única do Tesouro Nacional — ou seja, poderão ser usados pelo governo.

Se o contribuinte vencer a ação, os valores depositados serão atualizados pelo IPCA acumulado no período. No último ano, a alta registrada foi de 5,67%. Trata-se de índice bem menos favorável do que a Selic, atualmente em 15% ao mês.

Além disso, o IPCA incidirá apenas uma vez, no momento do levantamento do depósito, e não mensalmente, no esquema de juros compostos — nesse caso, os juros de um período são adicionados ao capital inicial e os juros seguintes, calculados sobre esse novo valor.

Depósitos judiciais

Quando a Lei 14.973/2024 foi sancionada, em setembro, a ConJur fez um alerta sobre sua anti-isonomia e suas inconstitucionalidades. Com a definição do IPCA como índice de atualização dos depósitos judiciais, os efeitos passarão a ser sentidos em cascata.

Para Julia Rodrigues Barreto, advogada da área tributária da banca Innocenti Advogados, a medida vai desestimular o uso de depósitos para fins de garantia, já que será menos benéfico para o contribuinte. Haverá ainda, segundo ela, o risco de judicialização.

“Como a União continuará aplicando a taxa Selic para valores recebidos em atraso, a adoção do IPCA para correção de depósitos pode gerar debates judiciais sobre a necessidade de aplicação do mesmo índice em caso de devolução de tributos depositados e posteriormente julgados indevidos, com base no princípio da isonomia.”

Ela também destaca que a alteração reforça o caráter indenizatório e não remuneratório dos depósitos, o que pode ser interpretado como mera manutenção de patrimônio. “Pode suscitar discussões judiciais acerca da incidência de tributos sobre a atualização desses valores, além de questionamentos sobre o entendimento do STJ quanto à natureza remuneratória da correção pela taxa Selic.”

Para Rodolfo Bustamante, sócio do contencioso estratégico do escritório Bhering Cabral Advogados, o maior problema é que o decreto pode violar o princípio da isonomia, uma vez que a União continua a exigir dos contribuintes os seus créditos atualizados pela Selic, que inclui juros e correção, enquanto o IPCA tem rendimento muito menor.

“Isso fere o princípio da isonomia porque cria um tratamento mais oneroso para o contribuinte e mais vantajoso para a União, uma vez que a União não deposita valores em juízo para garantir suas dívidas discutidas judicialmente.”

Ele também prevê judicialização, uma vez que o Supremo Tribunal Federal já declarou a inconstitucionalidade de normas que distorcem os critérios de atualização monetária e juros em detrimento dos contribuintes.

É o caso, por exemplo, do Tema 810 da repercussão geral, no RE 870.947, que invalidou a aplicação da TR em condenações da Fazenda Pública em questões não tributárias por não garantir a recomposição do valor real da dívida.

Quebra da isonomia

Na opinião de Leonardo Gallotti Olinto, tributarista sócio do Daudt, Castro e Gallotti Olinto Advogados, o tratamento precisa ser isonômico porque o que está sendo depositado pelo contribuinte é um valor objeto de discussão judicial. Assim, a análise não pode se basear em um momento específico em que a taxa de juros seja maior do que o índice da inflação.

“O depósito judicial é computado como uma autêntica receita do governo federal, havendo rubrica própria inclusive no valor da arrecadação comunicada todo mês. Isso, não obstante ser uma distorção do sistema, pois o depósito está à disposição da Justiça, e não do ente tributante, é um indicador claro de que o tratamento a ser dispensado aos depósitos deve ser o mesmo dos pagamentos de tributos.”

Para o advogado, não faz sentido o Estado utilizar para finalidades diversas o valor depositado judicialmente e, quando tem de devolvê-lo ao contribuinte, o faça de forma distinta daquela que faria com um tributo pago indevidamente ou a maior.

“A aplicação da Selic sobre a dívida e do IPCA sobre o depósito aumenta a exposição do contribuinte a riscos”, alerta Julio Cesar Vieira Gomes, sócio do Julio Cesar Vieira Gomes Advocacia, ex-secretário da Receita Federal e ex-conselheiro do Conselho de Administração de Recursos Fiscais (Carf). “Com a diferença de critério, a garantia passa a cobrir pouco mais de um terço dos acréscimos sobre o principal, em caso de derrota.”

Empréstimo mais barato

Marcio Alabarce, advogado tributário e sócio do Canedo, Costa, Pereira e Alabarce Advogados, entende que a sistemática introduzida pela Lei 14.973/2024 é uma forma de empréstimo subsidiado ao governo federal.

Isso porque a Fazenda fica livre para fazer uso do dinheiro depositado judicialmente sem ter de pagar as taxas de mercado, apenas remunerando o IPCA se e quando ocorrer o levantamento do recurso pelo depositante. “Ou seja, as contas de depósito não vão sendo remuneradas mensalmente, como é comum em toda e qualquer conta de depósito.”

“Uma distorção que esse regime cria é o incentivo ao recolhimento para posterior compensação, pois a restituição dos valores é corrigida por Selic. E a distorção está justamente em que se aumenta a arrecadação de um lado. Mas, sendo um recolhimento indevido (ou de exigibilidade duvidosa), ao final pode vir a ser objeto de restituição futura. Aumenta-se a arrecadação, de um lado, mas em algum momento futuro isso vai afetar a arrecadação liquida com as compensações”, aponta Alabarce.

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A autorização como forma de outorga de serviços públicos: o caso das apostas de quota fixa

Tema que, embora não seja novo, atraiu novos holofotes mais recentemente, diz respeito às possibilidades e limites do recurso à autorização como forma de outorga de serviços públicos. O caso que aqui se seleciona para ilustrar o problema, diz respeito ao acirrado debate que ora se trava no Supremo Tribunal Federal em relação à legitimidade constitucional da Lei nº 14.790/2023, que tem por objeto a regulação das atividades lotéricas de aposta de quota fixa, mais conhecida como Lei das Bets. Como é notório, tal legislação foi impugnada mediante uma série de Ações Diretas de Inconstitucionalidade, dentre as quais se destaca a ADI nº 7.749, promovida pelo Procuradoria-Geral da República (PGR).

Dentre os diversos pontos questionados na referida ADI, o que aqui se busca apresentar e discutir diz respeito à alegada inconstitucionalidade do “próprio método de entrega da prestação do serviço em tela”, uma vez que a Lei nº 14.790/2023 institui a autorização como instrumento de outorga do serviço público lotérico da modalidade de aposta de quota fixa, o que, conforme sustenta a PGR, violaria o artigo 175, caput, da Constituição Federal (CF), que determina que incube ao poder público prestar serviços públicos diretamente ou sob regime de concessão ou permissão, mediante licitação.

Por mais que mereça todo o respeito e consideração o entendimento sustentado pela PGR, e sem que se vá aqui discutir o mérito de outros argumentos esgrimidos contra a Lei 14.790/2023, o fato é que tal linha de raciocínio soa equivocada, inclusive em face da própria jurisprudência do STF.

O fato é que as loterias são serviço público no Brasil, embora não o sejam por força de disposição constitucional, mas sim, por escolha legislativa, cabendo ao legislador definir o regime de outorga de tais serviços. Ademais, a utilização de autorização para outorga de serviços públicos não é estranha à CF, e, no caso específico, acaba por ser a opção que melhor atende ao interesse público e à proteção dos direitos e valores constitucionais implicados.

Calha gizar que não se encontra, na CF, qualquer disposição que atribua titularidade estatal às atividades lotéricas. Se as atividades lotéricas – incluídas aí as apostas de quota fixa – são serviços públicos, o são por escolha do legislador, e não do constituinte. No próprio julgamento conjunto das ADPFs nº 492 e 493 e da ADI nº 4.986, sobre o qual a PGR erige seu argumento, o voto do relator, ministro Gilmar Mendes, deixa o ponto claro: “desde 1932, como visto, o legislador não hesita em atribuir um regime de direito público a essas atividades”. Note-se, assim, que é o legislador ordinário, e não o constituinte, que atribui o regime de direito público às atividades lotéricas.

No mesmo sentido, o ministro Luís Roberto Barroso, em texto doutrinário datado de 2000, assim definiu a questão:

“A atividade de exploração de loterias é considerada como serviço público por definição legislativa desde 1932. […]

Portanto, no que se refere à natureza jurídica da atividade lotérica, legem habemus. É possível afirmar, assim, em linha de coerência com a posição doutrinária prevalecente acima explicitada, que no Brasil a atividade de exploração de loterias é qualificada desde muito tempo, e até o presente, como serviço público. Desse modo, mesmo não se tratando de atividade vital ou indispensável para a comunidade, as loterias são tratadas pelo ordenamento jurídico e exploradas pelo Estado como serviço público.

[…] De qualquer modo, ainda que assim não fosse, revelar-se-ia adequada a classificação adotada por Caio Tácito, que qualifica a atividade lotérica como serviço público impróprio, assim definido aquele que, embora não acuda a necessidade vital ou inadiável da comunidade, merece ser publicizado por conveniência administrativa ou financeira do Estado [1] (grifos do colunista).

Formalmente serviço público

As atividades lotéricas, logo se vê, não tem natureza essencial de serviço público, mas são assim qualificadas por desígnio legislativo, atendendo a fins estratégicos e de conveniência da administração. Conquanto seja extenso o tratamento doutrinário às loterias como serviço público, concepção hoje encampada pelo STF [2], a categorização se dá por adoção de perspectiva formalista de serviço público, segundo a qual, como explicou o ministro Gilmar Mendes, em seu voto na ADPF nº 492/RJ, “o que define o serviço público não é a avaliação subjetiva da relevância social da atividade, mas antes o próprio regime jurídico de direito público ou privado que lhe é correlato”. O ministro Barroso reconhecia que não se trata de “atividade vital ou indispensável para a comunidade” [3]; Caio Tácito já lecionava que o serviço lotérico “não tem a natureza ontológica ou essencial de um serviço público próprio, como prerrogativa inerente à atividade do Estado” [4]; Alexandre Santos de Aragão, por seu turno, inclui as loterias na categoria das “atividades econômicas exploradas pelo Estado, em regime de monopólio ou não, que possuem, naturalmente, interesse público, mas que não são relacionadas diretamente com o bem-estar da coletividade, mas sim com razões fiscais, estratégicas ou econômicas” [5].

Apesar de formalmente serviço público, portanto, a atividade lotérica não apresenta a essencialidade de um serviço público típico. Daí que não se fala em obrigação do estado em prestar serviços lotéricos, nem se cogita em obrigação de universalização dos serviços de apostas, nem há de se falar em dever de continuidade dos serviços lotéricos e de apostas, o que seria exigível se se tratasse de um serviço público essencial. O que se quer destacar com isso, é que é preciso compreender as atividades lotéricas e de apostas como sendo serviço público por motivo de conveniência administrativa, e não como uma atividade essencial que mereça um regime jurídico especial por se tratar de uma atividade prestacional com vista à promoção do bem-estar da comunidade.

Autorização como instrumento para outorga

A exploração de serviço público por autorização é, portanto, constitucional e é legítima. A delegação de serviços públicos por meio de concessão e permissão, precedida de licitação, busca assegurar os princípios constitucionais da impessoalidade, moralidade e eficiência, mas não deve ser encarada como um fim em si mesma, o que o e. STF vem explicitando em diversas oportunidades. O ministro Luiz Fux, relator da ADI nº 4.923, no qual se discutia a constitucionalidade do Novo Marco Regulatório da Televisão por Assinatura, definiu muito bem a questão:

“[…] o dever constitucional de licitar (CRFB, art. 37, XXI c/c art. 175, caput) somente incide nas hipóteses em que o acesso de particulares a alguma situação jurídica de vantagem relacionada ao Poder Público não possa ser universalizada. Seu pressuposto é, portanto, a escassez relativa do bem jurídico pretendido, em geral a celebração de algum contrato com a Administração Pública. Somente aí é que faz sentido confrontar propostas e selecionar apenas a mais vantajosa. Certames licitatórios não têm lugar nos casos em que todo e qualquer cidadão possa ter acesso à situação pretendida” [6] (grifos do colunista).

Mais recentemente, tal racionalidade foi explicitada também na ADI nº 5.549, que reputou constitucional a previsão de autorização como instrumento para outorga da prestação regular do serviço de transporte coletivo interestadual e internacional de passageiros desvinculada da exploração de infraestrutura. Conforme explicou o ministro Luiz Fux:

“É que, sem perder de vista o espírito normativo de concretização dos princípios constitucionais da impessoalidade, moralidade e eficiência, deve-se afastar qualquer perspectiva burocrática que torne a licitação um fim em si mesmaSe não preciso limitar a quantidade de prestadores, licitar apenas restringe a competitividade, sem a contrapartida de assegurar impessoalidade. Isso viola a moralidade e a livre concorrência. Quando eventualmente houver um monopólio natural, a competição para o mercado (competition for the market), via licitação, pode representar maior eficiência de custos. Isso porque a empresa capaz de dar o maior lance pelo mercado presumidamente atenderia o mercado sob o menor custo, além de a remuneração pelo monopólio poder ser repassada aos usuários por meio do preço. No entanto, sem que se trate de monopólio natural, o regime de ampla concorrência na execução do serviço público, via competição no mercado, mostra-se mais vantajosa do que a realização de licitação, que, por excluir todas as demais empresas não selecionadas, cria uma indesejável barreira de entrada no mercado, danosa aos usuários desses serviços [7] (grifos do colunista).

O ministro André Mendonça em seu voto também bem enquadrou a questão:

“tratando-se do setor de transporte rodoviário de passageiros, no qual, em regra, não há número máximo de agentes, não visualizo como a outorga do TRIPP por meio de autorização possa contrariar as disposições constitucionais que preveem, como regra geral, a realização de prévio procedimento licitatório. Pelo contrário, havendo interesse do particular em entrar no mercado do modal terrestre e, cumprindo todas as exigências previamente estipuladas pela ANTT, garante-se concorrência justa entre os participantes do setor e assegura-se uma prestação de serviços adequados aos usuários a partir da competição no mercado — e não para entrar no mercado.

Sendo assim, repito, como não há restrição do número de prestadores que podem ser habilitados pelo Poder Público, a licitação se torna um expediente inócuo para preservar a moralidade administrativa e a igualdade de oportunidades entre os possíveis concorrentes. Em sentido oposto, sua exigência cria barreira artificial indesejada, contrariando o interesse público na melhor prestação do serviço” (grifos do colunista).

O caso das apostas de quota fixa não é diferente, porquanto inexiste escassez do bem jurídico disputado. A Lei nº 14.790/2023 é expressa, em seu artigo 5º, sobre a inexistência do limite de autorizações. Da mesma forma, não se está diante de um caso de monopólio natural, que pudesse tornar a realização de licitação elemento necessário para preservação dos princípios da impessoalidade, moralidade e eficiência.

Além disso, a escolha legislativa pela exploração dos serviços de apostas de quotas fixas por meio de autorização, “em ambiente concorrencial” (artigo 4º, Lei nº 14.790/2023), com “natureza de ato administrativo discricionário, praticado segundo a conveniência e oportunidade do Ministério da Fazenda, à vista do interesse nacional e da proteção dos interesses da coletividade” (artigo 5º, Lei nº 14.790/2023), e sem “quantidade mínima ou máxima de agentes operadores” (artigo 5º, I, Lei nº 14.790/2023), não só é constitucionalmente legítima como acaba, ao fim e ao cabo, sendo a forma mais adequada para a proteção dos direitos e interesses em jogo.

Razão prática

Outro ponto arguido pela PGR vai no sentido de que a opção constitucional pela concessão e pela permissão precedida de licitação atende a uma razão prática, qual seja, à “necessidade de uma maior supervisão que a atividade sensível demanda do Poder Público Concedente”, e que a Lei nº 14.790/2023 teria optado pela “modalidade mais frouxa de vigilância do Estado”.

Também aqui é difícil concordar, já que mesmo um exame superficial da lei revela a previsão de um pesado sistema de fiscalização, inclusive com imposição de sistema auditável de acesso irrestrito e em tempo real pelo Ministério da Fazenda (Capítulo IX), além da presença (Capítulo X) de um significativo sistema sancionador, isso sem adentrar a extensa regulação administrativa dela decorrente. Soma-se a isso, o fato de que o regime de outorga de serviço público não define o grau de fiscalização exercido pelo Estado, sem falar na circunstância de que o emprego da autorização não implica, como já visto, necessariamente menor vigilância ou controle.

Seja como for, o fato é que a discussão merece ser travada e desenvolvida, sempre com o intuito de aperfeiçoar os modelos existentes e com isso chegar a melhores níveis de equilíbrio e de concordância prática entre os princípios e direitos em causa.


[1] BARROSO, Luís Roberto. Loteria – Competência Estadual – Bingo. Revista de Direito Administrativo, vol. 220, 2000, p. 264.

[2] Conforme aponta o Ministro Gilmar Mendes em seu voto na APDF nº 492/RJ, “Apesar de a jurisprudência desta Corte não ter enfrentado em maior profundidade a natureza jurídica das atividades lotéricas, no julgamento da ADI 2.847, parece ter prevalecido a ideia de que essas atividades não poderiam ser consideradas serviço público justamente por faltar a elas esse elemento da interdependência social.”

[3] BARROSO, Luis Roberto. Loteria – Competência Estadual – Bingo. Revista de Direito Administrativo, vol. 220, 2000, p. 264.

[4] TÁCITO, Caio. Loterias estaduais (criação e regime jurídico). Revista de Direito Público, nº 77, p. 75.

[5] ARAGÃO, Alexandre Santos de. Direito dos Serviços Públicos. 4ª ed. Belo Horizonte: Fórum, 2017, p. 144.

[6] STF, ADI nº 4.923, rel. Min. Luiz Fux, j. 08.11.2017.

[7] STF, ADI nº 5.549/DF, rel. Min. Luiz Fux, j. 29.03.2023.

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Nem toda tecnologia é lícita, ainda que convenha

Uso de inteligência artificial generativa na administração pública não é mais uma novidade. As iniciativas das organizações públicas — autonomamente ou acompanhada de agentes de mercado — sem empilham aos montes, com logotipos modernosos e jargões sobre o futuro, tecnologia ou avanço.

Não se pretende neste texto negar que a inteligência artificial seja uma tecnologia com enorme potencial de mudança da realidade das organizações públicas, com uma grande capacidade de ampliar as entregas feitas pelos agentes de Estado, com maior velocidade e a custos interessantes (embora não sejam exatamente negligíveis). Impõe-se todavia assumir um ceticismo quanto à soluções fáceis e prontas. De uma maneira geral, especialmente quando se fala de tecnologia e administração pública, a frase do jornalista estadunidense Henry Louis Mencken parece ser uma máxima com elevada taxa de acerto: “para todo problema complexo existe sempre uma solução simples, elegante e completamente errada”.

Examine-se o tema a partir da visão de um advogado público que atua em contencioso: ao receber uma notificação relacionada a um processo judicial cuja atuação fica sob sua responsabilidade, este profissional precisa executar diversas atividades, a depender de seu conteúdo. Cuida-se de uma citação? Se sim: são necessárias informações da autoridade administrativa para contestar ou é apenas matéria de Direito? Qual a unidade administrativa que detém  tais informações? (ou que será afetada pela decisão?) É um caso representativo de controvérsia? Existem modelos institucionais ou tese obrigatória para atuação nestes casos? Existem precedentes judiciais favoráveis? Qual a chance de êxito nesta demanda? Respondidas essas questões, de uma forma mais ou menos estruturada, vem a elaboração da peça processual ou documento de atuação correspondente.

Quando se tem em mente que o Estado é, no modelo institucional brasileiro, um grande litigante natural, não se pode deixar de reconhecer que o robô que faz parecer ou petição judicial com um só clique e índices de precisão que alguns fixam em 99,57% (o que quer que isso queira dizer na ciência do Direito) é uma tentação praticamente irresistível para organizações com significativa defasagem de mão de obra e ávidas por uma solução (vendida como) célere e pronta.

E é de se reconhecer que parte desta sede pelas soluções milagrosas é fruto de uma embriaguez tecnológica incentivada pelo mercado; parte, fruto de um diagnóstico equívoco da realidade sobre a dimensão do que realmente impacta o trabalho do dia a dia; e ainda um derradeira parcela, é produto de uma certa derrotabilidade torta: “estão todos fazendo, então tenho que fazer também”.

O erro, entretanto, não está em usar a inteligência artificial em si, mas sim no foco da implementação deste tipo de solução. Não é que essas ferramentas não consigam produzir peças (boas ou não), já que no atual estado da tecnologia elas podem produzir textos com coesão e fluidez textual. A questão é outra: em muitos casos não se deve usar IA, seja pelos riscos embutidos, seja pela inadequação do custo-benefício da solução.

Parte-se do princípio de que a identificação de soluções com inteligência artificial como meio apto a  substituir o trabalho intelectual nuclear das carreiras públicas (não raramente, com um verniz de regularidade caracterizado pela assinatura do ocupante do cargo ao final) é fundamentalmente equivocado, especialmente quando se considera os riscos inerentes do emprego deste tipo de tecnologia (“alucinação” [1]. captura tecnológica por determinado fornecedor, preocupações com a proteção de dados).

A pergunta então permanece: onde a IA pode ser empregada no domínio de atuação da advocacia pública?

A inteligência artificial pode ser uma poderosa aliada no ganho de produtividade, para adimplir tarefas de menor ou nenhuma carga intelectual e para auxiliar no trabalho de agentes públicos: classificação de processos (que, por si, permitiria a atuação claramente supervisionada por humanos); preenchimento de informações administrativas relativas aos processos; descoberta de controvérsias repetitivas; a realização de resumos e a integração entre sistemas ou entre bases de conhecimento; e outras tarefas que apareceriam claramente em qualquer mapeamento de fluxos feito dentro de uma instituição pública.

Numa perspectiva mais ampla, indo para além da simples aplicação de modelos de processamento de linguagem natural; mecanismos de IA aplicados à advocacia pública podem mapear em que termos se apresentam os litígios, contemplando variáveis como local, sujeitos envolvidos, tipologia da queixa. Afinal, a demanda judicial expressa em última análise, uma insatisfação para com o agir da Administração, que pode ter a esta última escapado, seja por miopia institucional, seja por insuficiência de mecanismos para a diagnose, seja ainda pela simples circunstância de, num ambiente que incentiva a judicialização, tenha o cidadão se dirigido diretamente ao Judiciário para manifestar seu inconformismo.

Verdade seja dita que diversos dos problemas que consomem tempo no dia a dia sequer precisam de IA generativa ou mesmo IA para serem agilizados ou eliminados. Caminho mais seguro seria a superação da não rara necessidade de trabalhar com dois ou três sistemas diferentes sem integração; a naturalização do uso de ferramentas ou funções disponíveis em sistemas institucionais já existentes (muitas vezes não utilizadas por falta de treinamento ou de “confiança”); e ainda a renúncia às práticas obsoletas de duplo ou triplo controle [2].

Mas onde reside a diferença substancial entre a realidade presente e as maravilhas da proposição da IA? Porque aceitamos o trabalho de um assessor humano ou um estagiário e não deveríamos aceitar o de uma máquina?

A primeira parte da resposta reside na necessidade de se enxergar uma cadeia clara de responsabilidade, eis que esta imputação subjetiva “é dimensão fundamental daquilo que entendemos por Direito” [3]. E não se pode partir do simples pressuposto de que a responsabilidade é simplesmente do agente signatário final da peça. Se levarmos em conta apenas os riscos decorrentes dos aspectos cognitivos comportamentais da interação humano-máquina e a ilusão de alguma neutralidade das decisões tomadas pela IA [4], já se teria fundamento pragmático suficiente para impor controles mais severos ao uso desta ferramenta. Mas é possível ir além: se a administração pública emprega um volume significativo de recursos na construção de um agente digital destinado a ajudar no trabalho de determinado agente humano, parece absolutamente natural o depósito de confiança institucional e pessoal nesta ferramenta.

A segunda parte da resposta a esta pergunta, que talvez escape do óbvio, se fundamenta no fato de que a IA (especialmente as IAs generativas) tem um campo desconhecido que não encontra compatibilidade com um Estado democrático. Essa objeção já foi levantada em alguns círculos, não raramente sendo apontada como “filosófica” ou “desconsiderando a realidade”.

Ainda que a crítica seja, ao menos em parte, procedente (afinal a objeção tem profundo aspecto valorativo), persiste a ideia de que o pragmatismo para o uso de ferramentas tecnológicas, especialmente na gestão pública, tem que levar em conta as nuances negativas desta tecnologia (com uma adequada análise de risco); a existência de um regramento principiológico e valorativo sobre as atividades estatais (ainda que ausente norma específica sobre a IA na administração pública) e a necessidade de reconhecer o papel intrinsecamente instrumental da tecnologia.

A tecnologia pode ser uma ferramenta poderosa, mas ela não substitui o julgamento, a ética e a sensibilidade humana, que não se confundem como a habilidade — hoje, compartilhada com as máquinas — de traduzir os julgamentos humanos em produtos textuais. Em última análise, pensar sobre o uso da inteligência artificial na administração pública nos leva a refletir sobre o papel do ser humano na tomada de decisões e na presença da empatia como valor no Estado Social [5].


[1] A expressão alucinação tenta arrefecer a percepção do risco oferecido pela tecnologia com uma palavra empática, na tentativa de humanizar as ferramentas (ou de reduzir a responsabilidade de quem lucra com ela). Quando uma ponte cai, por exemplo, não se vê falar em “alucinação” do concreto ou da estrutura. A expressão tradicional para nomear os desvios das obras de engenharia humanas parece muito mais adequada: erro.

[2] Quantos advogados públicos que tem um sistema digital para controle da carga de trabalho à disposição, mas insistem em manter uma planilha de Excel de controle em paralelo?

[3] GRECO, Luís. Poder de julgar sem responsabilidade: a impossibilidade jurídica do juiz-robô. 2020, p. 43-44.

[4] OSOBA, Osonde; WELSER IV, William. An intelligence in our image. Santa Mônica: RAND corporation, 2017. p. 11.

[5] RANCHORDAS, Sofia. Empathy in the Digital Administrative State. SSRN Electronic Journal, 2021. Disponível em: <https://www.ssrn.com/abstract=3946487>. Acesso em: 11 out. 2022. p. 6.

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Prazo para reparo de defeito não afeta direito ao ressarcimento de danos materiais

A Quarta Turma do Superior Tribunal de Justiça entendeu que o prazo de 30 dias do artigo 18, parágrafo 1º, do Código de Defesa do Consumidor (CDC) não limita a obrigação do fornecedor de indenizar o consumidor, o qual deve ser ressarcido integralmente por todo o período em que sofreu danos materiais.

Na ação de danos materiais e morais ajuizada contra uma montadora e uma concessionária, o autor afirmou que comprou um carro com cinco anos de garantia e que, em menos de 12 meses, ele apresentou problemas mecânicos e ficou 54 dias parado nas dependências da segunda empresa ré, devido à falta de peças para reposição.

O caso chegou ao STJ após o Tribunal de Justiça de Mato Grosso decidir que, além da indenização por dano moral, o consumidor tinha o direito de ser indenizado pelos danos materiais apenas em relação ao período que excedeu os primeiros 30 dias em que o carro permaneceu à espera de reparo. A corte local se baseou no parágrafo 1º do artigo 18 do CDC.

CDC não afasta responsabilidade do fornecedor

O relator na 4ª Turma, ministro Antonio Carlos Ferreira, disse que o CDC não exclui a responsabilidade do fornecedor durante o período de 30 dias mencionado no dispositivo, mas apenas dá esse prazo para que ele solucione o defeito antes que o consumidor possa escolher a alternativa legal que melhor lhe atenda: substituição do produto, restituição do valor ou abatimento do preço.

O ministro destacou que o prazo legal “não representa uma franquia ou tolerância para que o fornecedor cause prejuízos ao consumidor nesse período sem responsabilidade alguma”.

De acordo com o relator, uma interpretação sistemática do CDC, especialmente em relação ao artigo 6º, inciso VI – que trata do princípio da reparação integral –, impõe que o consumidor seja ressarcido por todos os prejuízos materiais decorrentes do vício do produto, sem limitação temporal.

“Se o consumidor sofreu prejuízos em razão do vício do produto, fato reconhecido por decisão judicial, deve ser integralmente ressarcido, independentemente de estar dentro ou fora do prazo”, completou.

Consumidor não pode assumir risco em lugar da empresa

Antonio Carlos Ferreira comentou que uma interpretação diversa transferiria os riscos da atividade empresarial para o comprador, contrariando a lógica do sistema de proteção ao consumidor.

Conforme apontou, o CDC busca evitar que a parte mais fraca arque com os prejuízos decorrente de defeitos dos produtos.

O ministro ressaltou, por fim, que “este entendimento não deve ser interpretado como uma obrigação genérica dos fornecedores de disponibilizarem produto substituto durante o período de reparo na garantia.

O que se estabelece é que, uma vez judicialmente reconhecida a existência do vício do produto, a indenização deverá abranger todos os prejuízos comprovadamente sofridos pelo consumidor, inclusive aqueles ocorridos durante o prazo do artigo 18, parágrafo 1º, do CDC”. Com informações da assessoria de imprensa do STJ.

Clique aqui para ver o acórdão
REsp 1.935.157

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Após força-tarefa, Seção Criminal do STJ agora só julga Habeas Corpus novos

Com o acervo finalmente em dia após nove meses da força-tarefa de juízes de primeiro grau convocados, a 3ª Seção do Superior Tribunal de Justiça, de Direito Criminal, agora pode se dedicar aos Habeas Corpus novos.

Força-tarefa de juízes ajudou a Seção Criminal do STJ a reduzir o acervo em quase 50% até agora

Esse cenário foi comemorado pelo ministro Herman Benjamin, presidente do STJ, durante o balanço do semestre feito em sessão da Corte Especial, nesta terça-feira (1º/7).

Desde outubro, os gabinetes das turmas criminais contam com até cem juízes de primeiro grau que atuam a distância no auxílio de ministros, sem prejuízo de suas atividades nas varas onde são titulares.

O presidente atualizou os dados dos resultados da força-tarefa. Os juízes convocados somam atuação em 55.353 despachos e decisões, tendo contribuído para a redução de 47,7% do acervo.

Seção criminal em dia

A 3ª Seção, antes a mais atolada em processos do STJ, hoje é a que tem o menor acervo: 59.144 casos, contra 71.116 da 1ª Seção (Direito Público) e 104.337 da 2ª Seção (Direito Privado).

“A 3ª Seção não tem mais acervo histórico de Habeas Corpus. Ou seja, os Habeas Corpus que estão sendo julgados são os novos”, comemorou Herman Benjamin.

O presidente do STJ confirmou que essa força-tarefa se encerrará em 20 de outubro. A partir daí, o desafio será manter o acervo sob controle, já que as razões para a explosão de HCs não se alteraram no país.

Os motivos são múltiplos, como vem mostrando a revista eletrônica Consultor Jurídico. O desrespeito aos precedentes por juízes e tribunais de apelação aparece como o principal deles, mas não é o único.

Em 2024, por exemplo, o STJ concedeu média de 56 Habeas Corpus e recursos em HC por dia — foram 20.604 no total, o que representou um aumento de 29,6% em relação a 2023, conforme dados do advogado e pesquisador David Metzker.

Fonte: Conjur

Inconstitucionalidade do artigo 24-A do Estatuto da OAB: direito penal do amigo e inimigo estrutural

O artigo 24-A do Estatuto da Ordem dos Advogados do Brasil (Lei 8.906/94) garante ao advogado o recebimento de até 20% dos bens universalmente bloqueados do cliente como forma de pagamento dos honorários advocatícios, exceto em crimes da Lei de Drogas.

Esta ressalva, alvo de crítica neste artigo, fere princípios fundamentais da CRFB/88 como da dignidade humana e devido processo legal. A análise se dá com base em um estudo jurídico, histórico e político, visando demonstrar a inconstitucionalidade da exceção contida no dispositivo aplicada aos delitos da Lei 11.343/06.

Direito de constituir advogado como instrumento do processo democrático

A Constituição (artigo 133) assegura que o advogado é indispensável à administração da justiça, e a constituição do defensor é parte inegociável do devido processo legal (artigo 5º, LIV e LV). A limitação imposta pelo artigo 24-A do EOAB nega ao acusado o direito de constituir advogado com recursos próprios. A norma, ao excluir a Lei de Drogas, afronta os pilares da processualidade democrática.

O Código de Processo Penal estabelece, em seu artigo 261, que ninguém poderá ser acusado sem a presença de um defensor. Já o artigo 263 dispõe que, caso o acusado não tenha um defensor constituído, o juiz deverá nomear um, ressalvando-se o direito do acusado de indicar outro de sua confiança.

Assim, a marcha processual depende não apenas da atuação de um defensor, mas daquele de livre escolha e confiança do acusado. Portanto, o direito de constituir advogado de sua confiança é uma garantia constitucionalizada, irrenunciável e indisponível. Se não há advogado legitimamente constituído, não há processo.

Autobiografismo político como gestador do dispositivo do EAOAB

O artigo 24-A do EAOAB tem origem legislativa no Projeto de Lei nº 5284/2020, de autoria do deputado Paulo Abi-Ackel (PSDB-MG), que propunha alterações em diversos dispositivos do Estatuto da Advocacia. No entanto, o referido projeto, em sua proposição inicial, não continha o dispositivo em discussão.

Posteriormente, o PL recebeu diversas alterações propostas pelo deputado Lafayette de Andrada (REP-MG), que, entre os anos de 2020 e 2022, introduziu o dispositivo e realizou modificações em sua redação. Em um primeiro momento, acertadamente, previa-se o direito da parte ré, nos casos de bloqueio universal, à destinação de até 20% do montante ao advogado constituído, para pagamento de honorários advocatícios e custas da defesa, mediante autorização judicial.

Entre o ano de 2020 e a apresentação do Parecer Preliminar de Plenário nº 10, às 11h38 do dia 15 de fevereiro de 2022, o projeto de lei não continha qualquer ressalva à Lei de Drogas. Contudo, ao anoitecer da mesma data, às 19h40, foi apresentado o Parecer Preliminar de Plenário nº 11, pelo relator, deputado Lafayette de Andrada, já incluindo a controversa — e inconstitucional — ressalva ao referido dispositivo, sem que houvesse qualquer emenda parlamentar que justificasse tal modificação.

Não bastasse a inclusão realizada ao final do expediente, momento em que muitos parlamentares já não se encontravam na Casa, chama atenção o fato de que, já na manhã do dia seguinte, 16 de fevereiro de 2022, o projeto foi submetido à votação e aprovado pela maioria. E menos de cinco meses depois, foi sancionado pelo então presidente Jair Bolsonaro, cuja retórica política sempre esteve fortemente pautada no combate ao tráfico de drogas.

Faz-se imprescindível delinear a trajetória do deputado Lafayette de Andrada, relator do projeto de lei e responsável pela apresentação da redação do artigo 24-A. Lafayette é deputado federal, advogado, professor de Direito e Ciência Política; filho, neto e sobrinho de deputados; além de descendente do jurista e patriarca da Independência, José Bonifácio de Andrada e Silva, e do inconfidente mineiro José Aires Gomes. Suas principais atuações incluem os cargos de vice-líder do Partido Republicanos, vice-presidente da Comissão de Constituição, Justiça e de Cidadania da Câmara dos Deputados, e presidente da Frente Parlamentar Mista em Defesa da Advocacia Pública no Congresso. Verifica-se, portanto, que a “ciência” do Direito, a prática da advocacia e sua relação ancestral com a política não são meros detalhes.

Ocorre que Lafayette de Andrada foi também o autor da inclusão, no “pacote anticrime” (Lei nº 13.964, de 24 de dezembro de 2019), do artigo 316 do Código de Processo Penal, que dispõe que o juiz poderá, de ofício, revogar ou novamente decretar a prisão preventiva, desde que presentes os requisitos legais.

Em 10 de outubro de 2020, com base no artigo 316 do Código de Processo Penal — incluído no “pacote anticrime” por iniciativa de Lafayette de Andrada —, o ministro do STF Marco Aurélio Mello concedeu liberdade a André Oliveira Macedo, conhecido como “André do Rap”, apontado como um dos líderes do Primeiro Comando da Capital (PCC). Após a expedição do alvará de soltura e a ampla repercussão midiática, o Supremo Tribunal Federal foi alvo de duras críticas. No mesmo dia, o então presidente do STF, Luiz Fux, revogou a decisão e determinou novamente a prisão de André do Rap. No entanto, ele já havia fugido e, até o momento (2025), permanece foragido.

decisum do ministro Marco Aurélio, em 2020, gerou intenso debate sobre a soltura de um conhecido membro do crime organizado e levantou críticas ao artigo 316 do CPP, incluído por iniciativa do deputado Lafayette de Andrada, bem como de sua pessoa [1].

As críticas vieram, em grande parte, de eleitores da direita, apontando uma incompatibilidade político-ideológica entre a família Bolsonaro e o deputado. Isso porque, além de ser o autor do dispositivo utilizado para fundamentar a soltura, de ofício, de um narcotraficante por um magistrado, Lafayette de Andrada dividia com Flávio Bolsonaro o mesmo partido político.

A controvérsia ganhou ainda mais repercussão quando os eleitores passaram a ver Lafayette não apenas como desalinhado aos ideais do ex-presidente, mas como o responsável pela medida que resultou na impunidade de um narcotraficante. Em contrapartida, o deputado declarou que:

“Repudio com veemência as reportagens veiculadas na imprensa que, por desconhecimento ou malícia, associam a soltura do traficante André de Oliveira Macedo, o André do Rap, a meu nome” […] “Não havia motivo para a soltura de André do Rap. Sou contrário à liberdade para criminosos. Fui autor de várias modificações que endureceram o texto do pacote anticrime. Entre eles, o que dificulta a progressão de regime, o que proíbe a ‘saidinha’ para crimes hediondos, o que amplia a pena para crimes cometidos com armas de uso proibido, entre outros. Esclareço, por fim, que sou daqueles que pensa que lugar de bandido é na cadeia” (UOL, 2020).

O deputado Lafayette de Andrada, ainda que sem intenção, acabou simbolizando, por alguns anos, a figura de um político contrário às causas defendidas pela “direita” e conivente com a perpetuação do crime de tráfico de drogas no país. Esse episódio parece ter abalado sua relação com a família Bolsonaro e com os eleitores então no “poder” — especialmente quando se observa, neste trabalho, que a criação do artigo 24-A do EOAB teria representado, supostamente, sua principal tentativa de defesa ou reafirmação política.

Curiosamente, desde a soltura de “André do Rap”, em 10 de outubro de 2020, até a tarde do dia 15 de fevereiro de 2022, o artigo 24-A apresentava apenas a redação que assegurava a destinação de até 20% do patrimônio universalmente bloqueado ao advogado regularmente constituído.

Contudo, na 11ª versão do parecer — apresentada às 19h40 do dia anterior à votação do projeto — foi incluída, sem qualquer justificativa jurídico-democrática plausível ou emenda parlamentar, a ressalva inconstitucional referente aos procedimentos regidos pela Lei de Drogas. Menos de cinco meses depois, o projeto seria sancionado pelo então presidente Jair Bolsonaro.

Após o deputado federal Lafayette de Andrada — que, à época, integrava o mesmo partido de Flávio Bolsonaro — ter sido publicamente apontado por eleitores de Jair Bolsonaro como um parlamentar que contribuiu, por meio do artigo 316 do Código de Processo Penal, para a soltura de um notório traficante internacional e líder do PCC, sua aparente decisão de incluir, no artigo 24-A, uma exceção excessivamente combativa — e flagrantemente inconstitucional — ao tráfico de drogas, na noite anterior à votação do projeto e a apenas cinco meses da sanção presidencial, sugere um possível gesto de realinhamento político com o então presidente da República e sua base eleitoral.

A inserção tardia e silenciosa da medida sugere uma possível tentativa de evitar questionamentos midiáticos que pudessem barrar o sancionamento da redação. Ao mesmo tempo, o deputado ainda teria, durante o governo Bolsonaro, uma espécie de “trunfo” nas mãos, caso sua posição político-criminal voltasse a ser questionada.

Por que a ressalva para a Lei de Drogas?

O artigo 24-A, visa garantir o direito à defesa mesmo em caso de bloqueio total de bens, mas negar essa garantia em crimes de drogas, fere diametralmente a Constituição. Ainda que o tráfico de drogas seja tratado de forma mais rigorosa em diversas normas e tratados, não há base constitucional para a supressão de direitos fundamentais.

Ademais, sustentar que a Defensoria Pública poderia suprir essa lacuna também não possui cabimento e previsão legal: a Defensoria é voltada apenas aos hipossuficientes e não possui estrutura equiparada (isonômica) ao Ministério Público.

A exclusão aos crimes da Lei de Drogas prejudica milhares de advogados criminalistas e atinge de forma desproporcional populações vulneráveis, principalmente negras e pobres. Ao impedir o exercício pleno do direito de defesa nesses casos, cria-se uma distorção inaceitável do processo penal democrático.

Direito penal do inimigo estrutural como garantia do direito penal do amigo

Surge a seguinte questão: qual seria a razão de não incluir, nessa ressalva, crimes como organização criminosa, prevaricação, corrupção, terrorismo, homicídio, comércio ilegal de armas de fogo, crimes ambientais, lavagem de dinheiro e outros delitos financeiros e fiscais, considerando que muitos, de alguma forma, estão conectados ao narcotráfico ou garantem a sua perpetuação?

A resposta está no fato de que o Direito Penal do Inimigo garante, por sua vez, o direito penal do amigo. Os crimes geralmente associados às classes desfavorecidas ganham os holofotes, enquanto os crimes que ameaçam a ordem financeira, o meio ambiente e a administração pública — em grande parte cometidos pela alta sociedade burguesa — permanecem sob o próprio controle dos holofotes: ninguém os vê. Assim, resta a esses grupos a alternativa de, inteligentemente, adequar, burlar e instrumentalizar o Direito para atender às suas próprias vontades. O Direito Penal do Inimigo, ao reforçar uma ordem social desigual, acaba por perpetuar essa desigualdade.

Conclusão

A razão para a flagrante inconstitucionalidade de parte do artigo 24-A insere-se no contexto do Estado de Coisas Inconstitucional, em que tudo parece diametralmente oposto à proposta da Constituinte de 1988. Diversos motivos se apresentam para justificar a inclusão da ressalva relativa aos crimes previstos na Lei de Drogas e, embora aparentemente dispersos, eles não são desconexos. De um lado, é possível que a ressalva tenha se originado de uma manobra política voltada à reaproximação do relator do projeto com figuras no poder e à proteção contra acusações de suposta leniência com o tráfico de drogas. De outro, ela reflete um processo histórico de enfrentamento ao narcotráfico na América Latina, frequentemente marcado pela ausência de limites legais.

Entretanto, há algo ainda mais profundo: a presença do direito penal estrutural do inimigo em diversas instituições públicas, autarquias e fóruns. Esse direito penal estrutural, claramente voltado para o desvio de atenção dos ilícitos praticados pelos “amigos”, contaminou até mesmo a instituição que deveria ser a maior defensora da processualidade democrática: a Ordem dos Advogados do Brasil.

Por fim, este trabalho propõe um debate técnico, com a participação dos legitimados do processo, da comunidade jurídica e acadêmica, para sustentar a inconstitucionalidade parcial do artigo 24-A do EAOAB perante o STF, em defesa dos princípios do Estado democrático de Direito.


Referências

BRASIL. Decreto-Lei nº 3.689, de 3 de outubro de 1941. Código de Processo Penal, disponível aqui

BRASIL. Lei Nº 11.343, de 23 de agosto de 2006. Institui o Sistema Nacional de Políticas Públicas sobre Drogas. Disponível aqui.

BRASIL. Lei nº 13.964 de 24 de dezembro de 2019, aperfeiçoa a legislação penal e processual penal, acesso em: 28 de novembro de 2024, disponível aqui.

BRASIL. Lei Nº 8.906, de 4 de julho de 1994. Dispõe sobre o Estatuto da Advocacia e a Ordem dos Advogados do Brasil, disponível aqui.

CÂMARA DOS DEPUTADOS. PL 5.284/2020. Projeto de Lei. Altera a Lei no 8.906, de 4 de julho de 1994, que dispõe sobre o Estatuto da Advocacia e a Ordem dos Advogados do Brasil – OAB, para incluir disposições sobre a atividade privativa de advogado, a fiscalização, a competência, as prerrogativas, as sociedades de advogados, o advogado associado, os honorários advocatícios e os limites de impedimentos ao exercício da advocacia.

FÓRUM. Deputado bolsonarista é o autor de artigo usado para libertar chefe do PCC: Lafayette de Andrada é deputado federal por Minas Gerais e pertence ao Republicanos, mesmo partido de Flávio Bolsonaro e Celso Russomanno, mas passou maior parte de sua vida política no PSDB. 12 out. 2020. Disponível aqui. 2024.

GUNTHER, Jakobs. Direito Penal do Inimigo. 1. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris. 2008.

UOL. Autor de artigo que baseou saída de André do Rap se exime e critica soltura. 12 out. 2020. Disponível aqui.

WIKIPÉDIA. Lafayette Andrada. Disponível em: https://pt.wikipedia.org/wiki/ Lafayette_Andrada. Acesso em: 28 de nov. 2024.

[1] FÓRUM. Deputado bolsonarista é o autor de artigo usado para libertar chefe do PCC: Lafayette de Andrada é deputado federal por Minas Gerais e pertence ao Republicanos, mesmo partido de Flávio Bolsonaro e Celso Russomanno, mas passou maior parte de sua vida política no PSDB. 12 out. 2020. Disponível aqui. 2024

Fonte: Conjur

Acesso a dados financeiros sensíveis: Ministério Público e polícia têm medo do Judiciário?

Na era da informação, dados pessoais são, antes de tudo, tratados como mercadorias. Justamente por essa razão, faz-se necessário o direito constitucional para assegurar sua proteção e impedir que o “ser humano seja tratado meramente como objeto ou como uma variável econômica”.. [2] O legislativo vislumbrou essa importância ao incluir a proteção de dados como direito fundamental específico (artigo 5º, LXXIX, CF) para além do sigilo tradicional dos dados (artigo 5º, XII, CF).

Esta coluna não versará sobre a questão dos dados pessoais sensíveis. O objetivo, como em texto anterior, é retomar a questão específica do sigilo dos dados financeiros e de seu compartilhamento pelo Coaf, mormente à luz das interpretações divergentes que vem sendo emprestadas ao Tema n° 990/RG:

É constitucional o compartilhamento dos relatórios de inteligência financeira da UIF e da íntegra do procedimento fiscalizatório da Receita Federal do Brasil, que define o lançamento do tributo, com os órgãos de persecução penal para fins criminais, sem a obrigatoriedade de prévia autorização judicial, devendo ser resguardado o sigilo das informações em procedimentos formalmente instaurados e sujeitos a posterior controle jurisdicional. 2. O compartilhamento pela UIF e pela RFB, referente ao item anterior, deve ser feito unicamente por meio de comunicações formais, com garantia de sigilo, certificação do destinatário e estabelecimento de instrumentos efetivos de apuração e correção de eventuais desvios.

Trata-se de tema crucial para a democracia e o tipo de Estado que aceitamos. Afinal, se aceitarmos que a investigação com quebra de sigilo pode ser feita sem o envolvimento do Judiciário, estar-se-ia criando um braço investigativo do Estado sem supervisão judicial. Noutras palavras, estar-se-ia chancelando a gestação daquilo que Ernst Fraenkel denominou um Estado Dual, situação em que o Estado — no caso de Fraenkel, o nazista —, longe de constituir uma realidade unitária, cindia-se entre a metade técnica, que observava regras e procedimentos legais, e a metade política, em que o Estado operava de forma abusiva, arbitrária e caótica. [3]

Em termos objetivos, a discussão tem como pano de fundo o artigo 15 da Lei n° 9.613/1998, [4] que impõe ao Coaf o dever de comunicar às autoridades “competentes” — leia-se, as autoridades persecutórias e especialmente o Ministério Público — quando concluir pela existência de crimes ou fundados indícios de sua prática, seja de tipos penais previstos ou não naquela lei.

O busílis reside na interpretação equivocada que às vezes é emprestada ao Tema n° 990/RG, para ver nele abarcado, também, e com base na Lei n° 9.613/1998, a possibilidade de o Ministério Público (e quiçá até mesmo a polícia) requerer diretamente ao Coaf relatórios financeiros sem a autorização prévia do Judiciário.

O problema da referida interpretação é antes de tudo normativo, justamente por subverter o que estabelece o Tema n° 990/RG. Há todo um conjunto de dispositivos que condicionam o fornecimento de dados financeiros sensíveis à reserva de jurisdição, cuja renúncia pelo Judiciário significaria restrição inconstitucional de suas próprias competências e, em última instância, diminuição do âmbito de proteção do princípio do acesso à justiça tal como previsto pelo artigo 5º, XXXV da CF.

Em primeiro lugar, o requerimento direto não é previsto pelo artigo 15, da Lei n° 9.613/1998, que só autoriza o compartilhamento espontâneo pelo Coaf e, na condição de regra restritiva de direitos fundamentais, deve ser ela própria lida restritivamente.

Além disso, a medida é expressamente vedada pelo artigo 1º, §4º da Lei Complementar n° 105/2001, que submete à reserva de jurisdição o requerimento de dados financeiros, assim como o faz, também, o artigo 3º-B, XI, “b”, “d” e “e” do CPP, incluídos pelo Pacote “Anticrime” (Lei n° 13.964/2019) e declarados constitucionais pelo STF nas ADIs 6.298, 6.299, 6.300 e 6.305.

A segunda ordem de razões que impede o requerimento sem observância da reserva de jurisdição é da ordem jurisprudencial. Nem a textualidade do Tema n° 990/RG, tampouco o caso que o originou, autorizam a compreensão de que algo além do compartilhamento espontâneo pelo Coaf foi chancelado pelo STF, e isso porque, a Corte parece ter consignado uma clara distinção entre os juízos técnicos de inteligência e de legalidade. O primeiro pertence à UIF/Coaf, e o segundo, às autoridades persecutórias, razão pela qual o pedido de compartilhamento deve ser feito à autoridade judicial, que apreciará a justificativa respectiva para tanto.

A justificativa constitucional para essa leitura, e essa é a terceira ordem de razões, é precisamente o resguardo constitucional dada à proteção de dados no art. 5º, LXXIX, para além da proteção tradicional dos dados pessoais (artigo 5º, XII). Aqui, a experiência alemã é particularmente elucidativa.

Ao decidir sobre o Censo de 1983, a Corte Constitucional Alemã Corte derivou do “direito geral de personalidade” [Allgemeinen Persönlichkeitsrecht] um “direito fundamental à autodeterminação informacional” [Grundrecht auf informationelle Selbstbestimmung], [5] que se refere ao direito de os indivíduos decidirem autonomamente quando e dentro de quais limites fatos sobre sua própria vida serão revelados, [6] sejam eles dados valiosos ou não, [7] e que é integrado, também, por uma dimensão “procedimental” de proteção por intermédio da qual o BVerfG se posicionou como um ator na implementação da proteção de dados [8] ao submeter o Legislativo a um controle de constitucionalidade que ultrapassa a etapa de elaboração legislativa para alcançar sua implementação prática. [9] [10]

Diferentemente do caso alemão, em que a “autodeterminação informacional” decorreu de uma construção jurisprudencial do BVerfG[11] a Constituição brasileira prevê atualmente a proteção de dados e a reserva de jurisdição para a autorização de seu requerimento direto ao Coaf pelo MP.

Trata-se, desse modo, de opção política legítima tomada pelo constituinte que deve ser respeitada por todos aqueles que integram lato sensu a persecução criminal, sob pena de o aparato persecutório, cioso de seus próprios meios e quiçá melindrado pelo Judiciário, constituir-se em parcela meramente “política” de um Estado tornado Dual, em que o direito é apenas seletivamente observado, tudo debaixo do argumento requentado e ad terrorem da “eficiência” no combate à corrupção, um dos motes contemporâneos da raison d’état.

Não se está aqui a discutir a possibilidade de o Coaf compartilhar espontaneamente as referidas informações quando seus mecanismos automatizados identificarem operações ou movimentações ilícitas, nem o valor probatório dos dados financeiros, tampouco a possibilidade de o Conselho fornecer tais dados ao Ministério Público.

Trata-se tão somente de respeitar a opção constitucional de submeter previamente ao Judiciário a análise da pertinência do acesso aos dados financeiros e, portanto, da restrição à regra geral de proteção dos dados pessoais dos indivíduos, até mesmo porque tais dados permanecem estáticos — não sofrerão alterações — e armazenados — não serão perdidos — nos registros do Coaf, razão pela qual não me parece existir absolutamente nenhuma justificativa para que o MP e a polícia — que também vem fazendo esse tipo de requerimento — não obedeçam a reserva de jurisdição.

Aliás, a situação provoca ainda uma outra e mais fundamental indagação: teriam parcelas do MP e da polícia medo do Judiciário? Se sim, por quais razões? Não estariam estes órgãos tão bem aparelhados e repletos de servidores competentes em condições de justificar de modo razoável a necessidade de acesso a tais dados? Por que submeter seu acesso a controle judicial a posteriori, quando o direito fundamental já foi restringido e os eventuais danos já consumados? Haveria algum argumento “político” que não poderia ser conhecido pela sua contraparte “técnica”?

Ora, ainda que a LGPD (artigo 4º, III, “d”) tenha excepcionado as atividades de investigação e repressão de infrações penais, o dispositivo seria patentemente inconstitucional se não observasse um postulado básico do constitucionalismo contemporâneo de que todo dispositivo constitucional possui alguma eficácia, ainda que simplesmente hermenêutica, como guia de interpretação para outros dispositivos constitucionais. Vale dizer, a opção político-constitucional continua vigendo e orienta a interpretação da proteção de dados pessoais quaisquer, em todos os âmbitos da atuação estatal.

O controle judicial do acesso a dados financeiros sensíveis tem como finalidade, não só garantir a sua pertinência probatória, mas dificultar a criação de um mercado paralelo de dossiês contra inimigos políticos, venda de dados, abuso de denúncias anônimas e etc.

Portanto, essa subversão degenerada que tem sido tentada em relação ao Tema n° 990/RG não viola apenas direitos fundamentais, mas também atinge a magistratura enquanto instituição democrática. Mais precisamente, autorizar que a polícia e o MP requisitem dados fiscais sem prévia autorização judicial é retirar também uma reserva de jurisdição, de modo a atingir prerrogativas da magistratura.

Nesse cenário, é fundamental que as entidades representativas da magistratura atuem para impedir que o Judiciário seja golpeado a pretexto de se favorecer, em abstrato, o combate à corrupção e ao crime organizado.

Não se trata apenas de uma questão (sensível) a ser tratada pela jurisdição constitucional; é também questão de legalidade stricto sensu e atinente às próprias garantias da magistratura, que podem, hoje ou amanhã, ser vítimas das circunstâncias que hoje autorizaram por terem sucumbido ao brado histérico e ad terrorem de que a avaliação judiciária prévia estaria a serviço do desmonte do combate à corrupção.

Após três décadas de democracia constitucional no Brasil, o Judiciário, e em especial o STF, demonstrou todo o seu empenho e credibilidade na defesa da democracia. Não há argumento que justifique blindar investigações de uma revisão judicial. Pelo contrário, impedir que o Judiciário avalie, previamente, a existência ou não de argumentos suficientes à autorização para compartilhamento de RIF, é um verdadeiro convite ao estabelecimento de um mercado ilegal de venda de dossiês e aniquilação de reputações sem sequer ter havido propositura de ação penal. A “lava jato” deveria ter ensinado algo à magistratura, MP, polícia e advogados. Frequentemente, contudo, sinto que permanecemos reféns de práticas “tão velhas quanto o mundo.

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[1] Jakob Wassermann. Golovin, 2ª ed., trad. Adonias Filho, Campinas: Sétimo Selo, 2024, p. 81.

[2] Fabian Uebele. Datenschutz und Kartellrecht, Berlim: Duncker & Humblot, 2022, p. 42.

[3] Ernst Fraenkel. „Das Dritte Reich als Doppelstaat“. In: Gesammelte Schriften, Baden-Baden: Nomos, 1999, v. II, p. 504; Georges Abboud. Direito Constitucional Pós-Moderno, 2ª ed., São Paulo: Revista dos Tribunais, 2024, p. 153 e ss.

[4] Art. 15. O COAF comunicará às autoridades competentes para a instauração dos procedimentos cabíveis, quando concluir pela existência de crimes previstos nesta Lei, de fundados indícios de sua prática, ou de qualquer outro ilícito.

[5] Fabian Uebele. Datenschutz und Kartellrecht, cit., p. 31-32. Cf. Rupert Scholz; Rainer Pitschasp. Informationelle Selbstbestimmung und staatliche Informationsverantwortung, Berlim: Duncker & Humblot, 1984, p. 11-15; 69 e ss; e Benedikt Buchner. Informationelle Selbstbestimmung im Privatrecht, Tübingen: Mohr Siebeck, 2006, p. 202 e ss.

[6] Cf. Gerhard Robbers. “Informationelle Selbstbestimmung und allgemeine Informationsfreiheit in Deutschland“. In: Juridica International, VII/2002, p. 98-105.

[7] Jörn Ipsen. Staatsrecht II: Grundrechte, 24 Aufl., Munique: Franz Vahlen, 2021, §317, p. 88.

[8] Rupert Scholz; Rainer Pitschasp. Informationelle Selbstbestimmung und staatliche Informationsverantwortung, cit., p. 56.

[9] Rupert Scholz; Rainer Pitschasp. Informationelle Selbstbestimmung und staatliche Informationsverantwortung, cit., p. 51-54.

[10] Cf. BVerfGE, 1 BvR 209, 269, 362, 420, 440, 484/83.

[11] Por todos, Jörn Ipsen. Staatsrecht II, cit., §318, p. 88.

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Equilíbrio orçamentário e controle do gasto tributário: criação da Secgat

Uma questão que deveria ser evidente para todos os que acompanham o ambiente político brasileiro é a centralidade do Direito Financeiro e do Direito Tributário. É raro uma pauta política relevante que não trate destes dois temas ou que não seja de alguma forma condicionada por questões financeiras e tributárias. Atualmente, parece que temos uma grande questão, o equilíbrio fiscal, sendo que tudo o mais, do Perse ao IOF, são subtemas do tema maior que é o equilíbrio das contas públicas.

Em uma coluna anterior (aqui), dedicada à reforma da tributação da renda, chamei a atenção para a total falta de coerência dos diversos atores que clamam pelo equilíbrio fiscal no Brasil. Parece-me relevante trazer para este texto os seguintes trechos do que afirmei naquela oportunidade:

Temos ouvido muito a fala de que “o Congresso Nacional assumiu o seu papel e a sua relevância em relação ao orçamento público”, como referência ao fato de que a última década testemunhou um crescimento das atribuições de deputados e senadores em relação a decisões de alocação de recursos. Contudo, só gasto não é o orçamento. O orçamento é composto de despesas, mas também de receitas.
O que temos testemunhado é que o Congresso (i) não tem nenhuma ação clara de redução de sua fatia do orçamento, (ii) luta contra tornar os seus gastos mais transparentes – a transparência é uma imposição da LRF e do § 3º do artigo 145 da Constituição Federal, e (iii) não tem interesse em medidas de equilíbrio orçamentário que o coloque em rota de colisão com a elite do serviço público – que eles integram – ou com a elite econômica – que muitos e muitas deputados e senadores também integram. Esta é a quintessência da austeridade seletiva. É a austeridade desde que não seja feita por mim e que eu não sofra seus efeitos.
Não é uma realidade muito diferente da que encontramos no “mercado” e no mundo dos “analistas”. Como apontamos, o “mercado” quer equilíbrio fiscal, desde que não tenha que contribuir com ele. Seria muito mais coerente se, além de exigir desindexação de benefícios dos X% mais pobres da população, o “mercado” trouxesse para a mesa também estudos para a redução do nosso monumental gasto tributário, ou que o jornalista, fazendo aquela crítica indignada sobre a “crise fiscal”, lembrasse que muitas vezes recebe seus vencimentos via pessoa jurídica, pagando muito menos imposto do que um assalariado com remuneração equivalente.

Tributação e finanças públicas são, em essência, baseadas em decisões alocativas relacionadas a quem vai receber prestações públicas e quem vai financiá-las. O Sistema Tributário Nacional foi, em larga medida, apropriado por quem deveria ser responsável pelo financiamento dos gastos públicos, e qualquer discussão sobre equilíbrio orçamentário deveria começar por uma revisão profunda dos gastos tributários que foram apropriados pelo topo da pirâmide de renda da sociedade brasileira.

Isonomia, generalidade da tributação e privilégios odiosos

Sabe-se que o princípio da isonomia é uma das pedras angulares do Sistema Tributário Nacional e estabelece que todos os que manifestem a mesma capacidade contributiva paguem o mesmo tributo. Contudo, como bem observava Ricardo Lobo Torres, a isonomia tem, em si, um paradoxo, em suas palavras, “o aspecto mais intrincado da igualdade se relaciona com a sua polaridade. Enquanto nos outros valores (justiça, segurança, liberdade) a polaridade significa o momento da sua negação (injustiça, insegurança, falta de liberdade), na igualdade o seu oposto não a nega, senão que muitas vezes a afirma. Aí está o paradoxo da igualdade”. [1]

Dessa forma, a questão mais complexa relacionada ao princípio da isonomia não está em afirmar que todos que manifestem igual capacidade contributiva devem pagar o mesmo tributo, mas em identificar as situações nas quais a desigualdade realiza os valores, princípios e finalidades constitucionais em maior medida do que a igualdade da tributação.

Mesmo que a igualdade conviva com a diferença, não é qualquer tratamento diferenciado que será compatível com a isonomia. Aquele somente se justificará por uma finalidade constitucional que a realize. Do contrário, teremos o que Ricardo Lobo Torres, de forma eloquente, chamava de privilégio odioso. Segundo nosso saudoso mestre “o privilégio odioso consiste na permissão, destituída de razoabilidade, para que alguém deixe de pagar os tributos que incidem genericamente sobre todos os contribuintes ou receba, com alguns poucos, benefícios inextensíveis aos demais”. [2]

Tamanho dos gastos tributários

Segundo o Relatório Nacional sobre Gastos Tributários elaborado por Paolo de Renzio, Manoel Pires, Natalia Rodrigues e Giosvaldo Teixeira Junior, disponibilizado em fevereiro de 2025 (aqui), “os gastos tributários no Brasil corresponderam a 4.78% do Produto Interno Bruto (PIB) em 2023, considerando somente o nível federal. Se os gastos tributários de nível estadual são incluídos, a proporção chega a 7.2% do PIB em 2023”. O gasto tributário da União Federal previsto para 2025 atingia exorbitantes R$ 544 bilhões (aqui).

É evidente que uma redução significativa do gasto tributário da União contribuiria significativamente para o tão falado equilíbrio fiscal. Nada obstante, mais problemático do que o tamanho do gasto tributário é a sua opacidade, a falta de políticas públicas claras e, principalmente, como apontamos, a sua conversão em privilégios para os mais ricos, à custa da pressão por corte de gastos que beneficiam os mais pobres.

Sugestões sobre o controle dos gastos tributários

Há diversas sugestões sobre como equacionar as distorções causadas pelos gastos tributários, desde a revisão dos regimes simplificados do IRPJ/CSLL, até a limitação de deduções com saúde (ver o Relatório Nacional sobre Gastos Tributários, aqui). Alternativas como estas certamente fazem sentido.

O Simples Nacional deveria ser apenas um regime de simplificação sem ser, necessariamente, corresponder a uma relevante desoneração fiscal. Nesse sentido, uma revisão da tabela do Simples seria certamente adequada. De outra parte, a previsão de limites às deduções de saúde, assim como as que vigoram para os gastos com educação, é outra medida que deve ser debatida abertamente com a sociedade.

Nada obstante, neste texto não queremos tratar deste aspecto “qualitativo” dos gastos tributários. Temos uma questão mais relevante, de natureza institucional, decorrente do fato de não haver uma efetiva gestão do gasto tributário da União Federal, utilizada, aqui, como paradigma.

Recentemente, na reforma tributária, tivemos uma experiência bem-sucedida com a criação da Secretaria Extraordinária da Reforma Tributária do Ministério da Fazenda. A Sert exerceu um papel fundamental de desenvolvimento técnico, interlocução pública, transparência e debate congressual de questões relacionadas à reforma tributária, tornando-se essencial para o avanço e aprovação da Emenda Constitucional nº 132/2023 e da legislação infraconstitucional subsequente.

Cremos que precisamos de uma estrutura similar com foco no gasto tributário, com a criação da Secretaria Especial para Controle do Gasto Tributário (Secgat).

Necessitamos, urgentemente, de transparência sobre o gasto tributário da União, muito além do que encontramos no Demonstrativo dos Gastos Tributários que acompanha o Projeto de Lei Orçamentária Anual. Ter transparência [3] não é só revelar quanto é o gasto tributário e onde está alocado. Exige que a sociedade entenda a justificativa da renúncia fiscal para que possa controlá-la e que seja possível verificar a existência de fundamento constitucional que a legitime. [4]

Por exemplo, a renúncia fiscal decorrente do Simples está escorada em justificativas que vão da suposta relevância das pequenas empresas na geração de emprego até a sua capacidade de inovação. Contudo, estudos como o publicado por Leonel Cesarino Pessôa, Alexandre Evaristo Pinto e Daniel Zugman (aqui) negam a existência de base empírica para tais premissas.

Dessa forma, este é um exemplo claro de um gasto tributário que demanda uma análise e discussão pública ampla e transparente, para que seja possível uma decisão política sobre a sua manutenção, readequação ou mesmo eliminação.

Um órgão federal inteiramente dedicado à questão do gasto tributário e da sua gestão, que gere informação técnica transparente de qualidade, certamente imporá ao Congresso a obrigação de se posicionar a favor da manutenção de privilégios — que no modelo atual certamente existem — ou da sociedade. Afinal, como destacaram Paolo de Renzio, Manoel Pires, Natalia Rodrigues e Giosvaldo Teixeira Junior, no citado Relatório Nacional sobre Gastos Tributários, “é possível afirmar que o Congresso Nacional é o principal ator na criação de gastos tributários, pois todos os novos incentivos precisam passar pelo Poder Legislativo”. (destaque nosso)

Tema recorrente nos debates contemporâneos sobre finanças públicas é o papel do Poder Legislativo na execução orçamentária. Contudo, o Legislativo buscou protagonismo no gasto público sem ter a mesma responsabilidade jurídica atribuída ao chefe do Poder Executivo.

Nesse contexto, uma medida salutar para que o Poder Legislativo passe a pensar a gestão fiscal de uma forma responsável é a criação de hipóteses legais de crimes de responsabilidade contra a lei orçamentária, que possam ser cometidos por deputados(as) federais e senadores(as), notadamente os (as) presidentes dessas Casas Legislativas.

Conclusão

O desvio de finalidade dos gastos tributários é uma das maiores patologias do Sistema Tributário Nacional. Temos um modelo tributário que cria privilégios disfarçados de iniciativas de política pública e redistribui o custo do orçamento para quem, não raro, sequer deveria contribuir, tudo isso com base em argumentos retóricos na maioria das vezes sem qualquer base empírica.

Este cenário tem que mudar, e a mudança, segundo vemos, passa pela institucionalização do controle do gasto tributário. Nesse sentido, a criação da Secretaria Especial para Controle do Gasto Tributário, ou qualquer órgão equivalente, poderá ser um grande passo adiante de um Sistema Tributário mais justo, alinhado ao que impõe o § 3º do artigo 145 da Constituição.

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[1] TORRES, Ricardo Lobo. Tratado de Direito Constitucional Financeiro e Tributário: Valores e Princípios Constitucionais Tributários. Rio de Janeiro: Renovar, 2005. v. II. p. 158.

[2] TORRES, Ricardo Lobo. Tratado de Direito Constitucional Financeiro e Tributário: Valores e Princípios Constitucionais Tributários. Rio de Janeiro: Renovar, 2005. v. II. p. 319.

[3] Sobre o tema da transparência, ver nosso texto publicado na semana passada em coautoria com Carmen Silvia Lima de Arruda (aqui).

[4] Ver: ROCHA, Sergio André. Fundamentos do Direito Tributário Brasileiro. 3 ed. Belo Horizonte: Casa do Direito, 2024. p. 131-139.

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