Banco Central intensifica participação social: olhar sobre consultas públicas

O Banco Central encerrou 2024 com a realização de 15 consultas públicas e outras formas de participação social, número que representa um salto significativo em comparação aos anos anteriores: foram apenas duas consultas públicas em 2023 e cinco em 2022. O volume reforça o papel estratégico da autarquia em promover discussões amplas sobre regulamentações que impactam setores como sistemas bancários, arranjos de pagamento, ativos virtuais e câmbio.

Banco Central sede

O movimento é uma resposta ao ritmo acelerado de transformações no mercado financeiro e digital, mostrando que a autoridade monetária está muito atenta ao que acontece no mercado, adotando uma postura proativa ao buscar compreender os modelos de negócios, as necessidades dos agentes e, ao mesmo tempo, buscar mitigar os riscos para o sistema financeiro nacional.

Entre as consultas encerradas em 2024, destacam-se temas como a recuperação e resolução de instituições financeiras e demais instituições autorizadas a funcionar pelo Banco Central e as diretrizes para os Planos de Recuperação e Saída Organizada dessas instituições (Consultas 98/2024 e 99/2024). Com base nas discussões promovidas, foram publicadas a Resolução CMN nº 5.187/2024 e a Resolução BCB nº 440/2024.

Avanços para investidores não residentes

Outro avanço foi a Resolução Conjunta nº 13, publicada pelo BC e pela Comissão de Valores Mobiliários (CVM) em dezembro de 2024, com mudanças significativas para investidores não residentes. Entre as novidades estão a ampliação das possibilidades de investimento direto a partir de contas de não residentes em reais e a dispensa de formalidades como a constituição de representante no Brasil para aportes inferiores a R$ 2 milhões mensais por intermediário.

Tais medidas não apenas simplificam o ambiente regulatório para investidores estrangeiros, mas também demonstram o esforço do regulador em fomentar o mercado de capitais, tornando-o mais dinâmico e acessível.

Há outras consultas já encerradas, relacionadas com a constituição, a organização e o funcionamento das sociedades de crédito, financiamento e investimento, conhecidas como “financeiras” (101/2024) e o gerenciamento de riscos em arranjos de pagamento do Sistema de Pagamentos Brasileiros, que impacta diretamente na atividade de cartão de crédito e débito (104/2024).

Sobre elas, resta aguardar se haverá a publicação da nova regulamentação e, caso seja, se as contribuições do mercado foram consideradas pelo regulador.

Prestação de serviços de ativos digitais

Em 2025, as expectativas giram em torno de temas ainda em consulta, como a regulamentação da atividade da prestação de serviços de ativos virtuais (109/2024, 110/2024 e 111/2024) e aprimoramentos no mercado de câmbio (112/2024). Outro tópico muito aguardado é a Consulta 108/2024, que trata da regulamentação de serviços de Banking as a Service.

A regulamentação de serviços de BaaS é de extrema relevância para a atividade bancária e de pagamentos, pois irá promover maior clareza sobre limites e responsabilidades das instituições. O Brasil avança para consolidar um marco regulatório robusto, e que é necessário para trazer segurança para as instituições, para as empresas que contratam os serviços e para os usuários finais.

Além disso, a Consulta 113/2024 propõe a padronização de eventos de interoperabilidade entre entidades registradoras de recebíveis, com impacto direto na eficiência das operações de crédito e pagamentos.

Para 2025, o mercado aguarda o encerramento das consultas em andamento e a publicação de novas normas que possam refletir as contribuições recebidas desde o último ano.

O movimento é positivo, já que a evolução do mercado brasileiro depende de regulamentações que tragam previsibilidade e fomentem a inovação, demonstrando a preocupação do regulador em editar normas sem travar os negócios, promovendo maior competitividade no ambiente financeiro.

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Para tributaristas, reforma acerta ao não responsabilizar empresas do mesmo grupo econômico

Sancionada na última semana, a Lei Complementar 214/2025, que regulamenta a reforma tributária, estabeleceu que uma empresa só pode ser considerada responsável solidária pelo pagamento do IBS e da CBS — tributos que ainda serão implementados — devidos por outra empresa do mesmo grupo econômico caso tenha praticado ilícitos. Na opinião de tributaristas consultados pela revista eletrônica Consultor Jurídico, a regra é positiva e enterra qualquer discussão sobre o tema, que ainda era motivo de questionamentos.

A responsabilidade solidária ocorre quando mais de uma pessoa física ou jurídica tem a obrigação de pagar uma mesma dívida ou outro tipo de obrigação. No contexto de um grupo econômico, se uma empresa precisasse pagar impostos, todas as outras do grupo também seriam responsáveis.

Mas, de acordo com o §3º do artigo 24 da lei complementar, “a mera existência de grupo econômico” não gera responsabilidade solidária se não ocorrerem as ações ou omissões listadas no inciso V do mesmo artigo.

O inciso em questão diz que são responsáveis solidários pelo pagamento do IBS e da CBS aqueles que descumpram obrigações tributárias por meio de “ocultação da ocorrência ou do valor da operação” ou “abuso da personalidade jurídica, caracterizado pelo desvio de finalidade ou pela confusão patrimonial”.

O advogado Diego Diniz Ribeiro, sócio do escritório Daniel & Diniz Advocacia Tributária (DDTax), entende que a regra é benéfica, pois “reforça a ideia de que a simples existência de grupo econômico não pode implicar o redirecionamento da cobrança” dos tributos devidos por uma empresa para outras vinculadas. Segundo ele, isso “está em sintonia com outras disposições legais já existentes e precedentes dos nossos tribunais judiciais”.

Na visão de Leonardo Aguirra, sócio do Andrade Maia Advogados, o §3º do artigo 24 “representa um passo importante na direção de proteger os contribuintes contra acusações fiscais”.

De acordo com o advogado, o Fisco vinha usando o artigo 124 do Código Tributário Nacional (CTN) para “buscar atribuir responsabilidade a grupos econômicos”. Esse dispositivo prevê que a responsabilidade solidária ocorre em casos designados por lei ou quando as pessoas têm “interesse comum na situação que constitua o fato gerador da obrigação principal”.

A alegação era de que haveria “interesse comum” dentro de um grupo econômico. Com a LC 214/2025, essa tese do Fisco “cai por terra”, na avaliação de Aguirra.

Caminho certo

Maria Rita Ferragut, sócia e líder da prática tributária do Trench Rossi Watanabe, também vê a regra da lei complementar como um acerto: “O que implica o dever de empresas controladas, coligadas ou unidas por controle responderem por débitos tributários umas das outras, sem qualquer divisão ou ordem de preferência, não é a circunstância de fazer parte de um grupo econômico, já que os atos e as omissões de uma sociedade não interferem na esfera jurídica das demais integrantes do grupo”.

Segundo ela, responsabilizar uma empresa apenas por participar de um grupo econômico viola a Constituição. O parágrafo único do artigo 170, por exemplo, prevê que o “livre exercício de qualquer atividade econômica” é garantido a todos, exceto nos casos previstos em lei.

Para Ferragut, a LC 214/2025 “respeitou a autonomia das pessoas jurídicas, a jurisprudência judicial consolidada e evitou um desnecessário contencioso”.

A advogada lembra que o STJ já vem decidindo há anos que a responsabilidade solidária não ocorre apenas pela participação em um grupo econômico. Além disso, a própria Receita Federal já estabeleceu, em um parecer normativo de 2018, que grupos econômicos “não podem sofrer a responsabilização solidária, salvo cometimento em conjunto do próprio fato gerador”.

Assim, a tributarista conclui que o §3º do artigo 24 da nova lei “é suficiente para evitar qualquer questionamento acerca da responsabilidade tributária solidária do IBS e da CBS advinda exclusivamente do fato de as empresas fazerem parte de um grupo econômico, uma vez que tal prescrição alinha-se com a jurisprudência, doutrina e demais normas jurídicas, inclusive o CTN”.

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O whistleblower e o agente colaborador: notas e distinções

Há décadas, a literatura jurídico-penal estrangeira vem, continuamente, fazendo referência a formas complementares à legislação criminal interna “tradicional” como meio de prevenção à prática de delitos (principalmente relacionados à corrupção) nos setores público e privado. Do mesmo modo, no âmbito internacional, há evidente enfoque no trato global do combate à corrupção e à criminalidade econômica em geral por meio de normas internacionais sobre o tema como, por exemplo, a Convenção das Nações Unidas contra a Corrupção (Convenção de Mérida) [1] e a Convenção Interamericana contra a Corrupção (no âmbito da OEA) [2]. Nesse passo, aperfeiçoaram-se institutos de política criminal como a colaboração premiada, a leniência e a figura do whistleblowing.

Sem o intuito de fazer aqui uma digressão histórica do whistleblowing, termo anglo-saxão que pode ser traduzido como “assoprando (blowing) o apito (whistle)” em referência aos antigos policiais ingleses que logo silvavam o apito para alertar colegas sobre eventual descoberta e fazer cessar a conduta delitiva – to blow the whistle).

whistleblower pode ser definido como a pessoa que denuncia, comunica ou informa para a sua própria organização, para uma autoridade externa ou mesmo publicamente, o conhecimento da prática de delitos ou de má-condutas corporativas (ilícitos civis ou administrativos). Nas palavras de Rodrigo de Grandis, o whistleblower é aquele que “ao tomar conhecimento de uma irregularidade ou de um crime concretizado no âmbito de sua atividade profissional, ‘toca o apito’, ou seja, comunica a ocorrência às autoridades competentes, como a polícia ou o Ministério Público, embora não tenha nenhuma obrigação legal nesse sentido” [3]. Figura, portanto que não se confunde com o colaborador premiado, cujas distinções serão vistas mais adiante.

É preciso dizer que este instituto é muito conhecido em países como Inglaterra e EUA [4]. Mais recentemente, diante da Diretiva Whistleblowing da União Europeia de 2019, legislações foram inseridas também em países como França (Sapin II de 2022), Alemanha (Hinweisgeberschutzgesetz – HinSchG de 2023), e Espanha (Ley de protección de las personas que informen sobre infracciones de 2023).

 

Portanto, dentro dessa perspectiva, nos últimos anos, a figura do whistleblower tem sido significativamente estudada e reconhecida por diversas legislações nacionais e internacionais, o que lhe tem conferido um impulso e importância singulares, por exemplo, para os programas de compliance e aos compliance officers [5].

No Brasil, onde parte da doutrina adaptou o termo whistleblower para “informante do bem” (pode-se, também, recorrer às legislações espanhola e francesa que se referem ao whistleblower apenas como informante, denunciante ou alertador), incorporou-se a figura ao ordenamento jurídico brasileiro por meio da Lei 13.608/2018, contanto o denunciante com a proteção obrigatória do sigilo de seus dados, bem como a possibilidade de recebimento de recompensa em espécie (paga pelo ente federativo no âmbito de sua competência) em razão da denúncia realizada e informações prestadas ao ente público ou entidade privada sem fins lucrativos (artigo 2º da Lei 13.608/2018).

Posteriormente, ainda que de modo deficiente, a Lei 13.964/2019 (denominado pacote anticrime) nos artigos 4º-A, B e C, buscou ampliar a atuação do denunciante, determinando que órgão da administração direta mantenham canais de ouvidoria ou correição com finalidade de receber denúncias ou informações de qualquer pessoa que tenha conhecimento de crimes praticados em âmbito da administração pública ou da iniciativa privada, ilícitos administrativos ou quaisquer outras ações ou omissões lesivas ao interesse público [6]. O problema é que muitas destas questões precisam ser mais bem regulamentadas, tanto do ponto de vista do pagamento da recompensa, quanto da proteção à vida, integridade física, estabilidade do emprego etc. daquela pessoa que pretende alertar terceiros sobre o conhecimento ou descoberta.

Distinções

Feita essa pequena introdução, cabe, agora, apontar, do ponto de vista penal, ao menos cinco diferenças entre o whistleblower e o colaborador premiado, este último, regulado pela Lei 12.850/2013 [7].

 

Spacca

 

Primeiro. O âmbito de aplicação do colaborador premiado é restrito a casos criminais, isto é, o agente colaborador é investigado ou acusado em uma persecução penal. Por sua vez, o whistleblower é pessoa interna ou externa à organização da qual denuncia (setor público ou privado), podendo denunciar casos práticas ilícitas não somente do ponto de vista criminal, mas também em caráter civil e administrativo.

Segundo. Sobre participação no ilícito. As informações prestadas pelo colaborador premiado estão obrigatoriamente vinculadas a sua participação criminosa no delito investigado ou processado (confissão). O whistleblower, ao menos no Brasil, não tem participação alguma na empreitada criminosa que ele denuncia, ele apenas aponta a responsabilidade de outras pessoas ou organizações.

Em terceiro lugar, quando se fala em colaboração premiada, tem-se um negócio jurídico processual firmado por escrito, estratégico e que represente a vontade das partes negociantes, sendo o colaborador obrigatoriamente representado por advogado com poderes específicos, seguindo uma sucessão de formalidades como a gravação dos anexos da colaboração e a homologação judicial do acordo propriamente dito. Já o whistleblowing, não há forma exclusiva, podendo ser realizado, inclusive, por telefone via disque-denúncia, assegurando o sigilo (anonimato) do whistleblower, conforme o artigo 3º da Lei 13.608/2018.

O quarto ponto é a questão da cooperação propriamente dita. Como ressaltado em ponto anterior na colaboração premiada, a cooperação com as autoridades decorre de uma ameaça a uma alternativa mais severa, isto é, ameaça de maiores sanções (civil, administrativa ou criminal) em caso de não cooperar. No caso do denunciante, não há qualquer ameaça às sanções, pois não há envolvimento no ilícito.

Por fim, outra distinção que merece referência é a do resultado premial. No instituto da colaboração premiada, além da renúncia a direitos processuais, o colaborador fica obrigado a fornecer informações úteis aos órgãos de persecução penal (polícia ou MP), recebendo, como contrapartida, concessão de prêmios na sentença, como o perdão judicial, a redução da sanção penal ou a substituição do regime de cumprimento de pena ou, ainda, a substituição da pena por restritivas de direitos (desde que preenchidos os requisitos dos incisos I a V do artigo 4º da Lei 12.850/2013). O benefício do whistleblower, de outra banda, é exclusivamente financeiro, por meio de pagamento de valores em espécie (até 5% do valor recuperado) e não há celebração de contrato com cláusulas relacionadas a “deveres do informante” como existe, em regra, nos termos de acordo de colaboração premiada [8].

Além da necessidade básica de se dizer a verdade e da própria voluntariedade dos institutos, em semelhança, pode-se ressaltar que tanto o whistleblowing quanto a colaboração premiada são meios de obtenção de prova no que dizem respeito ao relato do informante e do colaborador. Assim como o colaborador premiado é condição de possibilidade de trazer à persecução criminal maior eficiência [9], os informantes também são figuras importantes e que necessitam da proteção adequada para que possam expor o que sabem, gozando das mesmas “garantias” concedidas ao colaborador. Há que proteger essas pessoas bem-intencionadas de consequências negativas por revelar informações que possam causar represálias das mais variadas estirpes.

Todavia, quando comparados os institutos do whistleblowing e da colaboração premiada, há uma preocupação aparentemente desigual entre denunciante e o agente colaborador. Não parece haver o mesmo nível aprofundado de proteção e redução da vulnerabilidade (amparo jurídico, segurança pessoal e de seus familiares etc.). Do ponto de vista legal, há carência de incentivo para que qualquer pessoa possa denunciar ou informar o que sabe acerca da prática de ilícitos. Na colaboração, em tese, se o colaborador cumprir todos os termos do acordo, tem-se a garantia de que aquilo firmado será cumprido.

Dada a importância da figura do whistleblower para a criminalidade não detectada, a ideia trazida nas legislações internacionais é justamente brindar o denunciante com proteção jurídica, econômica, psicológica e social. Em resumo, apesar de existir “preço” entre calar e falar, a proteção dos denunciantes de delitos ou de outras ilicitudes e irregularidades é fundamental para o aprimoramento de um sistema de integridade pública e privada, redução da corrupção, transparência e controle social ne detecção do ilícito e de diminuição da percepção de impunidade.

 


[1] Ratificada pelo Brasil por meio do Decreto 5.687/2006. No artigo 3º da Convenção, há determinação para que o Estado Parte considere como possibilidade a incorporação no ordenamento jurídico medidas apropriada para proporcionar proteção aos denunciantes.

[2] Decreto 4.410/2002.

[3] GRANDIS, Rodrigo de. Whistleblowing e Direito Penalhttps://www.jota.info/artigos/coluna-rodrigo-de-grandis-12022015.

[4] Exemplos de antecedentes legislativos mais antigos são dos EUA como o Whistleblowing Protection Act de 1989, a Lei Sarbanes-Oxley (SarBox/Sox) de 2002 e o Public Interest Disclosure Act (como PIDA) de 2012 e no Reino Unido (v.g. Employment Rights Act 1996) e dos EUA como a Lei Sarbanes-Oxley (SarBox/Sox) de 2002 e o Public Interest Disclosure Act (como PIDA) de 2012, o Whistleblowing Protection Act de 1989.

[5] Sobre o tema compliance, verifique em Oliveira, Diego Renoldi Quaresma. Globalização, crime organizado e compliancehttps://www.conjur.com.br/2024-jun-18/globalizacao-crime-organizado-e-compliance/

[6] Nesse mesmo sentido, ver: BARRILARI, Claudia Cristina. Crime empresarial, autorregulação e compliance. 2 ed. atualizada e ampliada. São Paulo. Thomson Reuters Brasil, 2021, p. 115; MACHADO, Leonardo Marcondes. O whistleblower (“informante do bem”) na investigação criminal brasileirahttps://www.conjur.com.br/2020-jun-09/academia-policia-whistleblower-informante-bem-investigacao-criminal-brasileira/.

[7] O instituto da colaboração premiada, hoje prevista em vários diplomas legais punitivos, foi introduzida no Brasil pela Lei Federal 8.072/1990 (Lei dos Crimes Hediondos). A esse respeito consultar: https://www.conjur.com.br/2024-dez-23/mauro-cid-e-questoes-relativas-a-rescisao-e-revisao-do-acordo-de-colaboracao-premiada/.

[8] Sobre o tema colaboração premiada, veja a didática obra de CALLEGARI, André Luís; LINHARES, Raul Marques. Colaboração premiada: lições práticas e teóricas: de acordo com a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal. 2. ed. rev. e ampl. Porto Alegre. Livraria do Advogado, 2019.

[9] Explico aqui: https://www.conjur.com.br/2024-fev-12/o-instituto-da-colaboracao-premiada-e-o-habeas-corpus/

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O princípio do Sankofa e o resgate da metodologia científica no Direito

A palavra Sankofa, do povo Akan de Gana, significa literalmente “voltar e pegar”. É também um princípio que possui dois símbolos Adinkras: o primeiro, uma ave mística que voa para a frente com a cabeça voltada para as costas, olhando para trás. O segundo, um coração estilizado, com espirais simétricas que ornamentam cada lado da parte lateral inferior.

Como princípio, Sankofa busca encorajar as pessoas a aprenderem com o passado para seguir em frente com seus projetos de vida alcançando seu potencial. A palavra deriva da junção de san, ko e fa; olha, busque e pegue. Também é associada a um provérbio: “Não é vergonha voltar para pegar o que você esqueceu, deixou para trás”.

Não é somente nos portões das casas brasileiras que vemos o Sankofa. O método de iniciação à ciência, revisão bibliográfica, também reflete, no espaço da academia, esse princípio, portanto, universalista mais do que “multicultural especificista”. O passado não pode ser perdido de vista durante os esforços de avanço do saber.

O projeto Exposição Ocupação Itaú Cultural, durante sua homenagem ao ex-senador Abdias do Nascimento, declarou, assim como sua viúva, como o princípio do Sankofa capturava a essência da prática ativista do inscrito no livro dos Heróis da Pátria [1]. Pioneiro em diversos espaços influenciando desde filósofos, como a destacada referência do feminismo negro brasileiro Aparecida Sueli Carneiro Jacoel [2] (SANTANA, 2001, p.13), juristas como Eunice Aparecida de Jesus Prudente [3] e demais na Teoria Crítica Racial Brasileira [4], como Dora Lúcia de Lima Bertúlio [5], e Kimberlé Willians Crenshaw, durante seu período de pesquisadora Fullbright na America Latina [6].

A comunidade afrodescendente brasileira e o movimento negro brasileiro tiveram sua pouca história escrita, quando existente, guardada em raríssimas bibliotecas que conseguiam referenciar tais Griots. Perdurou-se, e ainda perdura, a tradição oral de transmissão de saber, inclusive nos espaços onde aquelas obras encontravam-se guardadas [7].

Na última década, destacadamente, as escritas avolumaram-se. Ao mesmo tempo, essas descrições ou narrativas deixaram de ser tão completas quanto àquelas orais transmitidas pelos Griots, apesar da maior capacidade de “trânsito e viagem digital simplificados” em nosso vasto território continental e digitalizado.

Aqueles lançados em espaços sem referências de Griots, de mentoria ou de obras sobre a história da diáspora negra e brasileira, tiveram a formação sujeita a ideação de negro brasileiro [8] de seus mentores, em sua maioria não negros. Espaços onde dever-se-ia estabelecer diálogo entre culturas e não métodos de imposição de uma sobre outra, tornando-os, assim, democráticos plurais e republicanos, foram insuficientes em suas missões por falta de diversidade.

Somou-se a essa distância do saber dos Griots, nos territórios que receberam a juventude subalternizada, o fomento ao efeito Dunning-Kruger, jovens e sem referência, fomentaram o epistemicídio de predecessores enquanto popularizaram tradutores como inovadores do letramento racial de combate ao viés racial.

Convenientemente, para alguns, mentorados mantidos ignorantes da necessária precedência do método científico da revisão literária para iniciação científica, fosse da pouca bibliografia que existia fosse dos saberes Griots brasileiros, depararam-se com a popularização de um pretenso debate sobre justiça racial durante a pandemia nas redes sociais.

A pandemia não somente tornou nos testemunha do movimento Black Lives Matter (BLM), mas também nos lançou no mundo dos influencers e divulgadores científicos com ares de produtores, que sistematizavam, traduziam e compilavam, indistintos para a população em geral formando suas opiniões.

As razões de tais insuficiências e inconsistências não são oriundas, somente, da falta de formação básica sobre métodos de pesquisa e consequente não deliberada ignorância, inclusive, da necessidade de olhar para trás quando se manipula as ferramentas do direito, mas também da orientação ideológica de quem escolheu silenciar e fomentar citação seletiva, em deliberado intraepistemicídio, das lições do passado africano, afrobrasileiro, brasileiro, mundial e diáspora africana.

Fossem, os deliberadamente não epistemicidas, apresentados à importância dos clássicos, do antirracismo e do Direito, personagens como Luís Gama [9], Esperança Garcia, Abdias do Nascimento, Eunice Prudente, Dora Bertúlio, Hédio Silva, entre outros, nos primeiros contatos com os estudos do Direito, Justiça Racial e suas ciências auxiliares, teriam aprendido de início a  “possibilidade de usar o direito contra o direito” [10], ou seja, conhecendo suas vidas e ativismo na “história” do país, e observando, com o olhar atento “para trás” a importância da “práxis” jurídica nos esforços de emancipação plena da diáspora africana em território brasileiro. Reconhecendo, assim, a natureza dual do direito posto, de instrumento de subalternização bem como instrumento de emancipação e conclamando à disputa.

Do mesmo modo que Luís Gama e Esperança Garcia estudaram o sistema posto para disputar proteção de direitos a si e demais subalternizados no pré-abolição, ainda é vital estudar a história dos predecessores nas disputas por Justiça Racial. Conhecedores do sistema positivado não precisam “transplantar” órgãos/institutos jurídicos”, de sistemas outros incompatíveis ao sistema nacional. Lamentavelmente, muitos não compreenderam que as disciplinas propedêuticas do direito são inerentes a formação do jurista e não complementares, estanques, ausentes do cotidiano da instrumentalização técnica profissional.

A incongruência de conclame ao resgate de pautas de justiça racial a partir de uma ignorância às precedentes referências e suas produções, tanto do conteúdo jurídico nacional quanto da nossa história, africana, afrobrasileira e a história nacional, dimensão fatual [11] da tridimensionalidade do direito brasileiro, segue ameaçando a Justiça Racial.

Agora que se inicia um novo ciclo Gregoriano, em lugar de voar impensadamente para a frente, correndo o risco de ir em direção oposta ao avanço, condenando-se a um eterno retorno enquanto enfrenta-se espantalhos [12], por que não reduzir a velocidade do voo e olhar detidamente para trás, reconhecendo a cientificidade jurídica do debate sobre justiça racial que nos precisamos fazer e reduzindo a distância do que se precisa voltar para buscar?


[1] Lei nº 14.800 de 08 de janeiro de 2024

[2] SANTANA, Bianca. Continuo preta: a vida de Sueli Carneiro. São Paulo. Companhia das Letras; 1ª edição (maio 2021). 296 p.

[3] De JESUS, Edmo de Souza Cidade. Pelos Becos da Memória jurídica: as escrevivências de Eunice Prudente e Dora Bertulio nas relações entre o campo científico e a formação do quilombo jurídico Direito e Relações Raciais. Dissertação de Mestrado. UFSC. 2023. Acesso em: https://repositorio.ufsc.br/bitstream/handle/123456789/249865/PDPC1674-D.pdf?sequence=1&isAllowed=y

[4] “A teoria crítica racial, elaborada a partir da constatação dos retrocessos e da insuficiência dos avanços em direção à igualdade racial obtidos por meio da legislação dos direitos civis e da ação afirmativa, nos Estados unidos, tem origem no âmbito jurídico, mas amplia-se para as ciências sociais.” NASCIMENTO, E. L. O sortilégio da cor: identidade, raça e gênero no Brasil. Editora Selo Negro. São Paulo. 2003. p.100.

[5] https://www.scielo.br/j/rdp/a/NFJR7sgzKmzc78Z5Q87JYGK/abstract/?lang=pt

[6] https://law.ucla.edu/faculty/faculty-profiles/kimberle-w-crenshaw

[7]Nos anos 90s a Biblioteca do Centro Cultural de São Paulo sobre história, possuía uma sessão sobre movimento negro no Brasil. Em 1990 Benedita da Silva publicava tradução de “Escrevo o que eu Quero” de Steve Biko.

[8] Em África Pré Colonial a função de mentor restringia-se àqueles que se dedicaram pelo menos há mais de 30/40 anos ao saber. Assim, a posição de Sábio, de Griot Embaixador/Genealogista, de Sobá, de Régulo da comunidade apenas era reconhecida àqueles que se dedicaram por décadas a formarem-se para ocupar tais posições. http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/ue000318.pdf

[9] É sabido que Luiz Gama valia-se, destacadamente, das normas de aplicação da lei brasileira no tempo e espaço, assim como do controle de convencionalidade, dos contratos de compra e venda de escravizados, para conquistar a liberdade de inúmeros africanos no Brasil.

[10]https://www.ibirapitanga.org.br/historias/direito-em-pretugues-atuar-alem-dos-limites-do-sistema-de-justica/

[11] O CNJ inserindo sociologia, filosofia, e demais disciplinas humanísticas durante a presidência da gestão do professor Lewandoski, conclamou que as formações dos profissionais de direito comprometessem-se com esse básico de conhecimento em humanidades. https://cm-kls-content.s3.amazonaws.com/201601/INTERATIVAS_2_0/FILOSOFIA_DO_DIREITO/U1/LIVRO_UNICO.pdf

[12] “A falácia do espantalho consiste em apresentar de forma caricata o argumento da outra pessoa, com o objetivo de atacar essa falsa ideia em vez do argumento em si. Deturpar, citar de maneira incorreta, desconstruir e simplificar demais o ponto de vista do adversário são formas de cometer essa falácia. Em geral, o argumento espantalho é mais absurdo que o argumento real, facilitando o ataque. Além disso, acaba levando o oponente a perder tempo defendendo-se da interpretação ridícula de seu argumento, em vez de sustentar sua posição original.” Almossawi, Ali. O livro ilustrado dos maus argumentos [recurso eletrônico] / Ali Almossawi; ilustração de Alejandro Giraldo. 1. ed. Rio de Janeiro: Sextante, 2017

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Contrato emergencial: a imprevisibilidade não pode ser induzida

A mitologia grega nos ensina que a previsibilidade absoluta, assim como a onisciência, não faz parte da natureza humana, e que prever sempre o futuro pode ser mais sina do que virtude. A ninguém é dado o pleno domínio dos acontecimentos, razão pela qual o ordenamento jurídico confere tratamento especial às hipóteses de imprevisibilidade, disciplinando, inclusive no âmbito da administração pública, as situações emergenciais.

Diz a lenda que Sísifo, dotado de grande astúcia, vivia aplicando golpes e enganando os deuses, sempre planejando cada detalhe de seus empreendimentos ardilosos. Suas tramas eram bem-sucedidas sobretudo por sua extraordinária capacidade de prever com precisão o resultado de suas ações. Esse poder de previsão, no entanto, acabou selando seu destino, tornando-se sua punição eterna. Ele, rei de Corinto, enganou Tânatos e conseguiu neutralizar a morte, prendendo-a a uma coleira, o que ameaçou a segurança dos deuses, na medida em que os inimigos do Olimpo não mais morriam, tornando-se imunes à guerra.

Como punição, foi condenado a rolar uma grande pedra até o topo de uma montanha, a qual retornava ao sopé toda vez que atingia o cume, em um ciclo perpétuo de previsibilidade. Toda vez que iniciava a fatigante jornada de empurrar aquela rocha, já sabia de antemão que ela retornaria ao ponto de origem, tornando inútil seu desforço. A tristeza de saber exatamente o que iria acontecer pelo resto de sua vida foi sua pena.

Isso nos lembra que a imprevisibilidade faz parte da vida e é normal que sempre haja acontecimentos que fujam de nosso controle, sem que isso signifique falta de planejamento. Essa é a chamada situação emergencial, a qual é regulada no âmbito da administração pública. Evidentemente, essa não é a regra, ao contrário, a Lei de Improbidade (Lei nº 8.429/1992), em seu artigo 10, VIII, considera ato de improbidade toda ação dolosa de frustrar a licitude de processo licitatório, sancionando o administrador ímprobo com a perda de todos os bens e valores acrescidos ilicitamente ao seu patrimônio, perda da função pública, suspensão dos direitos políticos por até 12 anos, pagamento de multa civil equivalente ao dobro do dano e proibição de contratar com o poder público por até 12 anos (artigo 12 da lei, II).

Nossa CF, em seu artigo 37, XXI, determina que os contratos públicos devem ser precedidos de licitação. Assim, a regra é o planejamento adequado da ação pública, com a observância do princípio da impessoalidade e a seleção objetiva da proposta mais vantajosa ao erário, mediante um procedimento que estabeleça a justa competição entre todos os interessados em contratar com o poder público. A exceção só se apresenta quando a situação de normalidade não estiver presente, em razão da extraordinária ocorrência do evento imprevisível. A situação excepcional está prevista no artigo 75, VIII, da Lei Federal nº 14.133/2021 (antigo artigo 24, IV, da revogada Lei de Licitações – Lei Federal nº 8.666/1993). Referido dispositivo dispensa a licitação nos casos de emergência e calamidade pública.

Ninguém está livre de situações imprevisíveis que demandem ações urgentes do administrador público, sob pena de prejuízo ao erário, interrupção na prestação de serviços públicos contínuos, risco à segurança de pessoas ou comprometimento de obras, serviços, equipamentos e outros bens, públicos ou particulares.

A situação emergencial se caracteriza pela conjugação simultânea de diversos elementos e estão normatizados como pressupostos objetivos da emergência. São eles:

a.1) que a situação adversa, dada como de emergência ou de calamidade pública, não se tenha originado, total ou parcialmente, da falta de planejamento, da desídia administrativa ou da má gestão dos recursos disponíveis, ou seja, que ela não possa, em alguma medida, ser atribuída à culpa ou dolo do agente público que tinha o dever de agir para prevenir a ocorrência de tal situação; a.2) que exista urgência concreta e efetiva do atendimento a situação decorrente do estado emergencial ou calamitoso, visando afastar risco de danos a bens ou à saúde ou à vida de pessoas; a.3) que o risco, além de concreto e efetivamente provável, se mostre iminente e especialmente gravoso; a.4) que a imediata efetivação, por meio de contratação com terceiro, de determinadas obras, serviços ou compras, segundo as especificações e quantitativos tecnicamente apurados, seja o meio adequado, efetivo e eficiente de afastar o risco iminente detectado” (Decisão Plenária n° 347/1994 do TCU).

Com efeito, é imprescindível que a urgência não tenha sido causada pela desídia ou premeditação do administrador, o qual não pode beneficiar-se de sua própria torpeza para ver-se livre do dever de licitar. Emergência é situação não desejada, não prevista e inevitável.

Deste modo, o pressuposto legal da inevitabilidade é o fato gerador da imprevisibilidade amparada pelo ordenamento jurídico e autorizadora da contratação emergencial. É exatamente esse o fator decisivo que distingue a legítima dispensa do procedimento licitatório do ato doloso de improbidade. Trata-se, portanto, da pedra-de-toque do administrador público para viabilizar a contratação emergencial, amparado nas disposições do inciso IV, artigo 24, da revogada Lei Federal nº 8.666/1993, e no atual artigo 75, VIII, da Lei Federal nº 14.133/2021.  Tais julgados paradigmáticos, oriundos do Plenário do TCU, confirmam que contratação emergencial não pode ser decorrente de ausência de planejamento ou incúria do gestor público:

A contratação emergencial destina-se somente a contornar acontecimentos efetivamente imprevistos, que se situam fora da esfera de controle do administrador e, mesmo assim, tem sua duração limitada a 180 dias, não passíveis de prorrogação (art. 24, inciso IV, da Lei 8.666/1993). (Acórdão 4570/2014- Plenário | Relator: JOSÉ MUCIO MONTEIRO).”

É irregular a contratação tida como emergencial, por dispensa de licitação, sempre que não esteja presente o elemento da imprevisibilidade dos acontecimentos futuros, pois, nesses casos, restam demonstradas a falta de planejamento e a desídia administrativa por parte do gestor público. (Acórdão 1030/2008-Plenário | Relator: VALMIR CAMPELO).”

A dispensa de licitação por situação emergencial caracterizada não em fatos novos e imprevisíveis, mas em situação decorrente de ausência de planejamento do gestor conduz à irregularidade das contas e à imposição de multa. (Acórdão 798/2008- Primeira Câmara | Relator: MARCOS BEMQUERER)”.

A ausência intencional de planejamento para provocar artificialmente a situação emergencial ou a demora excessiva resultante de falha da administração, descaracteriza por completo a excludente da imprevisibilidade. São exemplos disso: desconhecimento intencional de situações historicamente de risco; execução de serviços além do estritamente necessário; fracionamento das obras causando recontratações; reduzido número de fiscais ou mão de obra; inadequadas qualificações operacional e econômica das contratadas; demora judicial decorrente de questionamentos jurídicos acerca do caráter restritivo do edital; alterações contratuais não formalizadas etc. Essas inferências normalmente são identificadas como pretexto para as contratações emergenciais. São fatores ilegítimos não autorizadores das situações emergenciais. Nesses casos, não houve imprevisibilidade, na forma preconizada pela nossa legislação e jurisprudência contemporânea dos Tribunais de Contas, mas dispensa ilegal do procedimento licitatório.

Importante pontuar que a contratação emergencial nasce de situação efetivamente imprevisível e, portanto, que não pode ser perene, sendo autorizada pelo prazo de um ano e proibida a recontratação de empresa (cf. artigo 75, VIII, da Lei Federal nº 14.133/2021). No regime anterior (artigo 24, inciso IV, da Lei Federal nº 8.666/1993), não havia impedimento à seguidas recontratações com base em situação emergencial, causando um efeito de potencial perenidade em contratações diretas com a mesma empresa e consequente burla ao princípio da isonomia entre os licitantes.

Sobre tal fator, o Supremo Tribunal Federal se pronunciou, ante a provocação da Ação Direta de Inconstitucionalidade 6890, de tal forma a esclarecer o escopo do dispositivo questionado (artigo 75, VIII, da Lei Federal nº 14.133/2021): coibir contratações emergenciais sucessivas, salvo antes do decurso do prazo de um ano, conjugado ao impedimento de recontratação fundada na mesma situação. Essa interpretação conforme à Constituição Federal de 1988, respeita o princípio da satisfação do interesse público, conforme acentuado na deliberação unânime do Plenário da Excelsa Corte, da mencionada Ação Direta de Inconstitucionalidade 6890. Tal, no entanto, “não impede que a empresa participe de eventual licitação substitutiva à dispensa de licitação ou seja contratada diretamente por fundamento diverso previsto em lei, inclusive outra emergência ou calamidade pública, sem prejuízo do controle por abusos ou ilegalidades verificados na aplicação da norma.”

Em uma aplicação prática dessa leitura do artigo 75, VIII, da Lei Federal nº 14.133/2021, se for introduzida a ocorrência do fracionamento das obras, o contexto se torna violador à regra do artigo 37, XXI, da Constituição de 1988, que estabelece a obrigatoriedade da licitação e a excepcionalidade da contratação direta, situações de matriz republicana. A possibilidade legal de contratação emergencial pressupõe o requisito da autêntica imprevisibilidade, limitada no tempo e circunscrita ao objeto estritamente necessário, ante o risco à segurança de pessoas, obras, prestação de serviços, equipamentos ou bens públicos ou privados, cumprindo, em si, um princípio de matriz republicana nas sociedades contemporâneas. Aos órgãos de controle cabe sempre avaliar caso a caso, com critério, seriedade e ponderação, a fim de garantir a prestação do serviço público mediante dispensa de licitação nas hipóteses verdadeiramente necessárias, pena de afronta ao princípio republicano.


Referências

Constituição Federal de 1988.  Em https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm, acessado em 09/01/2025.

Lei nº 8.666, de 21 de junho de 1993.  Em https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8666cons.htm, acessado em 09/01/2025

Lei nº 14.133, de 1º de abril de 2021. Em https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2021/lei/l14133.htm, acessado em 09/01/2025.

Supremo Tribunal Federal.  Ação Direta de Inconstitucionalidade 6890. Em https://portal.stf.jus.br/processos/downloadPeca.asp?id=15370249192&ext=.pdf, acessado em 09/01/2025.

Tribunal de Contas da União.  Decisão Plenária n° 347/1994.  Em  https://www.tcu.gov.br/acordaoslegados/1994/Plenario/DC-1994-000347-CA-PL.pdf, acesso em 09/01/2025.

Wikipédia, Sísifo. Em https://pt.wikipedia.org/wiki/S%C3%ADsifo, acessado em 09/01/2025.

World History Encyclopedia, Sísifo. Em https://www.worldhistory.org/trans/pt/1-13620/sisifo/, acessado em 09/01/2025.

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Conselho de Recursos do Sistema Financeiro Nacional: uma contribuição para a transparência do mercado

O Conselho de Recursos do Sistema Financeiro Nacional (CRSFN) foi concebido, em 1985, para exercer a função de instância recursal das decisões de caráter punitivo proferidas pelo Banco Central do Brasil (BCB) e pela Comissão de Valores Mobiliários (CVM), decorrentes de processos administrativos instaurados no âmbito daquelas instituições, por força de seu poder de polícia.

Com o passar do tempo, o conselho acumulou novas atribuições, passando a ser competente também para os recursos de processos sancionadores oriundos do Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf), da Superintendência de Seguros Privados (Susep), da Polícia Federal e do Conselho Nacional de Justiça Federal (CNJ), no que diz respeito às regras concernentes às Políticas de Prevenção à Lavagem de Dinheiro.

Até sua criação, a função revisora era competência do Conselho Monetário Nacional (CMN), conforme a antiga versão do artigo 4º, inciso XXVI, da Lei nº 4.595, de 31 de dezembro de 1964.

Desse desdobramento é que surge o apelido de “Conselhinho”, pelo qual o CRSFN passou a ser conhecido na comunidade financeira e no meio dos advogados que militam na área. Essa denominação, longe de significar apequenamento da importância da instituição, traduz um colegiado respeitado no meio jurídico financeiro, pelo qual já passaram mais de 200 conselheiros que julgaram, nos 40 anos de sua existência, em torno de 8.000 processos, envolvendo matérias das mais variadas entre as competências que lhe foram atribuídas.

A composição do Conselho de Recursos, com participação paritária de integrantes do setor público e indicados pelas entidades representativas do mercado, dá ao CRSFN o porte de um verdadeiro tribunal administrativo. Com sessões abertas ao público em geral e a possibilidade de sustentação oral pelos representantes dos recorrentes, confere total transparência e legitimidade ao processo de julgamento.

O modelo de composição atual, vigente a partir da edição da Portaria MF n° 1.560, de 2023, abandonou o conceito de assento cativo por determinadas entidades, multiplicando o rol de entidades associativas que podem apresentar indicações para o processo seletivo de conselheiros, desde que se credenciem para tal fim. A composição atual do CRSFN se dá por segmentos do mercado, respeitando o equilíbrio na representatividade do SFN, fazendo parte dele o segmento de auditoria e governança corporativa, de grande relevância para a higidez das instituições.

Ao longo das últimas décadas, desde a implantação de um regime sancionador para os mercados regulados, o sistema financeiro deu passos largos. Cresceu em tamanho e complexidade. Surgiram diversas novas instituições oferecendo uma gama incontável de produtos e serviços, ampliando exponencialmente o número de clientes, consumidores e/ou investidores. Decorre disso, o aumento proporcional de assuntos incorporados ao rol de atribuições do Conselho de Recursos, à medida que se ampliam as atividades de supervisão dos órgãos reguladores desses mercados.

À medida que o tempo passa, aumenta a complexidade das operações praticadas, a sofisticação dos instrumentos e dos produtos financeiros, bem como a criatividade dos agentes que operam no sistema. São novas formas de estruturação das operações financeiras, que dificultam a compreensão e avaliação dos riscos envolvidos. São novas modalidades de instituições financeiras, a exemplo dos bancos digitais e das fintechs demandando nova regulação. Surgem, a cada dia, outros instrumentos financeiros, moedas digitais, criptomoedas, tokens etc. Tudo isso cria desafios intermináveis para os órgãos de supervisão, não só impondo a necessidade de editar novos normativos visando a proteção dos interesses dos usuários e investidores, como também de implementar práticas e sistemas eficazes para avaliar e preservar a solidez e solvência das instituições que atuam na intermediação financeira e, assim, evitar crises generalizadas de desconfiança no SFN.

As novas normas expedidas pelos reguladores vêm, nesse compasso, exigindo medidas que aumentem a capacidade de gestão dos riscos a que estão submetidas as instituições financeiras em suas operações, diante dos cenários adversos; mais efetividade  dos controles internos  das  instituições; a  qualidade  da  governança corporativa; a transparência e confiabilidade do sistema de divulgação de informações; a manutenção de capital próprio em níveis mínimos capazes de suportar eventuais perdas. Nesse cenário, é de se esperar que as novidades na regulação trazem consigo uma carga acentuada de disciplina para adaptação ao novo contexto, que nem sempre é alcançada pelas instituições e, com isso, operando à margem do sistema incide sobre elas as medidas de enforcement e, por consequência, o regime sancionador.

Por outro lado, a frequência, cada vez maior, no lançamento de produtos e serviços dos mercados financeiro, bancário, de valores mobiliários e de capitais, em especial com aplicação de novas tecnologias, faz inaugurar modelos de conduta sobre as quais o CRSFN tem o papel de dar interpretações e fazer julgamentos, com base em arcabouço normativo ainda jovem, muitas vezes sem qualquer referência bibliográfica ou de precedentes. Esse tem sido um desafio dos tempos atuais para o Colegiado, pois impõe a todos a busca constante para se manter atualizados, em velocidade compatível com a dinâmica dos mercados.

Nesse passo, cresce a importância do papel do Conselho de Recursos, na construção de entendimentos sobre a execução dos mecanismos de enforcement, para a qual o processo sancionador é a última morada. À medida que o Colegiado passa a dar publicidade da interpretação de qualquer norma ou procedimento, seja por meio de decisões monocráticas do seu presidente, dos acórdãos publicados, ou da aprovação de súmulas, abre-se um novo caminho a ser perseguido, seja pelos reguladores, com o fito de alinharem-se ao que foi decidido pelo órgão revisor; ou pelos regulados, no sentido de se adaptarem sobre o comando de tal decisão ou, por vezes, de construírem teses na tentativa de buscar revisão do estabelecido. O fato é que as conclusões extraídas das decisões do CRSFN não passam despercebidas pelos agentes do mercado.

As decisões do conselho têm um impacto significativo no mercado financeiro, inclusive nas questões de auditoria, pois criam precedentes que orientam as práticas de conformidade nas instituições financeiras. Isso ajuda a estabelecer padrões claros e consistentes para a auditoria interna e externa.

Ao revisar e julgar recursos contra sanções aplicadas pelos órgãos reguladores, o CRSFN promove a transparência e a confiabilidade das informações financeiras. Isso é crucial para a integridade das auditorias, pois garante que as instituições sigam as normas e regulamentos estabelecidos.

As decisões do CRSFN ajudam a identificar e mitigar riscos associados a práticas inadequadas ou ilegais. Isso é especialmente importante para as auditorias, que dependem de um ambiente regulatório estável e previsível para avaliar a conformidade e a saúde financeira das instituições.

Pode se dizer, ainda, que a atuação do CRSFN reforça a confiança dos investidores no sistema financeiro. Decisões justas e bem fundamentadas aumentam a percepção de que o mercado é bem regulado e que as instituições financeiras estão sujeitas a uma supervisão rigorosa.

Por fim, as decisões do CRSFN frequentemente resultam em recomendações para melhorias nas práticas de auditoria e governança. Os treinamentos direcionados para as equipes de auditoria incluem as decisões do CRSFN. Isso garante que os auditores estejam cientes da interpretação das mudanças regulatórias e possam aplicar corretamente as novas normas. Isso contribui para o aprimoramento contínuo dos processos e controles internos das instituições financeiras. Tanto é assim, que as auditorias ajustam seus relatórios para refletir as decisões do CRSFN, destacando áreas de risco e conformidade que foram objeto de decisões recentes.

O conselho também tem sido referência para os órgãos de primeira instância, no aprimoramento de suas técnicas de apuração e de instrução processual, bem como na busca da atuação com máxima eficiência e equilíbrio na aplicação das penalidades para o cumprimento da sua missão institucional.

Com toda a dinâmica dos mercados regulados, demandando novas regras de atuação, é de extrema importância haver um direcionamento sobre a interpretação dos atos sob a vigência das novidades. Ao que tudo indica, no âmbito do SFN, o CRSFN tem sido bússola e auxilia os agentes na navegação pelos revoltos mares da tênue diferenciação sobre o que é o possível e o que é o certo.


Referências

ALVES, Rui Fernando Ramos et al. (Coord). O NOVO REGIME SANCIONADOR NOS MERCADOS FINANCEIROS E DE CAPITAIS. Uma análise da Lei n° 13.506/17. São Paulo: Editora Iasp, 2019.

JUNIOR, Edilson Pereira Nobre. Paradigmas do Direito Administrativo Sancionador no Estado constitucional/organização Edilson Pereira Nobre Júnior- São Paulo: Editora Dialética, 2021.

MAIA FILHO, Napoleão Nunes. O Poder administrativo sancionador: origem e controle jurídico. Napoleão Nunes Maia Filho; Mário Henrique Goulart Maia. – Ribeirão Preto: Migalhas, 2012.

VIVEIROS, Ricardo et al. (Coord). Auditoria Independente, missão e responsabilidades: estudos e pareceres/Instituto de Auditoria Independente do Brasil – Ibracon, São Paulo: Ibracon, 2023.

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STF vai analisar recurso sobre metodologia de atualização de débitos da Fazenda

O Supremo Tribunal Federal vai decidir se, na atualização dos débitos da Fazenda Pública, a taxa Selic deve incidir apenas sobre o valor principal corrigido do débito ou sobre o valor consolidado da dívida, que consiste no valor principal corrigido acrescido de juros.

A matéria é objeto do Recurso Extraordinário 1.516.074, que teve a repercussão geral reconhecida no Plenário Virtual (Tema 1.349). Com isso, a tese a ser definida deverá ser seguida pelos tribunais do país.

Duplicidade

No STF, o estado do Tocantins questiona decisão do Tribunal de Justiça estadual que rejeitou recurso a respeito da incidência da Selic sobre o valor atualizado do débito. De acordo com o TJ-TO, a partir da Emenda Constitucional 113/2021, a atualização do crédito deve ser feita pela taxa Selic sobre o valor consolidado do débito, que equivale ao valor principal corrigido acrescido de juros.

O estado argumenta que a Selic deve incidir apenas sobre o valor corrigido da condenação. Sustenta que, no julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade 5.867, o Supremo decidiu que a taxa Selic já engloba os juros de mora, e, por isso, sua incidência sobre o montante acrescido de juros configuraria uma aplicação de índices em duplicidade.

Interpretação

Ao se manifestar pela repercussão geral do tema, o presidente do tribunal, ministro Luís Roberto Barroso, frisou que o recurso trata exclusivamente da interpretação do artigo 3º da Emenda Constitucional 113/2021, de modo a determinar se o dispositivo fixou uma metodologia específica de cálculo de atualização dos débitos da Fazenda. Segundo ele, a questão ultrapassa os interesses das partes do processo, alcançando todos os entes federativos e os credores da Fazenda Pública.

Ainda não há data prevista para o julgamento de mérito do recurso. Com informações da assessoria de imprensa do STF.

RE 1.516.074

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A fragilidade da democracia mundo afora

A instituição da democracia, ao longo da história, já demonstrou exaustivamente sua superioridade em relação a regimes autoritários e protecionistas de poucos. Seus principais pilares são soberania popular, respeito aos direitos fundamentais e às leis, iguais para todos, separação de poderes, com sistema ativo de freios e contrapesos, além de eleições livres, justas e transparentes.

As Constituições democráticas sucedem, muitas vezes, governos absolutistas e autoritários. A democracia tem de ser ativa, militante, no sentido de se proteger, mas essa militância tem de ser contida. Caso contrário, a democracia militante, “não esperando que seus adversários se tornem maioria”, conduz ao legalista autocrático, que é realidade em muitos países. Hungria, Polônia e Rússia são exemplos clássicos. Nesta altura, a democracia militante mostra seu lado mais obscuro e a “autocracia legal” instala-se. Quem vai retirar o poder supremo de Putin?

O autocrata legalista é minucioso e astuto, em busca do poder absoluto, ou quase. Acusa os inimigos (ou adversários) de praticarem atos antidemocráticos, cria falsa situação de pânico, alega que determinado(s) partido(s) político(s) adota(m) discurso preconceituoso ou nocivo ao povo, combate associações, pretensamente de fins escusos, é ardiloso e convincente, mobiliza a opinião pública a seu favor ou a constrange, para fazer com que alterações das normas constitucionais e infraconstitucionais pareçam naturais e benéficas, e restringe educação ao povo. O objetivo final é fazer com que os canais democráticos que o conduziram ao poder sejam fechados e seu cargo de mandatário-mor, perpetuado.

Jam-Werner Muller [1] defende uma legislação internacional que apoie intervenções multinacionais em defesa das democracias mais frágeis. A ONU, a OEA, a União Europeia e muitas outras entidades, nenhuma conta atualmente com real força para intervir. Débeis sanções econômicas e retórica eloquente não passam de matéria ilusionista preenchendo noticiários.

Os seus temores têm-se justificado mundo afora. Povo facilmente enganado, apoiando mudanças antidemocráticas, até por plebiscitos ou referendos de alterações que muito prometem. Quando passam a viger, só cumprem a parte que interessa ao propositor. Legislativo corrupto, que não se insurge, e Judiciário inerte ou corroborativo, uma vez pressionado ou agraciado. Mídia também (os insurgentes já foram previamente debelados).

Antídoto

A situação atual, pós-eleições, da Venezuela demonstra cabalmente o que se está discutindo. Trata-se de um ditador protegido por um pretenso regime democrático, em que as normas constitucionais relevantes para preservar a estrutura que o elegeu (ou melhor, que serviram para eleger seu antecessor) foram todas reformadas, ou melhor, deformadas. O Legislativo, as Forças Armadas e o Judiciário estão corrompidos, dando-lhe completa condição de exercer seu autoritarismo. E o povo tenta abandonar o país. A democracia militante levou à perda total. A mídia que sobrou é conivente.

Kim Lane Schepelle [2] alerta para aquelas ações, que significam risco à democracia, e defende, talvez utopicamente, que o grande antídoto seria o povo conhecer e debater as leis corriqueiramente, diariamente, preparando-se para detectar as pretensões golpistas dos governantes. Isso seria a democracia militante plena, sem excessos, com o povo ciente, culto e participativo diretamente no sentido de proteger o regime.

Sem real desenvolvimento humano, a essência democrática tende a evaporar. Na democracia representativa, cada voto tem de ser consciente e extremamente valorizado, e já passou da hora de o Judiciário, ao menos a Suprema Corte, ter seus ministros eleitos, por período determinado, e não indicados para cargos vitalícios. Obrigar-se-iam à transparência e à produtividade para serem reeleitos e o sistema só teria a ganhar em dignidade e autoproteção.


Referências

[1] Muller JW. Protecting Popular Self-Government from the People? New Normative Perspectives on Militant Democracy. Annu. Rev. Polit. Sci. 2016. 19:249–65

[2] Scheppele,KL. Autocratic Legalism. The University of Chicago Law Review. 2018. Disponível em: https://lawreview.uchicago.edu/print-archive/autocratic-legalism

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A linguagem como pilar do Direito Societário: lições de Delaware

O Direito Societário, em sua essência, é um exercício de precisão linguística. Recentemente, a juíza Karen Valihura, da Suprema Corte de Delaware, proferiu uma palestra esclarecedora sobre “Linguagem Clara no Direito Societário de Delaware”, destacando como a interpretação de palavras aparentemente simples pode ter consequências profundas no mundo corporativo. Delaware, reconhecido como o epicentro do Direito Societário nos Estados Unidos, oferece, por meio de suas decisões judiciais, lições valiosas que ressoam globalmente.

A precisão linguística, longe de ser um mero exercício acadêmico, emerge como um elemento fundamental na prática jurídica corporativa moderna. Casos emblemáticos de Delaware ilustram como a interpretação de palavras aparentemente simples pode ter consequências financeiras e legais impactantes.

O caso Weinberg v. Waystar (2023) serve como um exemplo paradigmático. A disputa centrou-se na interpretação da palavra “and” em um acordo de opções de ações. A cláusula em questão estabelecia que as unidades convertidas estariam sujeitas ao direito de recompra após “a rescisão do emprego de Weinberg e uma violação da cláusula restritiva” (“…converted units shall be subject to the right of repurchase following x, the termination of Weinberg’s employment and y, a restrictive covenant breach”). A corte interpretou “and” de forma a permitir a recompra após qualquer um dos eventos, não necessariamente ambos.

Para evitar tal ambiguidade, os redatores poderiam ter empregado uma linguagem mais específica, como: “…subject to the right of repurchase if either of the following events occurs: (i) the termination of Weinberg’s employment or (ii) a restrictive covenant breach”. Adicionalmente, uma cláusula de intenção poderia ter sido incluída: “It is the intention of the parties that the occurrence of either event shall be sufficient to trigger the repurchase right”. O uso de listas numeradas também aumentaria a clareza.

A importância da escolha cuidadosa de palavras é ainda mais evidenciada no litígio ION Geophysical Corp. v. Fletcher (2010). O cerne da disputa estava na interpretação de uma cláusula específica do acordo que permitia a Fletcher aumentar sua participação acionária na ION. O acordo permitia que Fletcher entregasse “a 65-day notice” (um aviso de 65 dias) para aumentar o número máximo de ações ordinárias da ION em que Fletcher poderia converter suas ações preferenciais.

Em novembro de 2008, Fletcher entregou um aviso de 65 dias aumentando o número máximo de ações em dois milhões. Posteriormente, Fletcher entregou outro aviso de 65 dias para aumentar sua participação em mais dois milhões de ações. A ION argumentou que Fletcher só poderia emitir um único aviso de 65 dias, não mais de um.

A corte considerou que o uso de “a” em vez de “the” sugeria que múltiplos avisos eram permitidos. Se a intenção fosse limitar Fletcher a um único aviso, o contrato poderia ter usado linguagem mais específica, como “one 65-day notice” ou “a single 65-day notice”. A corte também observou que o artigo definido “the” foi usado em outras partes do contrato para se referir a itens únicos ou específicos, reforçando a interpretação de que “a” neste contexto permitia múltiplos avisos. Literalmente, o “artigo que vale milhões”!

Para advogados brasileiros envolvidos em fusões e aquisições internacionais, este caso ressalta a necessidade de uma atenção meticulosa a cada elemento linguístico, mesmo aqueles aparentemente triviais. Em contratos bilíngues ou internacionais, a precisão na tradução e escolha de artigos é fundamental.

Em Kellner v. AIM ImmunoTech (2023), a Suprema Corte de Delaware invalidou uma cláusula de 1.099 palavras sem pontuação, considerada “indecifrável” pela corte. Esta decisão estabelece um limite claro para a complexidade aceitável em documentos corporativos. Clareza e concisão não são apenas virtudes estilísticas, mas requisitos legais essenciais.

Para evitar tais problemas, os redatores de contratos podem dividir cláusulas complexas em seções menores e numeradas, usar linguagem simples e direta, e incluir sumários no início de seções extensas. O uso de exemplos práticos e até mesmo diagramas ou fluxogramas para visualizar processos complexos pode aumentar significativamente a clareza.

O caso Fox Corporation/Snap Inc. Seção 242 Litigation (2023) surgiu após uma mudança na lei de Delaware que permitiu às empresas expandirem as proteções de responsabilidade para seus executivos. Fox e Snap, ambas com estruturas de múltiplas classes de ações, buscaram emendar seus certificados de incorporação (equivalentes aos estatutos sociais no Brasil) para incluir essas novas proteções. As classes com direito a voto aprovaram as emendas, mas as empresas não solicitaram um voto separado dos detentores de ações Classe A sem direito a voto. Estes acionistas entraram com uma ação, alegando que tinham direito a um voto separado com base na Seção 242(b)(2) [1] do Delaware General Corporation Law, argumentando que as emendas alteravam seus “poderes” ao diminuir sua capacidade de processar executivos por violação do dever de cuidado.

O cerne da disputa estava na interpretação da palavra “power” (poder) na lei. A Suprema Corte de Delaware adotou uma interpretação restrita, determinando que o direito de processar não constituía um “power” no sentido contemplado pela lei, referindo-se mais a direitos de voto ou outros poderes corporativos específicos. Consequentemente, a corte decidiu que as emendas não exigiam um voto separado dos acionistas da Classe A. Esta decisão tem implicações significativas, estabelecendo uma interpretação mais restrita do que constitui um “power” no contexto dos direitos dos acionistas, dando às empresas mais flexibilidade para fazer certas alterações sem aprovação de todas as classes de ações, e potencialmente limitando os direitos de acionistas sem direito a voto em certas situações.

Demonstra, inclusive, como a interpretação de um único termo legal pode ter ramificações extensas, afetando o equilíbrio de poder entre diferentes classes de acionistas e a capacidade das empresas de implementar mudanças em sua estrutura de governança.

A demanda da Activision Blizzard, Inc. Section 220 Litigation (2024) surgiu no contexto da aquisição bilionária da Activision Blizzard pela Microsoft, uma das maiores transações na história da indústria de jogos eletrônicos. Este caso levantou questões fundamentais sobre a diligência do conselho de administração e a importância da linguagem clara nos processos de governança corporativa. O conselho da Activision aprovou um rascunho incompleto do acordo de fusão com a Microsoft, que continha omissões significativas, o que gerou críticas severas da corte. A decisão enfatizou que a aprovação de um rascunho incompleto em uma transação dessa magnitude representa uma falha significativa no cumprimento dos deveres fiduciários dos conselheiros.

Documentos corporativos

A linguagem clara no Direito Societário não se refere apenas à interpretação de termos individuais, mas também à apresentação completa e precisa de informações em documentos corporativos. A mensagem é inequívoca: a diligência não é negociável, independentemente do tamanho ou da reputação das empresas envolvidas. Reforça a noção de que a governança corporativa eficaz vai além do cumprimento formal de regras e procedimentos. Ela exige um compromisso genuíno com a diligência, a transparência e a proteção dos interesses dos acionistas, manifestado através de uma linguagem clara, precisa e completa em todos os documentos corporativos relevantes.

O julgamento de The Williams Companies Stockholder Litigation (2021) envolveu a adoção de uma “poison pill” (medida defensiva que dificulta aquisições hostis, geralmente dando aos acionistas existentes o direito de comprar ações adicionais a um desconto) pela Williams Companies durante a volatilidade do mercado causada pela pandemia de Covid-19. O plano era excepcionalmente restritivo, com um gatilho baixo de 5% (significando que seria ativado se um acionista adquirisse 5% ou mais das ações, bem abaixo do padrão usual), definições amplas de “atuação em conjunto” e limitadas de “investidor passivo”.

A Corte de Chancelaria de Delaware considerou que os termos do plano eram excessivamente amplos e vagos, potencialmente englobando atividades legítimas dos acionistas, e desproporcional à ameaça alegada, resultando na sua invalidação. Esta decisão estabeleceu limites mais claros para “poison pills”, mesmo em tempos de crise, enfatizando a necessidade de equilibrar proteção corporativa com direitos dos acionistas. Reafirma, ainda, a disposição dos tribunais de Delaware em examinar minuciosamente as medidas defensivas corporativas, aplicando um escrutínio rigoroso à linguagem e à estrutura dessas medidas. Ao fazê-lo, a corte demonstrou que a precisão linguística e a proporcionalidade não são apenas questões de forma, mas elementos essenciais para a validade legal de tais medidas.

Estratégia

As decisões de Delaware oferecem lições relevantes para o aprimoramento do Direito Societário, destacando a necessidade de precisão linguística em todos os documentos corporativos, desde contratos até atas de reunião dos órgãos da governança. É fundamental promover clareza e concisão na redação legal, evitando a verbosidade excessiva comum na tradição jurídica brasileira. Além disso, deve-se garantir uma diligência rigorosa nos processos de aprovação corporativa. É igualmente importante manter um equilíbrio cuidadoso entre a proteção corporativa e os direitos dos acionistas, mesmo em tempos de crise. Por fim, deve-se prestar atenção às nuances linguísticas em diferentes contextos legais, especialmente em transações internacionais.

Para advogados e executivos brasileiros, adaptar-se a esses padrões não é apenas uma questão de conformidade legal, mas uma oportunidade de elevar a prática do Direito Societário no país. Deve-se entender que a governança corporativa no século 21 exige uma compreensão profunda das nuances linguísticas que podem fazer ou quebrar um negócio.

Sendo assim, a diligência na revisão e aprovação de documentos corporativos deve ser vista não como um fardo, mas como uma parte integral da estratégia de negócios e gestão de riscos.


[1] Seção 242(b)(2) do Delaware General Corporation Law (DGCL), que diz em parte:

“The holders of the outstanding shares of a class shall be entitled to vote as a class upon a proposed amendment, whether or not entitled to vote thereon by the certificate of incorporation, if the amendment would increase or decrease the aggregate number of authorized shares of such class, increase or decrease the par value of the shares of such class, or alter or change the powers, preferences, or special rights of the shares of such class so as to affect them adversely”.

Em tradução livre:

“Os detentores das ações em circulação de uma classe terão direito a votar como uma classe sobre uma emenda proposta, tenham ou não direito a voto conforme o certificado de incorporação, se a emenda aumentar ou diminuir o número total de ações autorizadas dessa classe, aumentar ou diminuir o valor nominal das ações dessa classe, ou alterar ou modificar os poderes, preferências ou direitos especiais das ações dessa classe de modo a afetá-las adversamente.”

Disponível em: https://delcode.delaware.gov/title8/c001/sc08/index.html. Consultado em: 06 jan 2025.

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Cadê a regulação dos vídeos sob demanda?

Há mais de seis anos havia uma forte reivindicação clamando pela regulação urgente e imediata do video on demand (VoD)pois o que se alegava era um enorme atraso por parte da agência reguladora para promover o adequado tratamento do tema. Veja-se que ainda naquele ano de 2018, a receita de serviços de streaming transmitidos pelo sistema over the top (OTT) ultrapassava US$ 56,17 bilhões, o que já apontava o crescimento vertiginoso desse modelo de negócio, algo que veio a se concretizar em 2024, com receita mundial batendo a casa dos US$ 182,40 bilhões [1], demonstrando que, passados seis anos, os números mais que triplicaram.

Nesse sentido alguns aspectos precisam ser devidamente explanados para que o leitor possa compreender o panorama da regulação do vídeo por demanda e ter uma leitura mais assertiva em consonância com a conjuntura dos fatos no seu devido tempo.

Mas antes de iniciar com as explanações, vale dizer que este artigo não visa discutir as motivações políticas ou ideológicas pelas quais se pleiteava efusivamente a atuação estatal efetiva naquele momento em especial, inclusive por parte dos próprios servidores da agência reguladora. O objetivo é simplesmente expor os acontecimentos de modo a demonstrar as razões pelas quais há de se constatar que a situação atual é muito mais preocupante.

Inicialmente, cumpre rememorarmos que, entre os anos de 2017 e 2018, estava em curso uma proposta para alterar a MP 2.228/2001, especificamente os dispositivos que tratam da tributação da Contribuição para o Desenvolvimento da Indústria Cinematográfica Nacional (Condecine) para fazer a inclusão da então denominada “Condecine VoD” que estava sendo discutida tanto pelos atores do mercado como pelas instituições governamentais no âmbito do Conselho Superior de Cinema [2].

Naquela época, pairava uma situação de grave insegurança jurídica sobre o mercado regulado, porquanto se questionava a legalidade e a constitucionalidade das instruções normativas da agência, que instituíam tributo por meio de ato normativo infralegal [3].

Cobrança de tributo pela Ancine

Em 2012, a Ancine decidiu inserir a cobrança de tributo por mecanismo infralegal mediante a realização de alterações nas instruções normativas 95, 104 e 105, introduzindo o segmento de mercado de vídeo por demanda na rubrica “outros mercados” dentro do espectro de incidência da Condecine Título.

Acontece que o fato gerador da Condecine Título não está previsto somente no artigo 32 da MP 2.228-1/2001. Ele é complementado pelo artigo 33. Como é cediço, a regra matriz da norma jurídica tributária nos dizeres do professor Paulo de Barros Carvalho é composta pelos critérios do antecedente e consequente. De modo que o antecedente da norma jurídica tributária formada pelos elementos: pessoal, material, temporal e espacial [4].

Portanto, quando o legislador elenca no artigo 32 da MP 2.228-1/2001 o rol de verbos (ações) praticadas pelos contribuintes para uma determinada conduta passível de tributação seguida da enumeração dos segmentos de mercado aposta no artigo 33 da MP 2.228-1/2001, significa dizer que o artigo 32 contém o “verbo” e o artigo 33 o seu devido complemento. Ambos, compõem assim o elemento material do antecedente da norma jurídica tributária.

Dessa maneira, o fato gerador tributário sujeita-se, nos dizeres do professor Luís Cesar Souza de Queiroz, ao princípio da legalidade materialmente qualificada [5]. De modo que a instituição de tributos pela introdução de novo fato gerador jurídico tributário deve ser realizado mediante lei formal, em respeito aos preceitos constitucionais dos artigos 149, § 4º e 150, I da Constituição e jamais por mera instrução normativa.

É bem verdade que existem outras razões pelas quais essa infração regulatória perpetrada por esses atos normativos infralegais é eivada de inconstitucionalidade, mas estes já foram objeto de diversos artigos científicos, bem como do meu livro Condecine e Poder Regulamentar. Portanto, não vale aprofundar essas questões já demonstradas e discutidas.

Conselho Superior de Cinema

No ano de 2019 foi apresentado um detalhamento durante a Reunião de Diretoria Colegiada nº 732, pela Superintendência de Registro da Ancine (SRE) acerca da quantidade de Certificados de Produtos Brasileiros (CPBs) e Certificados de Registro de Títulos (CRTs) emitidos no período de 2012 a 2019, evidencia-se o comportamento dos agentes regulados desde antes da criação da modalidade de tributação infralegal, até o momento em que se iniciaram as discussões sobre a Condecine VOD no âmbito do Conselho Superior de Cinema.

Dessa maneira, constatou-se que a rubrica do segmento denominado “outros mercados” sofreu um aumento significativo de 143% na arrecadação no final de 2015. Porém, a partir de 2017, quando começaram os debates no âmbito do Conselho Superior de Cinema, fica aparente o seu declínio acentuado, o que demonstra o retrato da insegurança jurídica [6].

Assim, após a aprovação de uma nova matriz para a tributação da Condecine no âmbito do vídeo por demanda ainda no ano de 2018 com as suas diretrizes e premissas, foram iniciadas as tratativas para a elaboração do texto legal e a agência reguladora acompanhava o desenrolar desse procedimento para se posicionar.

Nada mais natural do que aguardar um desenlace legislativo advindo do próprio Congresso Nacional ou até mesmo pela via de uma Medida Provisória para solucionar o imbróglio, dar segurança jurídica aos agentes de mercado e permitir o desempenho seguro da atividade regulatória e fiscalizatória por parte da Ancine.

Mudança de governo e outras prioridades

Porém, com a mudança de governo em 2019, a Presidência da República passa a ter outras prioridades. E essa matriz previamente discutida e trabalhada no âmbito do Conselho Superior de Cinema e dos agentes de mercado não segue o seu curso para aprovação.

Em vista disso, é de se constatar que, após o final do primeiro ano desse novo governo, em 2020, já era plenamente possível enxergar de modo mais claro que a regra matriz previamente trabalhada e discutida com os setores regulados não teria maiores avanços.

Nesse sentido, era imperioso construir uma nova solução para o passivo tributário que ia aumentando gradativamente com a inércia do órgão regulador. O que não foi feito!

Consequentemente, acumularam-se passivos tributários, e a situação de grave insegurança jurídica permaneceu até que em 15 de junho de 2021, com o advento da Lei nº 14.173, é inserido na MP 2.228-1/2001 o artigo 33-A com os seguintes dizeres: “Para efeito de interpretação da alínea e do inciso I do caput do art. 33 desta Medida Provisória, a oferta de vídeo por demanda, independentemente da tecnologia utilizada, a partir da vigência da contribuição de que trata o inciso I do caput do art. 32 desta Medida Provisória, não se inclui na definição de ‘outros mercados’”.

Longe de solucionar a questão, a alteração legislativa inaugurou novos problemas, senão vejamos: em primeiro lugar o texto legislativo inicia com “para efeito de interpretação”, indicando que se trata de uma “lei interpretativa”. Mas ocorre que a lei interpretativa carrega consigo um verdadeiro paradoxo, pois caso essa dita “lei interpretativa” diga respeito a entendimentos anteriores já asseverados, ela nada informa (não é o caso). Por outro lado, caso constitua, efetivamente, um novo entendimento sobre a questão, ela deve ser considerada autêntica “lei nova”, devendo, portanto, respeitar os preceitos constitucionais irretroatividade e da anterioridade, consoante artigo 150, III da CRFB/1988 (parece ser o caso).

Dessa maneira, quando o legislador aduz que a interpretação de vídeo por demanda não se inclui na definição de “outros mercados” é fundamental que seja unificado um entendimento a respeito dos recolhimentos anteriores ao advento da lei nova, haja vista que os fatos geradores ocorridos antes de 15 de junho de 2021 podem ser passíveis de cobrança ou de repetição de indébito tributário, a depender da solução que seja construída. Em outras palavras, essas soluções diametralmente opostas são ainda mais ensejadoras de insegurança jurídica.

Mudança na lei não contemplou outros segmentos

De conseguinte, é de se notar que a alteração legislativa cuida tão somente do vídeo por demanda, mas ignora solenemente os demais supostos “segmentos de mercado” que haviam sido incluídos nesse “cabide” dos “outros mercados”, aposto no artigo 33, I, ‘e’ da MP 2.228-1/2001. Basta observar o § 1º do artigo 21 da IN 105 da Ancine ao dispor que “entende-se por Outros Mercados os seguintes segmentos: I. Vídeo por demanda; II. Audiovisual em transporte coletivo; e III. Audiovisual em circuito restrito”. Ora se o legislador exclui o vídeo por demanda, o que acontece com esses demais segmentos de mercado, se é que podem ser classificados como tal?

Esse fato denota uma violação frontal à isonomia, pois não aponta soluções jurídicas para modelos de negócios (ou segmentos de mercado) que se encontram em similar situação de insegurança jurídica. Perceba-se que o vídeo por demanda ocupa verdadeiro lugar de destaque, mas nem por isso os demais modelos de negócio devem ser completamente ignorados.

Além de todas essas questões relacionadas, vem agora a cereja do bolo. Lembremo-nos que inserida nas espécies de Condecine também se encontra a Condecine Remessa, que é uma modalidade de Cide a qual incidirá sobre o pagamento, o crédito, o emprego, a remessa ou a entrega, aos produtores, distribuidores ou intermediários no exterior, de importâncias relativas a rendimento decorrente da ou exploração de obras cinematográficas e videofonográficas ou por sua aquisição ou importação, a preço fixo. Consoante o disposto no §2º do artigo 33 da MP 2.228-1/01, a Condecine será determinada mediante a aplicação de alíquota de onze por cento sobre as importâncias ali referidas.

Assim, quando o legislador trata, no parágrafo único do artigo 32 da MP 2.228-1/01, acerca da incidência do tributo sobre o “rendimento decorrente da exploração de obras cinematográficas e videofonográficas ou por sua aquisição ou importação, a preço fixo”, ele não faz uma diferenciação a respeito do mecanismo tecnológico que deverá utilizar para realizar o fato imponível tributário que está positivado de maneira genérica e abstrata no enunciado prescritivo. De modo que se torna, pelo menos em tese, juridicamente possível a incidência tributária na hipótese do video on demand, ainda que essa tecnologia não tenha sido vislumbrada em 2001 com o advento da MP 2.228-1/01.

Portanto, o agente econômico que pratica, no mundo concreto, um destes verbos previstos no parágrafo único do artigo 32 da MP 2.228-1/01, consuma o fato imponível tributário descrito no artigo 32 da MP 2.228-1/01. Logo, deverá recolher, a título de Condecine, a alíquota de 11% sobre as importâncias que forem objeto da remessa ao exterior. Isto é feito de modo que os conteúdos que derem ensejo a “rendimento decorrente da exploração de obras cinematográficas e videofonográficas ou por sua aquisição ou importação, a preço fixo” são passíveis de serem tributados pela Condecine Remessa.

Condecine Título por mecanismo infralegal

Diante disso, pergunta-se: por que instituir a Condecine Título por mecanismo infralegal e, ao mesmo tempo, negligenciar a incidência tributária da Condecine Remessa? A resposta é: “não se sabe”.

Mas antes tarde do que nunca…

Após longos anos de inércia do órgão regulador e sem qualquer outra perspectiva legislativa iminente como havia em 2018/2019, de acordo com matéria publicada pelo Tela Viva em 11 de dezembro de 2024 [7], em nota técnica, o diretor da Ancine  argumenta que a cobrança da Condecine-Remessa para serviços de streaming já está prevista na legislação atual, desde que haja remessa de lucros ao exterior. Ele destaca que a Medida Provisória 2.228-1/2001, que instituiu a Condecine-Remessa, não limita a cobrança a um ambiente tecnológico específico.

Essa é a posição que defendemos longamente no livro “Condecine e Poder Regulamentar: um ensaio sobre a infração regulatória”[8].

Porém novas dúvidas surgem a respeito deste gigantesco passivo tributário que se acumula progressivamente e agora parece ter sido reconhecido pelo próprio órgão público. Esse passivo tributário está sendo fiscalizado? Ele será cobrado? Quem responde por essa inércia?

Contudo, o que mais impressiona em todo esse cenário é a ausência do senso de urgência que predominava há cerca de seis anos.

É notório que a situação evidencia uma prática regulatória que se distancia dos preceitos constitucionais e tributários, acumulando passivos significativos sem que haja uma fiscalização ou cobrança efetiva. Tal fenômeno nos remete ao clássico A Revolução dos Bichos, de George Orwell, em que os animais, inicialmente movidos por um forte senso de justiça, acabam progressivamente aceitando a opressão de uma das espécies que assume o poder e que manipulam as leis de forma a legitimar seu domínio. Sem olvidar a famosa frase de Orwell aposta na regra nº 7 que dizia que “todos os animais são iguais” e posteriormente é alterada para: “todos os animais são iguais, mas alguns animais são mais iguais que outros”.


[1] STATISTA. Video on Demand Worldwide. Chicago. 2020. Disponível em: <https://www.statista.com/outlook/dmo/digital-media/video-on-demand/worldwide>. Acesso em 03 de janeiro de 2025.

[2] Para fins de contextualização acerca da discussão do tema, entre os meses de novembro de 2017 e junho de 2018, os representantes dos segmentos de produção, distribuição, programação e difusão multiplataforma de conteúdos audiovisuais, bem como os operadores das redes de infraestrutura de telecomunicações, sob mediação dos representantes da Agência Nacional do Cinema – ANCINE e do Ministério da Cultura – MinC, fizeram diversas reuniões buscando um consenso sobre o modelo de tributação que constituiu uma matriz consolidada, a qual foi submetida aos membros do Conselho Superior do Cinema – CSC e foi aprovada por unanimidade no dia 05 de junho de 2018.

O documento final aprovado pelo Conselho Superior do Cinema foi elaborado em reunião realizada no dia 30 de maio de 2018, na ANCINE, por um grupo de trabalho composto por juristas do setor e coordenado por representantes da Agência Nacional do Cinema e do antigo Ministério da Cultura. Dessa matriz, resultou uma proposição legislativa que tramita nas casas legislativas.

[3] MARANHÃO JUNIOR, Magno de Aguiar. Condecine e Poder Regulamentar: um ensaio sobre a infração regulatória. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2021. p. 130.

[4] CARVALHO, Paulo de Barros. Curso de direito tributário. 30.ed. São Paulo: Saraiva Educação, 2019. p. 430.

[5] QUEIROZ, Luís Cesar Souza de. Interpretação e Aplicação tributárias. contribuições da hermenêutica e de teorias da argumentação. 1ª Edição, Rio de Janeiro: GZ. 2021. p. 255.

[6] MARANHÃO JUNIOR, Magno de Aguiar. Condecine e Poder Regulamentar: um ensaio sobre a infração regulatória. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2021. p. 131.

[7] LAUTERJUNG, Fernando. Para diretor da Ancine Condecine Remessa sobre serviços de streaming já está previsto na legislação atual. Tela Viva. Matéria publicada em 11 de dezembro de 2024. Acesso em 04 jan.2025.

[8] MARANHÃO JUNIOR, Magno de Aguiar. Condecine e Poder Regulamentar: um ensaio sobre a infração regulatória. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2021.

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